Resumos
A hilária trama de Les nègres du traducteur, romance de Claude Bleton publicado na França em 2004, permite-nos explorar as relações que tradutores estabelecem com seus autores e originais. O texto de Bleton é particularmente útil para uma discussão de algumas noções relacionadas a teorias contemporâneas do texto e da tradução que giram em torno da noção nietzschiana de "morte do autor". Aaron Janvier, narrador e protagonista de Bleton, é um escritor frustrado que consegue se transformar em um importante tradutor de romances espanhóis para o francês, cujo gosto pelas estratégias domesticadoras de tradução faz dele uma figura poderosa nos círculos editoriais de Paris, Madri e Barcelona. À medida que conquista mais e mais influência no mundo editorial, Janvier não hesita em transformar os autores que traduz em seus "nègres", ou seja, em ghostwriters encarregados de escrever os "originais" que devem ser estritamente fiéis às "traduções" que ele lhes envia. Quando alguns dos autores começam a questionar essa situação peculiar, Janvier os elimina sumariamente. Por meio de um exame detalhado da caracterização que Bleton faz do tradutor como um assassino, este artigo propõe uma reconsideração de alguns clichês que estão associados ao tradutor, ao seu trabalho e à suposta impropriedade de sua íntima relação com textos e autores.
tradução; impropriedade; Claude Bleton; Les nègres du traducteur
The hilarious plot of Claude Bleton's novel, Les nègres du traducteur, published in France in 2004, allows us to explore the relationships that translators are often perceived to establish with their authors and originals. Bleton's text is particularly helpful for a discussion of some notions that are usually related to contemporary theories of text and translation that revolve around the post-Nietzschean notion of the "death of the author". Aaron Janvier, Bleton's narrator and protagonist, is a frustrated writer who manages to become a prominent translator of Spanish novels into French, and whose taste for domesticating translation strategies turns him into a powerful figure in the publishing circles of Paris, Madrid and Barcelona. As Janvier gets increasingly influential in the publishing world, he does not hesitate to turn the authors he should be translating into his "nègres", that is, into ghostwriters who are in charge of writing the "originals" that are expected to be strictly faithful to the "translations" he sends them. When some of his authors begin to reconsider their peculiar arrangement, Janvier simply kills them off. Through a close examination of Bleton's characterization of the translator as killer, this essay proposes to rethink some recurrent clichés associated with translators, their craft, and the alleged impropriety of their close relationship with texts and authors.
translation; impropriety; Claude Bleton; Les nègres du traducteur
TRADUÇÃO
Tradução e impropriedade: uma leitura de Les Nègres du Traducteur, de Claude Bleton1 1 . Tradução do artigo "Translation and impropriety: A reading of Claude Bleton's les nègres du traducteur", publicado em Translating and Interpreting Studies - TIS 1.2, 2006, p. 91 a 109. Traduzido e publicado em português com autorização da John Benjamins Publishing Company. * * Traduzido por Lenita Maria Rimoli Esteves. USP, São Paulo (SP), Brasil. lenitaesteves@usp.br
Translation and impropriety: a reading of Claude Bleton's les Nègres du Traducteur
Rosemary Arrojo
Binghamton University, State Univeersity of New York, (USA). rarrojo@binghamton.edu
RESUMO
A hilária trama de Les nègres du traducteur, romance de Claude Bleton publicado na França em 2004, permite-nos explorar as relações que tradutores estabelecem com seus autores e originais. O texto de Bleton é particularmente útil para uma discussão de algumas noções relacionadas a teorias contemporâneas do texto e da tradução que giram em torno da noção nietzschiana de "morte do autor". Aaron Janvier, narrador e protagonista de Bleton, é um escritor frustrado que consegue se transformar em um importante tradutor de romances espanhóis para o francês, cujo gosto pelas estratégias domesticadoras de tradução faz dele uma figura poderosa nos círculos editoriais de Paris, Madri e Barcelona. À medida que conquista mais e mais influência no mundo editorial, Janvier não hesita em transformar os autores que traduz em seus "nègres", ou seja, em ghostwriters encarregados de escrever os "originais" que devem ser estritamente fiéis às "traduções" que ele lhes envia. Quando alguns dos autores começam a questionar essa situação peculiar, Janvier os elimina sumariamente. Por meio de um exame detalhado da caracterização que Bleton faz do tradutor como um assassino, este artigo propõe uma reconsideração de alguns clichês que estão associados ao tradutor, ao seu trabalho e à suposta impropriedade de sua íntima relação com textos e autores.
