Resumo
Com base na análise de obras, entrevistas e posicionamentos políticos de Edward Said sobre as relações Israel-Palestina, o artigo discute como inflexões no ativismo do autor se articulam com a evolução de suas reflexões teóricas. Argumenta-se que mudanças de posição de Said sobre os conflitos da questão palestina refletem movimentos contínuos de sua produção teórica, particularmente o desenvolvimento de teses críticas a formas e práticas de filiação identitária. Conquanto Said mude algumas opiniões ao longo dos anos, sustenta-se que a crítica teórica a lógicas identitárias, em especial o que denomina “modelo de partilha” do nacionalismo, assim como o elogio de uma postura universalista se apresentam desde sempre em sua obra.
Palavras-chave: Palestina; Nacionalismo; Pós-colonialismo; Teoria Social; Teoria Política Contemporânea
Abstract
Based on the analysis of Edward Said’s works, interviews and political views on Israeli-Palestinian relations, the article discusses how inflections in the author’s activism articulate with the evolution of his theoretical reflections. It is argued that Said’s changes of position on the conflicts of the Palestinian question reflect continuous movements of his theoretical production, particularly the development of critical theses about forms and practices of identity filiation. Although Said changes some opinions over the years, it is pointed out that his theoretical critique of identity logic, especially what he calls the “partition model” of nationalism, as well as the praise of a universalist position, have always been present in his work.
Keywords: Palestine; Nationalism; Postcolonialism; Social Theory; Contemporary Political Theory
Pode-se examinar a controversa questão palestina de diferentes modos. Uma das possibilidades é analisar os conflitos entre Israel e Palestina para além das lógicas econômicas, políticas e militares. Nesse sentido, Edward Said prefere ressaltar dimensões culturais que refletem pressupostos de superioridade ou distinções geográficas inexoráveis. Compreende-se a relação Israel-Palestina, então, em termos de uma relação imperialista, embasada em imaginários hegemônicos que supõem certas populações a demandarem dominação (Said, 1993, p. 9; 2007a, p. 31). A autoridade não se basearia exclusivamente em aspectos de força, mas sobretudo em justificações, filosofias e epistemologias. Said (2001b, pp. 59-61; 1980, p. 3) assinala que foi central no processo de domínio da Palestina a visão que concebia os árabes como parte de certa “mentalidade oriental”, fruto de características sociais, políticas e mesmo raciais singulares. A relação entre judeus israelenses e árabes palestinos teria se constituído com base no ethos colonizador que demarca diferenças inexoráveis, vinculado à tese de uma missão por parte dos primeiros, tidos como capazes de reconstruir certo território estrangeiro (Said, 1980, p. 15; 18-19). Por sua vez, tais teses fundamentam-se em essencialismos reducionistas que congregam sujeitos diversos em uma mesma identidade coletiva (“árabes”; “Ocidente” etc.), ao passo que se escondem a história e os interesses dos produtores dessas mesmas imagens (Said, 2007a, p. 443).
Este artigo pretende discutir como se articulam as reflexões de Said sobre imperialismo e representações com sua agência política na questão palestina. Busco mostrar, especialmente, que mudanças em seus posicionamentos políticos refletem o desenvolvimento contínuo de teorias críticas a lógicas identitárias, como o nacionalismo. O artigo divide-se em três seções. Na primeira parte, discorro sobre os posicionamentos gerais de Said em relação aos conflitos entre Israel e Palestina. Examino nessa seção, sobretudo, sua produção em semanários, entrevistas e textos que visavam a um público mais abrangente, para além do acadêmico. Argumento, então, que o desenvolvimento do ativismo de Said revela um ponto de inflexão quando o autor passa a questionar o que denomina “modelo de partilha” (Said, 2000b, p. 430), ou seja, a solução da criação de dois Estados independentes e soberanos. A segunda seção busca articular as mudanças das posições políticas de Said ao movimento de sua produção teórica, de caráter mais denso e acadêmico, particularmente ao desenvolvimento de teses críticas a formas e práticas de filiação identitária. Destaco como Said, de um lado, questiona o ideário nacional e, de outro, valoriza a condição de exílio e independência intelectual. Busco mostrar que a lógica do ativismo de Said só pode ser devidamente entendida se vinculada às reflexões de caráter mais geral de seus trabalhos teóricos. Ao contrário das teses que supõem as inflexões de sua prática política como reflexos diretos de transformações históricas, defendo que suas mudanças passam a se coadunar mais adequadamente com sua produção teórica desenvolvida desde seus primeiros trabalhos. Por fim, relaciono as ideias de Said a debates da questão nacional no campo das teorias social e política contemporâneas, de modo a refletir sobre algumas contribuições e possíveis impasses.
Ativismo em duas formas: da política estatal para a crítica da “modelo de partilha”
Durante o seu período mais intenso como ativista, particularmente quando fez parte do Conselho Nacional Palestino, do fim da década de 1970 ao início dos anos 1990, quase nenhum ganho substantivo, no entender de Said, teve o lado palestino. As conversas e acordos celebrados ao longo dos anos 1990, na Conferência de Madri ou na declaração de princípios Oslo, não teriam resolvido problemas ainda básicos. Dentre as questões, destacam-se a continuidade de incursões militares na Cisjordânia e em Gaza por forças israelenses; o controle de suas fronteiras; a manutenção ou expansão de assentamentos; a falta de resolução sobre os expropriados e refugiados; a desigualdade do tratamento de palestinos que vivem dentro do Estado israelense; o controle crescente sobre Jerusalém oriental, tema que inclusive é retirado da pauta de negociações (Said, 2001b, p. 5; p. 164). Um ponto medular a representar a ausência de avanços se revelaria na condição dos exilados palestinos que continuam sem direito a retornar a sua terra natal (Said, [1993]1 1996, p. 18). Além disso, por meio de uma série de leis, as propriedades palestinas mantêm-se declaradas vagas e expropriadas (Said, 1980, pp. 48-49). Concomitantemente, por outro lado, a chamada “lei do retorno” continuava em vigor, possibilitando a todos os judeus, nascidos em qualquer país, ganharem residência e cidadania israelense.
