RESUMO
Garrafadas, em geral, são combinações de plantas medicinais veiculadas em bebidas alcoólicas, utilizadas com diversas finalidades na medicina popular. O presente estudo apresentou um panorama das garrafadas, relacionando-as à regulamentação sanitária no Brasil. Para tal, foi realizada uma pesquisa descritiva exploratória das garrafadas divulgadas na internet, bem como das notificações de queixas técnicas e eventos adversos junto à Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). A pesquisa mostrou que as garrafadas são amplamente divulgadas na internet. Concluiu-se que as garrafadas são comercializadas em todo País, sem nenhuma barreira, sendo órfãs de regulamentação sanitária específica, mas legitimadas pela cultura popular.
PALAVRAS-CHAVE Garrafadas; Plantas medicinais; Preparações farmacêuticas; Legislação sanitária
ABSTRACT
Garrafadas, in general, are combinations of medicinal plants conveyed in alcoholic beverages, used for a variety of purposes in popular medicine. The present study presented an overview of the garrafadas, relating them to sanitary legislation in Brazil. For this, an exploratory descriptive research was carried out on garrafadas advertised on the internet, as well as notifications of technical complaints and adverse events with Anvisa (National Agency of Sanitary Inspection). The research has shown that garrafadas are widely spread on the internet. It was concluded that garrafadas are commercialized throughout the Country, without any barriers, being orphaned by specific sanitary legislation, but legitimized by popular culture.
KEYWORDS Garrafadas; Medicinal plants; Pharmaceutical preparations; Sanitary legislation
Introdução
As garrafadas são produtos complexos que, de modo geral, consistem em combinações de plantas medicinais veiculadas em bebidas alcoólicas, sendo o vinho a mais utilizada, podendo-se, ainda, utilizar mel, vinagre ou água como veículos. Essas preparações, amplamente difundidas entre a população, são utilizadas com finalidades terapêuticas diversas. São geralmente administradas por via oral, mas é possível também encontrar garrafadas para administração por via tópica e inalatória1,2. As garrafadas constituem soluções extrativas compostas por uma variedade de espécies vegetais em um líquido extrator, geralmente hidroalcoólico3. Segundo Camargo, garrafada é definida como
uma fórmula medicinal preparada com componentes de origem vegetal, mineral e animal, complementada com elementos religiosos próprios dos sistemas de crenças vigentes no Brasil1(35).
Dantas et al.2 consideram as garrafadas como soluções constituídas basicamente por dois componentes distintos, o solvente e os solutos. O solvente utilizado é geralmente vinho, cachaça, água, mel ou 'Água Rabelo'; e o soluto, uma combinação de plantas medicinais, podendo ser também acrescentados elementos de origem animal ou mineral. As partes de vegetais podem ser cascas, frutos, folhas, raízes ou flores, secas ou frescas. O produto da mistura fica em maceração por, no mínimo, três dias. Muitos raizeiros, curadores e benzedeiras têm por prática enterrar a garrafada preparada. Alguns autores destacam as garrafadas como remédios ou fórmulas com finalidades terapêuticas específicas, como, por exemplo: garrafada para problemas de rim, de fígado, de coração, de bronquite, de fraqueza sexual, como depurativo do sangue, entre outros.
Acredita-se que as garrafadas sejam diretamente derivadas da formulação jesuíta Triaga Brasilica, uma panaceia à base de vinho, mel e ingredientes 'secretos' que surgiu por volta do século XVI, no Brasil. Na época, acreditava-se que manter o segredo das formulações era essencial à eficácia das triagas, que eram vistas como remédios divinos, mágicos. Percebe-se que o elemento religioso/espiritual ainda permanece fortemente atrelado à medicina popular contemporânea, o que remete à popularidade dessas preparações, que prometem 'curas milagrosas'1.
