EDITORIAL
A valva mitral e a endotelina-1 na homeostase cardiovascular
Edmilson Moura
Cirurgião Cardiovascular. Médico Intensivista; Hospital de Base de Brasília. Brasília, DF, Brasil
A valva mitral, antes considerada estrutura inerte, com resposta meramente mecânica a demandas do fluxo intracardíaco, tem sido alvo de pesquisas que podem revelar funções diferentes daquelas que estamos acostumados a lhe atribuir. A ação de substâncias com efeito parácrino ou autócrino pode ser corresponsável pela constante adaptação em sua função e morfologia. A utilização de técnicas da biologia e farmacologia moleculares para elucidar tais questões oferece um fértil campo para pesquisa.
A observação de receptores no tecido valvar revela que esse tecido pode estar sujeito a transformações. Vale ressaltar que, além de sítio passível de modificações morfogênicas, a valva mitral surge como fonte geradora de substâncias com efeitos cardiovasculares. Nesse cenário, a endotelina-1 (isoforma predominante no endotélio) parece ser bom exemplo: sua complexidade farmacológica é exibida pela diversidade de ações sob o sistema cardiovascular [1,2]. Após sua identificação, em 1988, enorme interesse em suas funções motivaram mais de 20 mil publicações científicas [3,4]. No entanto, muitas questões ainda permanecem enigmáticas. Entre elas, podemos ressaltar o envolvimento da valva mitral em determinadas doenças, ora sofrendo adaptações morfofuncionais, ora potencializando e perpetuando essas condições patológicas.
Por meio de seus receptores, a endotelina-1 exerce um dos mais potentes efeitos vasoconstritores conhecidos. Afeta o inotropismo e o cronotropismo, e é coadjuvante em doenças como hipertensão pulmonar [5] e sistêmica [6] e aterosclerose [7]. Na insuficiência cardíaca congestiva, é mediadora da hipertrofia e do remodelamento cardíaco [2]. Contudo, qual é a real participação da valva mitral na fisiopatologia dessas doenças, enquanto possível fonte de endotelina-1 para os cardiomiócitos adjacentes e para sua própria estrutura? E qual é a ação dessas doenças sobre a morfogênese mitral, sendo essa valva sítio de receptores da endotelina-1?
Tais dilemas patofisiológicos escondem potenciais respostas terapêuticas para doenças altamente prevalentes, que vitimam milhões de pessoas. A utilização de antagonistas dos receptores (A e B) de endotelina-1 já é uma realidade na prática médica [8]. Logicamente, a afinidade do antagonista pelo tipo de receptor repercute em sua ação farmacológica. Mapeando tais receptores nos diversos sítios tissulares, tipificando sua ação, estabelecendo a seletividade e os efeitos de seu bloqueio químico, seremos capazes de agir mais acertadamente no tratamento dessas doenças.
No entanto, muita dúvida ainda cerca a abordagem desse tema, tendo em vista a dificuldade de obtenção de tecidos valvares normais e viáveis para o estudo quantitativo comparativo. Tal pesquisa nos permitiria definir se há maior ou menor densidade de endotelina-1 e de seus receptores em valvas mitrais normais. Isso se deve a dois motivos principais: a rápida degeneração do RNA mensageiro contido no material por RNases, só permitindo sua extração in vivo (sendo essa a técnica escolhida); e a importância da estrutura valvar em indivíduos saudáveis, impedindo a remoção de amostra para quantificação dos genes da endotelina-1 e seus receptores em valvas isentas de alterações patológicas. Uma opção seria o tecido oriundo da doação de órgãos; contudo, a aquisição de amostras com essa origem carece de legislação específica [9].
Como vimos, a valva mitral já não é a mesma, como também não deve ser a abordagem de suas funções. Sua ultraestrutura, certamente, ainda oculta muitas moléculas desconhecidas. Nessas, pode residir a resposta acerca de sua interferência em situações patológicas, e de possíveis efeitos moduladores na homeostase. Tais respostas marcarão a valva atrioventricular esquerda de forma indelével.
Referências bibliográficas
- 1. Masaki T. Endothelins: homeostatic and compensatory actions in the circulatory and endocrine systems. Endocr Rev. 1993;14(3):256-68.
- 2. Kedzierski RM, Yanagisawa M. Endothelin system: the double-edged sword in health and disease. Annu Rev Pharmacol Toxicol. 2001;41:851-76.
- 3. Yanagisawa M, Kurihara H, Kimura S, Tomobe Y, Kobayashi M, Mitsui Y, et al. A novel potent vasoconstrictor peptide produced by vascular endothelial cells. Nature. 1988;332(6163):411-5.
- 4. Barton M, Yanagisawa M. Endothelin: 20 years from discovery to therapy. Can J Physiol Pharmacol. 2008;86(8):485-98.
- 5. Cacoub P, Dorent R, Nataf P, Carayon A. Endothelin-1 in pulmonary hypertension. N Engl J Med. 1993;329(26):1967-8.
- 6. Kaasjager KA, Koomans HA, Rabelink TJ. Endothelin-1-induced vasopressor responses in essential hypertension. Hypertension. 1997;30(1 Pt 1):15-21.
- 7. Fan J, Unoki H, Iwasa S, Watanabe T. Role of endothelin-1 in atherosclerosis. Ann N Y Acad Sci. 2000;902:84-93.
- 8. Dobrek L, Thor P. Endothelin antagonists and their role in pharmacotherapy. Pol Merkur Lekarski. 2010;28(167):404-6.
- 9 Brasil. Legislação brasileira sobre doação de órgãos humanos: Lei nº 9.434, de 4 de fevereiro de 1997, que dispõe sobre a remoção de órgãos, tecidos e partes do corpo humano para fins de transplante e tratamento, e legislação correlata. Brasília: Câmara dos Deputados, Coordenação de Publicações;2001.
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
13 Mar 2013 -
Data do Fascículo
Dez 2012