Open-access Viralizando Lygia Clark: sopros para contagiar de encanto a experiência do cuidado

RESUMO

Esta escrita é desdobramento de um percurso investigativo comum das autoras a partir da obra da artista brasileira Lygia Clark, especialmente no que tange às interfaces arte-vida, arte-clínica, arte-política, implicadas em suas obras e proposições. Temos a psicologia e a dança como territórios profissionais-existenciais de partida e nos interessamos pelas experiências tecidas em uma trama transdisciplinar. No ano de centenário da artista, 2020, acordamos a memória inscrita no corpo da trajetória de Lygia Clark nos indagando sobre as possíveis contribuições de seu legado na contemporaneidade. Compreendemos que a violência colonial, que insiste nos tempos de agora, incide sobre o corpo, anestesiando sua dimensão sensível e absorvendo sua dimensão criadora, e se estabelece por meio de uma política de desencantamento da vida. O movimento de produção de saúde, que a trajetória de Lygia inspira, faz-nos afirmar seu percurso como possibilidade de ativação da dimensão sensível do corpo e de restauração do sentido de encanto. Por meio da partilha de algumas memórias de experimentações que foram criadas no contágio com a sua obra, desejamos criar sopros que liberem sentidos à aventura do viver e teçam espaços de ativação de uma saúde poética.

PALAVRAS-CHAVE Arte; Vida; Saúde; Intervenção psicossocial

ABSTRACT

This writing is an unfolding of a common investigative path of the authors based on the work of Brazilian artist Lygia Clark, especially concerning the interfaces art-life, clinical art, and political art involved in her works and propositions. We have psychology and dance as professional-existential starting territories and we are interested in the experiences woven through a transdisciplinary plot. In the artist’s centennial year, 2020, we awoke the memory inscribed in the body of Lygia Clark’s trajectory, asking ourselves about the possible contributions of her legacy in contemporary times. We understand that colonial violence, which insists on these time, affects the body, anesthetizing its sensitive dimension and absorbing its creative dimension, and is established through a policy of disenchantment with life. The movement of health production, which Lygia’s path inspires, makes us affirm her path as a possibility of activating the sensitive dimension of the body and restoring the sense of enchantment. By sharing some memories of experiments that were created in contagion with Lygia’s work, we want to create breaths that release meanings to the adventure of living and weave spaces for activating poetic health.

KEYWORDS Art; Health; Life; Psychosocial intervention

Respire comigo

Nós somos os propositores. Somos o molde, cabe a você soprar dentro dele o sentido de nossa existência.

Nós somos os propositores: nossa proposição é o diálogo. Sós, não existimos. Estamos à sua mercê.

Nós somos os propositores: enterramos a obra de arte como tal e chamamos você para que o pensamento viva através de sua ação.

Nós somos os propositores: não lhe propomos nem o passado, e nem o futuro, mas o agora1(233).

Atropeladas pelas coisas cotidianas de viver em pandemia, as horas passam. O tempo se perde. Quando nos atentamos para o que aconteceu até aqui, percebemos que realizamos inúmeras tarefas, que cumprimos infinitos protocolos e que pouco estivemos conectadas com as pequenas e grandes coisas que antes nos importavam, com a vida, com a existência, mesmo que elas não parem e sigam nos convocando.

Coisas, vidas, experiências possíveis, passam como balões voando em torno de nós. Olhamos, encantamo-nos, mas, muitas vezes, não conseguimos pegá-los. Algumas vezes, sentindo o chamamento do tempo, conseguimos agarrar algum balão pelo barbante e, de algum modo, somos por ele contagiadas, contaminadas, impregnadas por sua potência. Pelo toque no fio, abre-se campo para encontros.

O início desta escrita é assim: entre mil afazeres, lembramos de alguns balões soltos. Na urgência de ‘estar’ e ‘fazer com’, tentamos agarrar a beleza desses balões. Conseguimos segurar alguns pelo barbante. Eles nos levaram para voar.

E assim, conduzidas por e como balões, o empuxo gravitacional da Terra nos trouxe até aqui. Somos corpos-balões. Nossos barbantes se conectam. Nosso encontro aconteceu por um interesse em comum: o trabalho da artista Lygia Clark, especialmente a relação tecida pela artista entre arte e clínica, entre arte e vida e arte e política.

Esquisita, abjeta, deslocada, aos 6 anos, Lygia foi levada pela família para assistir a um banho de ducha no hospício. Era um aviso sobre o que acontecia com meninas e mulheres desobedientes. A menina cresceu com certo temor de enlouquecer. Fez arte para não acabar no hospício. “Fora de toda normalidade, de toda patologia, de toda cultura, de todo contexto mesmo aparente, eis-me aqui - o meu testemunho sou eu-obra”2(69).