Em relação aos poucos avanços alcançados, Said nota frequentemente ao longo de suas entrevistas e escritos a fraqueza das lideranças palestinas, que garantiam concessões sem demandar contrapartidas por parte do governo israelense ou de autoridades internacionais. Ao fim e ao cabo, as negociações dos anos 1990 constituíam-se, a seu ver, como imposições em que os palestinos pouco ganhavam. Tal direção seria reforçada por uma atitude colonizada de lideranças que, ao invés de se preocuparem com suas inseguranças e problemas específicos, buscariam, sobretudo, tranquilizar as ansiedades israelenses (Said, [1996]; 2001b, pp. 120-121). Além de criticar a forma de negociação elaborada pela OLP com governos de Israel, em especial por meio da liderança de Yasser Arafat, Said ([1995] 2001b, p. 19; [1996] p. 53) também criticava a política instituída pela Autoridade Palestina dentro de seus próprios territórios. Nestes, pouco se desenvolviam aspectos democráticos, enquanto cresciam a censura, o controle das informações, a desigualdade de gênero e o controle econômico por grupos diretamente ligados ao poder. Como Said ([1993] 1996, p. 16) assinala, mais importante que ter um Estado seria definir qual tipo de arranjo estatal se constitui, tendo em conta que a história pós-colonial mostraria com frequência a permanência de tiranias, oligarquias, desigualdades e guerras civis nos novos territórios independentes, muitas vezes legitimadas por nacionalismos que buscam esconder seus problemas sociais.
Todavia, para além das críticas a movimentos e estratégias políticas conjunturais de lideranças, Said enfoca em seus posicionamentos as dimensões culturais que caracterizam a essência das relações de poder da questão palestina. Nesse sentido, destaca que o argumento central das teorias sionistas ou ocidentais em relação à Palestina envolve a representação, de vastas consequências sociais e políticas, de um espaço inabitado ou esquecido, sendo omitida a presença histórica de árabes palestinos na região2. Por conseguinte, ideias vinculadas ao direito de usar a terra ou direitos de imaginar o melhor uso daquele território - imaginado vazio - foram essenciais na ocupação por europeus ou ocidentais, voltados não para a realidade presente, composta de uma população numerosa, mas para visões de um passado glorioso e de um futuro com infinitas possibilidades de apropriação (Said, 1980, p. 9; p. 15).
A tese central de tal direção envolve o mito de uma “terra sem povo para um povo sem terra”, ainda que na realidade a implementação do Estado de Israel constitua o êxodo factual e forçado de uma vasta população (Said, [1997] 2001b, p. 164). Said argumenta que a visão de irrelevância em relação aos palestinos só teria sido possível devido ao sistema de classificação e representação colonial desde há muito tempo formatado, cuja característica central seria definir, substancialmente, uma população como inferior a outra. A reprodução de tal sistema, e suas conexões com aspectos do imaginário imperialista ocidental, teria sido fundamental para o desenvolvimento do nacionalismo judeu (Said, 1980, pp. 71-72)3. Portanto, embora o sionismo seja para Said um movimento justificável de libertação política de um povo oprimido historicamente, a construção do Estado israelense em terras palestinas constituiu uma nova forma de opressão para outra população. A partir da reprodução de representações singulares, e seus efeitos políticos precisos, a questão da Palestina refletiria um conflito entre afirmação e negação, entre realidade e irrealidade, tendo consequências que pendem quase sempre para o lado da afirmação da soberania israelense (Said, 1980, p. 8; p. 10).
Tendo em conta a força de tais representações, a luta política deveria, consequentemente, se basear em questionamentos desses imaginários, assim como em diálogos, pressões e barganhas. Pode-se entender, portanto, por que Said ([1990] 2002, p. 345; [1990] 2002, pp. 352-356) insistia tanto na necessidade de travar lutas nos países ocidentais e na sociedade civil norte-americana, buscando diferentes mídias para tentar desconstruir as narrativas hegemônicas, baseadas em uma “comunidade de linguagem” que aproximava judeus do Ocidente e seus proclamados ideais liberais e democráticos, assim como representaria árabes de forma negativa e vinculados a valores “orientais” (1980, pp. 25-29; p. 37). Uma de suas críticas mais frequentes é que as lideranças palestinas abandonaram o ativismo nos Estados Unidos, principal país a sustentar a posição israelense. Uma maior inserção internacional poderia desconstruir representações e debates quase sempre preparados por atores relacionados com o lado israelense, de modo que a posição palestina se torna prejudicada em função de se apresentar isolada e ter, necessariamente, de sair de uma direção de luta ou resistência para uma de acomodação e concessão (Said, [1993] 1996, pp. 36-37).
