Resumos
OBJETIVO: Descrever o perfil clínico dos casos de distúrbios da diferenciação sexual em acompanhamento no Instituto Estadual de Diabetes e Endocrinologia Luiz Capriglione, no Rio de Janeiro, nos últimos cinco anos. MÉTODOS: Revisão dos prontuários dos pacientes, com o diagnóstico de genitália ambígua em acompanhamento nos últimos cinco anos, segundo os critérios clínicos descritos por Danish, em 1982. O registro mais antigo foi feito em 1981 e o mais recente de junho de 2006. RESULTADOS: Foram encontrados 62 casos de genitália ambígua: 26 com registro do sexo feminino e 36 com registro do sexo masculino. O diagnóstico mais freqüente foi o de hiperplasia congênita de supra-renal (33,9%), seguido de quadros sindrômicos (14,5%) e disgenesias gonadais (9,7%). A média de idade ao diagnóstico foi de 7,2 anos (de zero a 42 anos). CONCLUSÕES: A ambigüidade genital não é uma doença específica, mas um conjunto de alterações que direcionam o clínico a buscar diagnósticos específicos. A freqüência dessa afecção depende dos critérios diagnósticos utilizados. A adoção de critérios amplos aumenta a chance de detecção precoce do quadro bem como de cuidado adequado a crianças com distúrbios da diferenciação sexual.
genitália; diferenciação sexual; etiologia
OBJECTIVE: To report patients with ambiguous genitalia assisted at the State Institute of Diabetes and Endocrinology of Rio de Janeiro, Brazil, in the last five years. METHODS: Retrospective chart review of all cases of ambiguous genitalia, classified according to Danish criteria (1982), who attended follow-up visits in the last five years. The oldest record is from 1981 and the most recent one, 2006. RESULTS: 62 patients with ambiguous genitalia were found: 26 of them assigned as females and 36 as males. The most frequent diagnosis was congenital adrenal hyperplasia (33.9%), followed by syndromic diseases (14.5%) and gonadal dysgenesis (9.7%). The majority of patients with ambiguous genitalia were detected at birth, however, the mean age at the diagnosis was 7.2 years (zero to 42 years). CONCLUSIONS: Genital ambiguity is not a specific disease, but a set of problems that directs the physician to search specific diagnosis. The frequency of this condition depends on the diagnostic criteria used. Adopting amplified criteria in order to diagnose genital ambiguity will increase the possibility of early detention and adequate handling of these patients.
genitalia; sexual differentiation; etiology
ARTIGO ORIGINAL
Perfil clínico de 62 casos de distúrbios da diferenciação sexual
Clinical profile of 62 cases of sexual differentiation disorders
Juliana Gabriel R. de AndradeI; Rosa Rita S. MartinsII; Dayse CaldasIII; Jucimar BrasilIV; André Luiz A. MeiriñoV; Monica de Paula JungVI
IEndocrinologista, aluna de pós-graduação em nível de mestrado da Universidade Estadual de Campinas, Campinas, SP, Brasil
IIGeneticista, doutora em Ciências Biológicas pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Rio de Janeiro, RJ, Brasil
IIIEndocrinologista, doutora em Endocrinologia e Metabologia pela UFRJ, Rio de Janeiro, RJ, Brasil
IVEndocrinologista chefe do Ambulatório de Andrologia do Instituto Estadual de Diabetes e Endocrinologia Luiz Capriglione, Rio de Janeiro, RJ, Brasil
VEndocrinologista, Rio de Janeiro, RJ, Brasil
VIEndocrinologista, mestre em Ciências pelo Instituto Fernandes Figueira da Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, RJ, Brasil
Endereço para correspondência Endereço para correspondência: Juliana Gabriel R. de Andrade Rua Amaury Filho, 77 CEP 22790-320 Rio de Janeiro/RJ E-mail: jugabrielra@yahoo.com.br
RESUMO
OBJETIVO: Descrever o perfil clínico dos casos de distúrbios da diferenciação sexual em acompanhamento no Instituto Estadual de Diabetes e Endocrinologia Luiz Capriglione, no Rio de Janeiro, nos últimos cinco anos.
MÉTODOS: Revisão dos prontuários dos pacientes, com o diagnóstico de genitália ambígua em acompanhamento nos últimos cinco anos, segundo os critérios clínicos descritos por Danish, em 1982. O registro mais antigo foi feito em 1981 e o mais recente de junho de 2006.