Palavras-chave: tradução, impropriedade, Claude Bleton, Les nègres du traducteur
ABSTRACT
The hilarious plot of Claude Bleton's novel, Les nègres du traducteur, published in France in 2004, allows us to explore the relationships that translators are often perceived to establish with their authors and originals. Bleton's text is particularly helpful for a discussion of some notions that are usually related to contemporary theories of text and translation that revolve around the post-Nietzschean notion of the "death of the author". Aaron Janvier, Bleton's narrator and protagonist, is a frustrated writer who manages to become a prominent translator of Spanish novels into French, and whose taste for domesticating translation strategies turns him into a powerful figure in the publishing circles of Paris, Madrid and Barcelona. As Janvier gets increasingly influential in the publishing world, he does not hesitate to turn the authors he should be translating into his "nègres", that is, into ghostwriters who are in charge of writing the "originals" that are expected to be strictly faithful to the "translations" he sends them. When some of his authors begin to reconsider their peculiar arrangement, Janvier simply kills them off. Through a close examination of Bleton's characterization of the translator as killer, this essay proposes to rethink some recurrent clichés associated with translators, their craft, and the alleged impropriety of their close relationship with texts and authors.
Keywords: translation, impropriety, Claude Bleton, Les nègres du traducteur
O homem que está prestes a traduzir está numa constante, perigosa e admirável intimidade - e é essa familiaridade que lhe dá o direito de ser o mais arrogante ou o mais secreto dos escritores - com a convicção de que, no final das contas, traduzir é loucura.
Maurice Blanchot "Translating" (1997, p. 61)
A tradução tem sido muitas vezes associada a várias formas de comportamento impróprio - traição, infidelidade, roubo, indecência, sedução, invasão de propriedade etc. - que podem estar diretamente ligadas com a sempre íntima e muitas vezes ambivalente relação do tradutor com o original e/ou seu autor. De fato, a tradução implica um contato muito próximo com o texto de outra pessoa, não simplesmente como "o mais íntimo ato de leitura" (SPIVAK 2004, p. 397), mas também como uma forma de reescrita que alega substituir o original em outra língua e contexto. Não é de surpreender, portanto, que as implicações éticas dessa complexa relação sejam uma das principais preocupações das teorias de tradução ocidentais que, pelo menos desde Cícero, dedicaram-se a criar estratégias para ajudar os tradutores a se comportar de forma adequada.
A aparentemente perigosa relação que a tradução estabelece entre o original e o texto traduzido, e entre o autor e o tradutor, foi associada, por exemplo, com as frustrações decorrentes de amizades traiçoeiras e parasitárias. O texto do Conde de Roscommon escrito em 1684 e intitulado "An essay on translated verse" [Ensaio sobre a tradução de poesia] oferece uma criteriosa ilustração das questões básicas envolvidas nessas relações. De acordo com Roscommon, o tradutor, depois de se dar conta de suas próprias preferências e inclinações, deve encontrar um autor ou poeta com quem tenha empatia e com quem possa estabelecer uma ligação forte:
Descobre teu humor sinceramente,
E qual paixão domina tua mente.
Busca um poeta afinado contigo,
E um autor que vejas como amigo.
(ROBINSON, p. 176).2 2 . Um exemplo contemporâneo desse velho lugar-comum pode ser encontrado, por exemplo, na obra The translator's invisibility, de Lawrence Venuti, em que o autor comenta uma recomendação feita por um tradutor experiente, de que um tradutor deve tentar traduzir autores da mesma geração que a sua, na suposição de que "o tradutor trabalha melhor quando ele e o autor estão simpatico [...], termo pelo qual ele quer dizer "de acordo", ou "em termos amigáveis", significados que essa palavra italiana é muitas vezes empregada para expressar, mas também "tendo uma solidariedade subjacente". O tradutor não deve simplesmente se dar bem com o autor, não simplesmente considerá-lo agradável; também deve haver uma identidade entre eles" (1995, p. 273).
Entretanto, a busca de intimidade com o autor e seu original, que ao que se acredita é indispensável para o sucesso de uma tradução, também é basicamente imprópria e, sem dúvida, de extremo risco para o autor, já que o tradutor é aconselhado a traiçoeiramente tirar vantagem dessa proximidade com ele a fim de tomar-lhe o lugar:
Unidos nessa mútua afinidade,
Irmãos, íntimos, em grande amizade:
Do pensamento, palavras e estilo.
Tu mesmo, agora, autor de tudo daquilo (p. 176)3 3 . Ver também Chamberlain 2004, p. 307-308.
Além disso, como nessa trama tanto o tradutor quanto o autor são representados como homens, enquanto o texto em si é identificado com uma jovem e volúvel musa que precisa ao mesmo tempo ser conquistada e protegida, a relação triangular que os envolve é inextricavelmente carregada de conotações sexuais, sugerindo que o tradutor é na realidade um personagem de duas caras, um traduttore-traditore que se aproxima do autor a fim de tomar posse de seu precioso texto e musa.4 4 . Para um tratamento detalhado desse "triângulo amoroso" e suas implicações para a forma como as traduções e os tradutores são considerados no ocidente ver, por exemplo, Arrojo 2005.