Com o passar dos séculos, as garrafadas continuaram sendo consideradas preparações de fundamental importância no arsenal terapêutico de diversas comunidades brasileiras. Na comunidade quilombola de Olho D'água dos Pires (Piauí), a planta conhecida como mussambê é frequentemente empregada no preparo de uma garrafada indicada para gripes e tosse, o que faz dela a espécie com maior valor de uso no estudo realizado por Franco e Barros4. Na Amazônia, garrafadas para tratamento de malária também são tradicionalmente usadas entre índios que residem na região do Rio Negro5.
Mas não é apenas na medicina tradicional brasileira que as garrafadas têm destaque. As botellas (garrafas, em espanhol), formulações muito semelhantes às garrafadas, são famosas na República Dominicana, sendo utilizadas, principalmente, para problemas respiratórios, geniturinários e para saúde reprodutiva6. Merece destaque a mamajuana, uma garrafada afrodisíaca típica, feita com base em ervas locais, que, além de muito empregada tradicionalmente pela população dominicana, é amplamente comercializada como uma poderosa bebida tônica para os turistas estrangeiros.
É possível encontrar as garrafadas disponíveis para a venda em feiras livres e mercados populares em várias regiões do Brasil7,8, mas é no mercado Ver-o-Peso, em Belém do Pará, onde as garrafadas ganham destaque9. Nesses locais, esses produtos, preparados e mantidos por grupos culturais, como raizeiros, rezadores, curandeiros e vendedores de plantas medicinais, são vendidos livremente10,11. Mais recentemente, a divulgação e o comércio das garrafadas têm se expandido através da internet.
Não existe regulamentação sanitária acerca desse tipo de produto. Quando se busca o termo 'garrafada' no site da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), este nos remete a seguinte informação: 'Produtos sem registro ou notificação na Anvisa'. Isso ocorre porque as garrafadas não são reconhecidas como medicamentos nem como plantas medicinais ou qualquer outro tipo de produto para saúde pela autoridade sanitária no Brasil.
Enquanto o 'medicamento' é definido como "produto farmacêutico, tecnicamente obtido ou elaborado, com finalidade profilática, curativa, paliativa ou para fins de diagnóstico"12, as 'plantas medicinais' "são aquelas capazes de aliviar ou curar enfermidades e que possuem tradição de uso como remédio em uma população ou comunidade"12. Para usá-las, é preciso conhecer a planta, saber onde obtê-la e como prepará-la, sendo, no Brasil, permitida a comercialização de plantas medicinais em farmácias e ervanarias que atendam às normas sanitárias vigentes, incluindo o farmacêutico responsável técnico pelo estabelecimento12.
Apesar disso, as plantas medicinais não são consideradas medicamentos, portanto, não podem ter indicação terapêutica na embalagem, assim como posologia e restrição de uso. Desta forma, embora sua comercialização esteja prevista pela regulação sanitária, não há legislação específica sobre sua obtenção e produção13.
Os fitoterápicos, por sua vez, passaram a ser regulamentados a partir dos anos 1990, com a implementação do Sistema Único de Saúde (SUS) e a criação da Anvisa, tanto para que fossem caracterizados pelo conhecimento da eficácia e dos riscos de seu uso como, também, pela constância de sua qualidade, sendo necessário apresentar critérios similares de qualidade, segurança e eficácia requeridos pela Anvisa para os demais medicamentos14.
Já as garrafadas, apesar de amplamente utilizadas e reconhecidas pela população como remédio, não são submetidas a nenhum teste de segurança, eficácia e qualidade. Dessa forma, não se enquadram na definição de medicamentos ou de fitoterápicos e tampouco de plantas medicinais.
Algumas dúvidas ficam iminentes quando se pensa em garrafadas: quais são as garrafadas mais comercializadas e divulgadas? Como se dá o comércio e a disseminação desses produtos? Qual é a atuação da vigilância sanitária frente ao comércio desses produtos? Há apreensões de garrafadas pelos órgãos sanitários? Há notificações de queixas técnicas e eventos adversos sobre as garrafadas?