Somos mulheres de gerações diferentes, de caminhos distintos e nos encontramos pelos fios de Lygia, fios de um desejo comum de querer ser quem se é, de estar no mundo produzindo saúde e arte sem abrir mão dos diferentes fios que nos constituem, sem deixar de ser quem somos para ingressar no mundo do trabalho, do pensamento e do gesto, sem abandonar o que nos sustenta e nos move para nos adequarmos a um modelo de produção de conhecimento, de práticas de cuidado, de experimentações artísticas e saúde assépticas, normalizantes e tecnicizadas.

Seguimos seus rastros, mas também nos diferenciamos de seu percurso. Devoramos Lygia e somos alimentadas por seu ‘canibalismo’, esse desejo de estar ‘entre’, de habitar o espaço de partilha e coengendramento entre o ‘eu e o tu’. Temos a psicologia e a dança como territórios profissionais-existenciais de partida, mas nessa ‘baba antropofágica’, teia de viver conectiva proposta por Lygia, instabilizamos fronteiras e refazemos territórios a partir das interpelações do que nos cerca (e nos constitui).

‘Respire comigo’.

Respiremos juntos um sopro de ar para lembrar a vida, vida de Lygia, vida em seu sentido pleno, original, germinal. Como respirar quando assistimos a tantas mortes devido à pandemia de um vírus que afeta, de modo nunca imaginado, todo o planeta? Como resistir quando há tanta morte em vida, alimentada por um desgoverno fascista, fundamentado na bíblia, na bala e no boi? O legado colonial mostra sua face mais terrível nesses tempos. Como escrever ante a crise da vida no planeta, perante a crise da nossa democracia tão duramente conquistada?

Nossa escrita tem o desejo de ser como um balão de ar lançado ao vento no desejo de ‘adiar o fim do mundo’3, de afirmar a vida em seu sentido pleno, levando um pouco de ar para os pulmões do mundo para que a gente possa insistir em sonhar. Por esse motivo, desenha-se como um ensaio que brota da arquitetura tátil do encanto desencadeado por Lygia, como escrita-fluxo aposta em uma política cognitiva sensorial, em uma narrativa que transpira como sopro entre pensamento e corpo.

“O contrário da vida não é a morte, mas o desencanto”, clamam Luiz Antônio Simas e Luiz Rufino4(10). O desencanto é tomar a vida como bem, o corpo como mercadoria, a terra como negócio, o planeta como um chão de concreto liso feito para os automóveis e seus donos indivíduos endividados cruzarem em alta velocidade. O desencanto é tomar alguns poucos como eleitos do mundo mágico do capital. Já pararam para pensar que o material que nos conecta com o mundo por nossas janelas virtuais é feito de silício e outros metais explorado nas entranhas do planeta? Para que alguns usufruam da ‘magia’ do capitalismo, muitos outros são tratados como sub-humanos nessa Aldeia Global.

Em um ‘diálogo de mãos’, esta escrita é tecida como um clamor de vida diante do genocídio que nos assola nesses tempos de agora. Lygia Clark faria 100 anos em 2020. O que faria Lygia se estivesse aqui? Que experiência coletiva ela nos proporia? O que de sua trajetória é possível retomar como inspiração, como ar que alimenta os pulmões, para seguirmos inventando meios de viver em meio ao adverso?

Habitar a fronteira, arte de viver a grande saúde

Sou da família dos batráquios: através da barriga, vísceras e mãos me veio toda a percepção sobre o mundo. Não tenho memória, minhas lembranças são sempre relacionadas com percepções passadas, apreendidas pelo sensorial. [...] me sentindo inteira, coesa, unida, me sinto como se estivesse de mãos dadas comigo mesma. O gesto tem a característica da concentração no momento da oração. Fusão das polaridades, do direito e do esquerdo, do que era e do que está sendo. Dar-se as mãos a si mesma: muito prazer em conhecer-nos, eu vou bem obrigada, este é o meu momento, eu sou solitária, aceito ser um ser ‘só’, posso também dar as mãos ao outro, estendê-las ao seu alcance, convidá-lo a uma comunicação. A roda da criançada sempre cantando é um constante dar-se as boas vindas, integrar-se aos mundos dos vivos, participar deste viver. Dar-se as mãos quando se dança é oferecer a si e ao outro o prazer da solidão quebrada por um momento na comunicação de dois corpos que, em princípio, deveriam se complementar sempre, o cheio e o vazio, janela aberta, convite ao debruçar-se. [...] As minhas mãos têm milhões de anos. São como crateras de terra gretada pelo passar de estações milenares, com rios correndo dentro, quase na superfície, veias onde corre o sangue projetado pelo coração que alimenta todo o meu corpo de oxigênio, veias entumecidas, fibrosas, em relevo, elásticas e macias como o próprio balão cheio de ar [...] Mãos que passaram pela minha sensualidade como um arado, desdobrando, revolvendo, remexendo, mãos que arrumaram minha cabeça como uma grande gaveta em desordem. [...]1(190-192).