A maioria das declarações tradicionais sobre tradução, venham elas de teorias formais ou de preconceitos disseminados pelo que podemos chamar de senso comum, é muitas vezes assombrada pelo medo da traição e do desrespeito, revelando uma ansiedade subjacente em relação ao fato de os textos sempre correrem o risco de ser submetidos a interpretações espúrias. Assim, nasce a tentação de especular sobre a possível existência de uma forte ligação entre o suposto perigo de colaborações não confiáveis e o persistente ideal da tradução como uma atividade que deve ser realizada de forma "invisível". Em outras palavras, segundo os termos idealizados de nossa tradição patriarcal e essencialista, os tradutores devem fazer seu trabalho sem deixar nenhuma marca de sua interferência, ou seja, sem na verdade assumir um papel autoral que possa ameaçar a posição do autor ou a suposta integridade do original.
Essa arraigada desconfiança em relação à atividade que, segundo se acredita, deve possibilitar que o significado viaje em segurança entre línguas e culturas, também aparece em várias obras de ficção, que exploram alguns dos antigos preconceitos associados a tradutores, a sua tarefa e a suas relações com os originais e seus autores. Em vários desses textos, o tradutor se encontra ligado a uma série de sentimentos ambivalentes desencadeados pelos dilemas éticos que constituem seu ofício. Tenho nutrido a crença de que o exame dessas obras escritas por vários autores e oriundas de diferentes tradições pode nos ajudar a entender melhor os conflitos que parecem motivar, pelo menos em algum nível, as maneiras pelas quais a cultura ocidental tende a reagir, talvez mesmo inconscientemente, ao papel do tradutor e de sua "perigosamente" íntima associação com os originais e seus autores. Nos últimos anos examinei histórias e romances cujas reveladoras tramas me permitiram refletir sobre as lutas de poder e os investimentos afetivos que em geral estão em jogo tanto na escrita quanto na recepção de traduções e originais, e que não ficam assim tão explícitos em declarações formais ou teóricas.5 5 . Ver, por exemplo, Arrojo 2002 e 2005.
O objeto deste trabalho, um romance publicado recentemente por Claude Bleton com o intrigante título Les nègres du traducteur, 6 6 . Para este artigo, utilizei a versão em espanhol, Los negros del traductor, traduzida por Maria Teresa Gallego, Andrés Enrenhaus, Miguel Saenz e Jesús Zulaika. Todas as citações do espanhol são traduções minhas. Também aproveito a oportunidade para agradecer a Josep Dávila, que foi meu aluno, por ter trazido o livro de Claude Bleton à minha atenção. traz uma divertida história sobre um tradutor e os autores que ele cuidadosamente escolhe para traduzir e dominar, e também sobre os textos que resultam dessa peculiar relação. Esse livro é a primeira tentativa empreendida por Bleton de escrever ficção após ter traduzido mais de uma centena de romances de importantes autores espanhóis como Carmen Martin Gaite, Juan Goytisolo, Juan Marsé, Antonio Muñoz Molina e Belén Gopegui. Nele, o autor subverte as oposições hierárquicas envolvidas na produção de originais e traduções, e parece estar particularmente interessado em explorar a muitas vezes incompatível relação entre as preocupações éticas tradicionais e os desejos e interesses do tradutor. Como pretendo mostrar, a aterradora porém hilária ficcionalização do que poderia ser considerado uma paródia de uma abordagem radicalmente domesticadora da tradução, aparentemente inspirada por uma teorização pós-nietzschiana da morte do autor,7 7 . Estou pensando, por exemplo, nos ensaios canônicos de Barthes (1979) e Foucault (1979) sobre o assunto. nos oferece rico material para refletir sobre a suposta impropriedade da tradução e, além disso, sobre como se pode abrandá-la.
No enredo de Bleton, Aaron Janvier, narrador e protagonista da história, é apaixonado por escrever ficção e consegue construir uma bem-sucedida carreira como tradutor de romances espanhóis para o francês, conquistando fama e influência nos círculos literários de Paris, Madri e Barcelona. Como os autores que ele traduz não conseguem escrever a uma velocidade que seja compatível com seus interesses e necessidades de criação, Janvier os convence a se tornarem seus ghostwriters, ou "nègres",8 8 . Em espanhol, negro (como o francês nègre) é usado não apenas como um equivalente para "escravo", mas também como um termo coloquial para " ghostwriter" (cf. por exemplo o Diccionário de la Real Academia, e o Larousse French-English Dictionary). ou seja, a produzirem originais para suas traduções francesas que são, na realidade, os verdadeiros originais aos quais ele espera que seus autores sejam estritamente fiéis. Seu plano funciona por alguns anos, até que seus nègres se recusam a continuar trabalhando para ele, diante do que ele decide eliminá-los sumariamente. Depois de um tempo, um leitor atento faz as ligações entre as pseudotraduções de Janvier e a alta incidência de mortes misteriosas entre romancistas espanhóis contemporâneos e levanta suspeitas contra o tradutor, que então começa a perder tudo o que havia conquistado, tanto na carreira quanto na vida pessoal, e acaba indo morar debaixo da Pont Neuf em Paris. É precisamente aí que o encontramos no final da história, dividindo umas garrafas de vinho barato com uma mulher também bêbada e sem teto para quem ele tenta contar sua história - narrativa que ela não consegue acompanhar e que é também o texto do romance que lemos.
