Resumos
Este artigo toma como objeto de investigação as narrativas em uma audiência de conciliação do PROCON, em uma cidade de Minas Gerais. A pesquisa é de natureza qualitativa e apresenta um estudo de caso, ancorado nos pressupostos teóricos da Lingüística Interacional. A narrativa é considerada um objeto conversacional, seqüencial e discursivo. O estudo mostra que as narrativas compareceram fundamentalmente nas fases de apresentação da reclamação pelo reclamante e na aceitação ou refutação da reclamação pelo reclamado, fazendo parte do jogo argumentativo na discussão sobre a legalidade nas relações de consumo.
PROCON; narrativa; reclamante
This paper investigates narratives in a conciliation hearing at the Product Safety Comisssion in a city in the state of Minas Gerais, Brazil. The research methodology is qualitative, underscored by the theoretical framework of Interactional Linguistics. Narrative is considered as a sequencial, conversational and discursive object. The study shows that narratives are an important linguistic instrument in the complaint presentation's phase by the complainant and in the acceptance or rejection's phase by the respondent and are an important part of the argumentation in the discussion on the legality of actions in consume relations.
product safety comitee; narrative; complainant
ARTIGOS
Quando as partes tomam as rédeas da situação: um estudo de caso da narrativa no procon
When the parties overtake the control: a case study on narrative at a product safety comitee*
Bruno Defilippo Horta; Cristiane Dias Ferreira; Patrícia Miranda Machado; Priscila Fernandes Sant'Anna; Tatiana Fernandes Barbosa; Paulo Cortes Gago1 1 Contatos em bdhorta@hotmail.com; cris_dferreira@hotmail.com; patmima@gmail.com; priscila_1803@hotmail.com; tathy_fernandes@hotmail.com; pcgago@uol.com.br. Este artigo desenvolveu-se inicialmente no âmbito do projeto de pesquisa "A Mediação em audiências de conciliação no PROCON", com o apoio do CNPq (processo nº 4779186/2004-9). Atualmente, beneficia-se do projeto "Contextos de mediação: uma abordagem de microanálise interacional situada do discurso", apoiado pela FAPEMIG (processo nº APQ-2129-5.06/07). O trabalho de iniciação científica couduziu-se no âmbito do projeto de pesquisa "A organização seqüencial em audiências de conciliação no PROCON".
Faculdade de Letras da Universidade Federal de Juiz de Fora - MG
RESUMO
Este artigo toma como objeto de investigação as narrativas em uma audiência de conciliação do PROCON, em uma cidade de Minas Gerais. A pesquisa é de natureza qualitativa e apresenta um estudo de caso, ancorado nos pressupostos teóricos da Lingüística Interacional. A narrativa é considerada um objeto conversacional, seqüencial e discursivo. O estudo mostra que as narrativas compareceram fundamentalmente nas fases de apresentação da reclamação pelo reclamante e na aceitação ou refutação da reclamação pelo reclamado, fazendo parte do jogo argumentativo na discussão sobre a legalidade nas relações de consumo.
Palavras-chave: PROCON, narrativa, reclamante/reclamado
ABSTRACT
This paper investigates narratives in a conciliation hearing at the Product Safety Comisssion in a city in the state of Minas Gerais, Brazil. The research methodology is qualitative, underscored by the theoretical framework of Interactional Linguistics. Narrative is considered as a sequencial, conversational and discursive object. The study shows that narratives are an important linguistic instrument in the complaint presentation's phase by the complainant and in the acceptance or rejection's phase by the respondent and are an important part of the argumentation in the discussion on the legality of actions in consume relations.
Keywords: product safety comitee, narrative, complainant/respondent.
INTRODUÇÃO
As narrativas permeiam diversos campos de nossas interações cotidianas. Através delas, compartilhamos experiências, contamos histórias, transmitimos informações, perpetuamos nossa cultura. Desta forma, a narrativa, como estrutura lingüística, também se mostra fundamentalmente relevante dentro do contexto das audiências de conciliação do PROCON (GAYNIER, 2005).
Permeada pelas noções de legalidade, a narrativa dentro do PROCON adquire novos significados. Além de ser o momento relevante em que o participante expõe sua versão dos fatos, é também quando ele poderá argumentar, mesmo que implicitamente, a seu favor.
Este artigo trata o fenômeno da narrativa sob uma perspectiva comunicativa, em que os comportamentos verbais e não-verbais criam, refletem e são capazes de resolver conflitos. Assim, propomo-nos a analisar sua estrutura formal, bem como sua organização seqüencial, sua estrutura de participação dentro do espaço narrativo, sua implicatividade no contexto e as interferências que podem ocorrer durante sua execução.
1. APORTE TEÓRICO
1.1. Teoria da narrativa
Os estudos de narrativas têm despertado grande interesse nas ciências sociais, dentre outros campos do conhecimento humano. Os estudos sobre narrativa têm sua origem na conversa cotidiana. Labov (1972) pode ser considerado um dos precursores dos estudos narrativos e, por isso, a referência ao seu trabalho é fundamental. Sob uma perspectiva chamada de estrutural, porque trata a narrativa a partir de elementos constitutivos, a define como o método de recapitular as experiências passadas a partir da combinação de uma seqüência verbal de orações com uma seqüência de eventos que realmente ocorreram.
Através da análise de narrativas de experiência pessoal, conseguidas a partir de entrevistas, Labov observou a recorrência de determinados elementos que constituíam a estrutura global da narrativa. Sendo assim, temos orações narrativas, que se organizam em uma estrutura regular dividida em seis partes: resumo, orientação, ação complicadora, avaliação, resolução e coda.
A estrutura narrativa, algumas vezes, é iniciada pelo resumo, que antecipa ao ouvinte o assunto e o fato da narrativa que se segue. No entanto, é importante destacar que o resumo não vale pela história em si, uma vez que tem a função apenas de preparar o interlocutor para explicações mais detalhadas.
A identificação do tempo, do lugar, dos personagens e seus papéis ou até da situação na qual se dá o relato são encontradas na orientação da história. Esses elementos fornecem um maior detalhamento acerca dos fatos que envolvem a história e são fundamentais para a orientação do ouvinte. A localização da orientação, na verdade, é um recurso do narrador que pode escolher onde melhor se encaixa este elemento. Assim, podemos encontrar a orientação tanto no início de uma narrativa quanto em outras partes.
A ação complicadora, fundamentalmente, constitui-se, de fato, dos eventos narrados ou da seqüência deles. É ela que abrange os fatos responsáveis pelo desenrolar da história. Sendo assim, as orações que constituem a ação complicadora são aquelas que expressam o momento de complicação e de tensão dentro na narrativa, sempre ordenadas temporalmente.