Batráquios são seres em trânsito, nem totalmente peixes, nem absolutamente mamíferos. Anfíbios, são seres em transição de meio. Em seu início, girinos, habitam a água até irem perdendo a cauda, ganhando patas, deixando de nadar para pular na terra. Mamíferos são seres em trânsito, nascem na água do ninho-útero e se equilibram entre o oxigênio das veias entumecidas, os rios de sangue e outros líquidos que percorrem os corpos, depois a terra onde pisam, de onde brotam, por onde passam. Lygia afirma: “não tenho memória”, quase a dizer ‘não tenho monumentos coagulados do que quer que seja, tudo em mim é fluxo, é ciranda de mãos dadas entre a que fui e a que serei, o que me habita e o que me deserta, inteira, coesa e unida no movimento incessante do viver, onde nada resta como coágulo a ser tomado como monumento, a marca do tempo é condição de sua ultrapassagem e sua própria diluição. Sigo sendo naquilo que fui e no que deixei de ser’.

Nesta vida sem compartimentos, sem fronteiras rígidas, sem separações abstratas, em que tudo se conecta e se transfigura no fluxo incessante de viver, material e imaterial, humano e não-humano, arte e vida são a aposta visceral dessa mulher em uma arte de viver antropofágica. Arte que não reconhece os limites arbitrários coloniais e segue por um saber visceral, que é o das entranhas da Terra, onde tudo que é segue se conectando e se adensando em teia-viva, Terra-mãe-parideira de vida, Pachamama, Gaia5,6.

Esse saber encantado, para usar a expressão retomada por Rufino e Simas4, paradoxalmente oriundo da materialidade das vísceras, das mãos ou das ruas, convoca, na verdade, a dimensão anfíbia da existência, que se apresenta na encruzilhada sensorial. Dimensão gestacional dos corpos que inventam vida em si para parir. Útero-balão aquoso que pulsa e respira, respira líquido. Abrindo espaços por dentro enquanto espera o tempo oportuno para desaguar no mundo, alimenta-se da sensorialidade do corpo que é e do corpo no qual faz morada; para que exista na passagem violenta entre estar mergulhado, aquecido, protegido no escuro das entranhas maternas e nascer e ser na mãe terra. Nascimento é água jorrando: corpo sendo lançado no mundo, recriando fluidos e fluxos. Parir-partir é ‘entre’: possibilidade de encontro com outras texturas, sons, cheiros, toques... Existir como quem está sempre experimentando a fronteira.

A fronteira é a cerca que separa. É a marca da colonização operando suas divisões, hierarquias, exclusões, sujeições. Somos seres de fronteira, constituímo-nos a partir das marcas do carrego colonial. A fronteira nos constitui, apartando de nós nossa história, nossa ancestralidade, nossa ‘ontologia terrana’6. Por outro lado, situar-se na fronteira pode ser também situar-se entre mundos, territórios, pertenças, afirmando a hibridização, a operação antropofágica como processo inerente ao viver. A fronteira é o ‘entremundos’, o ponto axial que articula conexão e criação, útero gerador de mundos e existências singulares.

Gloria Anzaldúa7, estadunidense, chicana, feminista, lésbica, indígena, inspirada no filósofo mexicano Jorge Vasconcelos, que vislumbrou uma ‘raça mestiça’, ‘raça cósmica’, ‘a primeira raça síntese do globo’, propõe uma nova consciência, uma consciência das fronteiras, uma consciência mestiça:

Porque eu, uma mestiza, continuamente saio de uma cultura para outra, porque eu estou em todas as culturas ao mesmo tempo, alma entre dos mundos, tres, cuatro, me zumba la cabeza con lo contradictorio. Estoy norteada por todas las voces que me hablan simultaneamente7(323-324).

É importante destacar que a consciência mestiça de Gloria Anzaldúa não se confunde com a mestiçagem à brasileira, esta ficção colonial que faz crer em uma composição pacífica entre indígenas originários, brancos invasores e negros arrancados das entranhas africanas para aqui serem explorados e mortos sob os auspícios da Santa Igreja do Capital. A mestiçagem à brasileira oculta a violência sexual contra mulheres indígenas e pretas, o etnocídio, a escravidão, tudo diluído no caldo ralo do projeto de embranquecimento da nação. Aqui, nesta terra que pisamos, mestiçagem é carrego colonial e fixação de cercas, e não ultrapassagem de fronteiras.