Janvier começa a desenvolver sua bem-sucedida carreira de tradutor sob a influência de um jovem filósofo com quem ele convenientemente travou conhecimento em Paris. O filósofo nega "a existência da literatura clássica" e, portanto, a estabilidade e o valor literário intrínseco dos textos (p. 54). Com sua cômica obsessão pela écriture, o amigo de Janvier parece mais uma caricatura, por assim dizer, de alguns clichês que logo associamos com o pensamento francês contemporâneo, de cujas concepções textuais antiessencialistas nosso protagonista deriva uma abordagem da tradução que implica uma noção bastante vaga de fidelidade ao original, e que poderia muito bem ser descrita como uma forma radical de domesticação.9 9 . Embora o filósofo francês da trama de Bleton possa lembrar um jovem Jacques Derrida, por exemplo, não seria adequado associar prontamente esse pensamento (ou qualquer outro tipo de não-essencialismo) a uma defesa das estratégias domesticadoras de tradução. Apesar disso, a abordagem de Janvier poderia muito bem ser interpretada como uma versão radical das belles infidèles, conhecidas como uma característica dominante da tradição francesa para a prática da tradução. Ver, por exemplo, SALAMA-CARR, 1998, p. 411-413). Essa abordagem fica bastante evidente, por exemplo, no modo como Janvier lida com sua primeira tradução, um best-seller que gira em torno da reconciliação das "duas Espanhas" após a morte de Franco. Convencido de que a tradução é em verdade um "ato de recriação", Janvier transforma radicalmente o original a ponto de eliminar todos os espanhóis em sua versão, menos uma empregada e um pedreiro que têm papéis menores na história (p. 55). O primeiro trabalho de tradução de Janvier resulta, portanto, num romance que até certo ponto é de sua autoria, e que ostensivamente ofusca - além de trair de forma grosseira - o original, a cultura de partida e o autor. Janvier busca assim agradar ao suposto gosto imperialista dos leitores franceses que, como ficamos sabendo pela história, sentem prazer em detectar em qualquer "leitura exótica" a confirmação de sua "ilusão de que os franceses eram soberanos em todo o mundo" (p. 66).
A capacidade de Janvier para oferecer aos seus leitores um texto estrangeiro acessível, escrito em uma linguagem que eles conseguem entender e no qual eles encontram um reflexo de seu próprio contexto transforma sua tradução em um grande sucesso (p. 55-56). Ao mesmo tempo, suas cuidadosamente ensaiadas habilidades sociais, que também lhe proporcionam "um bom casamento com a filha de um renomado crítico literário" (p. 60), colaboram para introduzi-lo nos círculos editoriais, tanto o francês quanto o espanhol, e revelam-se fundamentais para que ele "pouco a pouco se imponha como um exímio mediador entre a Espanha e a França" (p. 55-56). Suas conquistas o estimulam a aceitar novos desafios e renovam seus interesses pela leitura e, principalmente, pela reescrita dos clássicos. Relendo À la recherche du temps perdu, por exemplo, obra que ele considera um pouquinho "amadoresca", Janvier se sente tentado a reescrevê-la, mas se abstém de fazê-lo porque o texto de Proust já está em francês, pelo menos "oficialmente" (p. 56). Entretanto, seu desejo de reescrever os clássicos pode ser realizado pela tradução, e ele aceita colaborar com uma reescrita de Don Quixote na qual o cavaleiro andante é baixo, troncudo e de ascendência inglesa, ao passo que seu escudeiro, Sancho Pança, é delgado, desalinhado e filho de mãe senegalesa.10 10 . Não seria exagero comparar o ambicioso projeto de Janvier ao de Pierre Menard na conhecida história "Pierre Menard, autor del Quixote". Assim como Janvier, Menard é um francês que não quer simplesmente traduzir Don Quixote, mas decide ser seu autor "invisível". Na verdade, uma detalhada comparação entre os dois personagens poderia nos levar a algumas conclusões intrigantes sobre a psicologia da tradução, especialmente se explorássemos a interface entre a tarefa do tradutor e a noção de transferência em psicanálise, tópico que pretendo explorar em outro artigo enfocando esses dois personagens. Para uma exploração da relação transferencial que une Cervantes e Menard, ver Arrojo 2006. Em sua negociação com o "autor" dessa nova versão da obra-prima de Cervantes, Janvier faz questão de assumir o papel de quem determina o que deve ser excluído da trama, e de criar todas as passagens que exijam imaginação, como os episódios em que Don Quixote visita o Novo Mundo ou se encontra com Teresa de Ávila e São João da Cruz. O autor desse novo Quixote também terá de reconhecer a competência de seu tradutor em questões estilísticas, sendo obrigado a declarar, em entrevistas, que a versão francesa de seu trabalho pode na verdade ser considerada uma "editio princeps" (p. 59).
