Open-access COOPERATIVISMO E ASSOCIATIVISMO NO CEARÁ: FORMAÇÃO DOS EMPREENDIMENTOS E TRAJETÓRIA LABORAL DE SEUS ASSOCIADOS

COOPERATIVISMO Y ASOCIATIVISMO EN CEARÁ: FORMACIÓN DE GRUPOS Y TRAYECTORIA LABORAL DE SUS MIEMBROS

COOPERATIVISM AND ASSOCIATIVISM IN CEARÁ: DEVELOPMENT OF GROUPS AND WORK TRAJECTORY OF THEIR MEMBERS

Resumo

A pesquisa buscou analisar a história de formação de cooperativas de trabalho, verificar a importância de atores externos nesse processo e compreender a trajetória laboral dos associados e seus ingressos nos empreendimentos. Foi realizada uma pesquisa qualitativa em três empreendimentos econômicos solidários localizados no Estado do Ceará: associação de catadores de materiais recicláveis, cooperativa de costureiras e cooperativa de produtores de castanha-de-caju, por meio de entrevistas com 24 associados. Os resultados mostraram que os grupos foram auxiliados externamente no início dos empreendimentos. A trajetória laboral dos associados apresentou, de maneira geral, aspectos semelhantes, como a precarização do trabalho, informalidade e escassez de alternativas laborais. Pode-se concluir que os empreendimentos representam uma forma de inserção social por constituírem-se em espaços de oferecimento de trabalho e renda para pessoas que, por questões históricas, geográficas, sociais e/ou culturais, encontravam-se afastadas do mercado formal.

Palavras-chave: Cooperativismo; Associação de trabalhadores; Empreendimentos econômicos solidários; Trabalho; Trajetória laboral

Resumen

La investigación tuvo como objetivo analizar la historia de la formación de cooperativas de trabajo, verificar la importancia de los actores externos en este proceso y comprender la trayectoria laboral de los asociados y su ingreso en las cooperativas. Se realizó una investigación cualitativa a través de entrevistas con 24 asociados en tres empresas económicas solidarias: una asociación de recolectores de materiales reciclables, una cooperativa de costureras y una cooperativa de productores de anacardos. Los resultados mostraron que los grupos recibieron ayuda externa al comienzo de los proyectos. La trayectoria laboral de los asociados presentó aspectos similares, como la inseguridad laboral, la informalidad y la escasez de alternativas de trabajo. Se puede concluir que los grupos representan una forma de inserción social porque constituyen espacios para ofrecer trabajo a personas que, por razones históricas, geográficas, sociales y / o culturales, estaban lejos del mercado laboral formal.

Palabras clave: Cooperativismo; Asociación de trabajadores; Empresas económicas solidarias; Trabajo; Trayectoria laboral

Abstract

The research aimed to analyze the history of work cooperatives, to verify the importance of external actors in this process and to understand the work trajectory of the associates and their access in the cooperatives. A qualitative research was carried out through interviews with 24 associates from three solidarity economy enterprises: an association of recyclable material collectors, a seamstress cooperative and a cashew nut producer cooperative. The results showed that the groups were helped externally at the beginning of the projects. The work trajectory of the associates presented, in general, similar aspects, such as job insecurity, informality and scarcity of work alternatives. It can be concluded that the enterprises represent a form of social insertion because they constitute spaces to offer work to people who, for historical, geographic, social or cultural reasons, were far from the formal labor market.

Keywords: Cooperativism; Workers' association; Solidarity economy enterprises; Work; Work trajectory

Introdução

Cooperativas são associações de trabalhadores que se unem voluntariamente em torno de um objetivo comum (seja ele econômico, social ou cultural) e formam uma empresa ou instituição de propriedade coletiva que deve ser democraticamente gerida e obedecer a princípios internacionalmente estabelecidos pelo movimento cooperativista (Irion, 1997; Lima, 2007).

O cooperativismo se refere a uma figura jurídica regida por lei e algumas especificações se aplicam para a constituição e organização das cooperativas de trabalho, ele não se restringe apenas a um conjunto de práticas. Segundo a Lei n. 12.690 de 2012, uma cooperativa é definida como “sociedade constituída por trabalhadores para o exercício de suas atividades laborativas ou profissionais com proveito comum, autonomia e autogestão para obterem melhor qualificação, renda, situação socioeconômica e condições gerais de trabalho”. De acordo com a mesma lei, a autonomia deve ser exercida de forma coletiva e coordenada dentro da cooperativa, seguindo a autogestão como processo democrático que define as diretrizes de funcionamento e operações. Seus princípios norteadores devem ser: adesão voluntária e livre, gestão democrática, participação econômica dos membros, autonomia e independência, educação, formação e informação, interesse pela comunidade, preservação dos direitos sociais, do valor social do trabalho e da livre-iniciativa, não precarização e participação na gestão em todos os níveis de decisão.

No Brasil, o cooperativismo foi implantado por imigrantes europeus no final do século XIX, nas regiões Sul e Sudeste, com o objetivo de superar situações de desamparo e defesa contra os altos preços do mercado. As primeiras organizações foram de consumo, crédito e agropecuária. Já as cooperativas de trabalho, apesar de datarem de 1932, passaram a crescer significativamente no país somente a partir das décadas de 1980/90 (Gaiger, 2013; Lima, 2006, 2007; Souza, 2012).

