RESENHA
Power and resistence in the new world order
Leonardo César Souza Ramos
Mestrando em Relações Internacionais pelo Instituto de Relações Internacionais da Pontifícia Universidade Católicado Rio de Janeiro (IRI/PUC -Rio)
Stephen Gill. New York, Palgrave Macmillan, 2003, 256 páginas.
Professor de ciência política da Universidade de York, Canadá, Stephen Gill é um autor conhecido no campo da economia política internacional1, sendo um dos expoentes daquela que se convencionou chamar de abordagem neogramsciana das relações internacionais2. No tocante ao seu novo livro, originalmente, o objetivo de Gill era apresentar uma série representativa de seus ensaios publicados desde meados da década de 80. Contudo, como ele mesmo aponta, "comecei a perceber que um trabalho coerente sobre a nova ordem mundial requereria retrabalhar alguns dos ensaios anteriores, bem como a inclusão de trabalho novo, não publicado"(:xv)3. Destarte, o livro é composto de partes inéditas (prefácio e capítulos 1, 3 e 10) e antigos ensaios já publicados4, e tem dois propósitos básicos: primeiro, apresentar um panorama geral e explicar certas dimensões da nova ordem mundial criada no pós-45; segundo, mostrar como o poder e a resistência têm aspectos e momentos múltiplos no processo de feitura das ordens mundiais. As formas de poder e resistência incluem liderança hegemônica, supremacia, contra-hegemonia e o que o autor chama de resistência transformadora: "formas de resistência que podem servir para constituir alternativas históricas" (:xi)5.
Essa resistência transformadora pode vir do "poder dos despossuídos de poder" -"power of the powerless" (:xiii) -, particularmente quando grupos aparentemente sem poder se agrupam com outros movimentos e forças sociais através do mundo. Em um sentido mais amplo, muitos desses grupos estariam formando um novo partido político transnacional que é múltiplo em seu aspecto e agrega uma série de forças em movimento, podendo ser um começo que aponta em direção a alternativas àpolítica ordinária. Assim, a nova ordem mundial poderia ser entendida como compreendendo idéias, instituições e processos em movimento, envolvendo diferentes componentes, momentos e estruturas de poder de conhecimento, e se encontrando associada a condições cambiantes de existência com as quais as pessoas se deparam na vida diária. E nessa nova ordem mundial, ao contrário do que afirma Huntington (1997), notar-se-ia não um "choque de civilizações", mas sim um "choque de globalizações" - com um embate entre as forças representadas pelo Fórum Social Mundial e pelo Fórum Econômico Mundial.
O livro é estruturado em três partes interconectadas: a primeira ("Teoria Internacional e Social") especifica o aparato teórico e os conceitos-chave que serão usados no livro; a segunda ("Economia Política da Ordem Mundial") discorre acerca tanto dos elementos da constituição histórica das estruturas de poder da ordem mundial quanto das contradições inerentes a esta; por fim, a terceira parte ("Transformação Global e Agência Política") dizrespeito aos padrões contemporâneos de poder e resistência ligados às possibilidades políticas emergentes.
De maneira mais específica, a primeira parte do livro busca defender a necessidade de se unir as teorias internacional e social mediante a provisão de uma estrutura metodológica, ontológica e epistemológica que seja adequada tanto para o entendimento quanto para a explicação das ordens mundiais. Ela é composta de três capítulos que apresentam esboços teóricos preliminares para uma perspectiva materialista histórica da economia política e das relações internacionais.
Na segunda parte, Gill discorre sobre alguns dos aspectos-chave tanto do poder quanto da resistência globais que constituem a nova ordem mundial, a saber: o domínio norte-americano e o imperialismo; o neoliberalismo disciplinar e o novo constitucionalismo como programas de reforma político-jurídica e de reestruturação global; a extensão de uma civilização de mercado emergente; e as intensas crises econômicas globais dos anos 90 e as respostas regionais e geopolíticas a estas.
Durante as décadas de 70 e 80, muitos teóricos subestimaram o poder norte-americano, esperando seu declínio, que seria seguido de um provável conflito global baseado nas formas tradicionais de resistência interestatal, o que produziria realinhamentos dentro do equilíbrio de poder. Contudo, o que se nota é que nos anos 90 a questão debatida deixa de ser o declínio norte-americano e passa a ser as profundas implicações de um renovado domínio, imperialismo e hegemonia norte-americanos em uma era de globalização intensificada. Desse modo, é nesse contexto que o autor enfatiza as maiores e mais profundas mudanças estruturais e geopolíticas que têm moldado e que estão remoldando a nova ordem mundial, e como esse processo cria novos limites e possibilidades para as forças políticas.
Assim sendo, a terceira parte surge como um desdobramento lógico da segunda, tendo como foco de análise as questões concernentes à agência política coletiva em um contexto de globalização intensificada e os limites que podem ser impostos a tal agência pelas novas relações de força no início do século XXI.
É interessante salientar o início do livro. Gill, em seu capítulo introdutório, apresenta não só algumas das influências pessoais, intelectuais e políticas que têm motivado e, de certa forma, moldado seu trabalho, como também um pequeno resumo de sua evolução acadêmica, o que contribui para o entendimento de suas posições intelectuais e políticas.