No entanto, para Lygia, assim como para Anzaldúa, a fronteira, as bordas, a beira do abismo, a ‘linha orgânica’ intangível e presente, o limiar entre pele e objeto relacional são espaços privilegiados para a criação de si, a gestação de mundos por vir. Talvez por esse motivo tenha dito em carta a Guy Brett, em 1983: “só amo trabalhar com borderlines”2(143). É na fronteira, borrando os limites arbitrários entre arte e vida, artista e espectador, corpo e pensamento, arte e clínica, normalidade e loucura, que Lygia, aranha que era, arquitetava com ‘baba antropofágica’ sua teia de vida e morte. Em um momento de crise, no início dos anos 1970, afirma, citada por Carneiro2(120):

Eu batendo os dentes de solidão, era obrigada a ir a um café para me sentir como qualquer ser humano que estivesse ali. Era mulher de fronteira, com trabalho de fronteira sem qualquer categoria definida.

Dessa fronteira que pode ser simultaneamente limite e criação, já que alheia a “qualquer categoria definida”2(120), tomamos algumas linhas que emergem na trajetória da artista e nos convidam a desdobrá-las singularmente em nossos percursos. Em sua trajetória, Lygia Clark foi aproximando cada vez mais as dimensões da arte e da vida, por meio de proposições que engajavam os corpos dos participantes em ações e relações entre si e com objetos e materiais que desafiavam os modos regulares de perceber. Esse deslocamento do espectador tradicional de arte para o de participante, cuja matéria estética passa a ser a própria corporeidade-em-relação, acionou a dimensão intensiva e sensível ao contato, ampliando a geografia afetiva do corpo. Esse movimento aproxima a investigação estética do campo da clínica, pois os efeitos das proposições levaram Lygia8(166) a se interessar pelo que estava ‘além da coisa corporal’.

Em meu trabalho aflora a ‘memória do corpo’: não se trata de um viver virtual, mas de um sentir concreto; as sensações são trazidas, revividas e transformadas no local do corpo, através do ‘objeto relacional’ ou do toque direto das minhas mãos. O ‘objeto relacional’ em contato com o corpo faz emergir por suas qualidades físicas a memória afetiva, trazendo experiências que o verbal não consegue detectar.

O trabalho com os objetos relacionais, último momento do percurso estético de Lygia, volta-se aos processos subjetivos que constituem o corpo, o que ela chama de ‘fantasmática do corpo’. Por meio da ‘estruturação do self”, a artista se lança no inventário de marcas afetivas dos corpos e na investigação de processos de cura deflagrados pelos objetos.

Lygia Clark cria proposições movida por uma força curativa que podemos aproximar do ethos do cuidado em saúde. Em carta à Hélio Oiticica, refere-se ao processo vivido por um rapaz negro em uma turma na Sorbonne, no qual o rapaz relata efeitos do racismo sobre si - questões em torno do agredir/ser agredido, só andar de cabeça baixa, nunca olhar as pessoas no metrô, só se sentar nos fundos da sala de aula - e como conseguiu sair desses estados de corpo no trabalho com a artista9(253-254).

Os processos de acionamento/processamento/elaboração da fantasmática do corpo/no corpo são processos de produção de saúde, de cura de si. Saúde compreendida como expansão das possibilidades existenciais, e não como adequação a uma norma universal e transcendente. Saúde como ativação da plasticidade vital, como capacidade de entrar em contato com a fantasmática do corpo para dela se desprender, instaurando outros de si neste fluxo incessante de vida-morte que é viver. Como

[...] a grande saúde - uma tal que não apenas se tem, mas constantemente se adquire e é preciso adquirir, pois sempre de novo se abandona e se precisa abandonar10(286).

Essa ‘arte de curar’ proposta por Lygia consiste em tragicamente fazer da própria vida matéria de experimentação e de suas proposições estéticas, ensaios coletivos de encarnar a (grande) saúde. A indissociabilidade entre os planos coletivo e singular da experiência estética, entre si-arte-saúde-vida, aparece na mesma carta a Hélio:

Às vezes desbloqueio gente em uma experiência, e, às vezes preciso de mais tempo. Havia pensado antes de fazer esta psicanálise em me tornar analista, mas agora quero continuar na “fronteira”, pois é isso que sou e não adianta querer ser menos fronteira. Assumir-se; e quando penso nos anos que aqui passei em que não havia esses jovens com quem trabalho o ano todo [...] ...trinquei dentes de solidão e depois, vindo a Sorbonne, achei a maneira certa que enriquece me dando de volta através da elaboração deles, me gratificando e me limpando também essa barra que sou; e isso serve de terapia para mim mesma9(254).

