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Entrevista com Beatriz Sarlo

DOSSIÊ ARGENTINA: CULTURA E POLÍTICA

Entrevista com Beatriz Sarlo

Alejandro Blanco; Luiz Carlos Jackson

Qual é sua origem familiar?

Eu descendo de duas famílias de imigrantes, mas com origens muito diferentes. A família materna é de origem imigratória "clássica", meus avós eram um galego e uma italiana semianalfabetos que conseguiram muito rapidamente uma relativa ascensão social. Os filhos chegaram à universidade e as filhas tornaram-se professoras e diretoras de escola. Foi uma família típica, entre as que chegaram em 1880 na Argentina, que lograram ascender naquele momento, o que depois se tornaria muito difícil. Pelo lado paterno, a família tem uma origem curiosa. Éramos criollos antigos que não recordávamos da nossa ascendência. Acredito que descendemos de italianos da Sardenha que vieram para trabalhar como pilotos de embarcações nos rios do interior. Há um momento no Facundo em que Sarmiento refere-se a marinheiros e pilotos genoveses, mas que poderiam ser sardos, que também eram navegadores. Todos tiveram relação com o campo, como se fossem criollos de origem. Meu avô paterno foi administrador de fazenda na província de Buenos Aires; minha avó, a que se casou com esse homem, era de Nueve de Julio, também de origem rural não aristocrática, dessas camadas médias rurais formadas pelos empregados mais elevados das fazendas. Ou seja, são dois ramos que, ainda que tenham origem imigrante, possuem culturas familiares extremamente diferentes. Na família da minha mãe, há uma cultura de ascensão social e esforço, na qual a educação é fundamental, como provaram no curso de suas próprias vidas. Na família do meu pai, ao contrário, só ele chegou a ser universitário, suas irmãs não terminaram nem a escola primária. Como criollos, entretanto, eles incorporaram certos delírios de superioridade, que tinham a ver com a cultura em que foram criados. Isso marca um ambiente infantil certamente interessante. Por um lado, o esforço e a grande pressão pela ascensão e, por outro, uma espécie de laissez faire cultural, que implicava não fazer esforços excessivos, não parecer "italiano", apesar do sobrenome que portavam. Meu pai era advogado, trabalhava na Justiça. Então, eu diria, a família do meu pai era uma família pretensiosa, mas sem nenhuma sustentação material, tampouco no passado; já a família de minha mãe era uma família completamente despojada de qualquer pretensão. Suas únicas ambições eram ter uma casa, economizar, ir ao colégio, triunfar desse modo no novo mundo. Minha avó materna era analfabeta, mas ensinou seus filhos a ler. Hoje posso falar de duas culturas, quando criança pensava mais em termos de gente que "não se dava bem", um lado tendia a desprezar o outro. A família não exitosa tendia a desprezar a família exitosa, uma mais arraigada no passado argentino e a outra mais arraigada no que foi a Argentina moderna da imigração, de 1880 em diante.

Como foi sua formação intelectual?

De alguma maneira as coisas se decidem e, no meu caso, foi muito importante que eu fosse a um colégio inglês, de um nível social muito acima do meu e de minha família. Evidentemente, meus pais fizeram um esforço de investimento cultural. Aí aparece uma terceira cultura, a de um colégio inglês da década de 1950. Na realidade, era um colégio dirigido por irlandeses "anglicizados". Não era uma instituição preocupada com as normas pedagógicas da Argentina, mas sim com os padrões herdados do país de origem. Eles impunham uma disciplina tipicamente sustentada pela "autorresponsabilidade". Passei muitos anos ali, durante o ensino primário e secundário. Havia também uma enorme preocupação com os esportes, coisa que não era habitual em uma escola para moças na década de 1950. O ensino era extremamente exigente. Esse colégio me lançou fora da minha classe de origem, porque atendia a burguesia do bairro de Belgrano. Muito rapidamente, contudo, nos primeiros anos da adolescência, rompi tanto com o setor burguês do colégio como com meu setor familiar de origem. De qualquer modo, a relação que estabeleci com essa cultura foi muito importante para minha formação intelectual. Havia ali uma ótima biblioteca, trabalhávamos com os livros que eram lidos pelas crianças da Inglaterra; desde os treze anos lemos Shakespeare, uma obra por ano.