Portanto, o objetivo deste trabalho é apresentar um panorama dos produtos denominados garrafadas, relacionando-os à regulamentação sanitária vigente no Brasil, além de propor uma nova definição, mais abrangente e atual, para essa categoria de produto.
Metodologia
Trata-se de um estudo descritivo exploratório, com o intuito de analisar as informações sobre garrafadas divulgadas na internet. Foi realizada uma busca da palavra-chave 'garrafada' em site de busca (Google), em bases de dados (Google Scholar, Science Direct, Pubmed) e em sites especializados em vendas pela internet (Mercado Livre e OLX). A busca no Google foi realizada em janeiro de 2017, enquanto a busca nas demais bases de dados foi realizada em fevereiro de 2017. Deve-se considerar que os dados apresentados têm limitações inerentes ao próprio mecanismo de pesquisa do Google, que determina a relevância dos resultados de maneira personalizada para cada usuário com base em mais de 200 fatores15.
Para registro e posterior análise dos dados, foram criadas as seguintes variáveis: fonte acessada, links, tipo de garrafada, indicações, posologia, composição (nome popular), veículos, via de administração, restrições e riscos, se é comercializada ou só divulgada.
Foi utilizado, ainda, o banco de dados do Sistema de Informação sobre Notificação Voluntária da Anvisa, buscando identificar as resoluções de recolhimento de garrafadas publicadas pela Anvisa, e as notificações sobre garrafadas realizadas no Sistema de Notificações em Vigilância Sanitária (Notivisa), no período de 2006 a 2016. A busca foi realizada utilizando os seguintes descritores de busca: garrafada; preparado; suco; preparação; elixir; composto; planta; concentrado; leite; licor; pinga; vinho; e extrato. O motivo fixado em toda a busca foi 'medicamento', e o intervalo de tempo foi de 01 de janeiro de 2006 até 31 de dezembro de 2016.
Após o acesso individualizado aos dados, realizou-se uma avaliação minuciosa de cada notificação registrada no sistema associada aos descritores definidos para elaboração da análise proposta.
Resultados
Foram encontrados cerca de 212.000 registros de páginas da web contendo a palavra-chave 'garrafada' no Google. Destes, foram analisados os 100 primeiros endereços de páginas da Web (links) verificados na busca, e, destes, 48 correspondiam a páginas contendo informações sobre as garrafadas. Buscando compreender o que vem sendo difundido como garrafada no Brasil, foram analisadas as principais características das garrafadas encontradas na amostra estudada, considerando sua indicação, composição, seu veículo e sua forma de utilização (quadro 1).
Foi encontrada uma grande variedade de garrafadas para diferentes indicações. Dos 48 links, 7 páginas promoviam a venda de garrafadas, e 19 correspondiam a páginas que divulgavam receitas de garrafadas para as seguintes indicações: para engravidar (15 citações), dar energia (2 citações), contra impotência (2 citações), como afrodisíaca (1 citação), emagrecedora (1 citação), para tratamento de câncer (2 citações), bronquite (1 citação), hemorroida (1 citação), vermes (1 citação), menopausa (1 citação), hepatite (1 citação), infecção (1 citação), prosperidade (1 citação), sorte (1 citação) e proteção contra inveja (1 citação) (quadro 1).
Quanto às composições, inicialmente, buscou-se verificar quais eram os principais veículos empregados. Foi visto que 81,25% das receitas analisadas indicavam o emprego de algum tipo de bebida alcoólica, como vinho tinto ou branco (seco ou suave), conhaque, cachaça e álcool de cereais. O vinho foi o principal veículo utilizado, recomendado em 21 das 32 receitas divulgadas em 19 links. Veículos não alcoólicos também foram empregados, como: vinagre de maçã, água, mel e leite condensado. Alguns veículos, por falta de definição, foram classificados como não alcoólicos, como o extrato de própolis e o Biotônico Fontoura®.