Saúde enquanto a possibilidade de nos colocarmos nos encontros, como fazia Lygia citada por Rolnik11(15) “[...] Eu trabalho com aquilo que eu vejo, com aquilo que eu sinto, com aquilo que aparece”. Trata-se de recriar os modos de ‘estar com’ a partir do que apresentam os corpos humanos e não humanos no ato do encontro. Como diz Clark, segundo Carneiro2(136-137):

[...] Este sentimento de totalidade camuflado no ato precisa ser recebido com alegria para ensinar a viver sobre a base do precário. É preciso absorver este sentido do precário para descobrir na imanência do ato o sentido da existência.

A dimensão do precário na obra de Lygia nos leva a afirmar a saúde como a criação de corpos sensíveis possíveis, saúde prenhe de criação, poiesis, uma ‘saúde poética’, que nada tem a ver com uma saúde psíquica estável e bem adaptada. Suely Rolnik afirma que Clark percebe a saúde enquanto a vitalidade da capacidade de criar11. Percepção essa que dialoga com o que daria sentido à existência para Winnicott, segundo Rolnik, ancorando o sentimento de que a vida vale a pena ser vivida. Para o autor, um desenvolvimento humano favorável tem a ver justamente com essa capacidade de relacionar-se com o mundo de maneira criativa11.

Nessa perspectiva, a experiência de saúde se refere à capacidade do vivo de experimentar o paradoxo irresolúvel entre o mundo simultaneamente apreendido enquanto forma e enquanto força, já que a vida é puro fluxo incessante de criação. Não se trata de resolver o paradoxo, e, sim, de criar um corpo que possa suportar a excitabilidade do vivo perante o precário, o inacabado, o vir a ser.

Sopros para contagiar de encanto a experiência do cuidado

Neste instante, partilharemos algumas memórias de experimentações que foram criadas no contágio com a obra de Lygia no desejo de ativar sopros que liberem sentidos à aventura do viver e teçam estados de saúde poética.

Figura 1
Movendo objetos, clínica ‘e’ arte ‘e’ vida se borram

A imagem acima surge de um encontro de dança em perspectiva terapêutica com P. Menino autista atento dançando com saco de água. Objeto inspirado em um dos objetos relacionais da estruturação do self de Lygia.

O objeto-bicho em seu movimento próprio conduz os gestos do bicho-humano, criando com ele um novo corpo: objeto-bicho-humano dançante. Ser de água translúcida passante. Ser de água vermelha jorrante. Entre transparência e obscuridade: a experiência de ser e ver pelo tato. Ver através atravessa. Ver das mãos, da pele, do plástico.

O deslocamento da sensorialidade na dança, entre o corpo e o objeto, pode torná-la possível e acessível a quem apresenta seus sistemas sensoriais ditos disfuncionais. Quando não impõe uma maneira específica de mover, abre espaço para que, a partir da escuta e investigação de si, surjam novos gestos. Quando toca o corpo na natureza orgânica dos sistemas sensoriais, os objetos, ao mesmo tempo, mobilizam sua natureza intensiva, compondo corpos que sustentem suas existências, processos e modos de perceber e viver no mundo.

Obras e objetos de Lygia, assim como a dança e com a dança, possibilitam devir um corpo autista que suporte sua organicidade e poética, quando respeitam suas necessidades e desejos. Com tempo e espaço, sustentando os silêncios tão caros para muitos desses corpos, movimento e objeto se tornam suporte para a criação de corpos ditos autistas que percebem a si, que se relacionam com outros corpos e exploram os ambientes.

No processo clínico da arte, a vida se potencializa.

Contato. Contorno. Cuidado.

No toque dos objetos e dos outros corpos, cada um se amplia, abre e ocupa mais espaço. Cria raízes que saem de suas extremidades se confundindo com tantas outras. Raízes floridas, enfeitadas, que não apenas conectam corpo a corpo, mas que os misturam, tornando-os um só. Multidimensional, plurissenssorial, corpo-coletivo. As texturas criam frestas por onde se é penetrado, preenchido, tomado.