Mais tarde, ingressei na Faculdade de Filosofia e Letras da Universidade de Buenos Aires, que me transportou a outro mundo, justamente em um momento de grandes mudanças, no início da década de 1960. Minha intenção era estudar filosofia, mas percebi que essa não era a minha e passei para a literatura. O entorno da faculdade era verdadeiramente privilegiado em 1960. Seu interesse topográfico tornou-se evidente para mim, depois que li um número da revista de Pierre Bourdieu, Actes de la Recherche. A faculdade ficava na rua Viamonte, entre as ruas San Martín e Reconquista. Na quadra seguinte, entre as ruas San Martín e Florida, estava a melhor livraria francesa de Buenos Aires, Galetea, dirigida por "intelectuais-livreiros". Nós a frequentávamos, não necessariamente para comprar, mas para saber o que estava sendo publicado. Havia ainda a livraria Letras, bem ao lado da faculdade. Nela, podíamos encontrar romances, livros de filosofia ou ensaios publicados vinte anos antes. Na Florida, estava o Instituto de Arte Moderna e a Galeria Van Riel. Nessa galeria ocorreu a primeira exposição dos "informalistas" em Buenos Aires, verdadeiro acontecimento da vanguarda plástica, encabeçada por Alberto Greco. Dois ou três anos depois, caminhando duas quadras mais, estava o Instituto di Tella, com o centro de artes e teatro. Tratava-se, portanto, de uma concentração extraordinária de espaços culturais para quem, como eu, não tinha muita vocação de estudante. Tudo isso me entusiasmava mais do que a própria faculdade, já que o curso mais importante não era o de letras, mas os de psicologia e sociologia, este marcado pela presença de Gino Germani. Na Letras, o único esforço de renovação provinha de Ana Maria Barrenechea, mas num marco geral muito conservador. O pessoal de sociologia era quem dava o tom à faculdade; nós os olhávamos de longe, com admiração e sensação de inferioridade, porque sabíamos que estudavam com "outros livros", que não eram os que tínhamos em nossas mãos. A experiência da universidade não foi, portanto, tão decisiva para mim como a que tive fora dela. Nesse momento, coexistia a velha boemia que vinha dos anos de 1950, atores, poetas, pintores, e uma nova geração artística que encontraria seu lugar no Instituto di Tella. Eu tive acesso a esses dois grupos. Em 1965, Enrique Oteiza, que dirigia o instituto, decidiu ter um programa de rádio e convocou Ángel Nuñez, que havia sido meu companheiro na faculdade, para que o organizasse. Ángel me chamou para colaborar. Esse foi um lance afortunado, eu poderia ter me concentrado mais na faculdade e, nesse caso, meu percurso teria sido diferente. Não demorei muitos anos para terminar o curso, mas não me dedicava muito. A primeira aula que assisti na faculdade me decepcionou. Eu tinha acabado de cursar a Aliança Francesa e estava muito afiada. Conhecia bem a literatura francesa, até o século XIX, e na primeira aula da faculdade tive a impressão de que sabia mais do que me ensinavam. Seguramente me equivocava, porque não sabia nada de nenhuma outra coisa. Fui tão má aluna que não li nem o Quixote enquanto estive na faculdade. Ou seja, estava iludida com o que pensava saber, mas eu tinha lido as tragédias de Racine, de Corneille, duas ou três novelas de Balzac, Vermelho e negro de Stendhal, Madame Bovary de Flaubert, Baudelaire. Isso era o que me havia ensinado a Aliança e, para minha ignorância, isso era, como para um francês, "a literatura".

De qualquer maneira, na faculdade tenho que mencionar um professor, Jaime Rest, que era o adjunto de Borges. Ele tomava café com a gente. Era um crítico com uma cabeça extremamente aberta, que começa agora a ser republicado e estudado. Ele nos apresentou as obras de Richard Hoggart e Raymond Williams. Foi tradutor das letras de John Lennon. Tinha formação protestante e era muito liberal em termos ideológicos e pessoais. Ele nunca dizia "você tem que ler isto". Alguém podia expor as mais atrozes carências literárias, sem que ele fizesse qualquer advertência. Jamais aconselhava leituras, podia citar algum nome, mas isso ocorria apenas em função do que estava dizendo. Terminamos muito amigos, mas, pensando de um ponto de vista utilitário, eu poderia ter aproveitado mais essa relação.

A segunda metade da década de 1960 foi muito politizada. Como foi esse período para você?

Tínhamos um pequeno grupo de estudos, no qual discutimos o primeiro estruturalismo e Barthes, que agora descubro, quarenta anos depois, que é a influência mais importante da minha vida intelectual. Mas havia a política e também a dificuldade de inserir-se profissionalmente. Foram anos difíceis, como para muita gente, mas tivemos a sorte de encontrar primeiro a Editorial Universitaria de Buenos Aires (Eudeba) e depois o Centro Editor de América Latina (CEAL). Ocorreu ali um ambiente intelectual extremamente fecundo, e, portanto, como disse uma vez Graciela Montes, o CEAL funcionou de alguma maneira como uma pós-graduação para nós. Aprendemos muita literatura, porque tínhamos que preparar os livros, e arte, porque os escritórios de diagramação do CEAL eram excelentes. Havia dez pessoas trabalhando com Oscar Díaz, o melhor diagramador da Argentina, uma pessoa extremamente culta.

A etapa seguinte de minha vida intelectual foi durante a ditadura. Casualmente, para mim e para muita gente, como Carlos Altamirano, que já tinha uma formação mais sistemática, a ditadura proporcionou tempo para estudar seriamente. O período mais continuado de minha formação é tardio, quando tinha 34 anos. Não há nada de precoce na minha história. Provavelmente, se não existisse a ditadura, teríamos enveredado pela política. Já estávamos nisso. Para nós, a revolução era iminente. Lembro-me de um sonho que tive naquele momento. A época sonhava por mim: eu estava com um lenço vermelho na cabeça, como se houvesse saído de uma gravura de Lissitzky, na praça de Maio, desesperada para avisar o comitê central que estávamos por entrar na casa de governo, aguardando que chegassem. Meu inconsciente estava tomado pela época. Paradoxalmente, esse período de formação, que teve a duração de um curso universitário, não teria existido sem a ditadura.

Quais foram as leituras mais importantes que realizaram nesse momento?

A primeira foi Raymond Williams. Juntamente com Carlos Altamirano, li muita coisa com a intenção de revisar o marxismo. Lembro-me de um livro revelador, que nos passou Jorge Dotti, El marxismo y Hegel, de Lucio Colletti. Essas leituras políticas foram essenciais para ajustar contas com nossa consciência filosófica anterior. Pensávamos que somente podíamos deixar o partido e começar um processo de revisão do marxismo se realizássemos um trabalho reflexivo sobre os textos que haviam formado nossa cabeça. O golpe militar me surpreendeu viajando num ônibus para Escobar (eu militava na zona norte), com os três tomos de Rodolsky sobre O Capital. A formação marxista nunca foi abandonada. Depois do golpe, creio que Williams nos ajudou a pensar de outra forma a trama de cultura e sociedade.