A consideração da importância do contexto internacional baseia-se no fato de que a questão palestina sempre teria sido definida antes no plano internacional. Desde seu primeiro grande apoio internacional, na Declaração de Balfour em 19174, revela-se para Said o caráter “externo” e colonial da questão, dado que a manifestação partia de uma potência europeia, sobre um território não europeu, em boa medida despreocupada com os residentes nativos e voltada para a defesa de outra população que naquele momento não residia naquele mesmo território (Said, 1980, pp. 15-16). Said nota (1980, p. 23) que, no momento das lutas pela formação do Estado israelense, entre 1922 e 1947, as questões destacadas nas mídias internacionais não eram os conflitos entre os nativos do território e os novos habitantes, mas as disputas entre as políticas do Reino Unido e os sionistas. Mesmo após 1967, quando se torna impossível omitir a realidade dos palestinos, seus problemas seriam frequentemente tratados por israelenses especialistas em estudos árabes e não pelos próprios palestinos.
Nos limites aqui definidos, todavia, importa notar, particularmente, como Said relaciona suas atividades políticas com a percepção de representações essencialistas que, no caso da questão palestina, separam progressivamente judeus, de um lado, e palestinos, de outro. Tal questionamento, a envolver identidades e nacionalismos reproduzidos de ambos os lados, consiste no argumento mais fecundo do autor a contribuir originalmente para o entendimento do conflito Israel-Palestina. Nesse sentido, cabe examinar o desenvolvimento singular dos argumentos de Said quanto aos imaginários identitários, assim como a inflexão que se manifesta em sua obra de um ativismo que advoga a constituição de dois Estados para a defesa moral-prática de um arranjo binacional.
Em boa parte de sua obra, até o início dos anos 1990, Said ([1986] 2002, p. 289; [1990] 2002, p. 345) defendia a separação do território da Palestina, com argumentação baseada na lógica de soberania nacional. A legitimidade da divisão seria baseada na constituição da nação palestina, a ser formada pela identificação da população que continuava a residir nos territórios ocupados com os exilados palestinos dispersos pelo mundo - o que, aliás, representava, no início da década de 1990, uma divisão mais ou menos equânime ([1992] 2002, p. 374). Entretanto, para Said ([1994] 1996, pp. 69-70), uma das condições para a formação da Palestina deveria ser a condição reconhecida de um Estado e não de um protetorado israelense como os acordos dos anos de 1990 anunciavam, preocupados mais com os colonos judeus do que com os habitantes palestinos daqueles territórios. A divisão resultante, não obstante, deveria envolver a inclusão, como cidadãos plenos, tanto dos palestinos presentes no Estado israelense quanto dos judeus remanescentes na Cisjordânia.
Said argumentava naquele momento que um dos principais problemas de lideranças políticas israelenses, a impedir a constituição de um Estado palestino emancipado, era a concepção de uma identidade “árabe-palestina” essencializada, em que os palestinos são inexoravelmente vinculados ao mundo árabe e, portanto, aptos a serem absorvidos por qualquer país que compartilhasse tal identificação. Reconhecê-los simplesmente como “palestinos” significaria supor uma identidade separada e, por conseguinte, a possibilidade justificável da existência de uma nação autônoma ([1992] 2002, p. 375).
Contudo, ao longo de seus trabalhos dos anos 1990, Said passa a ressaltar os perigos do que denomina “modelo de partilha”. Fundamental notar que essa inflexão reflete o questionamento de concepções nacionalistas que passa a se manifestar em sua teoria. Podem-se perceber claramente tais posicionamentos em Cultura e imperialismo (1993), livro que articula novas direções teóricas na obra do autor. Ali, Said (1993, p. 15) sugere que toda cultura definida nacionalmente aspira à dominação e à soberania. Assim, os nacionalismos deveriam ser criticados devido à inexorabilidade factual do caráter híbrido e cruzado das experiências humanas. Por conseguinte, as culturas contemporâneas assumem cada vez mais elementos estrangeiros, mais diferenças, ao mesmo tempo que ficam impedidas de omitir a diversidade social.
Os perigos percebidos por Said nos nacionalismos coadunam-se com suas teses mais gerais - vinculadas a linhagens teóricas pós-colonialistas e pós-estruturalistas - que ressaltam os hibridismos e a pluralidade da realidade social. Assim, as identificações (dentre elas a árabe-palestina e judia-israelense) não podem ser tidas como fixas ou constantes, pois estariam em permanente movimento. A atribuição de identidades refletiria certas prerrogativas do poder de classificar grupos e populações em categorias fixas, condenando-os a características imaginadas como essenciais e potencialmente negativas. Said assinala reiteradamente o vigor da narrativa sionista em separar colonos judeus de nativos compreendidos como inferiores, um discurso que deixaria pouco espaço para a percepção de sofrimento humano a envolver a questão palestina. A tese da separação inexorável dos israelenses em relação aos palestinos seguiria tal tendência imperialista de classificação (Said, [1997] 2001b, p. 142).
Embora seja possível perceber já em seus primeiros escritos (1980, p. 52; pp. 69-70) incômodos de Said sobre a separação rígida das experiências entre árabes palestinos e judeus israelenses, em seus textos e entrevistas posteriores tal crítica aos pressupostos identitários assume um caráter mais consistente. Segundo o autor ([1999] 2001b, pp. 327-328), há importantes singularidades na questão palestina que problematizariam ainda mais demandas nacionalistas, mesmo que estas fossem em parte legítimas devido às opressões e destituições territoriais sofridas. Entretanto, o exílio e a diáspora de grande parte da população tornariam o caso complexo e inviabilizariam a solução de criação de Estados nacionais excludentes. Said ressalta várias vezes o fato de que ambos os territórios reclamados se tornaram cada vez mais compartilhados, com vasta presença de palestinos em Israel e grande número de judeus - devido às políticas de assentamentos estimuladas desde 1967 - na Cisjordânia e em Gaza.