No Estado do Ceará, o movimento cooperativista se iniciou na década de 1930, onde as primeiras cooperativas foram de crédito, cujo objetivo era o financiamento e a concessão de crédito a juros mais acessíveis para trabalhadores e pequenos e médios produtores. Funcionavam como bancos populares, nos quais os sócios eram quaisquer pessoas que quisessem levantar empréstimos (Sousa, 2012).

Com o golpe militar de 1964 e a implantação do regime ditatorial, as formas de associativismo passaram a ser vistas com desconfiança, o que gerou uma crise nas cooperativas de crédito. Aos poucos, o número de cooperativas de crédito foi reduzindo, e as que permaneceram passaram a ser controladas pelo governo. O objetivo dos militares era impedir o acesso de segmentos sociais às cooperativas de crédito, como uma estratégia de segurança (Sousa, 2012).

Na década de 1970, iniciou-se uma segunda fase do cooperativismo cearense, marcado pela adaptação dos estatutos das cooperativas para se adequarem à legislação do regime militar. Nessa fase, as cooperativas agropecuárias ganharam destaque, sendo apoiadas pelo regime através do Banco do Nordeste, Banco do Brasil e do Banco Interamericano de Desenvolvimento. O desenvolvimento das cooperativas agropecuárias foi promissor até a década de 1980, quando a produção de algodão, principal matéria prima, começou a entrar em colapso (Sousa, 2012).

Em 1986, a vitória do empresário Tasso Jereissati para governador do estado encaminhou o Ceará para o início de uma era autodenominada de "governo de mudanças" que perdurou durante toda a década de 1990. A prioridade do governo era o estímulo à instalação no estado do maior número possível de indústrias, com o objetivo de geração de emprego e renda para o combate à pobreza. Para isso, o governo ofereceu às empresas e indústrias incentivos fiscais e financeiros, apoio tecnológico, viabilidade de transporte (construção de aeroporto e construção de complexo portuário), garantia de infraestrutura básica e fornecimento de treinamento da mão-de-obra (Bergamin, 2004).

Diante desse cenário, recuperou-se a ideia de cooperativa a partir da implantação de cooperativas de produção industrial, o que representava uma novidade para a região. Assim, foram criados "grupos associativos autônomos para o trabalho urbano industrial em áreas sem nenhuma tradição industrial e, menos ainda, associativa" (Lima, 2002, p. 56). A peculiaridade das cooperativas nordestinas, incluído aqui o exemplo cearense, estava em sua constituição: foram criadas para atender demandas específicas de empresas - grandes confecções e indústrias de calçados. Os trabalhadores, compreendidos como associados, não eram regidos pelas leis trabalhistas, e o recolhimento das obrigações sociais eram de sua responsabilidade (Lima, 1997).

A constituição das cooperativas de produção industrial emergiu no Ceará para aproveitar a disponibilidade de mão de obra barata, com a terceirização da produção e redução de custos com obrigações trabalhistas por parte das empresas. Representaram uma possibilidade de ocupação para os trabalhadores, principalmente para as mulheres, mas com funcionamento fortemente subordinado à empresa contratante (Lima, 2009).

Com o passar dos anos, embora essas cooperativas não tenham acabado totalmente, muitas delas fecharam com o fim dos incentivos fiscais e por problemas trabalhistas, dentre eles o fato de trabalhadores “cooperados” passarem a exigir os direitos garantidos pela CLT (Lima, 2009). Nesse sentido, podiam ser consideradas falsas cooperativas que promoviam a precarização do trabalho (Bergamin, 2004).

André Ricardo Souza (2012), ao analisar um mapeamento de empreendimentos econômicos solidários que envolveu mais de 200 grupos de todo o Brasil, identificou que são poucos os empreendimentos que se originam a partir de uma iniciativa dos próprios trabalhadores. Tal como no caso cearense, a maioria surge pela mobilização promovida por agentes externos. Percebe-se, assim, que muitas cooperativas são criadas a partir de um incentivo de organizações governamentais, ONGs e outras fontes, muitas como parte de uma política pública para geração de trabalho e renda para trabalhadores desempregados.

A origem dos grupos pode ser um fator significativo para se pensar seu desenvolvimento, pois cooperação e confiança existentes antes da institucionalização dos empreendimentos são importantes para criar laços de solidariedade que podem levar ao seu sucesso econômico e social (Maneschy & Klavdahl, 2007). Nesse sentido, pode-se pensar que a forma como os empreendimentos se constitui inicialmente tem influência direta em seu funcionamento. Será que cooperativas criadas a partir de um incentivo externo (e não a partir de um movimento dos próprios trabalhadores) conseguem lograr a sua função como um empreendimento solidário?

Além disso, sabe-se que o trabalho cooperativo é complexo e desafiador, pois envolve questões culturais e demanda mudanças nos comportamentos, de modo a abandonar o trabalho subordinado, substituindo-o por um trabalho participativo e reflexivo. Por isso, cabe refletir sobre como as experiências laborais anteriores dos associados podem influenciar ou contribuir para o desenvolvimento da cooperativa. Como foram as experiências laborais anteriores dos atuais associados? O que os levou até a cooperativa? Pensar a origem dos empreendimentos e as experiências laborais dos associados compõe um aspecto importante para se compreender as possibilidades, limites e desafios dos grupos.