Igualmente merece destaque seu ponto teórico. Reproduzindo trabalhos importantes, Gill contribui para reforçar questões importantes nos estudos internacionais. Sua ênfase no historicismo gramsciano (capítulo 2, principalmente) dá uma contribuição louvável não só para a crítica ao positivismo, como também para as discussões acerca da questão ontológica no âmbito das relações internacionais6.
Sua discussão acerca do declínio norte-americano (capítulo 5) traz à tona problemas e limitações explicativas de teorias ortodoxas como o realismo (Gilpin, 2002) e a teoria do sistema-mundo (Wallerstein, 1974; Chase-Dunn, 1982), principalmente nas questões relacionadas ao processo de transformação na economia política global. Fundamental nesta crítica é a concepção gramsciana de hegemonia - entendida não como uma simples relação de dominação entre Estados no sistema interestatal. Na verdade, ela envolve a construção de uma forma relativamente consensual de política no âmbito de sua esfera de influência com a combinação de poder e liderança dando o peso devido às forças subordinadas em uma série de arranjos políticos institucionalizados. A hegemonia é forjada em uma complexa gama de blocos históricos que relacionam o poder público e o privado, dentro e através das nações, em redes políticas transnacionais que visam sustentar, regular e dominar uma ordem capitalista crescentemente global.
Além disso, quando discorre acerca da distinção entre as formas estruturais e diretas de poder do capital e de suas conseqüências (capítulo 6), Gill busca, como ele mesmo aponta, "superar o debate agente-estrutura na teoria social e internacional" (:71)7. Trata-se de um ponto importantíssimo, dado ser esta uma questão deveras influente nos estudos internacionais nas últimas décadas (Wendt, 1987)8. Por fim, nota-se que Gill contribui não só para o enriquecimento do debate agente-estrutura, mas também para um maior entendimento das formas de agência política coletiva que emergem no século XXI, tanto as hegemônicas ("elites globalizantes" - capítulo 9) quanto as de resistência contra-hegemônica ("príncipe pós-moderno" - capítulo 10).
Não obstante, algumas observações críticas podem ser feitas. É intrigante o fato de Gill não fazer referência em seu livro às críticas que a abordagem neogramsciana sofreu no período entre a publicação original de alguns de seus artigos e a compilação destes neste livro (ver, especialmente, Germain e Kenny, 1998). Embora não comprometa o resultado final de sua obra, essa é uma lacuna que o autor poderia ter preenchido, enriquecendo as respostas já dadas por Rupert (1998) e Murphy (1998).
Em suma, a despeito das críticas e dos possíveis pontos passíveis de uma discussão mais pormenorizada - por exemplo, quanto à existência ou não de um "príncipe pós-moderno" que representaria as novas formas de agência política global de uma maneira múltipla, nãohierárquica, sem uma única ideologia ou doutrina, sendo melhor entendido no plural, como uma gama de forças em movimento, um tipo de partido político transnacional do futuro que combina o local e o global (:217-221) -, pode-se dizer que Gill aponta, com extrema precisão, alguns dos aspectos basilares da nova ordem mundial. Além disso, uma vez que destaca dialeticamente o caráter contraditório dessa ordem, ele também aponta para a possibilidade de transformação da mesma, indicando algumas das forças sociais que podem desempenhar um papel sine qua non nesse processo. Contudo, seguindo seu historicismo não-estruturalista, constata-se que tal processo de transformação/superação não é de maneira alguma inexorável, o que dá um destaque ainda maior às suas palavras: "No novo milênio, uma questão-chave para as relações internacionais e para a economia política global será até onde e de que maneiras as novas formas de agência política estão emergindo para criar alternativas políticas reais e possibilidades para a mudança progressiva" (:157)9.
Notas
Referências bibliográficas
- BIELER, Andreas e MORTON, Adam David. (2001), "The Gordian Knot of Agency-Structure in International Relations: A Neo-Gramscian Perspective". European Journal of International Relations, vol. 7, nş 1, pp. 5-35.
- CHASE-DUNN, Christopher. (1982), "International Economic Policy in a Declining Core State", in W. Avery e D. Rapkin (eds.), America in a Changing World Political Economy New York, Longman.
- GERMAIN, Randall D. e KENNY, Michael. (1998), "Engaging Gramsci: International Relations Theory and the New Gramscians". Review of International Studies, vol. 24, nş 1, pp. 3-21.
- GILPIN, Robert. (2002), Economia Política das Relações Internacionais Brasília, Editora da UnB.
- HUNTINGTON, Samuel. (1997), O Choque das Civilizações e a Recomposição da Ordem Mundial Rio de Janeiro, Objetiva.
- MORTON, Adam David. (2003), "Social Forces in the Struggle over Hegemony: Neo-Gramscian Perspectives in the International Political Economy". Rethinking Marxism, vol. 15, nş 2, pp. 153-179.
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- WALLERSTEIN, Immanuel. (1974), The Modern World-System: Capitalist Agriculture and the Origins of the European World-Economy in the Sixteenth Century. New York, Academic Press.
- WENDT, Alexander. (1987), "The Agent-Structure Problem in International Relations". International Organization, vol. 41, nş 3, pp. 335-370.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
20 Set 2010 -
Data do Fascículo
Jun 2004