Inspirado por seu sucesso, e logo que sente que tem as ligações certas e a experiência suficiente, Janvier começa a implementar gradualmente seu "método" de tradução que, como somos informados, é "muito adequado a seus interesses e sua ambição de construir uma carreira hegemônica no contexto cultural franco-espanhol" (p. 59). Fica implícito que seu principal objetivo é subverter as oposições hierárquicas que tradicionalmente separam as traduções dos originais até que elas sejam colocadas totalmente de cabeça para baixo, juntamente com a "centenária hegemonia" que sempre conferiu aos escritores de originais uma posição superior em relação aos tradutores (p. 88).11 11 . O projeto de Janvier está explicitamente associado a tendências pós-modernas e pós-estruturalistas. Por exemplo, a revista literária para a qual a esposa de Janvier convenientemente trabalha tem uma "orientação pós-moderna" e regularmente publica resenhas que elogiam a "audácia" de suas traduções. Sua abordagem também é, acima de tudo, uma evidente expressão de seu desejo frustrado de ser escritor, um desejo que ele só pode realizar desempenhando o papel de tradutor, que ele consegue transformar em uma posição surpreendentemente poderosa, graças a seus persistentes esforços e a seu pragmatismo calculado e egoísta. Assim, quando ele se sente pronto para começar a implementar seu método, ele convence alguns de seus autores a trabalhar para ele, ou seja, a escrever, sob sua orientação, os originais espanhóis que ele gostaria de reescrever em francês. Como se poderia prever, um dos principais elementos de seu sucesso é sua habilidade para selecionar os autores certos, e ele só considera aqueles "cuja fama pudesse garantir a sua própria" e que estivessem inclinados a obedecer a suas exigências (p. 57). Um bom exemplo é Alonso Martínez, que é extremamente ambicioso, tem uma boa voz e se fez bastante visível na mídia, especialmente em programas de rádio e televisão. Além disso, ele é preguiçoso, louco por xerez e tem uma série de compromissos pseudoacadêmicos. Está portanto especialmente inclinado a se submeter a seu industrioso tradutor que, depois de algum tempo, acaba escrevendo o primeiro esboço de um de seus romances, de modo que o original e a tradução são finalizados a tempo de serem publicados simultaneamente na Espanha e na França.
Depois de alguns anos de árduo trabalho, que faz a produção literária espanhola dobrar de volume em virtude de seus singulares esforços, Janvier ainda precisa falar quase todos os dias com os principais autores com os quais colabora, e que são "cada vez menos dedicados à tarefa de escrever, e cada vez mais interessados em consumir vinho, xerez e tapas". Ele percebe que é seu dever "ir atrás deles e forçá-los a terminar seus originais" antes da publicação de suas traduções, de modo que ele possa evitar "a impressão de caos". Um dia, porém, uma tradução acaba sendo publicada na França antes que o original espanhol tenha sido escrito. Apesar disso, por sorte o incidente não causa nenhum dano à carreira de Janvier e acaba libertando-o completamente da tirania do original e das queixas e caprichos de seus ghostwriters. Dessa forma, ele finalmente consegue produzir romances traduzidos em francês, que ele envia a seus autores para que eles possam fielmente preparar seus originais espanhóis dentro dos prazos que ele e seus editores estabelecem, para garantir que as duas versões sejam publicadas simultaneamente nos dois países (p. 94-95). Sua bizarra abordagem realmente funciona por um tempo, até que um de seus nègres, Juan Borrego Borrego, recusa-se a escrever o original para uma de suas extravagantes traduções, e Janvier chega à conclusão de que a única coisa que pode fazer para "restabelecer a harmonia de seu ofício e carreira" é "eliminar fisicamente o recalcitrante autor" (p. 106-107). Além disso, depois de perceber que Borrego Borrego é apenas o primeiro de uma lista de autores igualmente recalcitrantes que decidem se libertar de seu método de tradução, Janvier passa a eliminar a maioria de seus colaboradores, um a um. O objetivo final de sua "metódica purificação da elite intelectual espanhola" é livrá-la "de seus elementos mais rebeldes" e, assim, reunir a sua volta "apenas os autores dóceis [...] que viessem até ele perguntar sobre o que deveriam escrever" (p. 138).