Diante do exposto, percebe-se que, historicamente, o Ceará é um estado cujo movimento cooperativista passou por diversos processos e fases, onde muitos empreendimentos foram criados como política de geração de emprego e renda, mas que adquiriram condutas duvidosas em termos de princípios e ideais cooperativistas. Mostra-se relevante compreender como cooperativas foram criadas nas últimas décadas no estado e como os trabalhadores têm chegado aos empreendimentos.

Além disso, nesse momento de "indiscutível fragilização das políticas sociais e de direitos" (Ferrarini et al., 2018, p. 173), fragilização essa agravada pela ocorrência da pandemia de Covid-19, a discussão das possibilidades de emancipação e melhoria da qualidade de vida de trabalhadores por meio de movimentos sociais, como cooperativas e associações, apresenta-se importante para se pensar a construção do futuro.

Diversos autores têm apontado para a força do coletivo como uma possível estratégia de resistência para lidar com a precarização e a instabilidade do mundo do trabalho. Segundo Ricardo Antunes e Luci Praun (2015, p. 424), a união dos laços de solidariedade e o sentido de pertencimento de classe, por parte dos trabalhadores, podem gerar um novo modo de vida, capaz de "demolir o sistema de metabolismo societal do capital e sua lógica destrutiva". Para Joelma Ramos Silva e Ramon Alcântara (2018), é preciso romper com a competição e o individualismo, recorrentes na agenda neoliberal, e construir estratégias coletivas de resistências.

Assim, os objetivos da pesquisa foram: (a) analisar a história de formação de cooperativas de trabalho, (b) verificar a importância de atores externos nesse processo e (c) compreender a trajetória laboral dos associados e seus ingressos nos empreendimentos. Para fins da pesquisa, foram considerados atores externos pessoas e/ou entidades que não compõem o grupo de associados das cooperativas analisadas, mas que influenciaram o processo de formação dos empreendimentos.

Método

Delineamento da pesquisa

O trabalho foi elaborado a partir de uma pesquisa de campo com abordagem qualitativa, adotada por valorizar o contato direto do pesquisador com os participantes, bem como com o ambiente em que a pesquisa foi desenvolvida. Além disso, partiu-se do pressuposto de que a compreensão do contexto onde os fenômenos acontecem auxilia a construção do estudo e, por isso, deve ser entendido de maneira holística, considerando o todo (Godoy, 1995).

Lócus da pesquisa

Para a pesquisa, foram selecionados três empreendimentos de trabalho, sendo uma associação e duas cooperativas. Como critério de inclusão, buscou-se cooperativas de trabalho que tivessem também um viés social, isto é, cooperativas que incluíssem pessoas que, por algum motivo, tivessem sido afastadas do mercado de trabalho formal. Foram excluídas: (a) cooperativas de prestação de serviços e (b) cooperativas de cunho empresarial. Esses critérios foram utilizados por focalizarem cooperativas de trabalhadores mais vulneráveis socialmente e, portanto, promoverem a sua visualização e reflexões sobre melhorias.

Em um primeiro momento, utilizou-se como estratégia de busca o contato e o acesso a instituições ligadas ao movimento cooperativista: Organização das Cooperativas Brasileiras do Estado do Ceará (OCB-CE), Cáritas Diocesana de Fortaleza, Incubadora de Cooperativas da Universidade Federal do Ceará (UFC) e Cadastro Nacional de Empreendimentos Econômico Solidários (CadSol).

Dentre aquelas cooperativas formalmente registradas na OCB-CE, nenhuma atendia aos critérios de inclusão estabelecidos. Em geral, as cooperativas de trabalho da OCB têm um viés empresarial e são constituídas, em sua maioria, por profissionais da saúde ou prestadores de serviços. Já os empreendimentos assistidos pela Cáritas Diocesana de Fortaleza são predominantemente associações e grupos informais, constando apenas uma cooperativa. A incubadora de cooperativas da Universidade Federal do Ceará, que participou da formação de diversos empreendimentos, no momento da pesquisa só tinha conhecimento de uma cooperativa de trabalho, a mesma assistida pela Cáritas.

No site do Cadastro Nacional de Empreendimentos Econômico Solidários havia seis cooperativas registradas na Região Metropolitana de Fortaleza. Uma é a cooperativa assistida pela Cáritas e indicada pela incubadora da UFC, outras duas não atendiam aos critérios de inclusão da pesquisa. As outras três cooperativas apresentavam telefones de contato e endereços incorretos.

A cooperativa constante no site do CadSol, assistida pela Cáritas e indicada pela incubadora da UFC, foi a primeira escolhida para a pesquisa. Trata-se de uma cooperativa de mulheres costureiras.

Por meio de conversas informais, uma cooperativa de catadores de materiais recicláveis foi localizada. Durante uma primeira visita, descobriu-se que o grupo já não se constituía juridicamente como cooperativa e, por questões jurídicas e financeiras, havia se transformado em uma associação. Frente à dificuldade de encontrar empreendimentos e pelo fato de o grupo atender aos critérios de inclusão, optou-se por incluir a associação na pesquisa.