Tendo em conta tal conjuntura, seria injustificável pensar em soluções que buscam ou um Estado fundamentalmente judeu ou um substancialmente palestino, o que significaria negar a realidade em que culturas, territórios e histórias estão justapostos e inseparáveis. Portanto, seria preciso admitir a integridade e universalidade da experiência (e sofrimento) do outro, ao invés de reforçar a armadilha da lógica da partilha. Muitos dos problemas do conflito resultariam da incapacidade de reconhecer a presença e a existência do outro, um fato para Said claramente presente na negação da realidade dos palestinos. Apesar das grandes diferenças dos fatos históricos, assim como os judeus receberam apoio justificado para a fundação de seu Estado tendo em vista a tragédia do Holocausto, os palestinos mereceriam reparação pela extensa desapropriação territorial que, por sua vez, não necessariamente se deveria restringir a políticas de bases nacionais. Segundo Said, necessita-se de uma “noção de coexistência que seja verdadeira em relação à diferença entre judeus e palestinos, mas que seja também verdadeira em relação à história comum de diferentes lutas e sobrevivência que os ligam” ([1998] 2001b, p. 208).
Para Said ([1999] 2001b, p. 330), a lógica da partilha seria um legado do imperialismo, tendo vários casos da última onda de libertação nacional - África, Paquistão e Índia, Irlanda, Chipre, Balcãs, por exemplo - demonstrado equívocos e consequências negativas de tal direção. Os nacionalismos, portanto, se aliariam a representações essencializadas e excludentes em relação ao plano internacional e frequentemente opressoras no plano doméstico. Importa notar que a crítica que Said expunha em seus textos e entrevistas dirigidos ao grande público ao longo das últimas décadas de sua vida articula-se a toda uma produção teórica que questiona as identidades nacionais e valoriza, paralelamente, concepções de vida cosmopolitas, dentre as quais o exílio ganha um novo olhar.
Problemas das identificações e a questão nacional: relações entre o ativismo e a teoria de Said
A inflexão do ativismo político de Said exposta na seção anterior, que passa a sinalizar os perigos do modelo de partilha, pode ser melhor compreendida de acordo com suas reflexões teóricas sobre as filiações identitárias. Acredito que o ativismo tardio do autor pode ser adequadamente entendido se relacionado com teses normativas que, embora tenham sido amadurecidas ao longo do tempo, sempre estiveram presentes em seus trabalhos, particularmente a necessidade de o pensamento e as posições práticas se desvincularem de amarras das identidades. Dentre as filiações criticadas, Said indica problemas substantivos no nacionalismo, sobretudo seus vínculos com o imperialismo, entusiasmos religiosos e tendências antidemocráticas.
Selby (2006, pp. 41-42) nota quatro interpretações mais frequentes sobre as posições de Said - tanto teóricas quanto práticas - em relação à temática da nação. As duas primeiras assinalam tensões regulares do autor entre a defesa e a crítica da nação, embora uma linha de comentadores veja negativamente tal ambiguidade e outra de forma positiva, já que geraria percepções multifacetadas da realidade. A terceira leitura sublinha as mudanças de Said e as concebe como reflexos das variações do contexto histórico a que se endereçava, particularmente das transformações ocorridas no Oriente Médio. Finalmente, uma quarta interpretação aponta para a consistência e perenidade das posições de Said ao longo de sua obra, de modo que aparentes contradições revelariam antes uma complexidade que não teria sido devidamente compreendida.
Embora mostre aqui algumas proximidades pontuais com a última interpretação, busco traçar nesta seção uma linha argumentativa que se distancia desses tipos de recepção. Considero que as mudanças percebidas no ativismo ou na teoria de Said não podem ser explicadas nem por contradições constitutivas de sua obra nem por variações histórico-contextuais que o teriam condicionado. Todavia - e o que diferencia os argumentos aqui desenvolvidos da quarta interpretação indicada acima -, também me parece inconsistente deixar de ressaltar modificações nos posicionamentos políticos de Said. Para uma compreensão adequada, então, torna-se fundamental separar duas dimensões da obra do autor: as alterações de suas opiniões públicas mais explícitas e conjunturais, de um lado, e certa perenidade - complexa e de mais difícil percepção - de suas teorias relativas a questões de identificação e representação, de outro. Importa perceber, sobretudo, como nuances teóricas se relacionam com a inflexão do seu ativismo, particularmente quando Said passa a criticar a solução nacionalista. Conquanto Said mude algumas de suas posições políticas ao longo dos anos, a crítica a lógicas identitárias, especialmente as nacionais, assim como o elogio de uma postura universalista se apresentam de forma marcante em sua obra teórica.
Nesse sentido, não parecem consistentes as críticas que relacionam mudanças de Said a circunstâncias de hegemonias teóricas e modismos acadêmicos (Sprinker, 1993). Tais julgamentos sugerem que as mudanças refletiriam a perda de vigor dos nacionalismos terceiro-mundistas, em voga nos anos de publicação de Orientalismo, e a paralela ascensão de teorias pós-estruturalistas. Assim, as variações de posicionamento de Said se explicariam pelo intuito do autor de acompanhar o vigor que o pós-estruturalismo alcançava em academias metropolitanas5. Na medida em que sustento aqui certa perenidade na reflexão teórica de Said, tal hipótese parece carecer de fundamento.