Como você tomou conhecimento de Raymond Williams?

Carlos Altamirano soube que a editora Nueva Visión pretendia traduzilo, mas desistira depois do golpe. Quem lhe contou foi uma mulher que desapareceu, a mataram, creio que Diana Guerrero. Creio que conseguimos o livro que estava com a editora. De qualquer modo, Buenos Aires era ainda um lugar onde era possível conseguir livros, por meio de circuitos alternativos. Em seguida, nos interessamos pelos autores mencionados por Williams, por Tomas Hardy e Hoggart, por exemplo. Em 1979, viajamos para a Europa e compramos de tudo: os formalistas russos - que é minha área - e tudo o que necessitávamos de Williams, Hoggart etc. Trouxemos, também, Robert Jauss. Conseguimos montar uma biblioteca mais completa. Conhecíamos Bourdieu porque aparecera um artigo em Problemas del estructuralismo, da editora Siglo Veintiuno. A partir de então, começamos a rastreá-lo. Mas eu creio que, mesmo antes de 1979, já tínhamos uma biblioteca relativamente respeitável. Eu tinha as revistas francesas Tel Quel e Communications. Foi importante, além disso, começarmos a fazer pesquisa, coisa que não havíamos feito antes. Nosso ponto de partida foram os ensaios sobre o Centenário. Depois eu passei para as vanguardas.

Como se deu o seu contato com a literatura argentina?

No meu caso, esse contato sempre existiu; no caso de Altamirano, também. Possivelmente depois de 1980, de meu lado, eu o acentuei de maneira sistemática. Vi que tinha a responsabilidade de escrever sobre os romances que iam aparecendo. De fato, Altamirano é uma das primeiras pessoas que escreveu sobre um romance curto do Saer, Responso, muito antes de começarem a escrever sobre esse autor. Na revista Los Libros, aparecera um artigo de María Teresa Gramuglio sobre Cicatrizes. Eu escrevia muito sobre literatura argentina, trabalhávamos onde se publicava literatura argentina, conhecíamos os autores.

Houve um momento em que você tomou a decisão de estudar a literatura argentina?

Não. Minha tese na faculdade foi sobre Juan María Gutiérrez e meu projeto era fazer uma crítica concentrada nessa literatura. Sempre tive "mente estreita", sempre me dediquei à literatura argentina. Durante o golpe, vieram pessoas de Rosário, críticos literários como Nicolás Rosa e María Teresa Gramuglio. Esse era o chão cultural que, sem nos darmos conta, estávamos pisando. Pesquisamos o Centenário para entender a questão do nacionalismo e dos intelectuais. O Centenário nos interessa por essa questão: entender o comportamento dos intelectuais nessa conjuntura. Conhecíamos pouco essa problemática, com exceção de um artigo de David Viñas ("De los gentlemen-escritores a la profesionalización de la literatura") e alguma outra coisa.

Em quais circunstâncias você escreveu obras como El imperio de los sentimientos, Una modernidad periférica, La imaginación técnica e Borges: un escritor de las orillas?

No caso de El imperio de los sentimientos, eu tinha bem claro quais eram meus interlocutores: os críticos literários da ideologia nacional-popular, basicamente representados por Eduardo Romano e Aníbal Ford, especialmente o Romano, de quem se pode gostar ou não, mas que é um "cão de caça" das fontes e dos textos desconhecidos. Na realidade, eu queria fazer duas coisas. De um lado, demonstrar que era possível uma leitura não populista desses materiais de circulação maciça e popular, diferente do que havia sido feito pela tradição argentina. De outro, demonstrar, como diz Adorno, que esses materiais podiam "não ser condenados ao inferno da sociologia", que podiam ser analisados por sua escrita, por seus procedimentos, por suas formas. Porque os populistas, ademais, faziam o que Adorno dizia, ou seja, não percebiam nesses textos nenhum potencial de resistência, ainda que fosse mínimo, nem se preocupavam com sua configuração formal. Nesses anos, eu tinha energia para lidar com uma massa enorme de textos e isso era determinante, porque é necessário ler quantitativamente os romances populares para poder extrair deles algum modelo de funcionamento. Não queria, por outro lado, aplicar nenhum esquema estruturalista do tipo de Propp ou Greimas. Parecia-me que isso implicaria condená-los "ao inferno da semiologia", que era um inferno tão feio e muito mais tedioso que o da sociologia. Um corpus que sustentasse essas pretensões, que desse a possibilidade de uma análise, teria que ser extenso. Foi uma pesquisa longa, que respondeu a todos os requisitos do método. Nesse livro, eu sugiro duas hipóteses: uma concerne à figura do leitor, muito marcada pela ideia de Jauss e a estética da recepção; e a outra são os modelos por meio dos quais essa literatura articula a ficção. O modelo da felicidade, basicamente. Devo dizer que aos populistas o livro não causou nenhum impacto, creio que jamais mencionaram nem o título. Na realidade, o objetivo foi cumprido porque eles estavam convencidos de que eu entrava "na marra" em um território que consideravam exclusivo. Eu não dizia no livro que era um debate com eles, mas todo o livro era uma discussão com as ideias que eles haviam desenvolvido sobre o tema das culturas populares até aquele momento. Isso é El imperio de los sentimientos, uma pesquisa que não repetiria, porque hoje já não trabalho com um corpus tão extenso. Mas eu aprendi muito naquele momento.