Por fim, através de buscas na internet, uma cooperativa de produtores de castanha-de-caju foi localizada. Trata-se de uma cooperativa rural, em que os cooperados trabalham em um espaço coletivo na preparação e comercialização da castanha.

Procedimentos de produção e análise das informações

Para a coleta de dados, foram realizadas entrevistas individuais para compreender a trajetória laboral dos membros dos empreendimentos. Da associação de catadores participaram 8 associados, da cooperativa de costureiras participaram 4 membros e da cooperativa de produtores de castanha-de-caju participaram 12 membros. Todas as entrevistas aconteceram na sede dos empreendimentos, foram gravadas e, posteriormente, transcritas.

No que diz respeito à história dos empreendimentos, os dados foram construídos com base na percepção dos associados e em suas memórias. Para isso, foram incluídas nas entrevistas com os líderes e membros antigos perguntas sobre as origens e a história dos empreendimentos. No caso da cooperativa de costureiras, por sugestão da coordenadora que não está desde o princípio no grupo, foi realizada, além das entrevistas individuais, uma entrevista coletiva com os membros mais antigos.

Para analisar os dados das entrevistas, foi realizada uma análise de conteúdo (Bardin, 2011) com o intuito de compreender os acontecimentos a partir do ponto de vista dos participantes (Godoy, 1995). As entrevistas foram transcritas, em seguida foram realizadas leituras flutuantes com o objetivo de identificar os aspectos mais significativos e, por fim, foram retiradas e analisadas as informações que respondiam aos objetivos de pesquisa. Os dados foram analisados a partir da perspectiva teórica da Psicologia Social do Trabalho, cujos pressupostos buscam compreender de forma ampla os múltiplos aspectos sociais e subjetivos que permeiam as questões laborais (Bernardo et al., 2015). Tal psicologia inclui a perspectiva dos próprios trabalhadores e a compreensão do trabalho como espaço de socialização, construção de identidades, experiências e significados, possibilitados por práticas e interações cotidianas (Sato, 2003; Sato, Bernardo, & Oliveira, 2008).

Aspectos Éticos

Em respeito aos aspectos éticos, a pesquisa foi submetida ao Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) da Universidade de Fortaleza, apresentando aprovação sob parecer nº 2.955.707. As três instituições pesquisadas assinaram uma carta de anuência autorizando a realização do estudo, e todos os entrevistados concordaram e assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE).

Resultados

Associação de catadores de materiais recicláveis

Origem do empreendimento

A história da associação de catadores começa há mais de 20 anos, quando, em 1998, um grande lixão de Fortaleza-CE foi desativado, onde, aproximadamente, 300 famílias trabalhavam. Na época, o prefeito da cidade chegou a visitar o local, prometeu o apoio da prefeitura para a criação de uma cooperativa e propagou possíveis ganhos que os catadores teriam com o fim do lixão e a criação do empreendimento: rendimento similar ao do salário mínimo, melhores condições de trabalho, cesta básica mensal etc. Somente alguns anos depois a cooperativa foi de fato constituída, em 2006, com suporte e assistência da prefeitura municipal. O objetivo do empreendimento era implantar a coleta seletiva, oferecer renda e melhores condições de trabalho para as famílias que antes tiravam seu sustento do lixão e que não tinham conseguido outro trabalho.

No princípio, através de diversas parcerias, os catadores receberam treinamentos e palestras sobre como proceder para a realização do novo trabalho na cooperativa, além da doação de equipamentos e materiais para estruturar o espaço. A prefeitura cedeu um galpão e até hoje paga as contas de água, luz e os salários de dois motoristas responsáveis pela coleta de material reciclável doado por empresas.

Com o passar do tempo, frente às dificuldades financeiras para se manter, os associados decidiram mudar a personalidade jurídica do empreendimento e transformaram a cooperativa em associação, o que, segundo eles, implicou a diminuição de seus custos de manutenção.

Atualmente, cerca de 58 pessoas trabalham no galpão de reciclagem e até hoje o grupo recebe acompanhamento de técnicos da prefeitura para auxiliar a gestão. Os associados são, em sua maioria, todos do mesmo bairro ou de bairros vizinhos, uma vez que a necessidade de pagar por transporte para ir até lá inviabilizaria o trabalho por conta dos custos. Além disso, há muitas relações familiares entre os membros, o que ainda representa resquícios das famílias que trabalhavam no lixão. As mulheres compõem a maior parte dos associados, com uma presença marcante de idosos e deficientes físicos.

A maioria dos associados está no empreendimento desde sua fundação e não tem expectativa de mudança na trajetória laboral. Apesar disso, percebeu-se um sentimento de insatisfação com o trabalho atual, com queixas a respeito de problemas nos relacionamentos entre os membros, existência de disputas de poder internas e ausência de condutas solidárias na execução dos trabalhos.