Desde seus primeiros trabalhos, Said busca mostrar os problemas das representações nacionais que tomam os “outros” como inferiores ou irrelevantes. No caso das relações entre Israel e Palestina, ao longo de sua primeira grande obra específica sobre o conflito, Said (1980) já sinaliza graves problemas do nacionalismo sionista quando cria uma identificação essencialista dos palestinos. O que pode ser percebido como variação em suas reflexões é o fato de nos seus primeiros trabalhos privilegiar a crítica às representações israelenses - sobretudo suas divisões rígidas entre judeus e não judeus -, não questionando ainda os imaginários nacionais palestinos, algo que fará posteriormente. De toda forma, em A questão da Palestina, Said expressa que “tentativas de pensar o Oriente Médio têm sido dirigidas por generalidades ultrapassadas como nacionalismo tosco e interesses de grandes potências, raramente sobre direitos humanos individuais” (1980, p. 235). Portanto, em uma obra circunscrita a reflexões elaboradas nos anos 1970 - quando ainda não havia tido o reconhecimento proveniente do sucesso de Orientalismo -, Said já apresenta temas medulares de seus trabalhos posteriores, tanto a crítica de identificações nacionais quanto a busca de referências universais de justiça.
Mesmo em sua obra precoce mais apropriada, Orientalismo ([1978] 2007a), é possível perceber críticas de Said a concepções nacionais. Por um lado, é relevante notar que o autor (2007a, p. 353) concebe as representações orientalistas como fundamentadas em suas próprias tradições (ou “escolas nacionais de orientalismo”), algo que seria mais efetivo devido ao envolvimento direto dos projetos das metrópoles europeias nos países orientais. Por outro lado, como contraponto às limitações das representações nacionais, quando Said (2007a, p. 346) analisa trabalhos orientalistas do entreguerras no século XX, percebe, a despeito da permanência de preconceitos orientalistas, elementos no sentido de compreensões antipositivistas e humanistas. Os trabalhos de alguns pensadores daquela época teriam, em parte, também incorporado esforços em “deixar o lar” e buscado visões mais abrangentes do que as de seus quadros epistemológicos nacionais (Said, 2007a, p. 348).
Um texto fundamental para entender mudanças das ações políticas de Said em relação a reflexões sobre o Estado e o nacionalismo é “Reflections on exile”, publicado originalmente em 1984 e que acabou por se tornar título de coletâneas (2000a; 2012) com artigos de sua autoria. Said apresenta ali, pela primeira vez de forma detida, análise de questões referentes aos imaginários nacionais, contestando alguns de seus aspectos. Justapondo a filiação nacional ao tema do exílio, o texto revela tanto as possibilidades de libertação nacional quanto, originalmente, censuras a formas de imaginações nacionalistas. Assim, ainda que o nacionalismo seja um mecanismo comum para tentar reconstituir a identidade dos exilados, poderia produzir efeitos de sentimentos exagerados de solidariedade que tendem a separar irreversivelmente grupos (Said, 2000a, pp. 177-178). Ao longo do texto, Said (2000a, p. 184) continua a sugerir pontos de vista diversos sobre os nacionalismos. Por um lado, ainda manifesta aspectos positivos na autoafirmação dos sujeitos, na reconstrução de suas histórias, na sinalização de opressões e fundação de novas instituições. Por outro, Said (2000a, p. 184) aponta para os riscos do etnocentrismo, da essencialização de etnias e da reprodução de identificações fixas, algo reproduzido extensamente no seu entender na questão palestina.
Ao longo dos anos, porém, Said deixa de considerar aspectos positivos da identidade nacional e passa a ressaltar, especialmente, seus perigos e limitações. A definição de dicotomias - em que, por exemplo, o Ocidente ou é exaltado, admirado e copiado, ou criticado e deslegitimado em conjunto - embasada no retorno nostálgico a uma proclamada autenticidade original seria um dos maiores perigos das imaginações nacionais, ainda mais problemáticas quando articuladas a referenciais religiosos. No caso do revivalismo da cultura árabe, por vezes reproduzido por movimentos palestinos, seria problemático tratar o “outro” como objeto monolítico, o que torna a lógica de suas teses similar aos clichês redutivos desenvolvidos pelo imperialismo europeu sobre o “Oriente” (Said, 1996, p. 94). Questionando as lógicas essencialistas dos imaginários nacionais, Said recupera o argumento de Fanon (1979) de que o espaço da nação nunca seria horizontal, o que indica a necessidade de se contestarem teorias orgânicas de coesão social. A resistência cultural de novas imaginações nacionais, sobretudo as pós-independência no século XX, deveria constituir memórias comunais originais e mutáveis. O importante é que tais representações não devem ser presas a particularismos ou nostalgias que buscam descobrir a “verdade de um povo”.