Quanto aos insumos ativos vegetais, foi verificado o emprego de um grande número de plantas medicinais, sendo as garrafadas, na maioria das vezes, compostas por misturas complexas, contendo de duas até 21 plantas. Nas receitas de garrafadas para engravidar, tipo de garrafada mais divulgada entre as analisadas, as plantas medicinais que mais se destacaram foram o uxi amarelo e a unha de gato (5 citações cada), e o romã (4 citações).
Com relação à via de administração, a via oral foi a principal para a maioria das garrafadas analisadas, sendo recomendada em 92,6% das receitas. Apenas uma receita (3,1%) indicava a administração da garrafada pela via tópica. Houve, ainda, duas receitas para as quais a determinação de via de administração não se aplicava, uma vez que a garrafada em questão deveria apenas ser carregada com a pessoa, como um amuleto (quadro 1 - item 26).
Entre as 32 receitas de garrafadas identificadas, 17 (53,1%) não traziam quaisquer informações sobre riscos e contraindicações ao uso. Em meio às páginas que continham informações para venda de garrafadas, 3 (42,9%) também não traziam essas informações ao consumidor. Uma das páginas que promoviam a venda de garrafada para engravidar (quadro 1 - item 24) destacava até mesmo que 'não há nenhuma contraindicação' e que 'qualquer pessoa pode fazer uso' do produto, apenas mencionando que o uso deve ser suspenso após a constatação de gravidez.
Ao se pesquisar 'garrafada' em possíveis sites de venda, no site Mercado Livre, foram encontrados 8 resultados de garrafadas e/ou concentrados de plantas para as seguintes indicações: saúde do homem (3), saúde da mulher (1), afrodisíaco (1), azia e má digestão (1), energético (1) e extrato emagrecedor (1). Para as indicações 'saúde do homem', duas garrafadas eram reguladores hormonais e uma diurética e antisséptica. A garrafada para 'saúde da mulher' tratava-se de um produto depurativo e analgésico. Apenas a garrafada com indicação afrodisíaca continha a sua composição discriminada (jenipapo, catuaba e mel de caju). No site OLX não foi encontrado nenhum registro com o termo garrafada.
No Google Scholar foram encontrados, aproximadamente, 2.200 resultados, excluindo-se citações, para a busca da palavra-chave 'garrafada'. Na mesma data, foram encontrados 26 resultados para a busca da palavra-chave 'garrafada' no Science Direct, e apenas 2 resultados para a mesma busca no Pubmed. Mereceu destaque o trabalho intitulado 'Antitumoural effect of Synadenium grantii Hook f. (Euphorbiaceae) latex' publicado em 2013 na 'Journal of Ethnopharmacology' por Oliveira, Munhoz, Lemes, Minozzo, Nepel, Barison, Fávero, Campagnoli e Beltrame, por se tratar de um dos poucos estudos em que testes biológicos foram realizados in vivo com garrafadas. Nesse estudo, foi verificada a atividade antitumoral de uma garrafada preparada com o látex de Synadenium grantii, popularmente conhecida como janaúba. Ao procurar pela palavra-chave 'janaúba' no Google, o quinto link mais relevante correspondia a um vídeo do YouTube (de título 'Janaúba - Planta no Tratamento do Câncer'), que tinha quase 250 mil visualizações e trazia instruções para o preparo de uma garrafada com a espécie. Aproximadamente 843 links foram encontrados após a procura pelas palavras-chave 'garrafada' e 'janaúba' no Google.
No banco de dados de farmacovigilância do Notivisa, no período de 2006-2016, foram encontradas 108.052 notificações, das quais apenas 14 eram sobre garrafadas. Dos descritores definidos para esta pesquisa somente foram avaliadas notificações relacionadas aos seguintes termos: garrafada (1), composto (5), elixir (1), suco (1), concentrado (4), vinho (1) e extrato (5). Para as demais palavras utilizadas na busca, não foram observadas notificações.