Trajetória laboral dos membros

A trajetória laboral dos entrevistados da associação de catadores tem como traço comum a vulnerabilidade e precarização. Alguns começaram a trabalhar ainda crianças, em trabalhos que exigem intenso esforço físico, como cortar bambu, e com alta exposição a riscos, como o garimpo e o lixão. Além disso, quase todos tiveram outras atividades antes de entrar na associação. Há aqueles que trabalharam em fábricas de castanha, como garis e, principalmente, com trabalhos domésticos, como em casas de família, babás e auxiliares de cozinha, sendo essas funções desenvolvidas pelas mulheres. De maneira geral, os entrevistados apresentaram ocupações que não exigem qualificação profissional específica e são, muitas vezes, marginalizadas. Corroborando os traços de precarização, apenas um entrevistado afirmou já ter tido a carteira de trabalho assinada.

Alguns foram trabalhar com a coleta de material reciclável depois de experiências laborais malsucedidas, outros começaram ainda crianças ou adolescentes a trabalhar no lixão. Os entrevistados afirmaram que a entrada, tanto no lixão quanto na associação, se deu pela ausência de outras formas de inserção laboral. Percebe-se que a participação na associação se apresenta como uma questão de falta de escolhas, em um momento em que não tinham outro trabalho.

Cooperativa de costureiras

Origem do empreendimento

A cooperativa de costureiras surgiu a partir da união de um grupo de mulheres de uma mesma comunidade que, em comum, tinham a habilidade de produzir artigos de costura e que decidiram criar uma associação de mulheres, unindo socialização e geração de renda. Com o tempo, a prefeitura de Fortaleza propôs ao grupo a criação de uma cooperativa de trabalho. Durante quase um ano, as mulheres receberam cursos de formação realizados pela incubadora de cooperativas da Universidade Federal do Ceará, tendo como objetivo capacitá-las para a criação e manutenção de um empreendimento solidário, baseado na autogestão. Em 2006, a cooperativa foi legalmente fundada.

O espaço onde o empreendimento foi montado é composto por duas salas, cedidas por uma associação comunitária do bairro. Os equipamentos de costura e os móveis foram comprados através de uma verba lograda pela incubadora, na época da formação da cooperativa. Os principais artigos produzidos são bolsas de pano e roupas de linhagem. A produção acontece tanto por encomenda quanto por livre-iniciativa do grupo. O grupo costuma se mobilizar em diversas ações para impulsionar as vendas e a comercialização de seus produtos, como o envolvimento em redes de empreendimentos solidários, participação em feiras, entre outros.

Até hoje todos os membros da cooperativa fazem parte de uma mesma associação do bairro, e por isso mantêm um sentimento de coletividade que vai além do empreendimento. As entrevistadas ressaltaram os bons relacionamentos no interior da cooperativa e a existência de uma gestão democrática, o que as incentiva a permanecer no grupo.

Trajetória laboral dos membros

As cooperadas, antes de serem colegas de cooperativa, já se conheciam por residirem no mesmo bairro. São vizinhas, “comadres da Igreja”, pessoas que já tinham o cotidiano entrelaçado. A entrada na cooperativa aconteceu sobretudo por conta desses laços comunitários preexistentes. Entre as quatro entrevistadas, apenas uma está no grupo desde sua fundação, antes mesmo da cooperativa ser oficializada. As demais foram convidadas a entrar na cooperativa por membros que já faziam parte.

Das entrevistadas, três já estiveram no mercado de trabalho formal com carteira assinada e, entre as atividades anteriores, estão: secretária, auxiliar administrativo, costureira de fábrica, caixa de estacionamento. Elas contam que se afastaram do mercado de trabalho formal pela necessidade de dedicar mais tempo à família e encontraram na cooperativa a possibilidade de um trabalho flexível e próximo de casa.

Cooperativa de produtores de castanha-de-caju

Origem do empreendimento

A cooperativa de castanha-de-caju foi fundada a partir de uma necessidade de comercialização e organização da produção de castanha-de-caju realizada por moradores de uma comunidade oriunda do Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra (MST), em uma área rural no interior do Estado do Ceará. O assentamento onde está localizada a cooperativa é constituído basicamente por três famílias e seus descendentes, distribuídos em 45 casas. Desde sua fundação até os dias atuais, todos os associados são também membros do MST. Trata-se de um grupo que sempre teve laços de proximidade entre os integrantes da cooperativa e com a presença de condutas solidárias, seja por morarem todos próximos uns aos outros, por muitos terem parentes em comum, por fazerem parte do MST e terem compartilhado o processo de luta pela terra, ou também por fazerem parte de um mesmo empreendimento econômico solidário, a cooperativa.

Em 1999, os assentados montaram uma associação de produtores de castanha-de-caju e, em 2005, iniciaram uma parceria com a Fundação Banco do Brasil. Dois anos depois, em 2007, um projeto da Fundação contemplou e formalizou seis cooperativas “singulares” de produção agrícola (dentre elas a cooperativa de castanha-de-caju estudada) espalhadas pela zona rural do Estado do Ceará. Essas cooperativas vinculavam-se a uma outra cooperativa, denominada “central”, composta por representantes das singulares e criada para atender suas demandas comerciais. A ideia do projeto foi unir as forças de produção de seis grupos distintos e centralizar a comercialização em uma única cooperativa. A produção da castanha acontece nas cooperativas singulares, enquanto a comercialização é de responsabilidade da “central”.