Figura 2
Contato e contorno viabilizam múltiplos modos de ser

Ocupação. Ação de ocupar. Ocupar o espaço com o corpo. Conviver no espaço. Viver junto. Resistir. Reexistir. A imagem acima é um registro da proposição coletiva inspirada na obra ‘A viagem’ de Lygia Clark do dia em que o núcleo (Núcleo de Pesquisa, Estudos e Encontro em Dança) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) encontrou a Ocupação da Escola Estadual Amaro Cavalcanti. A Amaro Cavalcanti foi umas das 50 escolas estaduais ocupadas em maio de 2016 pelos estudantes do ensino médio da rede estadual que reivindicavam melhores condições de educação para estudantes e professores, além de se colocarem contra várias medidas do governo federal da época. A ocupação dos estudantes nesse ano foi uma experiência que eclodiu em vários estados do País.

Na ocupação da Amaro Cavalcanti, os estudantes dormiam, cozinhavam, realizavam assembleias, conversas e atividades culturais com os apoiadores da ocupação no espaço público da escola. De pronto, percebemos que não havia um líder, todos participavam e se revezavam nas tarefas. Nesse dia, levaram-nos para conhecer o prédio, seus vários cantos, suas camadas de memória. Em um canto de uma quadra não utilizada, encontramos vários livros de arte que nunca haviam sido usados, ainda fechados. Abrimos um livro e encontramos Lygia Clark e Hélio Oiticica na página 94. Falamos da importância da obra desses artistas na nossa perspectiva em arte, e eles se interessaram.

Descemos para sacada principal do prédio, e um grupo de estudantes se preparava para limpar a escola; e então nos juntamos a eles, chamamos outros ocupantes e limpamos o chão juntos, inspiradas em uma prática coletiva da pesquisa, ‘limpeza do chão’ em que, por meio da ação cotidiana de limpar o chão, criamos uma atmosfera para sentir o corpo, o corpo do outro e o espaço, ativando uma presença partilhada. Após a limpeza do chão, espreguiçamo-nos numa roda e estendemos o tecido para mergulhar juntos numa viagem pelo espaço. Difícil instaurar o silêncio, mas ele se fez presente. Depois que a primeira pessoa foi envolvida pelo tecido, carregada coletivamente e pousada no chão, tramou-se uma rede entre nós e se teceu o que consideramos o mais relevante, o encontro. O espaço esculpia um corpo que recortava simultaneamente esse espaço. O tecido que separava era o mesmo que conectava, tecendo a pele do encontro.

A #OcupaçãoAmaroCavalcanti nos ensinou que não há matéria mais importante do que a própria vida e o viver junto. A inspiração na obra de Lygia foi como o próprio tecido, pele de contato, que nos possibilitou engendrar um espaço de cuidado coletivo, uma experiência em que a intimidade partilhada no contato e a atitude política se encontraram.

Figura 3
Superfícies em corposição

Superfícies de corpos cobertos de tecido, superfícies de plástico envolvendo matérias que nos habitam, água, ar, relevos de sensações reconfigurando modos de perceber, modos de sentir, modos de ser. Humano e não-humano, orgânico e inorgânico, extensivo e intensivo impulsionando a experiência para o caos primordial indiferenciado, antes de toda fronteira possível, para, deste ponto, operar novas composições, novas ‘corposições’. Continuum de experiência revelando toda a contingência das divisões posteriores e inaugurando uma porosidade maior entre as fronteiras si-mundo.

Poderia ser uma mandala, como a dos frequentadores do Museu de Imagens do Inconsciente, no entanto, é uma Rosácea, proposição coletiva com os objetos relacionais refeita em nossa pesquisa ‘Memória da pele, membrana da alma: corpo, pensamento e subjetividade’, realizada entre os anos de 2017 e 2019 no Instituto de Psicologia da Universidade Federal Fluminense (UFF), campus Niterói (Parecer de Aprovação 68482017.2.0000.5243, Conselho de Ética em Pesquisa da Universidade Federal Fluminense/Plataforma Brasil).

É uma rosácea-mandala de corpos conectados pelos pés e mãos, elementos invisíveis e tantos outros indizíveis. Deitadas no chão, olhos fechados, perdemos as referências perceptivas e proprioceptivas regulares, abrindo espaço para experimentações de si pouco comuns: diluição do contorno corporal, fusão corpo-objeto, transfiguração da experiência corporal, pequenos sonhos, produção de imagens, insights. Apresentamos a seguir alguns fragmentos de registros da experiência da equipe da pesquisa da qual advém esta imagem:

Sinto uma grande dificuldade de ‘me desligar do próprio pensamento’. Pouco a pouco, o contato com os objetos vai produzindo uma nova relação com o corpo, em que a fronteira entre eles se esvai. Há uma sensação oceânica, em que o corpo parece não ter mais limites, se projetando de maneira fluida, mas densa. Isso fica ainda mais evidente no contato com M., existe um prolongamento do meu corpo com o dela através do toque entre as mãos, sendo difícil delimitar fronteiras. Parece haver uma energia densa nessa conexão mais especificamente. Os sacos de água em contato com minha pele também produzem uma experiência interessante, intensificando esse corpo oceânico. Há uma camada de mim, que se caracteriza justamente por essa densidade oceânica, que é convocada, trazendo nuances positivas e negativas de meu modo de estar no mundo. (Participante 1, primeiro dia de oficina).