RESULTADOS: Foram encontrados 62 casos de genitália ambígua: 26 com registro do sexo feminino e 36 com registro do sexo masculino. O diagnóstico mais freqüente foi o de hiperplasia congênita de supra-renal (33,9%), seguido de quadros sindrômicos (14,5%) e disgenesias gonadais (9,7%). A média de idade ao diagnóstico foi de 7,2 anos (de zero a 42 anos).
CONCLUSÕES: A ambigüidade genital não é uma doença específica, mas um conjunto de alterações que direcionam o clínico a buscar diagnósticos específicos. A freqüência dessa afecção depende dos critérios diagnósticos utilizados. A adoção de critérios amplos aumenta a chance de detecção precoce do quadro bem como de cuidado adequado a crianças com distúrbios da diferenciação sexual.
Palavras-chave: genitália; diferenciação sexual; etiologia.
ABSTRACT
OBJECTIVE: To report patients with ambiguous genitalia assisted at the State Institute of Diabetes and Endocrinology of Rio de Janeiro, Brazil, in the last five years.
METHODS: Retrospective chart review of all cases of ambiguous genitalia, classified according to Danish criteria (1982), who attended follow-up visits in the last five years. The oldest record is from 1981 and the most recent one, 2006.
RESULTS: 62 patients with ambiguous genitalia were found: 26 of them assigned as females and 36 as males. The most frequent diagnosis was congenital adrenal hyperplasia (33.9%), followed by syndromic diseases (14.5%) and gonadal dysgenesis (9.7%). The majority of patients with ambiguous genitalia were detected at birth, however, the mean age at the diagnosis was 7.2 years (zero to 42 years).
CONCLUSIONS: Genital ambiguity is not a specific disease, but a set of problems that directs the physician to search specific diagnosis. The frequency of this condition depends on the diagnostic criteria used. Adopting amplified criteria in order to diagnose genital ambiguity will increase the possibility of early detention and adequate handling of these patients.
Key-words: genitalia; sexual differentiation; etiology.
Introdução
Deparar-se com um caso de ambigüidade genital é uma situação difícil para toda a equipe de saúde que dá assistência à criança recém-nascida. Vários aspectos devem ser levados em consideração na abordagem, desde o diagnóstico diferencial, passando pela designação sexual que, se equivocada, pode ter repercussões importantes tanto psicológicas quanto sociais para a família e por toda a vida da criança(1); há ainda a complexidade da fisiopatologia, a grande diversidade de apresentações clínicas e o vasto leque de possibilidades diagnósticas, além das implicações prognósticas.
A caracterização precoce de um paciente com alterações na diferenciação sexual possibilita a descoberta de situações cruciais para a vida e para a sobrevida do paciente, como, por exemplo, uma crise adrenal, a presença de gonadoblastoma em algumas disgenesias gonadais e de outros tumores, como o de Wilms. Como a apresentação clínica é bastante variável, podendo ser sutil a ponto de passar despercebida inicialmente, é necessário o uso de critérios para o diagnóstico que, quanto mais amplos, maior a chance de detecção dessas situações.
Ainda existem muitas controvérsias na literatura acerca da nomenclatura mais adequada e da definição dos melhores critérios diagnósticos. Por esse motivo, o tema "ambigüidade genital" vem sendo bastante estudado pela comunidade científica e, a cada ano, são realizados novos estudos que tratam não somente da fisiopatologia mas também da investigação diagnóstica, conduta, aspectos psicológicos e epidemiológicos. Ainda assim existem poucos dados acerca de casuísticas brasileiras.
Procurou-se, neste trabalho, avaliar o perfil clínico dos pacientes caracterizados como portadores de ambigüidade genital em acompanhamento nos últimos cinco anos no Instituto Estadual de Diabetes e Endocrinologia Luiz Capriglione (Iede), Rio de Janeiro (RJ), Brasil.
Métodos
Foram selecionados todos os prontuários dos pacientes encaminhados ao hospital com suspeita ou diagnóstico de ambigüidade genital, criptorquidia e micropênis, que estivessem em acompanhamento nos últimos cinco anos. Para tanto, foram levantados dados do arquivo nosológico do Ambulatório de Genética e do Laboratório de Citogenética, bem como dos arquivos dos Ambulatórios de Hipófise/Supra-Renal, Andrologia e Endocrinologia Pediátrica.
O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa com seres humanos do Iede e a coleta de dados foi realizada de março a julho de 2006. Foram localizados 67 prontuários e cinco deles foram excluídos por não preencherem os critérios propostos para a caracterização da genitália ambígua. O registro mais antigo foi do ano de 1981 e o mais recente de junho de 2006.