A cooperativa de castanha-de-caju começou suas atividades com recursos oriundos da Fundação do Banco do Brasil, com apoio tecnológico da EMBRAPA (Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária), treinamento de gestão e capacitação oferecido pelo SEBRAE (Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas), além da parceria com outras instituições. No começo, os associados relatam que houve certa resistência da comunidade em acreditar no projeto da constituição da cooperativa, mas aos poucos o empreendimento mostrou-se rentável e mais membros da comunidade adentraram. Desde o início, a maioria dos associados foram jovens (ambos os sexos) e mulheres, pois os homens já tinham uma ocupação no roçado.

Trajetória laboral dos membros

O trabalho no campo, iniciado ainda na infância, com atividades como plantar, colher, cuidar de animais e dos afazeres domésticos é um traço comum dos entrevistados. Alguns trabalharam no roçado, em fazendas da região, outros se aventuraram na zona urbana com trabalhos em casas de família e em indústrias. Poucos tiveram carteira assinada, a maioria sempre trabalhou na informalidade. Atualmente, alguns cooperados alternam o trabalho na fábrica com outras atividades rurais. A maioria tem plantações de milho, feijão, mandioca, além de cajueiros, e se ocupa da criação de porcos e galinhas, quase sempre para consumo próprio.

Uma vez que na área onde a comunidade está localizada são poucas as oportunidades de trabalho, a criação da cooperativa representou uma alternativa de ocupação e renda perto da família, sem precisar se deslocar para outras regiões na busca por trabalho. Para as mulheres, a cooperativa significou o início de uma nova era, pois se antes eram consideradas “ociosas” ou “ajudantes” dos maridos no trabalho na roça, atualmente elas têm um papel de destaque no abastecimento da renda da casa, às vezes até representando a renda principal.

Discussão

Identificou-se que nos grupos analisados, antes de se formalizarem como cooperativa, os associados já exerciam a função que viriam a executar dentro do empreendimento: os catadores já catavam material reciclável, as costureiras já costuravam e o pessoal da castanha-de-caju já realizava sua produção. Ou seja, os trabalhadores já tinham familiaridade com as atividades laborais, o que difere do que aconteceu nos anos 1990 no estado com a inserção de algumas cooperativas de produção industrial (Lima, 2002). A constituição dos empreendimentos ocorreu frente à demanda de organizar a produção que já existia e fomentar seus rendimentos expandindo o trabalho e os negócios.

Em comum, as três histórias trazem um auxílio externo como precursor da criação da cooperativa. Tanto a associação de catadores quanto a cooperativa de costureiras formalizaram-se após um incentivo da prefeitura municipal de Fortaleza, o que mostra também a influência da esfera governamental para a constituição de empreendimentos desse tipo, como aconteceu nos anos 1990 com o impulso dado pelo governo estadual (Lima, 2002, 2009). Além disso, identifica-se a adoção da prática de criação de cooperativas como uma alternativa política de geração de renda. Já a cooperativa de castanha-de-caju formalizou-se com o apoio da Fundação Banco do Brasil.

De maneira geral, percebe-se a necessidade de auxílios externos para a criação e funcionamento dos grupos, onde pode-se supor que sozinhos e sem essas iniciativas eles não teriam vindo a se formalizar. Diversas pesquisas apontam que esses apoios externos, já desde a criação dos empreendimentos, têm de ser vistos com cautela a fim de evitar situações de dependência e interferir na autonomia dos membros (Freitas, Ferreira, & Freitas, 2019).

Um outro ponto que chama atenção no que se refere à constituição dos grupos são suas formas de organização anteriores à formalização da cooperativa. Na associação de catadores os associados já se conheciam por fazerem parte de um mesmo bairro e realizarem atividade de catação em um lixão e, antes do empreendimento, os membros realizavam uma tarefa de cunho individual: no lixão, era cada um por si. A associação não nasceu de um grupo constituído a partir de sentimentos coletivos e solidariedade entre os membros. Trata-se de um agrupamento de pessoas que antes, no lixão, eram "concorrentes" e trabalhavam de maneira individual e que depois foram reunidas por um ator externo (prefeitura) e, por isso, hoje estão juntas em um mesmo empreendimento laboral. Enquanto isso, nas cooperativas de costureiras e de castanha-de-caju, antes de se formalizarem, os associados já realizavam um trabalho coletivo na forma de uma associação. Na cooperativa de costureiras, existia um movimento forte de união entre as mulheres que, em um primeiro momento, construíram um grupo de apoio e que depois trouxe a questão do trabalho como forma de empoderamento, que cresceu até virar cooperativa. Na cooperativa de castanha-de-caju, por fazerem parte do MST, os indivíduos já tinham em sua própria história de vida um movimento de luta coletiva. A associação de castanha-de-caju e, em seguida, a formalização da cooperativa, só reforçaram uma união que estava na base da história de vida dos associados.