A avaliação é parte da narrativa que expressa a atitude do narrador em direção ao ouvinte, no sentido de informá-lo, muitas vezes, da validade de sua experiência. É o lugar onde o(s) ponto(s) da narrativa, ou seja, o(s) motivo(s) de aquela história ser narrada é explicitado, deixando, inclusive, transparecer atitudes e crenças do narrador em relação àquilo que é contado. A solução para a ação complicadora é evidenciada na resolução. É ela a parte conclusiva da narrativa.
Por fim, Labov postula a coda como um mecanismo funcional que faz com que a perspectiva verbal volte ao momento da enunciação, não fazendo parte do encadeamento de eventos conseqüentes que a narrativa apresenta. É a coda o ponto em que passado e presente se articulam para dar um término à narrativa, além do fim da história.
Diferentemente da perspectiva estrutural de Labov (1972) apresentada acima, a narrativa também foi objeto de tratamento da Análise da Conversa, através do trabalho de Sacks (1974), em que ela é concebida através de uma ótica interacional-seqüencial, tendo como base as conversas cotidianas. Ele examina a organização seqüencial da narrativa de piadas2 2 Como já dissemos acima, os dados de Sacks (1974) são de conversa cotidiana, e, no caso, sobre piada. Porém, seu trabalho é considerado na área de Análise da Conversa (juntamente com a obra de 1992) um marco nos estudos da narrativa. durante a conversa e traz particularidades dessa estrutura, que nos interessam aqui. O aspecto mais decisivo na narração e organização de uma piada é que ela é construída no formato de uma estória. A narração de uma piada é composta de três tipos de seqüências, ordenadas em série e adjacentemente localizadas: a seqüência de prefácio, a narrativa em si e a resposta (reação) à narrativa.
Não é correto afirmar que, ocorrendo a seqüência de prefácio, as seqüências de narrativa e de resposta certamente ocorrerão, ou que ocorrerão sem a intervenção de outros "materiais". Ou seja, a narrativa pode continuar, embora em uma das partes exista material que dificulte seu acontecimento.
Histórias e piadas, narradas em conversas, têm sua narrativa introduzida por um prefácio, que podem ter a extensão mínima de dois turnos: o primeiro envolvendo a fala do narrador, e o segundo envolvendo a fala de um interlocutor, receptor da história.
As elocuções proferidas nos prefácios apresentam componentes seqüenciais relevantes, tais como: uma oferta ou um pedido para narrar a história ou piada pretendida, uma caracterização inicial desta, alguma referência ao momento de ocorrência da história ou da recepção da piada, e, particularmente para as piadas, uma referência a quem a contou, ou seja, ao narrador anterior.
A caracterização inicial que o participante-narrador da história faz da narrativa tem como função primordial projetar uma expectativa de recepção. Por exemplo, quando se fala- "vou te contar uma história engraçada que aconteceu comigo ontem", espera-se que a reação do ouvinte, no final da narrativa, seja a de rir.
É possível, no entanto, que a seqüência de prefácio seja maior que sua extensão mínima de dois turnos. Os recursos para sua expansão envolvem inicialmente o uso que os interlocutores fazem da elocução do narrador (a caracterização da piada) para rejeitar ou retardar a narrativa, como, por exemplo, em - "ah, não me venha com essa história de novo", movimento que suscitará nova negociação na interação.
Depois de completo o prefácio, seu narrador deve proceder de forma a narrar toda a estória. Ao contrário do prefácio, dentro da narrativa não é necessário que o narrador providencie lugares para a intervenção dos ouvintes, pois se estes precisarem falar durante a narrativa, eles podem fazê-lo interrompendo o narrador, já que a base para a interrupção é previsível.
As risadas são respostas organizadas localmente e podem se sobrepor, não sendo, no entanto, respostas obrigatórias. No entanto, nem todos conseguem compreender uma piada, essa incompreensão pode, na verdade, revelar uma falta de experiência de vida do receptor, um problema que um riso bem posicionado pode ocultar. Os receptores podem se recusar a rir na conclusão de piadas e, também, podem produzir risos com atrasos. Outro ponto importante é o fato de se encorajar risadas e de se evitar a produção de risos com atrasos através do mecanismo de avaliação da habilidade comparativa do receptor.
Uma história pode ter sua narrativa garantida em virtude da surpresa de seus eventos envolvidos ou das surpresas que podem causar no receptor.
Consideramos esses dois autores primordiais e suas teorias, apesar de circunscritas a dados de fala cotidiana, podem nos servir de eixo teórico-analítico para nos debruçarmos sobre as narrativas produzidas no contexto das audiências de conciliação do PROCON/ JF. Propomos, então, tratá-las como um objeto estrutural e seqüencial3 3 Ver Jefferson (1978), Goodwin (1984) e Lerner (1992) para referências adicionais sobre narrativa em Análise da Conversa. .
1.2. Teoria do discurso
Em contribuição advinda da filosofia da linguagem, Paul Grice (1975) entende a linguagem como um instrumento para o falante se comunicar, com algum propósito, com o seu ouvinte. Para Grice, nossos diálogos não são uma seqüência de observações desconectadas, e sim, fundamentalmente, esforços cooperativos, nos quais cada falante reconhece, em alguma medida, um objetivo comum, um conjunto de objetivos ou ao menos um propósito aceito mutuamente. Esse propósito ou direção pode ser estabelecido desde o início, através de uma questão inicialmente proposta para discussão, ou pode progredir no decorrer da interação.
Grice apresenta como conceito chave para o seu modelo a noção de implicatura e a divide em duas categorias. A implicatura convencional é aquela que se realiza através de parâmetros lógicos - por exemplo, a expressão "Ele é brasileiro, logo é corajoso" leva à implicatura convencional de que "todo brasileiro é corajoso". Por outro lado, existem as implicaturas conversacionais, que contribuem para a compreensão na comunicação, quando as implicaturas convencionais não operam ou não são suficientes para produzir eventos comunicativos plenos. A noção de implicatura conversacional é capaz de fornecer uma explicação para o fato de que o falante transmite algo para o ouvinte além do que contém o sentido convencional das palavras de seu enunciado por exemplo, se (A) pergunta "Você gosta de futebol?" e (B) responde "Não tiro o rádio do ouvido no domingo.", através do conceito de implicatura conversacional entendemos como (A) compreende (B), embora o enunciado de (B) pareça fugir da pergunta de (A).
As implicaturas conversacionais realizam-se através do Princípio de Cooperação, fundamental para reger as trocas conversacionais. Tal princípio afirma que o falante deve fazer sua contribuição assim como é requerido, no estágio em que ocorre, pelo propósito em que está engajado. O princípio da cooperação é regido por máximas que se enquadram em quatro categorias: quantidade, qualidade, relação e modo.