O critério de inclusão utilizado foi o preenchimento dos requisitos clínicos de Danish(2) para caracterizar a ambigüidade genital. Nessa classificação, há diagnóstico de ambigüidade genital se qualquer manifestação, das listadas a seguir, estiverem presentes no paciente ao nascimento:
-
em genitália de aspecto masculino: gônadas não palpáveis; tamanho peniano esticado menor que 2,5 desvios-padrão da média de tamanho peniano normal para a idade; gônadas pequenas, ou seja, maior diâmetro inferior a 8mm; presença de massa inguinal palpável (que poderá corresponder a útero e trompas rudimentares) e hipospádia.
-
em genitália de aspecto feminino: diâmetro clitoriano superior a 6mm; gônada palpável em bolsa labioescrotal; fusão labial posterior; massa inguinal (que possa corresponder a testículos).
Excluíram-se os pacientes cuja caracterização da genitália não se enquadrava nesses requisitos, ainda que o paciente fosse portador de alguma entidade mórbida que pudesse cursar com ambigüidade.
Foram coletados os seguintes dados dos prontuários: demografia (naturalidade, residência atual, sexo de registro, data de nascimento); características clínicas (exame clínico da genitália e classificação de Prader, presença de outras anomalias ou dismorfias, exames laboratoriais ou de imagem); dados de história clínica (idade em que se iniciaram os sintomas, história neonatal, relato de crise adrenal ou de hipertensão, história familiar, gestacional e relato de fertilidade). Foi considerada história familiar positiva a presença de: relato familiar de genitália ambígua; crise adrenal e/ou morte neonatal; infertilidade; criptorquidia, hipospádia e/ou micropênis e síndromes semelhantes à apresentada pelo paciente. Além disso, coletaram-se informações sobre o cariótipo do paciente e sobre cirurgia de reparação genital. Vale ressaltar que a coleta de dados limitou-se à consulta de informações contidas nos prontuários.
Para análise descritiva dos dados obtidos, utilizou-se o software Epi InfoTM Versão 3.3.2, obtida gratuitamente através do portal do National Center of Health Statistics (NHCS) dos Estados Unidos da América.
Resultados
Dos 67 prontuários obtidos, cinco foram excluídos por não preencherem os requisitos para o diagnóstico de genitália ambígua: um caso de disgenesia gonadal pura 46 XY com fenótipo completamente feminino; um paciente suspeito de micropênis que era, na realidade, limite inferior da normalidade; um caso de suspeita de clitoromegalia normal para um recém-nascido pré-termo; um paciente com microrquia e ginecomastia e um caso sem diagnóstico. Dos 62 prontuários restantes, os diagnósticos estão descritos na Tabela 1.
Dentre os pacientes estudados, 52 (83,9%) eram do Rio de Janeiro, quatro (6,5%) de outros estados. Em cinco (8,1%) não havia relato da naturalidade no prontuário. Dos 62 pacientes, apenas sete não tinham cariótipo. Dentre os 53 restantes, só três apresentavam anomalias cromossômicas (Tabela 2).
Na maioria, houve coincidência entre o sexo genético e o sexo social, havendo apenas três (4,8%) casos de cariótipo XX e registro masculino e dois (3,2%) casos de cariótipo XY entre os pacientes de registro feminino.
A distribuição quanto ao estadiamento de Prader, de acordo com o sexo de registro, demonstrou que, dentre os pacientes identificados como femininos, a maioria obteve Prader 3 e nenhum obteve Prader 5, enquanto nos registrados como masculinos, a maioria obteve Prader 5 e nenhum foi classificado como Prader 1 ou 2 (Gráfico 1).
A história familiar de genitália ambígua, crise adrenal ou morte neonatal foi positiva em 46,2% dos pacientes com registro do sexo feminino, sendo todos os casos de hiperplasia adrenal congênita. Nos pacientes com de registro masculino, apenas 14% tinham história familiar positiva, sendo um homem XX, um caso de Síndrome de Smith-Lemli-Opitz com hipogonadismo hipogonadotrófico isolado, pan-hipopituitarismo e criptorquidia bilateral. No total, o histórico familiar positivo compreendeu 27,4% dos casos.
A média de idade ao diagnóstico foi de 7,2 anos, com mediana de três anos e variação de zero a 42 anos. A maioria dos casos de atraso ao diagnosticar a ambigüidade foi devido à dificuldade de acesso ao sistema de saúde (por exemplo, pelo fato de o paciente vir do interior). No caso de alterações como micropênis e criptorquidia, a maioria foi encaminhada para avaliação próxima à puberdade. A lista com todos os casos estudados está expressa na Tabela 3.