Una modernidad periférica é um livro cuja hipótese de origem é equivocada. Não a hipótese do livro, mas a ideia que me levou a escrevê-lo. Eu quis estudar a modernidade dos anos de 1920 porque de alguma maneira via um continuum com a modernidade que parecia ressurgir nos anos de 1980 com a transição democrática. O livro originou-se com essa esperança. Eu repetia a fórmula "Argentina sociedade moderna" sete vezes por dia. Não me dava conta de que tudo ia para outro lado, de que tomava um desvio. Tampouco Alfonsín se dava conta. Foi isso que me levou ao livro, mas que felizmente ficou fora dele. Adolfo Prieto me disse que estranhava o fato de eu não ter avaliado suficientemente no livro o golpe de 1930. É verdade. Mas houve certa oscilação nos anos de 1930. Em princípio, não estou muito convencida de que os golpes devam ordenar periodizações, nem as presidências, nem de que qualquer outro fato organize periodizações tão fortes. Sempre resisti a essa correspondência linear entre política e cultura, e isso se relaciona com certa insatisfação que produzia na minha geração o fato de que Viñas, nosso professor, sempre periodizara com fatos muito pontuais da história política, não com grandes configurações cultural-políticas ou ideológico-políticas. Quando Prieto me disse isso, respondi que tinha total razão, apesar de eu não ver essa passagem tão marcada nos textos. Ademais, a Argentina sai da crise de 1930 muito rapidamente. Na obra de Roberto Arlt multiplicam-se os vagabundos, os desocupados nas praças, mas ele escrevia da mesma maneira antes de 1930 e seguiu escrevendo assim depois desse período. Sua fantasia de uma revolução que podia destruir toda a sociedade apareceu tanto antes, como depois de 1930. Se eu dissesse qual é o ponto central, o que sustenta a escrita de Una modernidad periférica, seria a afirmação da semelhança das revistas Martín Fierro e Contra. Esta última era a revista que concentrava a esquerda socialista e comunista de estilo vanguardista. As duas revistas são parecidas em função do tipo de intervenção que faziam e, também, pelos padrões de diagramação. Esse ponto organiza o texto e, por outro lado, o mais óbvio, a "cultura de mescla".

La imaginación técnica derivou de La modernidad periférica, de algo que descobri ao trabalhar Arlt. Eu pensei: existe algo aqui que faz a Argentina moderna e que se relaciona com os setores populares. Tomei como referência a fascinação que Arlt tinha pela técnica e por sua representação permanente na literatura. Pesquisando em arquivos confirmei essa hipótese, mais ainda do que imaginava. Na hemeroteca, me deparei com uma quantidade insólita de material, publicado em jornais populares como Crítica, sobre "o milagre técnico contemporâneo". Tratava-se da inclusão da técnica na vida dos setores populares, não como luxo, mas como possibilidade de ser manejada por esses próprios setores, já que as técnicas envolvidas eram relativamente simples, como no caso do rádio. Quase ninguém hoje em dia pode montar e desmontar um computador, mas os procedimentos técnicos naquele momento eram mais simples e podiam ser desenvolvidos em qualquer pequeno galpão de fundos. Nesse momento Aníbal Ford me chamou a atenção para a figura do "habilidoso", conceito originado de tipologias populares. "Habilidoso" era aquele que, apenas por meio da leitura de revistas técnicas, fazia um uso não meramente imaginário do tecnológico, mas com fins práticos, que melhoravam sua vida com elementos baratos. Tratava-se da chegada precoce de uma dimensão mais ou menos maciça. Tive a sorte de encontrar as fontes que me permitiram provar a hipótese.

Em relação ao livro Borges: un escritor en las orillas, é muito difícil que alguém faça crítica literária na Argentina sem analisar Borges. É inevitável. Tive o choque, que eu conto no prólogo, de deparar-me na Inglaterra, durante conferências que dei, com um público que lia somente a sua literatura fantástica, desconhecendo totalmente outras dimensões da obra. De todo modo, acredito que mesmo sem esse choque o livro seria escrito em algum momento. Foi realizado em função do interesse de John King em editar o livro. Escrevi esses dois livros simultaneamente, ambos na Inglaterra. Eu saía de um e entrava no outro. Borges funciona para os argentinos como Shakespeare para os ingleses. São inevitáveis.

Como você explica o surgimento na Argentina de um escritor tão sofisticado como Borges?

Em princípio, a deusa Fortuna o deixou cair aqui, porque poderia ter nascido em outro lugar.

Não é possível explicá-lo sociologicamente?

A sociologia vem depois. Creio que as causalidades e as coincidências são as coisas mais interessantes que existem no plano da cultura. Porque, seguramente, a deusa Fortuna observou com um olho onde estava deixando cair esse personagem. Mas ele poderia ter nascido no México, por que não? Borges caracteriza-se por incorporar a tensão entre o local e o universal; no México há escritores como Octavio Paz que têm esse mesmo traço. Borges poderia ter sido mexicano, mas, provavelmente, não poderia ter sido de outra nacionalidade. Talvez brasileiro, mas o Brasil já tinha a sua tradição literária. A primeira condição necessária para esses lugares possíveis seria a existência de um campo cultural já complexo, atravessado por uma modernidade triunfante, como pode ter sido o campo em que Borges se inseriu ao voltar da Europa em 1920, no qual as revistas literárias e a vida cultural haviam sido capturadas pela modernidade. Já não era a literatura do século XIX, isso me parece importante. A segunda, uma grande cidade. Entre o que teorizou Simmel e depois Benjamin, existe algo que a grande cidade produz e que está presente em Borges. Não apenas o flâneur, mas o princípio da indeterminação cultural. A mescla de culturas seria a terceira condição. Não me refiro à mescla de culturas autóctones e hispano-americanas, como se vê em Arguedas, caso em que há uma mescla mas não se produz Borges, nem à mescla submetida a uma busca pessoal, do invento ou do capricho, mas sim a algo já dado na sociedade da qual o escritor emerge. Finalmente, uma sociedade muito alfabetizada, porque alguém poderia perguntar: por que não em uma cidade asiática ou africana? Mas aí aparece de novo a questão da modernidade. A sociedade portenha era muito alfabetizada, havia pequenas e grandes editoras, havia jornais. Esses textos que Borges publicava em Crítica, por exemplo, quem podia ler? De todo modo, havia um jornal que considerava importante que Borges estivesse publicando ali. Eram diários modernos, como Crítica ou El Mundo. Isso só poderia ocorrer em sociedades com alfabetização e com público leitor. Essas seriam as condições que propiciaram o seu surgimento, apesar de Borges ser o prêmio de loteria que a Argentina ganhou.