Diante do sucesso das estratégias de Janvier no sentido de inverter a tradicional assimetria de poder que está em jogo no tipo de ética textual que sempre priorizou o original em detrimento da tradução e, consequentemente, o autor em detrimento do tradutor, somos expostos a uma intriga farsesca em que não é difícil reconhecer uma ficcionalização caricatural de alguns clichês associados a teorias textuais contemporâneas, dos quais a noção de morte do autor é a mais importante para nossa discussão da suposta impropriedade da tradução. Afinal de contas, segundo se afirma, a morte do autor é, em primeiro lugar, uma expressão da "vocação do tradutor" - traduzir (p. 107).12 12 . A frustração que Janvier sente por não ser capaz de escrever por si próprio e, consequentemente, seus esforços radicais para substituir os autores com os quais colabora também encontram um interessante reflexo em seu nome, Aaron Janvier, que parece sugerir que, apesar de o tradutor se tornar cada vez mais poderoso, e apesar de ele desejar ardentemente (ou até merecer) ser o autor dos originais e, dessa forma, ocupar o primeiro lugar ("Janvier", é a palavra francesa para "Janeiro"), ele está fadado a ser uma figura secundária. Isso reflete a história bíblica de Aarão, cujas funções de intérprete e porta-voz de Moisés o colocam numa posição muito inferior à de seu irmão mais novo, que é escolhido por Deus como o executor de sua vontade. Assim, enquanto Moisés, como uma figura autoral, é encarregado de espalhar a Palavra do Criador, Aarão só pode agir como um mediador entre o irmão e seu povo. (Êxodo: 4). A representação do tradutor como um serial killer calculista, que elimina os autores dos quais se aproximou de modo a continuar exercendo sua vocação, sem dúvida expressa de forma eloquente a violência do desejo autoral de Janvier e, portanto, reitera a noção corrente de que deve haver algo intrinsecamente perigoso na tradução, ou na necessidade e/ou desejo de reescrever um texto de outra pessoa numa língua, num contexto ou numa época diferentes. Ao mesmo tempo, porém, o real assassinato de seus autores é apenas a mais extrema manifestação da peculiar obsessão do tradutor com o ato de escrever, que já ficou de certa forma evidente em sua decisão inicial de usar a tradução como um escape para sua frustração por não ser capaz de escrever os próprios textos. A história narra que, com apenas 11 anos, depois de uma tentativa fracassada de criar uma história de sua autoria, Janvier conclui que "ele nunca poderia ser um escritor" e, "como ele tem uma autêntica vocação para o ócio", a melhor solução seria "copiar o que os outros escreveram" e, assim, tornar-se um tradutor (p. 20). Além disso, o fato de que o tradutor é, como descobrimos depois, alguém que só consegue escrever com a proteção da "rede de segurança" representada pelos autores com quem ele colabora (p. 74), acrescenta mais uma dimensão à caracterização feita no romance de seu comportamento intrinsecamente impróprio. O tradutor é, portanto, não apenas um autor frustrado, mas também um parceiro parasitário e ingrato, e o assassinato de seus ghostwriters é na realidade perfeitamente compatível com o tipo de atitude que ele assume ao longo de toda a sua meteórica carreira. Em outras palavras, muito antes de se tornar um assassino, o tradutor mostra ser egoísta e inescrupuloso, a forma mais bem-acabada do traidor, que não será demovido de buscar os prazeres associados à posição de autor, mesmo que oficialmente não tenha direito a essa posição.
Entretanto, como a história de Janvier ilustra claramente, e apesar de seu caráter perverso e seu comportamento impróprio, o tradutor não é o único culpado pela violência da tradução. Quando consideramos sua avidez em agradar aos leitores franceses medianos, também somos convidados a refletir sobre o papel desempenhado pelo contexto mais amplo que envolve o tradutor no desenvolvimento e na implementação de suas estratégias de tradução, bem como no seu sucesso entre editores e leitores. De fato, o romance deixa muito claro que a bem-sucedida carreira do tradutor não teria sido possível sem a estrutura de poder e a complexa rede de fatores culturais, ideológicos e financeiros que se relacionam intimamente com o desejo de agradar aos leitores franceses e também com a necessidade de vender o máximo de livros. Afinal de contas, é a combinação desses fatores que acaba permitindo que Janvier use a tradução como uma rede de segurança para o desenvolvimento de seus próprios projetos de autoria.