A máxima da quantidade propõe que o falante não deve dar nem mais nem menos informações do que o necessário para ser compreendido; a máxima da qualidade estabelece que o falante deva fazer com que sua contribuição seja verdadeira, ou seja, não deve dizer o que acredita ser falso ou aquilo que não tem evidências necessárias para comprovar; a máxima da relação determina que se deve dizer apenas o que for relevante; e a máxima de modo propõe que o falante deve ser claro em seus enunciados, evitar ambigüidades e procurar ser breve e ordenado.
Tal explicação faz-se necessária para auxiliar na análise dos dados que será feita posteriormente, uma vez que em situações reais de fala em interação, como nas audiências de conciliação do PROCON, os participantes, em suas narrativas, estão sujeitos a violar alguma das máximas estabelecidas por Grice, podendo gerar interpretações indevidas por parte do interlocutor. Esse fato dificultaria a interlocução entre as partes envolvidas na audiência no caso, reclamante e reclamado face ao o objetivo a que se propõe uma instituição como o PROCON, que é exatamente buscar um consenso entre os participantes.
1.3. Teoria da fala-em-interação
A nossa proposta de trabalho caracteriza-se como uma pesquisa em Lingüística Interacional, seguindo a proposição de Selting & Couper-Kuhlen (2001) e engloba as áreas de Análise da Conversa Etnometodológica e de Sociolingüística Interacional, ambas podendo ser consideradas vertentes complementares em Análise do Discurso. Essas áreas são voltadas para a análise de dados reais de fala-em-interação.
A fala-em-interação é fundadora da vida em sociedade, já que é através da fala que as pessoas interagem. Podemos verificar essa centralidade da fala nas diversas situações de interação, ao pensarmos em uma consulta médica, uma apresentação de trabalho, em uma entrevista de emprego, ou seja, situações em que a linguagem verbal é constitutiva da própria tarefa.
É principalmente na organização seqüencial da fala-em-interação que se centram os estudos da Análise da Conversa Etnometodológica, cujo objetivo é evidenciar os métodos pelos quais os atores atualizam as regras sociais e descrever a organização das estruturas de padrões de ação presentes na interação social. Um exemplo seria a realização de uma ação do tipo "você vai sair hoje?" como uma forma preparatória para a realização de um convite. Esse tipo de comportamento e outros podem ser observados sistematicamente nas interações sociais, tornando-se estruturas de ação social que podem ser analisadas, já que essas estruturas estão organizadas em uma seqüência de ações.
Nessa perspectiva, Sacks, Schegloff & Jefferson (1974) apontam alguns fatos observados em suas pesquisas sobre a organização estrutural de conversas cotidianas4 4 Ver Zimmerman & Boden (1991) para uma discussão relevante na área sobre a relação linguagem e estrutura social. Outras obras de referência na área ainda são as de Psathas (1995) para o tratamento inicial da organização de seqüências e Schegloff (1995) para uma discussão sobre linguagem e ação. . Dentre eles, pode-se destacar: 1) uma pessoa só fala por vez; 2) ocorrências de mais de um falante por vez são comuns, mas breves; 3) transições de um turno para o outro se dão sem intervalo de tempo e sem sobreposição; 4) a ordem dos turnos não é fixa, mas é variável; 5) o tamanho do turno não é fixo, mas variável; 6) a distribuição dos turnos não é fixa, entre outros. Esses fatores servem para distinguir os diversos sistemas de troca de falas. O mais importante é a alocação de turnos. Na mediação, por exemplo, a alocação se faz, ora em momentos de pré-alocação de turnos, ora em momentos de alocação de turnos livres; numa conversa cotidiana, a alocação se faz, predominantemente, em momentos de alocação de turnos livres, uma vez que é feita de forma espontânea; já numa consulta médica há predominância de momentos de pré-alocação de turnos, pois o que se espera é o paciente responder apenas ao que lhe for perguntado pelo médico.
A contribuição da Sociolingüística Interacional reside nos conceitos de alinhamento, footing e enquadre. Goffman (1981) define alinhamento como a postura, a posição ou a projeção do self em relação a si mesmo, ao outro e ao enunciado. O footing seria uma mudança de postura do self na sua relação consigo mesmo, com o outro e com o enunciado que está sendo produzido ou recebido. Nesse sentido, pode-se dizer que footing é uma mudança do alinhamento, da postura, da projeção do self. Já o enquadre determina a maneira como sinalizamos para a interpretação que será feita pelo outro e, ao mesmo tempo, o modo como processamos os sinais que exteriorizam os enquadres dos outros participantes. Um bom exemplo disso seria uma entrevista de emprego em que se espera que o entrevistado, ao responder as questões levantadas pelo entrevistador, tenha uma postura educada e firme durante a sua apresentação.
Assim, os estudos da Análise da Conversa Etnometodológica e os conceitos da Sociolingüística Interacional contribuem para o nosso estudo de ações interacionais nas audiências de conciliação do PROCON.
2. METODOLOGIA
Este trabalho é vinculado à tradição de pesquisa qualitativa e interpretativa, conforme descrito por Denzin e Lincoln (2000). Essa perspectiva nos permite ter uma abordagem que considere os significados, os motivos, as aspirações, as crenças, os valores e as ações dos indivíduos expressos em suas relações. Assim, consideramos a realidade construída e modificada pelo ser humano e suas ações, tornando-se relevante atentar para os processos e os significados que os participantes atribuem aos fatos.
No entanto, ao voltar-se para o ambiente pesquisado, o pesquisador carrega consigo seus próprios valores, interesses e princípios, misturando-se, inevitavelmente, a esse ambiente. Portanto, não é possível estabelecer claramente fronteiras entre o pesquisador e aquilo que ele estuda.
Os dados aqui analisados foram gravados em audiências de conciliação no PROCON, no âmbito do projeto de pesquisa "Análise seqüencial das audiências de conciliação do PROCON", executado pela Universidade Federal de Juiz de Fora, entre 2005 e 2007 e coordenada pelo último autor.
O PROCON é o órgão responsável pela coordenação e execução da política estadual de proteção, amparo e defesa do consumidor. Cabe ao PROCON orientar, receber, analisar e encaminhar reclamações, consultas e denúncias de consumidores, fiscalizar previamente os direitos destes e aplicar as sanções, quando for o caso. Para que seja aberta uma reclamação, no PROCON, a relação de consumo deve ser entendida como, existente entre fornecedor e consumidor, havendo troca de bens (produtos) ou serviços por dinheiro. Toda relação de consumo envolve duas partes bem definidas: de um lado aquele que adquire um produto ou serviço (consumidor) e, de outro, o fornecedor de um bem ou serviço.
No PROCON, o consumidor terá apoio tanto informativo para efetuar um melhor consumo, quanto coibitivo, quando, por qualquer motivo, tiver seus direitos violados. Isso não significa que o PROCON seja um órgão que vise apenas o lado do consumidor, mas sim um órgão que dá a ele direito de defesa, como prevê a constituição.