Discussão
O diagnóstico de um caso de "intersexo" traz consigo uma série de questionamentos por parte da família do paciente. Vários aspectos devem ser levados em consideração no atendimento a esses indivíduos, e isso não inclui apenas a determinação do sexo, mas também as implicações sociais, psicológicas e legais. Por esse motivo, tais pacientes devem ser acompanhados em serviço com equipe multidisciplinar especializada formada por clínicos (pediatras ou endocrinologistas), cirurgiões, médicos-legistas e outros profissionais, como psicólogos e assistentes sociais(3).
Os crescentes avanços na área da genética e biologia molecular vêm possibilitando a elucidação diagnóstica de um número cada vez maior de casos, o que também permite o aconselhamento genético para portadores assintomáticos de mutações, como a hiperplasia adrenal congênita(4), a deficiência de 5-alfa redutase e a síndrome de insensibilidade aos androgênios. A biologia molecular permite também uma avaliação prognóstica desses pacientes quanto ao risco de tumor(5) e à possibilidade de fertilidade. O propósito deste estudo, contudo, não é abordar o manejo dessas afecções.
A definição "genitália ambígua" é ainda controversa na literatura. Alguns caracterizam a ambigüidade genital por sua concepção mais literal, sendo classificados como tal apenas os pacientes cujo sexo não se pôde designar na avaliação inicial. Entretanto, outros autores já começam a classificar os pacientes não como portadores de "ambigüidade" ou "intersexo" e, sim, como portadores de Distúrbios da Diferenciação Sexual (DDS), tendo ou não alterações genitais extremas a ponto da designação sexual estar comprometida(6,7).
A ambigüidade genital ainda é considerada rara no meio médico. No entanto, estudos sobre prevalência mostram resultados conflitantes. Um dos pontos que poderia explicar tal diferença está no critério utilizado para caracterizar a ambigüidade genital.
Castilla et al, em 1987(8), tentou avaliar a prevalência em nosso meio. O estudo buscou revisar o perfil epidemiológico da genitália ambígua na América do Sul, incluindo 70 hospitais de referência em 34 cidades de nove países sul-americanos, entre 1967 e 1982. Considerou-se a ambigüidade genital quando não houve possibilidade de definir o sexo do recém-nascido. Foram incluídas crianças com genitália ambígua, malformada ou ausente, mas outros graus de alteração fenotípica não foram levados em consideração. A prevalência isolada de genitália ambígua foi por volta de 1 a cada 20 mil nascimentos, sendo a hiperplasia adrenal congênita sua principal causa (25 a 50% da amostra). Quando associada a outras malformações, a prevalência de genitália ambígua aumentou para 1:6.900 do total de nascimentos. Como críticas a este estudo, argumenta-se que a definição de genitália ambígua não incluiu hipospádia e o tempo de observação dos pacientes foi de apenas três dias, ou seja, somente foram analisados os recém-nascidos cuja genitália não pôde ser identificada como feminina ou masculina na primeira avaliação.
Outro artigo sobre o perfil etiológico foi o publicado por Al-Mutair et al(9). Este estudo avaliou 120 casos com diagnóstico de ambigüidade genital encaminhados ao laboratório de citogenética, entre 1989 e 1999. O diagnóstico era feito com base no cariótipo e na impressão clínica inicial do médico assistente, pediatra ou endocrinologista. Dos 120 pacientes selecionados, 63 (52,5%) apresentavam causas endócrinas, sendo 41 (34,1%) de hiperplasia adrenal congênita. Os 57 pacientes restantes foram classificados como portadores de defeitos congênitos e incluíam anormalidades de cloaca, defeitos metabólicos, síndromes específicas e hipospádia.
Em 2000, Blackless et al(7) publicaram uma revisão da literatura de 1955 a 2000 sobre a freqüência de desvio do 'ideal' de homem e mulher. Foi feita uma descrição detalhada do que seria considerado o 'homem perfeito' e a 'mulher perfeita'; dessa forma, tudo aquilo que se desviasse de tal definição seria caracterizado como DDS. Praticamente todos os casos de alteração da diferenciação sexual foram incluídos, inclusive distúrbios cromossômicos, agenesia de pênis e vagina, criptorquidia, hipospádia, micropênis e clitoromegalia isolados, distúrbios na produção hormonal, causas tumorais de excesso hormonal, disgenesias gonadais e hermafroditismo verdadeiro. Estima-se que a freqüência de distúrbios da diferenciação sexual poderia ser tão alta quanto 2% dos nascidos vivos. A freqüência de indivíduos submetidos à cirurgia de reconstrução genital, no entanto, foi entre um e dois a cada mil nascidos vivos (0,1 a 0,2%).