A experiência e as referências culturais dos membros e de seus respectivos grupos são significativas para a trajetória da cooperativa (Veronese, Gaiger, & Ferrarini, 2017). Empreendimentos solidários bem-sucedidos costumam estar vinculados a grupos com referências culturais e lideranças que valorizam a vida comunitária (Gaiger, 2004). Pesquisas indicam que a origem dos grupos influencia seu desenvolvimento, em que aqueles que têm em seu histórico uma luta coletiva e aqueles que, ao contrário, sempre desenvolveram atividades de cunho individual, têm condutas e maneiras organizacionais distintas (Braga & Maciel, 2018; Girelli & Magro, 2017; Melo & Scopinho, 2018). Culturalmente, nossa sociedade é caracterizada por aspectos individualistas cada vez mais acentuados (Elias, 1994) e, por isso, pensar coletivamente, como propõem os ideais cooperativistas (Veronese et al., 2017), mostra-se um desafio. Muitas cooperativas e associações têm dificuldades para implantar uma gestão autogestionária com condutas solidárias por conta de um histórico anterior de seus membros em trabalhos individuais, em que o outro é visto, muitas vezes, como concorrente (Melo & Scopinho, 2018).

A visão coletiva versus a visão individualista, as rixas internas, as dificuldades de implantação de uma gestão democrática, tudo isso é influenciado pela origem e o percurso de cada grupo, pois esses problemas podem ser evitados se a ideia de coletivo for anterior à própria criação da cooperativa. Na associação de catadores, os membros se uniram a partir de uma influência externa, enquanto nos outros dois empreendimentos a união já existia, e o papel da entidade externa foi no sentido de formalizar para fortalecer um grupo já constituído como coletivo de trabalho. A participação do sujeito em uma ação social deve ter sentido e significado para desenvolver uma consciência crítica desalienadora, geradora de novos valores (Gohn, 2008).

Outro ponto que chama atenção na trajetória dos empreendimentos é sua mudança de associação para cooperativa e vice-versa: as cooperativas de costureiras e de castanha-de-caju começaram como associações e depois formalizaram-se como cooperativas, enquanto a associação de catadores começou como cooperativa e depois migrou para associação. Para as duas cooperativas a migração para o cooperativismo aconteceu dada a possibilidade de obtenção dos benefícios oriundos da formalização. Já para a associação de catadores, a migração de cooperativa para associação surgiu como alternativa para manutenção do empreendimento, visto que mantê-lo como cooperativa mostrava-se insustentável por conta dos custos.

Como figura jurídica, cooperativas têm liberdade para estar no mercado formal, diferentemente das associações. Embora seja possível, e até mesmo frequente, ver associações de trabalhadores comercializando produtos, teoricamente a prática da comercialização é vedada para as associações, pois não têm em sua finalidade a comercialização de bens. O associativismo possui um marco legal extremamente amplo, o que inclui grupos de pessoas que desenvolvem atividades comuns, que se distinguem de instituições específicas (como por exemplo igrejas e partidos políticos) e que não tenham finalidade econômica. Já as cooperativas são similares às associações pela forma organizativa, mas têm como diferencial o fim econômico (Veronese et al., 2017). Apesar disso, os procedimentos burocráticos e a maior complexidade administrativa fazem com que muitos coletivos de trabalho optem por se manter como associação ou até mesmo como grupo informal. Um levantamento publicado pelo IPEA em 2016 mostrou que apenas 8,8% dos empreendimentos de economia solidária no Brasil funcionam como cooperativa (Silva & Carneiro, 2016). Percebe-se que essa é uma realidade compartilhada por muitos grupos que optam por atuar na informalidade para evitar os custos da formalização, visto que esta nem sempre é possível ou desejável (Veronese et al., 2017).

No que diz respeito à trajetória laboral, os membros da associação de catadores apresentaram uma trajetória marginalizada, marcada pela presença onipresente da precarização do trabalho. A associação representa uma alternativa de trabalho decorrente da falta de outras alternativas. Isto é, por terem tido experiências laborais anteriores ruins e/ou por não conseguirem outra ocupação é que os associados estão no empreendimento. Muitas cooperativas e associações são criadas justamente para atender, na maioria dos casos, trabalhadores que foram excluídos do mercado formal de trabalho (Lima, 2010; Veronese & Scholz, 2013). Nesse sentido, pode-se refletir que é comum que a entrada dos membros nos empreendimentos não se trate de uma escolha ideológica, mas sim uma questão de sobrevivência, sobretudo no caso de catadores de materiais recicláveis que sabidamente vivem em condições de pobreza e precarização (Braga, Lima, & Maciel, 2016).

Na cooperativa de costureiras, o ingresso das associadas dá-se por uma questão de conveniência mais do que de necessidade. É uma oportunidade de geração de renda flexível, sem ter que abdicar de outras tarefas como, por exemplo, as domésticas. Um traço marcante é o estigma da função da mulher em nossa sociedade patriarcal, cuja tarefa primordial é o cuidado com a casa e a família (Hirata, 2016). Não à toa, o trabalho na cooperativa foi escolhido por sua possibilidade de conciliação com as tarefas domésticas.

Na cooperativa de castanha-de-caju, a maior parte dos associados desconhece outros tipos de trabalho para além do campo. Como se trata de uma região rural, não existem muitas alternativas. A criação da cooperativa representou uma oportunidade de trabalho para jovens e mulheres que antes ocupavam-se unicamente de auxiliar os mais velhos (no caso dos jovens) e cuidar da casa (no caso das mulheres). Nesse sentido, pode-se refletir sobre a importância dos programas voltados para a população rural que possibilitam manter as pessoas no campo, envolvendo grupos familiares em uma concepção de produção sistematizada, para que eles possam prover sua subsistência e comercializar o excedente (Aquino & Silva, 2016).