Todas as notificações avaliadas foram cadastradas no sistema associadas à descrição de 'produto sem registro' ou 'ausência de registro', situações que são categorizadas pelo Notivisa como 'queixa técnica' de produto. Foi verificado que um mesmo produto, denominado 'Concentrado de Plantas Medicinais', chegou a ser notificado quatro vezes, em diferentes estados brasileiros, e para o descritor 'extrato', observaram-se cinco notificações, apesar das diferentes composições, como é possível observar no quadro 2.
Discussão
Bastou uma pesquisa superficial por 'garrafada' no Google para que fossem encontradas receitas e venda de garrafadas para o tratamento das mais diversas condições, até mesmo para a 'cura do câncer'. Além disso, ainda foram identificadas outras finalidades inusitadas para esse produto, tais como 'para sorte' e 'proteção contra a inveja', o que denota indicações para além de possíveis efeitos terapêuticos, adentrando a seara mística como um amuleto, onde a utilização da garrafada traria um poder mágico, verificado no significado simbólico de proteção para quem a usa contra a inveja e os maus agouros.
Segundo Camargo1, no cenário popular, o 'poder de cura' atribuído às garrafadas se deve aos efeitos da fé religiosa, na medida em que a esperança de cura promove a 'certeza da eficácia da garrafada', principalmente para aqueles que buscam não somente a solução para seus problemas físicos, mas, também, mentais e espirituais, o que não é garantido pela medicina oficial, em nenhuma de suas formas de atenção ao doente no sistema de saúde.
Portanto, as plantas medicinais desempenhariam efeitos distintos, porém, complementares na produção do poder curativo da garrafada, sendo o efeito farmacológico relacionado às substâncias ativas, e o efeito sacral representado pelo valor religioso, oriundo da crença do seu usuário10.
Nesse sentido, dotado de fé e de esperança, as garrafadas para engravidar estão, sem dúvida, entre as mais disseminadas pela internet. É interessante destacar que a unha de gato e o uxi amarelo foram os componentes mais utilizados nas receitas analisadas de garrafadas para engravidar, o que está de acordo com a literatura de plantas medicinais amazônicas, que trazem para elas indicações diversas para tratar desordens uterinas, tais como mioma, endometriose, entre outros problemas que podem estar relacionados com a infertilidade feminina, além das indicações de uso das mesmas, muitas vezes em associações, para melhorar a fertilidade e para engravidar16,17.
Chama, ainda, a atenção a divulgação de duas receitas de garrafadas para tratamento de câncer, as quais não trazem informações sobre riscos e contraindicações. É especialmente perigosa a indicação de receitas caseiras para tratamento de câncer devido à gravidade da doença. Nesse sentido, a legislação brasileira deixa claro que Produtos Tradicionais Fitoterápicos "não podem se referir a doenças, distúrbios, condições ou ações consideradas graves"18(2). É interessante notar que, pelo menos, duas das plantas utilizadas em uma receita indicada (quadro 1 - item 5), o ipê-roxo e o picão-preto, são tradicionalmente utilizadas para tratamento de câncer e condições relacionadas ao câncer. Contudo, embora ambas as plantas tenham atividades antitumorais já demonstradas em modelos in vitro e in vivo (em animais, como camundongos)19, não é recomendável a utilização de nenhuma delas (tampouco das duas associadas) para esse fim, sem que estudos atestem sua segurança e eficácia em humanos.
A análise dos dados levantados permitiu identificar preliminarmente alguns padrões desse tipo de produto. A maior parte das garrafadas continha misturas de plantas medicinais. Segundo Oliveira et al.14, existe enraizada na cultura brasileira a crença de que 'quanto mais planta, melhor o efeito'. No entanto, a utilização de plantas medicinais exige cautela, uma vez que a concentração de substâncias ativas costuma variar em uma mesma espécie devido a fatores genéticos e ambientais, além de existir a possibilidade de interações entre diferentes grupos de substâncias, o que dificulta a previsão precisa do efeito que uma planta pode exercer no organismo20.