O atendimento no PROCON é gratuito, não sendo necessária a presença do reclamante com advogado. O órgão público analisa cada caso e convoca as partes para um possível acordo. Durante as audiências de conciliação, além do reclamante (consumidor), do reclamado (prestador de serviços) e do mediador (advogado ou estagiário de Direito), podem estar presentes advogados de ambas as partes e, ainda, testemunhas.
Para o nosso estudo recorremos à análise de uma audiência de conciliação gravada em áudio e, em seguida, transcrita. Nesta audiência do PROCON, Acareação Motocicleta, as partes envolvidas são o reclamante Marcos e o reclamado Paulo; e as mediadoras são a advogada Ana e a estagiária Eva. O conflito gira em torno do esclarecimento acerca da não prestação de contas da empresa ao consumidor que participava de um consórcio.
Selecionamos, para análise, as partes da audiência que apresentam elementos narrativos auxiliando, não só, a apresentação da reclamação, mas, sobretudo a argumentação das partes.
Por fim, trata-se de uma pesquisa qualitativa, baseada na microanálise dos dados, uma vez que objetiva explicar os fatos por meio do significado imediato e local das ações. Além disso, é importante explicitar que os símbolos utilizados como modelo de transcrição foram desenvolvidos por Jefferson, e encontram-se em Sacks, Schegloff & Jefferson (1974), e poderão ser consultados ao fim da seção de análise de dados deste artigo (anexo I anexo I )5 5 Ver Duranti (1997) para uma discussão sobre o processo de transcrição de dados. . Seguimos os princípios de Pommerantz & Fehr (1997) para a segmentação dos dados.
3. ANÁLISE DE DADOS
Nesta seção, exemplificaremos os resultados obtidos em termos de análise das situações de conflito encontradas na Acareação Motocicleta. Neste estudo de caso, tanto o reclamante quanto o reclamado se apropriam da narrativa a fim de, respectivamente, apresentar a reclamação e tentar se eximir da queixa apresentada. Nesta análise, é possível identificar como ocorre a narrativa nas falas do reclamante/reclamado e a negociação dos direitos e deveres interacionais no decorrer da audiência.
(Acareação Motocicleta) 01:01 02:19
01 Eva: (por alto ( ) reclamação do: : do marcos). (0.8) aí que
02 dia que cês me tem o resultado: : do e tu:do
03 Paulo: o: : o problema do marcos é o seguinte (1.5) ele: : se não
04 me engana alega que: tem cinqüenta e dois reais de fundo
05 de reserva, consórcio motocicleta não é isso?
06 Marcos: <é seria isso mesmo> mas doutor o que me encarregou a
07 entrar (0.5) com esse processo (esse) (1.0) de
08 restituição (0.5) é porque não foi me dado o sistema do
09 grupo, não mandaram carta nenhuma, a não ser quando eu
10 procurei meus direitos, entendeu? aí sim dia dez eles
11 mandaram uma carta pra mim, avisando que estaria
12 disponível eu vim aqui mostrei pra mocinha ela fez o
13 cálculo, (0,5) o cálculo daria um diferença de dez reais
14 e quarenta e seis ( ) =
15 Eva: ( ) inclusive a gente até foi viu [( )]
16 Marcos: [certo] (0.8) exato =
17 Paulo: =certo (.) deixa eu te explicar uma coisa o consórcio
18 nacional motocicleta existe há muitos anos (0.8) e é
19 pra:tica- isso é lei. não é questão de vontade deles ou
20 não. com o término do grupo se faz o rateio das sobras,
21 num é isso ?=
22 Marcos: =exato
23 Paulo: e então o que que aconteceu no seu caso? foi feito o
24 rateio (.) a sua assembléia terminou dis do:ze do seis
25 (1.5) doze de junho (2.5) e: : (raspa a garganta)) ficou
26 um resíduo do ZEro dezesseis por cento esse resíduo já
27 pode ser proveniente .h de um pequeno aumento desse
28 período de moto, que >a prestação< já havia sido: :
29 emitida, pode ser:r de uma parcela paga menor, algum
30 centavos, entendeu? então o quê que a motocicleta fez? no
31 SEu fundo de reserva descontou: seis reais e vinte e seis
32 centavos. entendeu, o seu fundo de reserva aqui: é de
33 cinqüenta e dois e noventa menos seis reais e vinte e seis
34 centavos, ficou um saldo de quarenta e seis reais e
35 sessenta e quatro centavos
36 Marcos: = mais aí: no caso, é : : como consta aqui tá junto o fundo
37 de reserva e o fundo (1.5) de reserva e o fundo (3.0) ( )
38 tá aqui (.) aqui tá calculado os dois fundos juntos (.) sendo
39 que no: no contrato (reside) que é um: né ? é separado do
40 outro, num concorda comigo?
41 Paulo: que dois fundos? que dois fundos?
42 Marcos: fundo de reserva e o: fundo : : .. de reserva e: :
43 (pausa de 37 segundos)
44 Marcos: fundo comum (2.0) concorda comigo? não que são dois
45 fundos?
46 Paulo: >não num é a mesma coisa deixa eu te falar uma coisa<
47 (0.5) o seu grupo quando termina faz um balanço (1.5) no
48 seu grupo teve MUito inadimplente, entendeu? isso é
49 ratiado também (1.5) entendeu? é: então, quer dizer é u: u
50 consórcio que que é? é um grupo de pessoas pra retirar um
51 bem, e vocês administram esse fundo ou seja a motocicleta
52 administra o FUNdo de vocês. então, nu balanço tota: l, foi
53 o quê restou para você. não tem não tem como se diz (0.5)
54 dois fundos não. existe o fundo de reserva=
55 Marcos: ((barulho de celular)) (não é:, o fundo) o fundo de
56 reserva [e o fundo comum] =
57 Paulo: = [e o fundo comum]
01 Marcos: =eu- o primeiro contrato que eu VI que eu LI e ele: diz que:
02 que os dois né? quando feito o pagamento, o acerto no
03 final do consórcio e tudo, um é feito: separadamente do
04 outro aqui né foi calculado os dois juntos, concorda
05 [comigo ?]