A reflexão do tema da resistência em Said, que assume em Cultura e imperialismo (1993) seu pleno desenvolvimento, é central em seu questionamento de certas direções nacionalistas. A resistência, para Said (1993, 216), deve ser concebida como um modo alternativo de conceber a história humana, algo muito além das barreiras que separam as culturas e que pode justamente permitir narrativas originais de integração e justiça. Importante notar que o célebre livro de 1993 incorpora como um de seus capítulos uma versão de texto de 1988 (“Yeats and decolonization”), no qual Said ([1988] 2001a) assinala que, a despeito de ter servido como resistência, o “nacionalismo permanece […] um empreendimento ideológico, assim como sociopolítico, fortemente problemático” ([1988] 2001a, p. 74). Said aponta duas grandes razões para isso. Em primeiro lugar, chama atenção para o fato de que as elites a liderar os projetos nacionais são em boa medida formadas e produzidas pelo poder colonial, de modo que a descolonização muitas vezes passa a reproduzir velhas estruturas de exploração em novos termos. O segundo problema - que Said posteriormente irá ressaltar diversas vezes nas relações Israel-Palestina - seria que os horizontes culturais dos nacionalismos são limitados pelas histórias comuns (ou “experiências combinadas”) de colonizadores e colonizados, envolvidos por projetos modernizadores e civilizadores que estabelecem divisões hierarquizadas entre sociedades e grupos ([1988] 2001a, pp. 74-75). As histórias compartilhadas acabam por influenciar as formas de resistência e, frequentemente, o nacionalismo se torna um modelo de nativismo que, embora de modo reverso, volta a reforçar a divisão entre populações produzida pelos estereótipos, mitos e animosidades do discurso colonial (Said, 2001a, p. 82). A partir daquele momento, Said define detidamente tanto seu ataque a modelos nacionalistas quanto a busca por outra forma de libertação, uma “nova alternativa que pela sua própria natureza implica, nas palavras de Fanon, uma transformação da consciência social para além da consciência nacional” (Said, 2001a, p. 83).
Quando Said (1993, pp. 220-238) revisa e adapta o texto de 1988 para publicá-lo em Cultura e imperialismo, as interseções entre o questionamento do nacionalismo e o tema da resistência são, então, ainda mais aprofundadas e assertivas. Relevante notar que Said insere no texto de 1993 parágrafos que remetem a sua epistemologia política humanista e cosmopolita que só será plenamente desenvolvida nos anos 2000 (Carvalho, 2013). Assim, Said (1993, p. 229) enfatiza de forma original naquele texto a necessidade de negar essencialismos embasados na autoindulgência da celebração das próprias identidades. A via alternativa deveria apontar para um novo universalismo não coercivo que ultrapassasse as filiações locais e seus sentidos de segurança.
Portanto, questionar condutas e hábitos imaginados pelos nacionalismos implica problematizar representações de unidades populacionais que seriam culturalmente homogêneas, tal como expresso nas teses hegemônicas sobre Israel e Palestina. Em suas obras maduras, Said manifesta em diferentes momentos que a nação é um objeto construído, por vezes inventado, tendo o intelectual o papel de revelar suas tensões e conflitos. A identificação nacional torna-se, então, um processo problemático em si mesmo, dado que tende a violar outras identidades minoritárias (Said, 2002, p. 130). Reproduzir discursos nativistas que reivindicam autenticidade conduziria a limitações e à discriminação de grupos sociais (Said, 2007b, p. 70). Said (1993, p. xiii) ressalta a necessidade de negar a direção do humanismo clássico que relaciona a cultura a lógicas de identidade e concebe as tradições nacionais como predeterminadas. O problema e dilemas de concepções limitadas de cultura e nação poderiam ser percebidos nos processos de descolonização e resistência. Embora a definição da diferença e de identidade componha os processos de descolonização, isso não deveria significar a formatação de uma consciência nacionalista fechada em si mesma. O problema de tal postura intelectual seria a proposição de diferenciações que definiriam categoricamente um “nós” e um “eles”, quase sempre com algum grau de xenofobia.
A reflexão teórica que Said desenvolve a partir de meados dos anos 1980 sobre o exílio é mais uma manifestação da coadunação de sua crítica às lógicas de partilha com suas reflexões teóricas. Dado que possíveis problemas do exílio advêm de privações por não se fazer parte de uma comunidade, uma primeira questão central seria superar ausências do exílio sem cair nas armadilhas do orgulho nacional. Citando Adorno, Said ([1984] 2000a, p. 185) destaca benefícios do estado exilar, no sentido de seu descolamento do “lar” ou de línguas nativas gerar percepções fecundas das discrepâncias das ideias e seus respectivos dogmas: “fronteiras e barreiras, que nos fecham na segurança de um território familiar, podem se tornar prisões, e são muitas vezes defendidas além da razão ou necessidade” (Said, 2000a, p. 185).
A questão do exílio em Said expressa algumas tensões, como as apontadas por Guha (2005), que mostra a mudança na obra do autor quando este criticava relatos exagerados da falta de comunicação da condição de exílio para uma problematização mais direta da questão a partir de 1990, em que sublinha aspectos de perda inexorável de filiação, linguagem e de conexão com o passado. Entretanto, embora a interpretação de Guha seja consistente em relação às obras específicas que mobiliza, o que parece se destacar na obra de Said em geral são os potenciais benefícios que podem resultar da observação da “mundanidade” das ideias (Said, 2007b, p. 71; pp. 84-85) e, indiretamente, do exílio. O exílio problematizaria a “formação estratégica” (Said, 2007a, p. 50) que envolve a prática do conhecimento, sempre relacionado com um conjunto específico de produção textual e redes referenciais de poder. Em contraponto aos nacionalismos e a representações essencializadoras, a condição de exílio criaria conexões e cruzamentos de fronteiras, o que contraria nativismos que tratam “outros” como essencialmente diferentes (Said, 2007a, p. 441).