Considerações finais

Diante do exposto, pode-se concluir que a história de formação dos empreendimentos estudados é perpassada pela influência de atores externos, sobretudo para sua formalização como cooperativa. O apoio municipal e de outras instituições mostrou-se fundamental para que os grupos se constituíssem como cooperativas. Apesar disso, dois dos empreendimentos já existiam anteriormente na forma de associação, o que indica que a formação de associações de trabalhadores, por apresentar um processo burocrático mais simples, é a opção mais viável para os grupos quando não acompanhados de uma assessoria externa.

Entretanto, a dificuldade para criação e manutenção de cooperativas pode não ser por acaso. É possível refletir que, assim como aconteceu durante o período da ditadura militar, atualmente muitas formas de associativismo são vistas com desconfiança por determinados grupos políticos. A desqualificação de movimentos populares e os entraves às políticas públicas de emancipação dos trabalhadores enfraquecem e ameaçam a existência de cooperativas e associações. A existência de cooperativas e associações, pautadas pelo compromisso com a emancipação dos sujeitos, conscientização e distribuição mais igualitária dos bens representa um movimento contra-hegemônico,

As duas cooperativas têm, em sua história, um paralelo com envolvimento em movimentos sociais, quais sejam, uma associação de mulheres de bairro (cooperativa de costureiras) e a vinculação com o MST (cooperativa de castanha-de-caju). A análise dos dados apontou para o fato de que experiências anteriores em movimentos sociais, por parte dos associados, podem favorecer uma cultura e uma forma de funcionar mais próxima de princípios cooperativistas, com condutas solidárias e sentimentos de coletividade. Além disso, identificou-se que essas experiências não fazem parte apenas do passado dos associados, mas representam um contínuo na vida deles. Nesse sentido, é possível pensar em uma relação positiva entre fazer parte de movimentos sociais e apresentar condutas mais solidárias e valores mais coletivos. Do mesmo modo, na associação de catadores, em que os membros vivem nos limites de suas necessidades básicas e cujas experiências laborais sempre foram precárias, a ausência de experiências associativas ou de condutas coletivas anteriores pode estar relacionada a uma maior dificuldade de enfrentamento das disputas de poder internas e estabelecimento de relações laborais mais satisfatórias entre os membros.

A trajetória laboral dos associados apresentou, de maneira geral, aspectos semelhantes, como a precarização do trabalho, informalidade e escassez de alternativas laborais. Nesse sentido, os empreendimentos representaram uma forma de inserção social. É possível refletir sobre o aspecto inclusivo das cooperativas e associações como espaços de oferecimento de trabalho e renda para pessoas que, por questões históricas, geográficas, sociais e/ou culturais encontram-se afastadas do mercado formal.

Mostrou-se recorrente nos empreendimentos a presença predominante de mulheres. Como hipótese, pode-se pensar que, por serem espaços flexíveis de trabalho, seja mais fácil conciliar com os afazeres da casa. Enquanto isso, pode-se supor que os homens vão buscar trabalhos com remuneração maior, mesmo que isso os afaste da rotina familiar. Para pesquisas futuras, sugere-se investigar a inserção da mulher em empreendimentos econômicos solidários e questões de gênero envolvidas na problemática: a flexibilidade, autonomia, conciliação com tarefas domésticas e a abdicação de uma remuneração maior e um emprego mais estável em razão da família.

O estudo permitiu compreender melhor o processo de formação de cooperativas de trabalho e a influência de atores externos para sua constituição. Tanto as experiências laborais quanto as experiências em atividades coletivas anteriores à criação do empreendimento, por parte dos associados, mostraram-se um ponto de destaque para compreender o desenvolvimento dos grupos. Espera-se, a partir das informações apresentadas, contribuir para o fomento de políticas públicas e ações que possam apoiar, estimular e auxiliar empreendimentos econômicos solidários.

Segundo Silva (2018), nos últimos anos, tem havido uma queda relativa da temática economia solidária na agenda governamental, no que se refere à dotação orçamentária, o que resulta em uma limitação da capacidade de atendimento das demandas sociais. Nesse sentido, pode-se pensar que as incertezas políticas que temos vivenciado no Brasil nos últimos anos representam uma ameaça à existência dos empreendimentos estudados.

Por fim, sabe-se que as novas configurações da organização do trabalho têm a precarização não mais como uma característica ocasional, mas sim como atributo usual (Antunes & Praun, 2015). A busca por transformações que reverberem em melhorias para os trabalhadores deve ser analisada por ampliadas perspectivas, como política, econômica e social. Para nós, pesquisadores, cabe estar atentos à correlação de forças e às formas de resistência. Além disso, a articulação coletiva dos trabalhadores se reveste de especial importância no momento atual do país, em que se observa a repressão a movimentos populares e à atuação de grupos conservadores que ameaçam o Estado Laico, a democracia e direitos já conquistados.

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  • Financiamento
    Fundação Cearense de Apoio ao Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FUNCAP)
  • Aprovação, ética e consentimento
    O estudo foi submetido ao Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade de Fortaleza (UNIFOR) e aprovado por meio de Parecer Consubstanciado nº 2.955.707.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Abr 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    26 Fev 2020
  • Revisado
    16 Dez 2021
  • Aceito
    16 Dez 2021
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