[...] Minha outra mão, ligada à M., não encosta totalmente na dela, fazendo com que eu sinta o ar passando por aquele espaço. Essa sensação começa a se expandir, produzindo a experiência de um corpo que flutua. Imagens são produzidas, vejo no lugar do meu braço ligado ao da M. uma asa de pássaro, como se eu mesma estivesse convocando aquela dimensão. Ouço os pássaros cantando no lado de fora, o que potencializa esse modo de estar. Mais tarde nesse mesmo dia preciso ter uma conversa complicada com uma pessoa próxima e me coloco nessa circunstância de modo leve, diferente do que usualmente acontece. Não há uma formalização racional daquilo que se opera nesse movimento subjetivo: essa outra possibilidade de corpo se produz em um plano de intensidades intangível, que é captável através de um conhecimento encarnado de si. (Participante 1, segundo dia de oficina).

Fechamos a oficina com uma roda de conversa sobre o que se passara e como o composto corpo e mente reagiu ao processo. Confesso que continuei aérea por algum tempo. Mesmo após o encerramento da dinâmica, meu corpo e mente continuaram a flutuar pelo espaço e a significar o que quer que tenha me acometido. Acredito que mais que um mar de imersões e sensações, foi um espaço de integração de si e do outro, de irrestrita percepção do corpo e de enfrentamento. Era uma terapia sem fala, uma autonomia de recriação. (Participante 2).

Ao longo do processo, aquela sensação de angústia que estava presente inicialmente aumentara, entretanto, não era uma angústia causada pelos objetos, mas sim uma angústia que estava em mim e ia ‘acordando’ conforme os objetos iam sendo colocados. Me sentei e ainda me sentia tensa, me entregaram o saco com ar e tive muita dificuldade em estourá-lo, mas assim o fiz. Fizemos um desenho sobre o que havia acontecido ali, desenhei mãos que tentavam segurar algo, mas que não conseguiam. Depois sentamos em roda e ia escutando os relatos dos meus colegas. Nesse dia não consegui dizer uma só palavra, só ouvia. Na verdade, até hoje não sei exatamente o que aconteceu ali, sei que me causou uma sensação de angústia e que me fez despertar para um problema que eu deveria resolver. (Participante 3).

Inúmeros são os caminhos abertos por essas pesquisas, caminhos de vida, de troca, aprendizagem, de cura. Destacamos aqui a imanência subjetividade-corpo-mundo, a reconfiguração por meio da experiência com os objetos relacionais da relação si/mundo, individual/coletivo, humano/não-humano, revelando uma conexão e uma contiguidade inimagináveis na perspectiva tradicional de produção de conhecimento, que se constitui justamente pela fissura si/mundo e pela assimetria e separação sujeito/objeto do conhecimento.

Os relatos revelam o continuum corpo-pensamento-subjetividade e desvelam um pensamento que advém desta teia, e não de um topos privilegiado, asséptico, que opera por distanciamento, análise, dissecação. Nesse campo, aproximamo-nos de uma dimensão complexa do pensamento que tem no corpo sua condição de possibilidade e sua indissociabilidade do gesto. Sentir-pensar-agir são três dimensões de um mesmo movimento que o caminho estético-político proposto por Lygia ajuda a reativar.

Nesse movimento de produção de saúde que o percurso de Lygia inspira, é fundamental dar lugar a seus herdeiros poéticos e práticos, Gina Ferreira12 e Lula Wanderley13. Lygia os acompanhou, interessada nos desdobramentos possíveis de sua proposta com pessoas psiquiatrizadas. Gina Ferreira e Lula Wanderley seguem sendo referências fundamentais para a Reforma Psiquiátrica Brasileira e têm uma vida dedicada à construção de políticas antimanicomiais, sustentando em suas práticas o precário, o acontecimento e a presença como índices da ‘saúde poética’ encarnada nas proposições de Lygia Clark. De Paracambi ao Engenho de Dentro, os fios de Lygia ajudaram a tecer práticas de desencarceramento da loucura e do corpo.

Retornamos em um volteio às questões que nos impulsionaram no início deste escrito: O que faria Lygia se estivesse aqui? Que experiência coletiva ela nos proporia? O que de sua trajetória é possível retomar como inspiração, como ar que alimenta os pulmões, para seguirmos inventando meios de viver em meio ao adverso?