Há também de se destacar que mais da metade das receitas divulgadas não trazia informações acerca dos riscos e das contraindicações das garrafadas. Tal fato pode se dar em função de as garrafadas serem equivocadamente concebidas como 'naturais', fato que lhes confere credibilidade por parte do usuário.
Outro ponto extremamente importante no que tange às garrafadas são os veículos empregados. É importante notar que mais de 80% das garrafadas levantadas apresentou em sua composição algum teor alcoólico, considerando não apenas o uso de bebidas alcoólicas, mas, também, o álcool de cereais. Resultados semelhantes foram obtidos por Dantas et al.2, após a análise de 40 tipos de garrafadas, onde foi verificado que 84% dos veículos de garrafadas citados eram alcoólicos, e 56% correspondiam ao vinho. Isso demonstra que, empiricamente, o uso de álcool é extremamente explorado como forma de aumentar o poder extrativo sobre as plantas medicinais empregadas nas garrafadas, buscando extrair uma maior diversidade de compostos, especialmente os apolares, que são pouco extraídos com veículos aquosos. Além disso, deve-se destacar a importância do álcool na estabilidade das garrafadas, especialmente contra a proliferação microbiana. Carrara21 destaca, inclusive, a lógica de que, quando na garrafada predomina a planta fresca, geralmente, ela é feita com aguardente. Quando predominam cascas, paus ou raízes, mesmo com alguma planta fresca, usa-se vinho. Acontece que a planta fresca contém mais água do que as secas, e se o preparado for feito de vinho, cujo teor alcoólico é mais baixo do que o da aguardente, o remédio fica aguado.
Contudo, se o álcool apresenta as suas vantagens, também representa um risco a mais de interação medicamentosa, especialmente para pacientes com problemas hepáticos, dependência alcoólica etc. Por outro lado, o uso de veículo aquoso restringe a extração, de um modo geral, apenas a constituintes polares, além de apresentar um período de validade extremamente curto, sob o risco de contaminação microbiana. Provavelmente, por conta disso, o uso de veículos aquosos é raramente empregado22.
Outros veículos ainda merecem destaque. É possível que o uso de vinagre, como solução ácida fraca, possibilite uma melhor extração de substâncias básicas, como alcaloides, por exemplo, além de aumentar o tempo de preservação, em relação à água. O uso do Biotônico Fontoura(r), descrito em algumas receitas, pode contribuir para que a garrafada incorpore as indicações nutricionais do próprio produto (suplemento mineral ou auxiliar nas anemias e em dietas inadequadas), além dele conter extratos glicólicos de diversas espécies vegetais, contribuindo para uma ação extrativa do solvente hidroglicólico sob as plantas medicinais empregadas na garrafada. Ainda é possível imaginar que o solvente hidroglicólico, a sacarose e o conservante, presentes na composição do Biotônico, possam aumentar a durabilidade da garrafada. Por fim, vale mencionar que o mel e o leite condensado também podem ser usados como veículos para tornar o meio hipertônico em açúcares, dificultando a rápida proliferação microbiana.
Contudo, os riscos vão muito além da conservação das formulações, frente às possíveis contaminações. Outras questões merecem a devida atenção sanitária, tais como: os cuidados na obtenção e no processamento da matéria-prima, as interações entre os constituintes ativos, as interações medicamentosas, os efeitos colaterais e a ausência de comprovação científica sobre segurança e eficácia das formulações. A preservação dos princípios ativos já pode ser seriamente comprometida a partir de um processo de secagem e armazenamento inadequado da planta medicinal, pois podem ocorrer degradações químicas por processos metabólicos, hidrólise, oxidação, fermentação, provocados pelo calor, pela luz e pela ação enzimática, assim como pela contaminação microbiológica11. Outro risco inerente que ainda existe para as garrafadas está relacionado com a possibilidade de adulteração, pela ausência de identificação taxonômica das plantas7.