Que aspectos ou fatos históricos você destacaria como determinantes para o desenvolvimento da vida intelectual e artística argentina do século XX?

Eu diria que o primeiro é o surgimento do jornalismo moderno. Crítica, por exemplo, que na década de 1920 empregava tanto intelectuais como jornalistas, propiciou o surgimento dessa figura que atravessou o século: o intelectual-escritor-jornalista. Além de Crítica, o jornal El Mundo, no qual escreveu Roberto Arlt, foi muito importante. As Aguafuertes porteñas foram publicadas todas ali. Outros jornais seguiram essa linha, como o suplemento cultural de La Nación, dirigido por Eduardo Mallea, publicado na segunda e na terceira décadas do século XX. Essa inovação baseia-se na alfabetização - é impensável o jornal moderno num país não alfabetizado. Ou seja, no início do século XX, a Argentina tinha uma alfabetização cumprida segundo os objetivos do século XIX (que eram distintos dos atuais). A escola produziu o público dos grandes jornais e, paralelamente, o público das grandes editoras, que é outro fenômeno que me parece fundamental. Não somente as editoras de livros populares, mas também as que foram dirigidas por intelectuais. Na década de 1940, foi o caso de Borges, Bioy Casares e de Mallea, que também dirigiu coleções, publicadas muito antes pelo La Nación. O fato de Alberto Gerchunoff ter sido editor do La Nación revela um perfil do país. Ele era não apenas um grande jornalista mas também um judeu filho de imigrantes, assimilado à cultura da elite. O jornalismo foi um dos fenômenos mais espetaculares e mais influentes na formação de uma cultura nacional no primeiro terço do século XX. Mais tarde, durante o peronismo, em contrapartida, o Estado teve uma péssima relação com a imprensa, expropriou um dos grandes matutinos, controlou rigidamente o La Nación e teve os seus próprios jornais. Ainda que seja necessário acrescentar que também se incorporaram intelectuais nacionais nessa imprensa controlada pelo governo peronista, como foi o caso de Jorge Abelardo Ramos. O outro grande momento desse panorama apressado foi a década de 1960, quando surgiram as revistas modernas: Primera Plana, Confirmado, Análisis e, depois, também como produto do novo jornalismo, o jornal La Opinión. Nos anos de 1960 e começo da década de 1970, muitas dessas revistas foram expressivas das tendências literárias verdadeiramente existentes e colaboraram com a sua difusão entre um público que ouvia essa mensagem e era a base social do best-seller.

Sem dúvida, o segundo aspecto foi proporcionado pelas revistas culturais, o que os anglo-saxões chamam de little magazines, dirigidas a segmentos específicos do público. Em muitos casos tratava-se de publicações de tendência estética, como Martín Fierro e Proa; em outros, de revistas modernizadoras e mais inclusivas, como Nosotros. Sur apresentava ambas características: modernização ampla e apoio a um núcleo de escritores (de Bioy Casares a Borges ou Silvina Ocampo). Eram revistas de tendências abrangentes do campo intelectual. Contorno, revista de posições ideológicas fortes sobre literatura e, mais tarde, sobre política, seguramente vendeu muito pouco, contudo a transcendência de seus escritores e a repercussão do que escreviam seguiu vigente muitos anos depois. As revistas expressavam setores além daqueles que as liam de maneira imediata. Seja ou não verdade, a revista Martín Fierro acusava em determinado momento 14 mil leitores. Parece-me uma cifra exagerada, de qualquer maneira foi algo que superou os limites de um grupo de inovadores estéticos. Isso me parece significativo na Argentina.

O terceiro aspecto, que talvez não tenha a mesma importância que os dois primeiros, foi o deslocamento da Espanha como centro de produção editorial, em consequência da Guerra Civil Espanhola. Os espanhóis exilaram-se no México e na Argentina. É provável que tenham deixado uma influência mais duradoura no primeiro país, onde fundaram o Colégio de México. O México é um país de maior tradição de recepção de exílio por parte do Estado, como comprovaram os próprios exilados argentinos de 1976. Mas, de todas as maneiras, dos espanhóis que vieram para a Argentina, um deles foi o fundador da editora Losada, que publicou Heidegger, Sartre e Neruda. O outro foi dono da Sudamericana. Em Buenos Aires traduziam e editavam catálogos importantes. Assim, não é por acaso que tenhamos Kakfa traduzido ao espanhol rioplatense, ou a famosa edição de Las palmeras salvajes, de Faulkner, com tradução de Borges.

Curiosamente, em sua reconstrução desses acontecimentos não aparece a universidade, algo que contrasta com o Brasil, e especialmente com uma cidade como São Paulo. Como você avalia essa questão?