06 Paulo: [sim ué], é o balanço total ué, é o balanço
07 Marcos: [( )]
08 Paulo: [agora inclusive] nessa época, por exemplo HOje já existe,
09 o seu contrato é antigo
10 Marcos: exato=
11 Paulo: =ele determina:va..- ele num tinha prazo pra devo-
12 devolução desse fundo de reserva
13 Marcos: tinha. trinta: [d i a s] ( )
14 Paulo: [não] esse é só pros cancelados
15 Marcos: noventa [d i a s]
16 Paulo: [os cancelados] ou seja se ( ) paga três quatro
17 ou cinco parcelas e desiste, então havia esse prazo para
18 os cancelados=
19 Marcos: =exato
Levando em consideração que, em audiências de conciliação, há, anterior ao momento da interação, um primeiro contato entre o mediador e a situação provocadora do conflito, notamos que essa audiência é iniciada pela fala da mediadora, Eva, que, primeiramente, retoma um contexto estabelecido anteriormente, dando a entender que já possuía um conhecimento prévio sobre o fato: "(por alto ( ) reclamação do:: do marcos)." (linha 01) . Nessa tentativa de situar o caso, percebe-se que a mediadora procura apresentar um resumo do assunto que será tratado posteriormente, porém não consegue realiza-lo. Na seqüência de seu turno, observamos que Eva seleciona diretamente o reclamado - "(0.8) aí que dia que cês me tem o resulta::do e tu:do" (linha 01), - já que utiliza a expressão "cês", referindo-se aos membros da instituição representados por Paulo.
O reclamado, quando selecionado por Eva, inicia sua fala e parece se dirigir à mediadora "o:: o problema do marcos é o seguinte (1.5) ele:: se não me engana alega que: tem cinqüenta e dois reais de fundo de reserva,consórcio motocicleta não é isso? " (linhas 03-05) . Entretanto, com o pedido de confirmação feito a Marcos "não é isso?" (linha 05) , nota-se que o verdadeiro receptor direto, selecionado por Paulo, é o reclamante, pois no próximo turno "<é seria isso mesmo>" (linha 6) Marcos é quem responde à solicitação.
Ainda no que se refere ao discurso inicial do reclamado - "se não me engana alega que:." (linha 4) , percebemos que esse, utilizando a expressão "se não me engana", promove uma tentativa de não se comprometer com o conteúdo de sua fala, ou seja, Paulo modaliza seu discurso, de modo a não ser tão incisivo, já que não tem total certeza se esse é o verdadeiro motivo da reclamação.
A partir das considerações sobre os dois turnos iniciais, o primeiro, em que a mediadora inaugura a audiência com a tentativa de situar o caso e o seguinte, quando o reclamado atua como animador de Marcos, podemos enxergá-los como prefácio da narrativa que será produzida pelo reclamante, uma vez que houve uma negociação entre as partes para que a entrada efetiva no modo narrativo fosse feita por Marcos.
Embora a expressão "não é isso?" (linha 5) pareça evidenciar uma preferência6 6 O termo aqui se refere aos estudos de Pommerantz (1984) sobre respostas alternativas a ações projetadas como primeira parte do par adjacente. A um convite, como em "quer ir ao cinema hoje", o que o perguntador projeta como expectativa é que ocorra uma aceitação do convite. Em nossa linha de raciocínio aqui, uma resposta alternativa seria a rejeição ao convite, e demandaria mais trabalho interacional. pela concordância, Marcos, ao responder - "<é seria isso mesmo> mas" (linha 06) demonstra, com o uso do verbo no futuro do pretérito e com o conectivo "mas", que a versão de Paulo não estaria totalmente correta, estipulando, assim um semi-status de reparo7 7 Por reparo entendemos a ação empreendida na fala de um dos participantes para lidar com problemas de produção, compreensão ou entendimento da fala dos outros participantes. Ver Garcez & Loder (2005) para uma revisão em português sobre o tema. . Porém, para não invalidar o discurso de Paulo com uma resposta "despreferida", Marcos inicia sua fala com o verbo " é" no presente do indicativo.
Paulo, no turno seguinte ao de Marcos (linhas 17-21), faz uma retificação, utilizando os argumentos da tradição e da lei: "o consórcio nacional motocicleta existe há muitos anos (0.8) e é prá:tica- isso é lei." (linhas 17-19). Ao utilizar a frase "Isso é lei", Paulo se posiciona como detentor das normas legais, projetando um enquadre institucional, ou seja, utiliza-se da lei, para que no próximo turno (linhas 23-35) esses argumentos sustentem sua versão dos fatos.
Notamos que, no decorrer de sua explicação, Paulo profere a pergunta: "e então o quê que aconteceu no seu caso?" (linha 23) como forma de introduzir um próximo elemento na narrativa8 8 Esta forma, pela nossa observação, parece ser muito usual para manutenção de piso conversacional e prosseguimento da narrativa, porém seu estudo merece ser desenvolvido com mais afinco. . A forma retórica dessa pergunta funciona, ainda, como um recurso argumentativo do reclamado, uma vez que demonstra que o falante possui pleno conhecimento do que houve de fato. Outro momento em que essa estratégia é utilizada se dá no seguinte trecho: "então o quê que a motocicleta fez?" (linha 30).
Nessa audiência, os participantes, quando se dirigem um ao outro, durante suas narrativas, ou fazem alguma afirmação sobre a versão defendida pela outra parte envolvida, o fazem de modo polido, abertos a um entendimento a fim de resolver a questão conflituosa. No caso da fala do reclamado, este, apesar de demonstrar segurança sobre o que defende, utiliza-se de recursos discursivos de modo a se distanciar de uma verdade absoluta: ".ele:: se não me engana alega que:" (grifo nosso). Já o reclamante se refere a Paulo através de termos que demonstram uma posição social inferior ao reclamado: "mas doutor o que me encarregou a entrar (0.5) com esse processo" (grifo nosso).
Não há, nessa audiência, grandes intervenções por parte das mediadoras. Observamos que os participantes se permitem narrar suas versões respeitando o espaço de cada um. São poucas, também, sobreposições de vozes durante a apresentação da reclamação, mas elas acontecem, algumas vezes demonstrando concordância entre as partes, como no uso das expressões "[sim ué] " e "exato=" (linhas 6 e 10, respectivamente segunda página).
No que se refere ao ponto da narrativa, existem divergências entre as diferentes partes, já que em audiências de conciliação, o reclamante e o reclamado compartilham a mesma história sob perspectivas opostas.
No trecho escolhido para análise, podemos perceber o ponto da narrativa, o motivo pelo qual Marcos apresentou sua reclamação:
Marcos: <é seria isso mesmo> mas doutor o que me encarregou a entrar (0.5) com esse processo (esse) (1.0) de restituição(0.5)é porque não foi me dado o sistema do grupo, não mandaram carta nenhuma, a não ser quando eu procurei meus direitos, entendeu? aí sim dia dez eles mandaram uma carta pra mim, avisando que estaria disponível eu vim aqui mostrei pra mocinha ela fez o cálculo, (0.5) o cálculo daria um diferença de dez reais e quarenta e seis ( )= . (linhas 6-14 primeira página).
Nesse caso, o ponto narrativo não se trata somente do não-ressarcimento financeiro, mas sim mostrar sua insatisfação quanto à maneira com a qual fora tratado pelos funcionários da empresa e quanto à falta de esclarecimento prestado por essa a respeito das dúvidas do consumidor.