Diferentemente dos envolvimentos da identificação nação, o exílio reflete uma dissonância em relação ao contexto social vivido, como a distância de textos e tradições que caracterizam a cultura (Said, 1983, p. 6). O “judeu não judeu” de Isaac Deutscher, com sua utopia de uma sociedade igualitária e internacional, representaria a fecundidade da diáspora orientada para o cosmopolitismo (Said, 2004, pp. 80-82)6. Said (2005, p. 60) entende, porém, tal situação também como metafórica, não se referindo apenas a condições efetivas de migração, de modo que o exílio seria antes uma condição cognitiva que está além da geografia ou de predeterminações identitárias. A atividade intelectual secular define-se, fundamentalmente, contra a hegemonia que impõe ideias de pertencimento e localização, de modo a se questionar a dimensão confortável que a cultura nacional reproduz quando nos distingue de “outros” (Said, 2002, p. 131).
O modo pelo qual Said passa a questionar os modelos de partilha, especialmente as clivagens nacionalistas de movimentos israelenses e palestinos, se embasa, portanto, no amadurecimento de teses críticas às filiações identitárias. Dentre estas, a nacional ocupa lugar de destaque. O desenvolvimento de suas reflexões teóricas - aprimoradas sobretudo a partir dos anos 1990 - envolve uma concepção de humanismo secular que, crítica aos ideais de incompatibilidades “naturais” ou histórias separadas, assinala virtudes tanto de possíveis deslocamentos dos sujeitos quanto de posturas cosmopolitas. Teses que, no caso da questão palestina, exigiam formas originais de ação política e explicam mudanças no ativismo do autor.
Comentários finais: a nação entre as origens e o cosmopolitismo
A proposta do humanismo secular de Said questiona os binarismos ou lógicas de separação que foram hegemonicamente assumidos tanto pelo lado israelense quanto pelo palestino. Parte da história do sionismo é marcada pela narrativa de separar judeus de não judeus, uma representação que se desdobra, por exemplo, nos debates contemporâneos sobre o Estado israelense ser definido pela identidade judaica (Makdisi, 2005, pp. 446-447). Paralelamente, a principal orientação dos movimentos políticos palestinos se dirigiu para a defesa de um Estado autônomo de bases nacionais bem demarcadas.
Como exposto acima nas permanências e inflexões de Said, sua crítica ao nacionalismo indica um caminho afirmativo, de reconstrução da própria noção de identidade. No seu entender, não caberia mais a lógica identitária voltada para fundamentos de um proclamado passado e cultura a serem preservados. Como assinala Bhambra (2006, p. 1), a questão das identidades, sejam elas culturais ou nacionais, aparece em Said como um ponto de partida para uma jornada aberta ao futuro e a projetos de múltiplas direções. Não deveria ser tida por um ponto de chegada, concepção presente em muitos movimentos que acabam estimulando segregações. Em vista disso, Said reproduz, por um lado, ideias de um conjunto de reflexões sobre a nação que ressaltam o seu caráter construído, moderno e conjuntural, algo distante das imagens de fundações históricas imemoriais constituídas por movimentos nacionalistas. As reflexões exemplares de Renan (2000), Anderson (1991) e Gellner (1993), por exemplo, mesmo com suas grandes diferenças - seja destacando os esquecimentos e o caráter voluntário da nacionalidade; ou as relações do capitalismo com novas formas de comunicação; ou ainda sinalizando a importância dos sistemas educacionais constituídos pelos Estados-nacionais -, concordam no aspecto de a nação ser um artifício político espacial e temporalmente contingente.
Por outro lado, Said questiona boa parte das teses que supõem a homogeneidade e a coesão social da construção nacional. Nesse sentido, cabe lembrar reflexões como a de Norbert Elias (1997, pp. 143-144), que identifica na coletividade nacional um sentimento de amor a certo “nós”, que estaria diretamente articulado ao amor-próprio, dada a força da identificação. Hroch (2000), por sua vez, argumenta que a identidade nacional implica um corpo único, em um sentido mais que metafórico. A coletividade assumiria características religiosas baseadas em símbolos, textos, sacrifícios e rituais (Kramer, 1997, pp. 532-534). Como a célebre obra de Anderson (1991, p. 30) sugere, um dos efeitos centrais do capitalismo editorial no reforço do imaginário nacional seria a definição de um “horizonte sociológico” marcado pela fusão das obras culturais com dimensões exteriores (instituições e lugares diretamente identificáveis) aos leitores. Para Gellner (1993), a construção de grandes sistemas de educação pelos Estados, que respondiam a demandas da industrialização e à necessidade de mão de obra qualificada, acabava por gerar sociedades unificadas e coesas. Tais exemplos indicam, portanto, como várias teses pressupõem - mesmo que com a consideração de diferentes variáveis - certa homogeneidade que constitui territórios e populações nacionais como realidades socioculturais bem definidas.
Diferentemente, Said busca assinalar dimensões de poder e violência simbólica que os discursos nacionalistas envolvem. Este é um dos pontos que aproximam as críticas de Said, assim como seu humanismo secular, a pensadores(as) denominados(as) pós-colonialistas. Cabe notar alguns aspectos dessa aproximação, a fim de entender os caminhos e a importância das reflexões de Said sobre a nação. Nesse caso, os imaginários nacionais são tidos por dispositivos que representam forçadamente a diferença como unidade (Hall, 2000, p. 62). Bhabha (1994) sugere o caráter obscuro da dimensão cultural da nação, um sentido simbólico inapreensível que se contrapõe às representações de totalidade e homogeneidade geralmente defendidas por movimentos nacionalistas. Seria problemático, então, não observar o caráter ambivalente da nação, vinculado, de um lado, a um plano pedagógico-historicista e, de outro, às incertezas da significação cultural com seus princípios performáticos (Bhabha, 1994, pp. 208-209). Isso requer questionar o alcance das narrativas de origens, embasadas em imagens que prendem as identidades a âncoras fundacionais (Fanon, 1979). A consequência é que, ao lado das narrativas uniformes de nacionalidade, há a paralela manifestação de identificações em “transição” (Hall, 2000, p. 88) ou diaspóricas (Gilroy, 2001). Tais identificações seriam desvinculadas de territórios ou noções de origens, permanecendo descentradas e cosmopolitas. Contra as normas da diferença colonial, as identificações podem ser vinculadas a resistências subalternas com autonomia para imaginar outras formas de modernidade e arranjos institucionais originais, até distantes do tempo vazio e homogêneo proposto por Anderson (Chatterjee, 2004).