Ao mesmo tempo, o romance de Bleton oferece um flagrante exemplo da ambivalência da tradução como uma atividade que, apesar de ser supostamente motivada por uma abertura ao que vem de fora, muitas vezes promove um encontro com o estrangeiro que praticamente apaga a diferença e transforma o original - e o que ele representa - em um mero reflexo das próprias circunstâncias e interesses do tradutor. Ou seja, a violência que o tradutor perpetra contra o original, ou contra a ideia do original, não é simplesmente equacionada ao assassinato do autor, mas também a um tratamento explicitamente abusivo da cultura de partida corroborado pelos editores, casas editoriais e também pelos leitores, além de ser totalmente aceito pelos autores e intelectuais franceses que colaboram com Janvier. Dessa forma, a relação que o protagonista de Bleton estabelece entre suas traduções e seus supostos originais também é um reflexo do tipo de atitude que se permite - ou até se espera - que ele assuma em relação aos leitores franceses e, especialmente, aos espanhóis e seu contexto, refletindo também as relações que seu trabalho e seus esforços ativamente promovem entre os dois países. Como vimos, no contexto de Janvier, é perfeitamente aceitável transformar de forma radical, e literalmente desfigurar, o Don Quixote de Cervantes, tanto no original quanto na versão francesa, ao passo que é necessário respeitar a integridade da obra de Proust e assim reprimir o desejo de mudar ou atualizar sua linguagem e conteúdo.
Da mesma forma, assim como o principal objetivo do trabalho de Janvier é sobrepujar os originais espanhóis a ponto de eles serem realmente produzidos como traduções fiéis de suas supostas versões francesas, sua atitude em relação à Espanha e aos espanhóis é explicitamente nutrida por sentimentos de superioridade e menosprezo. Por exemplo, sua caracterização dos autores com os quais decide colaborar é em grande medida baseada em estereótipos aviltantes que os representam como rudes, preguiçosos e pouco confiáveis, além de muito mais interessados em seus assuntos pessoais e em tornar-se visíveis na mídia e nas cenas noturnas de Madri e Barcelona do que em trabalhar em seus livros. Acima de tudo, eles são representados como totalmente abertos à influência externa e, obviamente, submissos às absurdas exigências do tradutor francês que também toma decisões sobre que tipo de ficção espanhola deve ser lida na Espanha. Dessa perspectiva, a trama de Claude Bleton é muito eficaz em mostrar que a tradução não é uma forma de escrita inócua ou protetora, podendo ser usada não apenas para servir aos interesses pessoais do tradutor, mas também como um instrumento imperialista poderoso que pode ter um forte impacto sobre as duas línguas e culturas envolvidas, reforçando as relações de poder assimétricas que ao mesmo tempo unem e separam as nações.
Como o próprio Janvier reconhece, a imagem comum do tradutor como uma ponte entre duas culturas sugere um "conceito nebuloso" (p. 65), e como tal ajuda a camuflar o papel necessariamente autoral do tradutor, que frequentemente se opõe às usuais promessas de respeito e fidelidade ao original que tendem a idealizar o processo de tradução. Os tradutores se veem sempre obrigados a tomar decisões relativas ao significado e a quê ou a quem devem lealdade quando inevitavelmente reescrevem o original para uma outra comunidade de leitores, inserindo-o em um novo ambiente linguístico e cultural. Nessa condição eles não podem simplesmente atuar como mediadores neutros encarregados de facilitar uma mera transferência de significados estáveis e inalterados de um lado para outro.
Além disso, ao reorganizar as principais oposições sobre as quais a tradição se apoia para distinguir os originais das traduções e, portanto, ao transformar o tradutor em uma figura totalitária de autor, e o autor em um tradutor submisso, o romance de Bleton ilustra, de modo perverso, o tipo de impropriedade que é muitas vezes perpetrada contra a prática da tradução em geral e, particularmente, contra os tradutores, que se veem tratados como ghostwriters subservientes que devem ser descartados quando se recusam a acatar as demandas absurdas de seus autores. Assim, a trama irreverente de Bleton também ilustra com grande propriedade o fato de que a mera inversão das oposições hierárquicas que tradicionalmente definem as relações entre originais e traduções - uma inversão que é muitas vezes indevidamente associada às abordagens pós-modernas ou pós-estruturalistas - é simplesmente o outro lado do mesmo e inadequado modelo essencialista que não reconhece a complexidade da tarefa do tradutor e das relações que essa tarefa pode estabelecer com o original.13 13 . Um bom exemplo, que é particularmente pertinente para nosso tópico, é a conhecida redefinição proposta por Roland Barthes dos papéis do leitor e do autor (1979). Inspirada por sua teoria textual pós-saussuriana, Barthes propõe uma abordagem da interpretação que dá plenos poderes para o leitor e reduz o papel do autor ao de um mero hóspede que o leitor pode optar por não trazer à cena da leitura. Para uma discussão das implicações dos pensamentos de Barthes sobre a morte do autor para a tradução, ver Arrojo 1995.