Na Argentina a universidade não teve a mesma centralidade. Antonio Candido, em uma reportagem que li há pouco tempo, nomeia os fatores fundamentais de sua formação: a cultura de sua família, a USP e sua relação com alguns amigos. Muitos professores franceses ensinaram na USP. Isso produziu um clima muito favorável. Com a antropologia tradicionalista (ou melhor, folclórica) que era realizada na Argentina teria sido difícil que os franceses viessem a Buenos Aires. Candido fala também do caráter cosmopolita e de vanguarda que havia nessa universidade paulista. Em Buenos Aires, foi necessário esperar até 1965 para que Gino Germani fundasse o curso de sociologia na UBA. Em humanidades as coisas foram um pouco melhor. Vieram alguns espanhóis depois da Guerra Civil, como Amado Alonso, por exemplo, mas depois terminaram partindo, o peronismo os isolou. Ademais, é preciso levar em conta todas as interrupções da vida universitária causadas pelos golpes de Estado e também a entrada poderosa da Igreja no sistema educativo argentino em todos os seus níveis. Quando, em suas memórias, Tulio Halperin Donghi evoca a universidade peronista, destaca como estava penetrada pelo catolicismo mais reacionário; como o Colégio Nacional de Buenos Aires, onde ele havia sido estudante, e a Faculdade de Filosofia e Letras da UBA também estavam dominadas pelos setores conservadores, com algumas exceções, como Claudio Sánchez Albornoz, que, apesar de ser muito católico, era um republicano exilado. A universidade foi muito inóspita e isso está relacionado com uma questão ideológica que esteve presente desde o golpe de Estado de 1930 em diante.

Tampouco na sua reconstrução biográfica a universidade tem um lugar destacado. Por quê?

Não seria o mesmo se vocês perguntassem a um sociólogo. Para eles a universidade foi fundamental, decisiva. Todos podem ter as suas críticas, mas todos reivindicam o que aprenderam em um sentido metodológico, técnico, teórico. Os sociólogos têm outra história. A presença de Germani foi fundamental. É o herói fundador. E seguramente, se vocês perguntarem a algum matemático, ele também contaria outra história. Estou segura de que as pessoas que tiveram Bleger na psicologia teriam ainda outra história. Ou seja, o impulso de renovação causado pelo primeiro estruturalismo, que levou algumas pessoas à universidade, não era suficiente para renovar o curso de letras (que eu cursava), onde ainda estavam os estudos estilísticos e onde se inscreviam os melhores alunos. Maria Rosa Lida, que podia ter sido parte da renovação, fora para os Estados Unidos. O primeiro peronismo expulsou muita gente, não somente de maneira direta, mas também porque muitos decidiram partir para um lugar em que pudessem trabalhar tranquilos.

Voltando às revistas culturais, gostaríamos que você comentasse a importância e o impacto, na formação da cultura argentina, de revistas literárias como Nosotros, Sur e Contorno.

Sur foi um objeto que tive que resgatar da minha ignorância. Eu não li nenhum número dessa revista enquanto ela estava sendo editada. Naquele tempo, os enfrentamentos político-ideológicos encobriam, para mentes primitivas como as nossas, os enfrentamentos culturais. Um exemplo confirma essa impressão. Quando José Bianco, um escritor realmente muito interessante, que era secretário de Sur, decidiu aceitar uma viagem para Cuba, Victoria Ocampo o despediu imediatamente. A oposição que Sur despertava no peronismo revolucionário de esquerda ou na esquerda intelectual de jovens, como eu era nesse momento, somente pode ser encontrada atualmente nos blogs. Era uma Argentina extremamente cindida, com o peronismo proscrito, com golpes de Estado cada vez que o peronismo candidatava-se às eleições. Nesse momento, circulava também a ideia - que discuti com María Teresa Gramuglio - de que Sur nunca vislumbrara qual era a literatura realmente contemporânea. A revista havia feito uma série de escolhas dentro de um campo estético amplo, que incluía Borges, mas não as vanguardas europeias. No entanto, o primeiro artigo publicado sobre Ulisses, de Joyce, apareceu em Sur. Mas o mais experimental não era celebrado pela revista. A respeito da literatura inglesa, preferiam Virginia Woolf a James Joyce. Eram os gostos de Victoria Ocampo, mas também de Borges e de Bioy Casares, que não podiam conceber um romance que destruísse o princípio narrativo e de trama como fazia Joyce em Ulisses. Eles se sentiam, sobretudo Ocampo, tão argentinos quanto cosmopolitas. Era o caso do argentino que fala francês na fazenda e que é criollo em Paris.

Outro aspecto relevante relaciona-se com o significado de Sur, não apenas a revista, mas também a editora, como instrumento de tradução, modernização e conversão cosmopolita de uma cultura, algo muito estudado por Patricia Willson. Lolita, romance que Victoria Ocampo não gostava muito, saiu em Sur. Sem dúvida, Ocampo gostava mais de Huxley do que de Nabokov. Era uma mulher formada no fim do século XIX, inclinada às formas culturais da modernidade mas não às formas experimentais. Identificava-se com a clássica moderna de Picasso, Stravinsky, Woolf, Huxley. Mesmo assim, Lolita saiu em Sur quando esse romance era um escândalo. Portanto, o que vemos em Sur é a realização mais ponderada do esquema de mescla que funciona de maneira sempre tensa e conflituosa em Borges. De tal maneira, Sur é a revista da modernização, o que as revistas de vanguarda como Martín Fierro ou Contra não podiam ser, pois não buscavam modernizar, mas fechar um ciclo para implantar outro. E foi o que ocorreu, porque Borges, sem suspiros, passou das revistas de vanguarda a Sur, na qual publicou todos os seus textos clássicos.