Estamos em crise, estamos em guerra... Como então tomar a crise em um crítico e, por que não, clínico? A obra de Lygia é também uma obra na beira da crise. Crise da percepção de ser mulher em um mundo de homens. Crise de um pós-parto. Crise da arte. Crise da vida. Grito da vida pedindo passagem no corpo de uma mulher. A crise de Lygia, instaurada no terreno das artes, primeiramente propõe a quebra da moldura, faz a obra sair da parede, deixando de ser apreciada, exibida e passando a ser ‘bicho’, ‘esculturas vivas’, ‘relaxação’, conectando arte e vida para que ‘todos sejam propositores’. ‘Caminhando’, Lygia encontra o outro. Percebe que a ‘casa é o corpo’, que o ‘corpo é a casa’; e vai se dedicando ‘àquilo que está atrás da coisa corporal’ em um ‘exercício experimental da liberdade’.

Todavia, qual a importância da abertura desvelada pela obra da artista em um território como o nosso nestes tempos de agora?

Brasil. Pau-brasil. O colonizador deu ao território que invadiu o nome do ser não humano que primeiro explorou, o pau-brasil, uma das várias espécies de árvores que sustentam por milênios o nosso chão. Antes de explorar a madeira, o colonizador estuprou a terra, violou o corpo, condenou a magia, o riso dos corpos. O primeiro alvo do desencanto, do carrego colonial4 é o corpo, o sensível, juntamente com sua separação da natureza e de sua dimensão coletiva e conectiva. A própria ideia difundida de humanidade é de seres desconectados, apartados, antropocêntricos.

A obra de Lygia restaura a dinâmica coletiva, sensorial, o corpo coletivo. Restaura o sentido do encanto. Comemorar aqui seu centenário de nascimento é fazê-la nascer novamente em nosso gesto de escrita, nossa partilha coletiva, parir sua insistência na vida que se desenrola em meio às agruras e gretas da terra. Centenário? ‘As minhas mãos têm milhões de anos’, gargalha Lygia, desafiando nossas tentativas de capturá-la em frases, sentidos e coagulações temporais. O sangue jorra. ‘Meu tempo é outro’.

  • Suporte financeiro: não houve
  • *
    Orcid (Open Researcher and Contributor ID).

Referências

  • 1 Clark L. Lygia Clark. Barcelona: Fundación Antoni Tàpies; 1997.
  • 2 Carneiro BS. Relâmpagos com claror: Lygia Clark e Hélio Oiticica, vida como arte. São Paulo: Imaginário; Fapesp; 2004.
  • 3 Krenak A. Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo: Companhia das Letras; 2019.
  • 4 Simas LA, Rufino L. Encantamento: sobre política de vida. Rio de Janeiro: Mórula; 2020.
  • 5 Lovelock J. Gaia: um modelo para a dinâmica planetária e celular. In: Thompson WI, organizador. Gaia: uma teoria do conhecimento. São Paulo: Gaia; 2014. p. 79-92.
  • 6 Castro EV, Danowski D. Há mundo por vir? Ensaio sobre os medos e os fins. Florianópolis: Cultura e Barbárie; Instituto Socioambiental; 2014.
  • 7 Anzaldúa G. La conciencia de La mestiza/Rumo a uma nova consciência. In: Hollanda HB, organizadora. Pensamento feminista: conceitos fundamentais. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo; 2019. p. 323-339.
  • 8 Clark L. Lygia Clark: uma retrospectiva. São Paulo: Itaú Cultural; 2014.
  • 9 Figueiredo L, organizador. Cartas 1964-1974. Rio de Janeiro: Editora UFRJ; 1996.
  • 10 Nietzsche F. A gaia ciência. São Paulo: Companhia das Letras; 2001.
  • 11 Rolnik S. Uma terapêutica para tempos desprovidos de poesia. In: Diserens C, Rolnik S, organizadores. Lygia Clark: da obra ao acontecimento. Somos o molde. A você cabe o sopro. São Paulo: Pinacoteca do Estado de São Paulo; 2006. p. 13-27.
  • 12 Ferreira G. “De Volta Pra Casa: prática de reabilitação com pacientes crônicos em Saúde Mental”. In: Pitta AM, organizador. Reabilitação Psicossocial no Brasil. São Paulo: Editora Hucitec; 1996. p. 80-88.
  • 13 Wanderley L. O dragão pousou no espaço: arte contemporânea, sofrimento psíquico e o objeto relacional de Lygia Clark. Rio de Janeiro: Rocco; 2002.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Nov 2021
  • Data do Fascículo
    Out 2021

Histórico

  • Recebido
    31 Ago 2020
  • Aceito
    20 Maio 2021
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