A despeito de seu tom farsesco e de suas metáforas abusivas, o romance de Bleton argumenta de forma eloquente a favor da impossibilidade de distinções nítidas entre traduzir e escrever e, portanto, sobre o caráter arbitrário das convenções que em geral organizam e separam essas duas atividades. A trama de Bleton também sugere que o tradutor não é de forma alguma um escritor "preguiçoso" cujo trabalho é simplesmente copiar o que outra pessoa escreveu, e que os autores não são os únicos encarregados de estabelecer e disseminar significados. Isso não significa, entretanto, que deveríamos simplesmente descartar qualquer distinção convencional entre os papéis de autor e tradutor, ou que os tradutores deveriam simplesmente ignorar o poder autoral dos escritores que traduzem. Em vez disso, o que a história de Bleton parece sugerir é que, embora Janvier tenha de "matar" seus autores quando traduz, ele também precisa encontrar um modo de preservá-los de alguma forma. Como acaba aprendendo o Janvier derrotado e sem teto, os tradutores não podem se desfazer de seus autores, assim como os autores não podem se livrar dos tradutores. Ele, então, conclui, no final de sua narrativa, que mesmo se admitindo que um autor é um "sanguessuga" ou um "impostor" que copia os modelos criados por outros impostores, o tradutor (como "sanguessuga desse sanguessuga") não pode se livrar da "rede de segurança" proporcionada pelos ghostwriters, e se descobre estéril, "secando [...] como um velho parasita" que perdeu o alimento que obtinha de seu hospedeiro (p. 163). A "rede de segurança" do tradutor também poderia ser entendida, por exemplo, em termos da redefinição proposta por Foucault, do autor como uma função, ou como "um tipo de princípio funcional pelo qual [...] se impede a livre circulação, a livre manipulação, a livre composição, decomposição e recomposição da ficção" (1979: 159). De fato, um pouco antes de começar a matar seus autores, Janvier está bem consciente da necessidade de preservá-los, nem que seja como um "princípio funcional", e precisa garantir, por exemplo, que todos sigam a convenção básica estabelecida para a circulação de originais e traduções, ou seja, que eles terminem seus originais antes que o tradutor publique suas versões, a fim de evitar "a impressão de caos" (p. 94).
Finalmente, pode-se concluir que a mais valiosa lição a ser depreendida do romance de Bleton é que a suposta impropriedade da tradução como uma atividade que muitas vezes implica uma relação ambivalente entre tradutores e autores poderia ser reduzida se aos tradutores não fosse permitida a possibilidade de se ocultarem atrás dos nomes e textos de seus autores. Se a escrita de traduções, como a escrita de originais, necessariamente envolve pelo menos algum grau de interferência autoral, os tradutores devem assumir total responsabilidade pelos textos que escrevem. Mais uma vez nos termos de Foucault, pode-se dizer que assim com o os autores passaram a ser obrigados a assinar seus textos quando se sentiu que seus "discursos poderiam ser transgressores" e, assim "estar sujeitos a punições" (1979: 148), os tradutores também devem ser considerados responsáveis pelo trabalho que realizam, e ter seus nomes explicitamente associados com os textos que eles escrevem na forma de tradução.14 14 . A questão da assinatura do tradutor como símbolo de sua visibilidade é explorada mais a fundo em Arrojo 1995, em que eu também proponho, por exemplo, que se pense numa "função do tradutor" nos mesmos termos da "função do autor" de Foucault (cf. Arrojo 1995).: Como a história de Bleton ilustra, Janvier só é punido por seu comportamento porque, meses após seus assassinatos, um leitor atento e ávido - que, convenientemente, é um chefe de polícia aposentado - reconhece a singular voz e estilo do tradutor como o fio comum que une todos os romances supostamente escritos pelos vários autores espanhóis que morreram misteriosamente nos últimos meses. Assim, quando o tradutor é lido como os autores geralmente são lidos, e quando suas pseudotraduções são finalmente encaradas como suas próprias "declarações" (p. 155), ou confissões assinadas, Janvier não pode mais ocultar suas intervenções autorais - ou o que cometeu para torná-las possíveis - atrás do antigo álibi da invisibilidade do tradutor. No final, o que sua história mostra de forma eficaz é que o que é verdadeiramente impróprio, perigoso ou até mesmo enlouquecedor na tradução é precisamente a crença naquilo que é tradicionalmente idealizado como seu mais adequado princípio ético: a suposta neutralidade do tradutor.
Recebido: 21/11/2011
Aceito: 07/12/2011
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
02 Jan 2012 -
Data do Fascículo
Dez 2011
Histórico
-
Aceito
07 Dez 2011 -
Recebido
21 Nov 2011