Em algumas garrafadas, é possível verificar a tentativa de enganar o consumidor, trazendo nas embalagens (ou descrições do produto) supostas leis ou decretos que tornariam esses produtos isentos de registro e de regulamentação sanitária. No presente estudo, foi verificado que, entre os 7 links que promovem a venda de garrafadas, 2 (quadro 1 - itens 11 e 16) destacavam que a garrafada é um produto 'Isento de Registro de acordo com o artigo 28 - Decreto nº 79.094 - Lei nº 6.360 de 23/09/1976', embora o decreto em questão, além de ter sido revogado pelo Decreto nº 8.07723, não mencione nem isente as garrafadas de registro.
É interessante notar que as 'garrafadas' são praticamente 'invisíveis' ao olhar da vigilância sanitária, visto que, antes da própria regulamentação sanitária brasileira, já existiam na medicina popular. Como já foi dito, as garrafadas vêm se mantendo pela tradição popular desde a colonização e se fortaleceram com a miscigenação e com as inter-relações culturais que formaram o povo brasileiro. Neste sentido, as garrafadas são legitimadas culturalmente, o que lhes confere credibilidade. Assim, embora sejam obtidas, na sua maioria, a partir de plantas medicinais, são produtos que se encontram à margem da regulamentação e da regulação sanitária.
No presente estudo, verificou-se, ainda, que um pequeno número de notificações, oriundas de denúncias ou notificações voluntárias, foi encontrado nos registros do Notivisa, que não estão necessariamente relacionadas com apreensões da vigilância sanitária. Essas notificações ocorreram em 10 estados, distribuídos em 4 regiões distintas do Brasil, com exceção da região Norte, o que demostra sua provável existência e comercialização em quase todo o País. Esses resultados demonstram uma aceitação tácita desses produtos irregulares pelos órgãos sanitários, em função da sua tradição de uso no Brasil e da dificuldade da população em obter atendimento no SUS, o que termina favorecendo a busca de outros recursos terapêuticos, como a aquisição de garrafadas.
Ainda é possível acreditar que as garrafadas são comercializadas, sem nenhuma restrição, porque existe uma demanda popular para sua utilização, mesmo sabendo, em muitos casos, da informalidade e de sua procedência duvidosa. Muitos comerciantes na ponta final da cadeia de venda já exercem essa atividade há anos ou décadas, sendo até mesmo a única fonte de renda e subsistência da família. No Mercado Ver-o-Peso, por exemplo, a tradição das garrafadas já pode ser defendida por muitos como um 'patrimônio cultural imaterial' de Belém do Pará. Desta forma, é importante se conhecer e estabelecer critérios mínimos para que tais produtos se perpetuem nesse mercado não formal, devendo haver uma conscientização tanto de quem produz e vende quanto do consumidor, especialmente em virtude dos alertas dos riscos nas embalagens e da ausência de comprovação de segurança, eficácia e qualidade.
No atual contexto sanitário brasileiro, a segurança desses produtos é essencial. Estudo recente de Lima et al.7 identificou 42 plantas medicinais comercializadas em feiras livres, revelando que a produção e a comercialização das plantas medicinais não possuíam um padrão mínimo de qualidade, sendo necessária a implantação de políticas públicas voltadas à capacitação desses profissionais, agregando valor ao saber popular sobre plantas medicinais.
Por outro lado, os produtos obtidos de plantas medicinais são de extrema importância, principalmente no Brasil, onde a biodiversidade da flora nativa é uma rica fonte de matéria-prima, devendo ser aproveitada como recurso para a saúde, considerando, ainda, as características de cada região do País. Nesse contexto, as próprias garrafadas empregadas tradicionalmente, ou mesmo comercializadas, podem servir de contribuição para a incorporação de novos recursos terapêuticos para a sociedade.