Em relação ao ponto da narrativa do reclamado, podemos analisá-lo a partir do seguinte trecho:
Paulo: e então o quê que aconteceu no seu caso? foi feito o rateio (.) a sua assembléia terminou dia do:ze do seis (1.5) doze de junho (2.5) e:: ((raspa a garganta)) ficou um resíduo de ZEro dezesseis por cento esse resíduo já pode ser proveniente .h de um pequeno aumento desse período de moto, que >a prestação< já havia sido:: emitida, pode se:r de uma parcela paga menor, algum centavos, entendeu? (linhas 23-30 da primeira página).
Paulo, com sua narrativa, pretende explicar a razão na demora do pagamento que deveria ser feito a Marcos, ou seja, o reclamado pretende defender a instituição a qual representa através de seguidas justificativas. Paulo parece ser tão conhecedor da situação, que para qualquer possível indagação do reclamante, ele apresenta uma resposta.
Conforme dito anteriormente, há divergentes pontos narrativos para as duas partes envolvidas na audiência, entretanto, aqui, não se trata somente de versões distintas, mas sim de uma não compreensão por parte do reclamado no que se referia às reais vontades do reclamante. Marcos tinha como principal objetivo de sua reclamação uma satisfação moral, - "não mandaram carta nenhuma, a não ser quando eu procurei meus direitos, entendeu?" (linhas 8-9 primeira página) - que não foi entendida pelo reclamado. Paulo, em sua fala, tratava apenas do problema financeiro, sem levar em conta a questão de ordem subjetiva: "no SEu fundo de reserva descontou: seis reais e vinte e seis centavos. entendeu," (linhas 31-32 primeira página).
O ponto da narrativa merece ser aprofundado neste artigo, já que é possível notar mais de um ponto durante a narrativa dos participantes. Para isso, utilizaremos o trecho abaixo, situado no final da audiência:
Acareação Motocicleta (06: 05-53)
05 Paulo: [não, não], (mas) isso é o valor contratado porque a
06 motocicleta MEScla moto (0.2) na mesma faixa de preço, pra
07 formar grupos os grupos são de cem pessoas (1.0)
08 estão, na sua faixa rd, rd 135, Crypton,=
09 =ter contratado outro, entendeu
10 Paulo: =jog (0.5)isso tudo na mesma faixa de preço ela JUNta num
11 grupo só.
12 Marcos: /pra poder fechar o grupo/
13 Paulo: pra poder fechar o grupo entendeu? isso é que acontece
14 pode ter acontecido com o seu aí=
15 Ana: =por isso que eu perguntei a ele no início se o grupo era:
16 de bens [idênticos (ou não) ( )]
17 Paulo: [agora que você tá fala]ndo=
18 ((muito barulho de pessoas conversando))
19 Paulo: =eu tô lembrando não não não é porque senão demoraria
20 muito de um modelo só formar um grupo de cem pessoas
21 Marcos: é::. mas é: o:: motivo que me trouxe aqui não é nem pela
22 diferença de mais ou menos de de desse valor entendeu? É
23 mais porque pelo que eu vi no contrato que constava a: a
24 motocicleta nem entrou em comunicação comigo tanto é.. EU
25 fui lá muitas vezes conversei com a luisa ( ) entendeu
26 cheg- cheguei a pedir extrato ( ) é mais porque é:: no
27 contrato tá dizendo que tem que dar satisfação para o
28 associado, né =
29 Ana: = você ficou insatis[feito porque você acredita que se]=
30 Marcos: [insatisfeito, é:: mais por causa]=
31 Ana: =[você não tivesse VINdo]=
32 Marcos: =[disso é:: não havia ne]cessidade=
33 Ana: =ao procon não [teria rec]ebido isso até hoje
34 Marcos: =[entendeu?]
35 Ana: entendi perfeitamente.
36 Paulo: e:e:e:e: mas a motocicleta não te deu uma posição porque
37 não TI:nha. (0.5) como é que ela ía te dar uma posição se
38 ela estava fech(h)ando a as contas ainda?((exaltação))
39 Ana: teria que dar pe[lo menos] esta posição:
40 Marcos: [é , ué!]
41 Paulo: ah, mas isso com certeza foi passado prá e:le isso é com
42 cerTEza absoLUta
43 Ana: ((como é que é?))
44 Marcos: é: ( ) de todas as pa:rtes ( )
45 Paulo: isso lá::, pelo menos com relação à loja você foi bem
46 atendido, através da das meninas?
47 Marcos: é: pode se dizer que sim, né.
48 Paulo: então então o seguinte ás vezes as meninas ligam lá pra
49 fábrica e não tem como ver(0.5)quer dizer só depois que
50 Fecha que ela tem uma posição >fala assim< olha ainda tá
51 fechando tá fechando (1.0) quer dize::r, eu não tenho
52 outra resposta pra dar (1.0) entendeu? eu não tenho outra
53 resposta pra te dar ((exaltação))
Nesse momento da audiência, Paulo continua sua narrativa, tentando dar possíveis explicações sobre o porquê do valor pago a Marcos ser diferente do previsto, por imaginar ser esse o real motivo da reclamação: "pra poder fechar o grupo entendeu? isso é que acontece pode ter acontecido com o seu aí=" (linhas 13-14), reforçando o ponto de sua narrativa anterior.
Por esse motivo, Marcos torna a mencionar qual o verdadeiro motivo de sua reclamação "é::. mas é: o:: motivo que me trouxe aqui não é nem pela diferença de mais ou menos de de desse valor entendeu?" , porém dessa vez houve o entendimento por parte do reclamado, o que promove a mudança do ponto da narrativa de Paulo: "e:e:e:e: mas a motocicleta não te deu uma posição porque não TI:nha. (0.5) como é que ela ía te dar uma posição se ela estava fech(h)ando a as contas ainda?((exaltação))." (linhas 36 -38 página 6). Nessa fala, Paulo finalmente explica a razão da demora na prestação de contas, mostrando, desse modo, que compreendeu o que levou Marcos a apresentar sua reclamação.
Uma observação interessante é o fato de, num curto espaço de tempo, Paulo se exaltar em dois momentos. O reclamado, com sua fala, parece achar que já havia explicado anteriormente o que acabara de dizer. Além disso, aparenta não ter mais argumentos para refutar a queixa dada pelo reclamante: "eu não tenho outra resposta pra dar (1.0) entendeu? eu não tenho outra resposta pra te dar ((exaltação))" (linhas 52-53 página 6).