O caso de Contorno foi contrário ao de Sur. Como eu era muito jovem, não li a revista enquanto circulava e, além disso, sua existência foi muito breve. Mas eu a respeitava antes de ler, era um mito para mim. Contorno foi muito mais influente e teve muito mais leitores depois de terminada. Por meio dela, os irmãos David e Ismael Viñas, e também Oscar Masotta, ensaiavam seus discursos. Digo os irmãos Viñas porque Ismael, sob diversos pseudônimos, escreveu muito sobre literatura, antes de dedicar-se à política e fundar o seu partido. Contorno publicou leituras decisivas sobre a literatura argentina: a de Noé Jitrik sobre Adán Buenosaires (romance de Leopoldo Marechal), a de Rozitchner sobre Eduardo Mallea, a de um dos Viñas sobre Roberto Arlt, anterior ao livro de Masotta também sobre Arlt. Quando, em Punto de Vista, começamos a nos ocupar de Contorno, o fizemos para nos inserirmos numa tradição.

O que significou para você um livro como Literatura argentina y realidad política, de David Viñas?

Encontrar-se com Viñas pela primeira vez, em uma aula ou em um artigo, é uma espécie de martelada na cabeça. Não é possível seguir pensando do mesmo modo. Não sei se depois o cérebro fica danificado para sempre ou produtivamente alterado. Depende do caso. Causava esse efeito na Faculdade de Filosofia e Letras, depois de 1984, inclusive sobre estudantes que já tinham lido algum de seus livros, mas que o escutavam pela primeira vez. Eu conheci Literatura argentina y realidad política quando foi publicada, pela Jorge Alvarez, a primeira edição do livro. Nós percebemos que ele se apoiava em Goldmann. Viñas não citava nenhuma referência teórica. Era como se Minerva tivesse saído da cabeça de Júpiter completa, com seu capacete e seu escudo, sem rastros de haver sido concebida em alguma parte. O livro nos causou grande impacto, nos indicou uma nova forma de ler. O mesmo ocorreu com o livro de Oscar Masotta, Sexo y traición en Roberto Arlt. Curiosamente, quando eu e Carlos Altamirano entrevistamos Viñas em 1981 (a primeira entrevista sobre Contorno mais de vinte anos depois de terminada a revista), durante seu exílio em Madri, ele não havia esquecido a revista, obviamente, mas tive a sensação de que trazíamos um objeto já distante para ele, que naquele momento o reciclou e incorporou em seu presente. Em 1981, David Viñas ainda era bastante jovem, mas suas lembranças sobre Contorno eram imprecisas.

Em sua obra, majoritariamente centrada na crítica literária, o ponto de vista sociológico foi quase sempre um componente essencial. Como você vê essa relação, tanto em seus trabalhos como na tradição da crítica literária argentina?

Na crítica que leio essa tradição é muito forte. Quase ninguém lê Battistessa ou Rafael Arrieta, ainda que seja muito meritório o fato de terem escrito uma história da literatura argentina. Mas não se pode deixar de ler Martínez Estrada, Muerte y transfiguración de Martín Fierro, por exemplo. Não somente quem se dedica à crítica literária, também quem se dedica à história, à história cultural e a outras disciplinas que não têm relação direta com a crítica. As principais obras de Martínez Estrada, especialmente esta que cito, não podem ser lidas superficialmente. Nessa crítica, o tecido de perspectivas sociais é muito difícil de ser desfeito e está presente inclusive nos capítulos mais formalistas do livro, por exemplo na análise brilhante da sextina hernandiana. Para mim, é o maior livro de crítica argentino do século XX. Isso sem falar de uma obra extensa, a qual não se pode omitir quando se fala em história das ideias e da cultura, que é a Historia de la literatura argentina de Ricardo Rojas, cujas bases relacionam-se com as configurações sociais, históricas e linguísticas.

Você poderia comentar a origem e o significado do título Uma modernidade periférica e o conceito de "cultura de mescla", que constitui um dos eixos da argumentação desenvolvida ao longo dessa obra?

A pergunta me permite pagar uma dívida. O título foi uma ideia de Altamirano, editor da coleção em que apareceu o livro. Acredito que a expressão "modernidade periférica" não está exatamente em nenhum lugar, mas permeia todo o livro e, por isso, ele imaginou que deveria tornar-se título. "Cultura de mescla" também poderia ter sido o título, mas não ocorreu a nenhum de nós dois naquele momento. Muitas vezes, quando temos uma ideia, é necessário encontrar um termo para poder expressá-la. Isso é fundamental. "Cultura de mescla" descreve bem o primeiro terço do século XX, quando a cultura que vinha do Estado se mesclava de maneira exitosa com a cultura que vinha da sociedade, algo que não ocorreu durante outros momentos desse mesmo século. Atualmente o Estado argentino não possui, talvez porque não seja mais possível, uma perspectiva sobre a cultura. Sabe que tem que abrir escolas e distribuir café com leite, que tem que "gerir". Mas naquele momento o Estado pretendia não somente alfabetizar, mas também construir uma nacionalidade. Como disse Tulio Halperin Donghi, a cultura argentina teve, de 1890 até 1930, uma eficácia japonesa. Fez o que se propôs a fazer. Isso se articulou com as iniciativas que vinham da sociedade. Desse modo, se produziu uma mescla dos valores que orientavam cada um dos lados.

Você poderia comentar os livros Ensayos argentinos e Literatura/Sociedad, escritos com Altamirano?

São dois livros muito diferentes. Literatura/Sociedad foi um livro escrito do princípio ao fim com a ideia de construir um manual que não fosse elementar, mas que problematizasse todos aqueles autores, correntes e conceitos, que permitisse pensar o caráter social do texto, assim como o caráter cultural-simbólico do social por meio da literatura. Nesse momento éramos identificados, muito mais do que hoje em dia, como os "críticos sociológicos marxistas" que haviam feito um movimento explícito de abandono do marxismo ou, pelo menos, de certas posições da crítica marxista para desenvolver uma perspectiva sociológica. Foi muito importante para nós que a editora desse livro, Elvira Arnoux, nos pedisse uma ampliação do que havíamos escrito primeiro em um livrinho muito pequeno, sob a forma de um dicionário de termos literários. Isso propiciou uma oportunidade para que cada um desenvolvesse mais o que lhe interessava. Há partes do livro que foram escritas por Carlos, sobre Lukács e Adorno, e outras por mim, sobre o formalismo russo. Logo no início os interesses começaram a divergir. É um livro que faz alguns gestos. Por sugestão da editora, incluímos um texto de Antonio Candido em português e um de Ángel Rama, ambos excelentes.