Nesse sentido, é preciso lembrar que a Política Nacional de Plantas Medicinais e Fitoterápicos (PNPMF) tem como premissa o respeito aos princípios de segurança e eficácia na saúde pública, porém, resguardas as diversidades e particularidades regionais e ambientais. Além disso, reconhece as práticas e os saberes da medicina tradicional, contemplando as diversas formas de uso das plantas medicinais, desde aqueles das comunidades locais, passando por todas as outras possibilidades de cadeias produtivas desse setor no Brasil24. Assim, a busca de novos recursos terapêuticos voltados à população deve reconhecer a grande diversidade de formas de uso das plantas medicinais, desde o uso caseiro e comunitário, passando pela área de manipulação farmacêutica de medicamentos até o uso e a fabricação de medicamentos industrializados, respeitando a diversidade cultural brasileira.
Porém, é fundamental que não se perca o limiar de legalidade, bem como o de segurança, eficácia e qualidade para que esses produtos não ofereçam risco aos usuários, quaisquer que sejam eles. Di Stasi define o termo 'remédio' como procedimento, processo ou produto de diferente natureza usado com a finalidade de cura ou prevenção de doenças, incluindo o alívio de sintomas25. Contudo, o autor ressalta que a finalidade terapêutica não representa, em nenhum momento, a garantia de efeito, que pode ou não ser alcançado. Além disso, traz o conceito de 'remédio de natureza química', que possui uma ou mais substâncias responsáveis por determinada atividade biológica.
Considerando todos os resultados e reflexões aqui apresentados, propõe-se um conceito mais atual e abrangente sobre as garrafadas, que podem ser definidas como: 'Remédios de natureza química, simples ou complexos, geralmente à base de plantas, podendo conter derivados animais ou minerais, em que a matéria-prima utilizada é submetida à extração em determinado solvente, geralmente do tipo hidroalcoólico, em que o processo de extração se dá em um período não inferior a 3 dias, podendo chegar até a semanas ou meses de maceração'. Quando pronta, a garrafada pode ser empregada por via oral, tópica ou inalatória para tratar os mais diversos males, de acordo com suas indicações. Contudo, pelo fato de esse tipo de produto ser desprovido de estudos de segurança, eficácia e qualidade, embora, em muitos casos, seu uso possa ser consagrado tradicionalmente, não é possível que seja configurado como fitoterápico, o que faz com que esteja à margem da legislação sanitária.
Conclusões
A garrafada é um produto marginal à regulação sanitária. Não se enquadra na definição de medicamento fitoterápico, nem planta medicinal, entretanto, é legitimada pela cultura popular e utilizada sem nenhuma barreira.
O presente trabalho sugere que a população busca, muitas vezes de forma desesperada, até mesmo como um último recurso terapêutico disponível, as garrafadas, o que fica claro diante do fato de os principais sites contemplarem desde garrafadas para engravidar até mesmo para a cura do câncer.
Mas é importante destacar que as garrafadas são compostas, em geral, por diversas plantas medicinais, que contêm ativos que podem interagir com outros fármacos, potencializando ou impedindo alguma ação, podendo se tornar produtos perigosos ou ineficazes.
Os órgãos sanitários no Brasil parecem dar pouca atenção para esse problema, o que pôde ser observado pelo grande número de páginas encontradas de difusão de garrafadas, possibilitando o acesso da população a esse produto sem nenhuma dificuldade.
Assim, é fundamental o reconhecimento das garrafadas como uma prática da medicina popular, de forma a garantir condições mais seguras para sua obtenção e utilização, bem como a valorização do conhecimento popular e o fomento de sua expressão na cultura brasileira.
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Suporte financeiro: não houve
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Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
Jan-Mar 2018
Histórico
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Recebido
17 Ago 2017 -
Aceito
17 Jan 2018