Outro ponto que merece destaque nessa análise é o que ocorre após as narrativas das partes. Para isso, tomaremos como exemplo o trecho abaixo, a fim de facilitar nosso estudo:
Acareação Motocicleta 08: 53-56; 01-32
53 Ana: quer continuar?
54 Marcos: não. ( )
55 Ana: não?
56 Marcos: não.
01 (7.0)
02 Paulo: isso ta a disposição dele, já está à disposição desde esse
03 dia que ele nos enviou a carta ( )
04 Marcos: ( ) porque: (0.8) agora que já se passou, né, não
05 não(0.8) não o contrato eu também não trouxe aqui presente
06 no momento mai::=
07 Paulo: =você fica à vontade marcos é você que sabe o que você
08 quer faze:r. a gente, eu estou de:demonstrando o quê que
09 é, entendeu. se demorou um pouquinho porque nossas contas
10 não estavam fechadas. (1.0) isso não tem como evitar, ué.
11 se todos pagassem em dia, se tudo fosse certinho ( )=
12 Marcos: =isso eu concordo.
13 Paulo: =entendeu? ( )
14 Marcos: m::ais, a gente (fecha) assim então: (0.5) e:u fiquei
15 muito insatisfeito mesmo foi com com co:m com o modo de
16 (proceder) mai::s, pa pass[ou ( )]
17 Paulo: [mas não] é você sozinho não,
18 se você vê o SEu grupo TOdos receberam a carta na mesma
19 data [não é só porque você veio aqui (não), entendeu?]=
20 Marcos: [não, num é do fato da da da carta não]=
21 Paulo: =ham?
22 Marcos: =é:: isso:: já desde quando eu estou no consórcio
23 participando. (1.2) ma:is já passou já renove:i
24 Ana: você ficou insatisfeito com o atendimento da::
25 Marcos: é:: chegou cheg- chegou mês de de de de vim a boleta de um
16 mês adiantado porque é:: é tudo numeradinho, né.
27 Marcos: vi::m, repeti:r, coisa assim, mas isso aí já foi contornado, já foi
28 resolvido, né e::
29 Ana: você achou que fo::i um pouco uma falta de organização=
30 Marcos: também exato foi foi o mais mesmo a: da parte pelo que eu
31 vi no contrato foi não te:r a orientação né? conforme: eu
que eu [vi no contrato ( ) ]=
Ao contrário do que normalmente ocorre em audiências de conciliação, nesta, o conflito já se encontrava resolvido. O problema foi a falta de organização por parte da empresa que promoveu o consórcio e a ausência de orientações pelos atendentes, conforme o reclamante alegou haver no contrato: "foi o mais mesmo a: da parte pelo que eu vi no contrato foi não te:r a orientação né? conforme: eu que eu [vi no contrato ( ) ]=". (linhas 30-32 página 8). Aqui, a situação não exigia do reclamado a necessidade de solucionar um problema e, sim, de uma demonstração por parte dele de que, a partir desse momento, irá atender aos pedidos do reclamante.
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Foi objetivo de nossa análise mostrar algumas funções da narrativa na audiência de conciliação Acareação Motocicleta.
A narrativa compareceu, fundamentalmente, nas falas do reclamante e do reclamado. Foi possível observar que ela oferece um espaço interacional que oferece maior liberdade aos participantes, no que se refere à organização do sistema de tomada e turnos e ao andamento da audiência em si, uma vez que, em audiências de conciliação, se espera que o mediador interfira diretamente na condução da interação, com o objetivo de evitar situações conflituosas entre os participantes. Porém, não notamos essa função por parte do mediador durante as narrativas, pois é justamente, nesse momento que reclamante e reclamado "tomam a rédea da situação", como falamos no título desse artigo, para buscarem, "com suas próprias mãos", a solução do conflito. Pode-se dizer, assim, que a narrativa proporciona um espaço interacional mais democrático.
No início da audiência, existem alguns indícios de que o discurso dos participantes assume um tom conflituoso. Porém, quando se aproxima do final, observa-se uma mudança quanto à qualidade da interação, o que confere a ela um caráter de retratação. Além disso, como há intervenções mínimas por parte da mediadora, podemos dizer que essa situação se aproxima de uma negociação assistida, conforme a literatura de mediação aponta, cuja característica é que os participantes tomam para si a responsabilidade de solucionar o conflito em questão.
No que diz respeito à narrativa de Paulo, observa-se sua extensão por grande parte do trecho destacado da audiência, demonstrando seu aparente conhecimento da situação em debate, o que se dá pelo fato de o reclamado, em um primeiro momento, presumir que suas justificativas estão atendendo às reais necessidades do reclamante. A partir do momento em que o reclamado dá explicações em excesso e apresenta justificativas que não atendem às expectativas do reclamante, notamos que Paulo viola a máxima conversacional da relação, proposta por Grice, pois essa estabelece que se deve falar apenas o que é relevante para o entendimento do enunciado.
A violação dessa máxima gera, ainda, uma distinção no que diz respeito ao enquadre para cada um dos participantes, o que é perceptível pelo fato de, para o reclamante, o motivo da reclamação ser de ordem sentimental ou até mesmo moral, enquanto que, para o reclamado, a queixa de Marcos tinha como objetivo o ressarcimento financeiro.
Através das observações feitas acima, destacamos o papel fundamental da narrativa no contexto de audiências de conciliação no PROCON, uma vez que identificamos nos dados algumas de suas funções desempenhadas nas falas proferidas pelas partes, tais como: apresentação da reclamação, a argumentação feita narrativamente com o intuito de sustentar a desconstrução da reclamação, bem como a intenção do reclamado em defender a instituição que representa; e a contra-argumentação por parte do reclamante, tendo como objetivo fortalecer as razões que o motivaram a buscar o PROCON, na tentativa de convencer o (a) mediador (a) de que seu ponto de vista é o verdadeiro.
Pensando na interseção linguagem e profissões, tema por excelência da Lingüística Aplicada, vislumbra-se no presente trabalho, desta forma, uma semente que se pode transformar em ferramenta aplicada para os envolvidos neste estudo, adensando os estudos, ainda iniciais, das situações de intervenção de terceiras partes em situações de conflito baseados em transcrições de fala-em-interação. O estudo mostra, também, a produtividade da narrativa enquanto material lingüístico cotidiano, presente, portanto, nos mais diversos contextos de interação, no âmbito institucional ou não-institucional, nas mais diferenciadas situações comunicativas de nossa sociedade.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
DENZIN, N.; LINCOLN, Y. (, 2000). The discipline of qualitative research. Handbook of qualitative research. New York: Sage.
DURANTI, A. (1997). Transcription: from writing to digitized images. In: Duranti, A. Linguistic anthropology. Cambridge: Cambridge University Press.
GARCEZ, P.; LODER, L. (2005). Reparo iniciado e levado a cabo pelo outro na conversa cotidiana em português do Brasil. DELTA, July/Dec. 2005, vol.21, no.2, p.279-312.
GAYNIER, L. P. (2005). Transformative Mediation: In Search of a Theory of Practice. Conflict Resolution Quarterly, v. 22, n. 3.
GOFFMAN, E. (1998). A Situação Negligenciada. Porto Alegre: AGE, Ltda., p.11-15.