Ensayos argentinos tem duas versões. Uma do Centro Editor da América Latina e outra, mais recente, da editora Ariel-Planeta. É um livro que reúne as primeiras coisas que eu e Altamirano escrevemos na época da ditadura, sobre o Centenário e sobre a revista Martín Fierro. Alguns textos foram escritos em comum, outros não. Um texto em cuja preparação aprendemos muitíssimo foi o que trata de Recuerdos de provincia, não apenas pela leitura desse texto clássico de Sarmiento, mas também por tudo o que tivemos que questionar sobre as representações do eu nas autobiografias e pelo diálogo com um artigo de Halperin Donghi (também sobre Recuerdos de provincia, publicado em Sur, se me lembro bem). Creio que é um trabalho bem-sucedido. Não escrevemos nada a respeito do que já sabíamos, mas do que fomos conhecendo juntos, e isso é muito interessante, porque quando as pessoas crescem e se tornam maduras, essas coisas já não acontecem. Nós não havíamos feito doutorado. Mais ainda que o artigo sobre o Centenário, esse texto sobre Sarmiento representou a formação das duas pessoas que o escreveram. Há um artigo que saiu dos grupos de estudo dessa época, sobre a revista Martín Fierro. Eu pesquisei e, ao mesmo tempo, ensinei a um grupo em que estavam Carlos Mangone, Jorge Warley, Laura Klein, Enrique Záttara. A gente se reunia em um prédio que ficava na esquina das ruas Brasil e Santiago del Estero. Eu propus que estudássemos a revista Martín Fierro para entender as vanguardas. Dessa experiência, saiu o texto. Nessa época, ademais, viajei ao Brasil e, em um mesmo dia, conheci Antonio Candido, Ángel Rama e Cornejo Polar. Não sei como não me deu uma síncope. Cornejo me pediu, para a revista de Crítica Literaria Latinoamericana, um texto sobre cultura argentina, e eu ofereci esse. Eram momentos nos quais, para escrever algo assim, eu podia demorar seis meses, o mesmo tempo que levei para escrever toda La imaginación técnica. Ao princípio tudo era muito difícil, não tínhamos treinamento, nunca havíamos dirigido uma pesquisa. Não é que isso nos tornasse excessivamente inseguros. Tínhamos um nível de inconsciência ou de narcisismo demasiado forte, mas a falta de experiências e de conhecimento notava-se no tempo que demorávamos para encontrar provas para uma hipótese, para descobrirmos que as coisas confirmavam o que estávamos pensando. Na segunda versão de Ensayos argentinos há alguns artigos bastante contemporâneos, dos últimos quinze anos, e, sem dúvida, já não foram produzidos da mesma maneira, por meio de esforço, tentativa e erro.

É possível inscrever o ensaio argentino em uma tradição mais ampla, hispanoamericana, ou ele possui características idiossincráticas?

Um ensaísta destacado por sua inteligência é Ricardo Piglia. O ensaio de "escritor" tem seus momentos mais altos em Borges e Piglia. A ficção de Borges me parece extraordinária, porém os ensaios não me parecem menos impressionantes. Antes, nos primeiros quarenta anos do século XX, havia os ensaios de interpretação do ser nacional. Esse é um gênero latino-americano: de Mariátegui até Octavio Paz. Como afirma Adrian Gorelik, nós argentinos não nos perguntamos muito "o que é ser latino-americano", com exceção de Canal Feijóo, mas sempre "o que é ser argentino", e com uma ênfase às vezes obsessiva. No fim dos anos de 1950, abriu-se um capítulo fundamental do qual nunca conseguimos sair: os ensaios de interpretação sobre o peronismo. Essa ensaística aparece um pouco antes de Perón ser derrubado, sob a forma de artigos e intervenções na imprensa. Logo se consolida a trilogia de Rodolfo Puiggrós, Jorge Abelardo Ramos e Juan José Hernández Arregui, que ocupou, junto com Jauretche, os anos de 1960. Finalmente, desde os anos de 1980, surgem os ensaios sobre a memória, o testemunho, a construção da história.

Texto recebido e aprovado em 13/7/2009.

Beatriz Sarlo

Beatriz Sarlo é uma das principais representantes da crítica cultural argentina das últimas décadas. Dirigiu a revista Punto de Vista (1978-2008). É autora de, entre outros, El imperio de los sentimientos (1985) e Una modernidad periférica: Buenos Aires, 1920 y 1930 (1988).

Alejandro Blanco

Alejandro Blanco é professor de sociologia e membro do Programa de História Intelectual da Universidade Nacional de Quilmes. É autor de Razón y modernidad. Gino Germani y la sociología en la Argentina (Buenos Aires, Siglo XXI, 2006). E-mail: ablanco@unq.edu.ar.

Luiz Carlos Jackson é professor do Departamento de Sociologia da FFLCH-USP. E-mail: ljackson@usp.br.

Tradução de Renata Mourão e Luiz Carlos Jackson

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    02 Fev 2010
  • Data do Fascículo
    2009
Departamento de Sociologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo Av. Prof. Luciano Gualberto, 315, 05508-010, São Paulo - SP, Brasil - São Paulo - SP - Brazil
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