Em 2002, Sax(10) criticou o estudo supracitado por ter incluído pacientes que habitualmente não são consideradas 'intersexos', por exemplo, os indivíduos com síndrome de Klinefelter, Turner e hiperplasia adrenal congênita de forma não-clássica. Sax concluiu que se fossem utilizados critérios mais rígidos para caracterizar os estados intersexuais, incluindo condições nas quais o sexo cromossômico fosse incompatível com o sexo fenotípico e os casos nos quais o sexo fenotípico não pudesse ser caracterizado como masculino ou feminino, a real prevalência desta afecção estaria em torno de 0,0018%, quase 100 vezes menor do que o estimado por Blackless et al(7).
Tais estudos mostram que a definição de genitália ambígua ainda é controversa e que a falta de consenso influencia na estimativa de sua freqüência. Em 2006, membros da Lawson Wilkins Pediatric Endocrine Society e da European Society for Pediatric Endocrinology publicaram um consenso em uma tentativa de modificar a nomenclatura e uniformizar o manejo destas afecções, propondo a utilização do termo Desordens da Diferenciação Sexual, em vez de intersexo, ambigüidade genital, hermafroditismo e pseudo-hermafroditismo, como se fazia até aquela época(6). Essa nova nomenclatura incluiria não só a genitália ambígua, mas todos os casos de alterações na diferenciação sexual, mesmo aqueles cujo diagnóstico só seria percebido mais tarde, a partir de modificações na puberdade, presença de hérnia inguinal em meninas e infertilidade, entre outros.
Em 2007, especialistas brasileiros publicaram um comentário sobre este novo 'Consenso de Chicago', debatendo o impacto dessa nomenclatura na prática clínica. Apesar do objetivo nobre do consenso de tentar alterar a atual e estigmatizante classificação, os termos empregados não resolveriam totalmente a questão da terminologia. Conclui-se, portanto, que esta última nomenclatura deveria ser revista nas próximas edições do Consenso(11).
No presente estudo, não foram incluídos vários casos de hiperplasia adrenal congênita por não apresentarem genitália ambígua ao nascimento (por exemplo, os casos de hiperplasia por defeito de 21 hidroxilase em pacientes do sexo masculino e os casos da forma não clássica), disgenesia gonadal pura XY cujo fenótipo era completamente feminino, entre outros diagnósticos. Se fossem utilizados esses novos conceitos, tais pacientes provavelmente seriam incluídos, assim como os casos de síndrome de Turner e de Klinefelter, freqüentemente acompanhados em nossos ambulatórios, o que aumentaria a freqüência do transtorno.
Por se tratar de um hospital de referência do Estado do Rio de Janeiro, o Iede possui um número significativo de casos. Ao calcular a prevalência dessa condição em nossa instituição, cujo número total de pacientes em acompanhamento está ao redor de 70 mil, observa-se prevalência de 0,88:10.000, um número bastante significativo, apesar do viés de amostragem, comparado à prevalência encontrada por Sax(10) (0,0018%) e Castilla(8) (1:20.000 nascimentos). De maneira similar à literatura mundial, o diagnóstico mais freqüente em nosso meio foi hiperplasia adrenal congênita, compreendendo quase 35% dos casos, seguida pelos quadros sindrômicos (14,5%) e disgenesias gonadais (9,7%).
Ao longo da história, o tema 'intersexo' foi motivo de preconceitos, dúvidas, debates e estudos(12). Ainda hoje, os distúrbios da diferenciação sexual são um capítulo especial da prática clínica tanto por sua complexidade quanto pela carência de consenso em relação aos critérios diagnósticos e de manejo. Quanto mais soubermos sobre essas condições, tanto no que diz respeito à sua fisiopatologia, quanto à avaliação clínica e à história natural, melhor lidaremos com o paciente e, conseqüentemente, com sua saúde global, social e psicológica.
Agradecimentos
À doutora Vera Leal, chefe da Endocrinologia do Iede, ao doutor Ricardo Meirelles, diretor do Iede e ao doutor Luiz César Povoa, professor titular do curso de especialização em Endocrinologia e Metabologia da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ), por tornarem este trabalho possível.
Recebido em: 11/4/2008
Aprovado em: 6/7/2008
Instituição: Instituto Estadual de Diabetes e Endocrinologia Luiz Capriglione, Rio de Janeiro, RJ, Brasil
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
14 Jan 2009 -
Data do Fascículo
Dez 2008
Histórico
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Recebido
11 Abr 2008 -
Aceito
06 Jul 2008