_______. (1998). Footing. Porto Alegre: AGE, Ltda., p.70-97.
GOODWIN, C. (1984). Notes on Story Structure and the Organization of Participation. In: Structures of Social Action: Studies in Conversation Analysis. J. Atkinson, J. Heritage, eds., Cambridge: Cambridge U. Press.
GRICE, P. H. (1974). Lógica e Conversação. In: Dascal, Marcelo (org). Fundamentos metodológicos da lingüística. Pragmática. Campinas, 1982, v 4. Cambridge University Press.
JEFFERSON, G. (1978). Sequential aspects of storytelling in conversation. In: SCHENKEIN, J.N. Studies in the organization of conversational interaction. New York: Academic Press.
LABOV, W. (1972). The Transformation of Experience in Narrative Syntax. In: _______. Language in the inner city. Pennsylvania: University of Pennsylvania Press.
LERNER, G. (1992). 'Assisted storytelling: Deploying shared knowledge as a practical matter', Qualitative Sociology 15: 247-71.
POMMERANTZ, A. (1984). Agreeing and disagreeing with second assessments. In: ATKINSON, J. MAXWELL & HERITAGE., J. Structures of Social Action: Studies in tion Analysis. Cambridge, U.K.: Cambridge University Press.
POMERANTZ, A. & FEHR, B. J. (1997). Coversation Analysis: An Approach to the study of Social Action as Sense Making Practices. In: van DIJK, T. Discourse as Social Action. London: Sage Publications.
PSATHAS, G. (1995). Discovering sequences in interaction. In Conversation Analysis: The Study of Talk in Interaction. Thousand Oaks, CA: Sage.
SACKS, H. (1974). An Analysis of the Course of a Joke's Telling in Conversation. In: Explorations in the ethnography of speaking. Edited by R. Bauman & J. Sherzer. New York. Cambridge University Press.
_______. (1992). Lectures on Conversation. New York: Blackwell.
_______; SCHEGLOFF, E. & JEFFERSON, G. (1974). Sistemática elementar para a organização da tomada de turnos para a conversa. Revista Veredas de Estudos Lingüísticos, v.7,n.12,p.01-67,2005. Tradução do original: A Simplest Systematics for the Organization of Turn Taking for Conversation Language, 50 (4), p.696-735.
SCHEGLOFF, E. (1995). Discourse as na Interactional Achievement III: The Omnirelevance of Action. Research on Language and Social Interaction, vol. 28 (3), p. 185-212.
SELTING, M.; COUPER-KUHLEN, E. (2001). Introduction. In: _______. (Orgs.). Studies in Interactional Linguistics. London: John Benjamins.
ZIMMERMAN, D. H. & BODEN, D. (1991). Structure in Action: An Introduction. In: BODEN, D. & ZIMMERMAN, D. H. Talk & Social Structure: Studies in Ethnomethodology and Conversation Analysis. Los Angeles: University of California Press.
Recebido: 03/09/07
Aceito: 28/04/08
- DENZIN, N.; LINCOLN, Y. (, 2000). The discipline of qualitative research. Handbook of qualitative research. New York: Sage.
- DURANTI, A. (1997). Transcription: from writing to digitized images. In: Duranti, A. Linguistic anthropology Cambridge: Cambridge University Press.
- GARCEZ, P.; LODER, L. (2005). Reparo iniciado e levado a cabo pelo outro na conversa cotidiana em português do Brasil. DELTA, July/Dec. 2005, vol.21, no.2, p.279-312.
- GAYNIER, L. P. (2005). Transformative Mediation: In Search of a Theory of Practice. Conflict Resolution Quarterly, v. 22, n. 3.
- GOFFMAN, E. (1998). A Situação Negligenciada. Porto Alegre: AGE, Ltda., p.11-15.
- _______. (1998). Footing. Porto Alegre: AGE, Ltda., p.70-97.
- GOODWIN, C. (1984). Notes on Story Structure and the Organization of Participation. In: Structures of Social Action: Studies in Conversation Analysis J. Atkinson, J. Heritage, eds., Cambridge: Cambridge U. Press.
- GRICE, P. H. (1974). Lógica e Conversação. In: Dascal, Marcelo (org). Fundamentos metodológicos da lingüística. Pragmática. Campinas, 1982, v 4. Cambridge University Press.
- JEFFERSON, G. (1978). Sequential aspects of storytelling in conversation. In: SCHENKEIN, J.N. Studies in the organization of conversational interaction New York: Academic Press.
- LABOV, W. (1972). The Transformation of Experience in Narrative Syntax. In: _______. Language in the inner city Pennsylvania: University of Pennsylvania Press.
- LERNER, G. (1992). 'Assisted storytelling: Deploying shared knowledge as a practical matter', Qualitative Sociology 15: 247-71.
- POMMERANTZ, A. (1984). Agreeing and disagreeing with second assessments. In: ATKINSON, J. MAXWELL & HERITAGE., J. Structures of Social Action: Studies in tion Analysis Cambridge, U.K.: Cambridge University Press.
- POMERANTZ, A. & FEHR, B. J. (1997). Coversation Analysis: An Approach to the study of Social Action as Sense Making Practices. In: van DIJK, T. Discourse as Social Action London: Sage Publications.
- PSATHAS, G. (1995). Discovering sequences in interaction. In Conversation Analysis: The Study of Talk in Interaction Thousand Oaks, CA: Sage.
- SACKS, H. (1974). An Analysis of the Course of a Joke's Telling in Conversation. In: Explorations in the ethnography of speaking Edited by R. Bauman & J. Sherzer. New York. Cambridge University Press.
- _______. (1992). Lectures on Conversation. New York: Blackwell.
- _______; SCHEGLOFF, E. & JEFFERSON, G. (1974). Sistemática elementar para a organização da tomada de turnos para a conversa. Revista Veredas de Estudos Lingüísticos, v.7,n.12,p.01-67,2005.
- Tradução do original: A Simplest Systematics for the Organization of Turn Taking for Conversation Language, 50 (4), p.696-735.
- SCHEGLOFF, E. (1995). Discourse as na Interactional Achievement III: The Omnirelevance of Action. Research on Language and Social Interaction, vol. 28 (3), p. 185-212.
- SELTING, M.; COUPER-KUHLEN, E. (2001). Introduction. In: _______. (Orgs.). Studies in Interactional Linguistics. London: John Benjamins.
- ZIMMERMAN, D. H. & BODEN, D. (1991). Structure in Action: An Introduction. In: BODEN, D. & ZIMMERMAN, D. H. Talk & Social Structure: Studies in Ethnomethodology and Conversation Analysis. Los Angeles: University of California Press.
anexo I
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
16 Jun 2009 -
Data do Fascículo
Jun 2008
Histórico
-
Aceito
28 Abr 2008 -
Recebido
03 Set 2007