Os posicionamentos de Said em relação à temática nacional, distantes das teses de homogeneidade e mais próximos de concepções pós-colonialistas, revelam como sua reflexão participa de debates mais amplos da teoria social e política. Percebem-se em seus argumentos universalistas e na valorização da condição exilar aspectos que se desenvolvem desde suas jovens obras teóricas, como a contestação a lógicas da identidade que demarcam as referências culturais como entidades fixas. Todavia, a despeito de certa perenidade de seu pensamento teórico, o envolvimento direto de Said na luta palestina expressa alguns impasses, algo refletido nas mudanças pontuadas de seu ativismo.
Nota-se, então, como sinalizado anteriormente, a necessidade de separar sua prática política na questão palestina de suas reflexões teóricas. Pode-se observar tal diferenciação no tratamento ambivalente da identificação palestina. Em um momento em que elogiava ações de Yasser Arafat ([1987] 2001b, p. 321), por exemplo, Said celebrava sua capacidade de cristalizar a noção de uma comunidade palestina, a despeito de sua dispersão em campos de refugiados e em vários países. Aqui, o argumento de Said envolve uma ideia de identidade que problematizaria em escritos teóricos posteriores, quando passa a valorizar as dimensões do exílio e dispersão. Da mesma forma, sobretudo até os anos 1980, Said elogia perspectivas libertárias das lutas nacionais. Nos momentos em que concebe a identidade como artifício político contingente, enfatiza aspectos contra-hegemônicos de articulação dos imaginários subalternos. Portanto, ainda que sobressaiam as críticas às filiações identitárias e aos modelos de partilha ao longo de sua produção teórico-acadêmica, permanece uma tensão - relacionada sobretudo com seu ativismo - entre, por um lado, a definição de certas identidades como historicamente autoconstitutivas ou autoafirmativas e, de outro, a reflexão das representações como hegemonias que se formam pela dominação via consentimento e poder cultural (1980, p. 37).
As relações entre história, nação e identidade presentes na obra de Said não são, decerto, temas simples, pois se constituem justamente nas interseções modernas entre agências e estruturas. Uma reflexão que poderia ser anexada às teses de seu humanismo secular seria supor que as contradições normativas da nação são inerentes ao projeto político-institucional da modernidade. O ganho seria dimensionar limites e possibilidades da identificação nacional, que reflete a ambivalência de se situar entre aberturas criativas e aspectos de dominação. Nesse sentido, parece importante considerar que, embora envolva, em parte, imagens culturais de homogeneidade que tendem a frear dinâmicas políticas, a nação também pode expor uma relação aberta entre um projeto que busca legitimação e a constituição de uma subjetividade coletiva anterior às estruturas do Estado (Rinesi, 2004). A identificação nacional torna-se, então, multidirecional, algo que se expressa, mais frequentemente, na diferenciação entre formas “culturais” ou historicistas de nacionalismo e outras “políticas” baseadas na cidadania e em valores universais (Kramer, 1997, pp. 541-544). Além disso, embora imaginários nacionais possam tender para formas de violência simbólica, também podem envolver, em outros locais, fatores simbólicos importantes presentes desde há muito em determinadas regiões (Smith, 2009). Quando atentamos para tais dimensões simbólicas no caso palestino, particularmente, diferenças culturais demarcam fortemente as populações. Ainda que se defenda a relevância de hibridismos e histórias compartilhadas, o cosmopolitismo de Said pode parecer, por vezes, demasiadamente otimista em relação a um contexto de conflitos e cisões históricas. De todo modo, o debate elaborado pelo autor, em contraponto às tendências políticas hegemônicas, resulta em propostas normativas originais que desafiam pressupostos identitários e constituem formas originais de articular teoria e prática, pensamento e história.
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1
A data entre colchetes refere-se à edição original. No caso de entrevistas e textos de coletâneas, as datas originais serão repetidas ao longo do artigo, a fim de sinalizar possíveis mudanças de posicionamento de Said, aspecto central desta análise.
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2
Embora esta seja a direção mais frequente, Said (1980, pp. 12-14) não deixa de notar que em variados momentos, sobretudo antes da declaração oficial da criação do Estado de Israel, constitui-se a tese da “reconstrução” da Palestina, em que a população árabe deve ser removida ou transferida para outros países. Tal sentido explicita-se no deslocamento de 780 mil árabes palestinos em 1948 (Idem, p. 14).
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3
Os conceitos de representação e imperialismo são centrais na obra teórica de Said, desenvolvidos sobretudo em Orientalismo (2007a) e Cultura e imperialismo (1993). Em termos gerais, dizem respeito a dimensões de poder com funções de separar, classificar e hierarquizar culturas distintas. Assim, as culturas ou identidades são pensadas como entidades exclusivas, inexoravelmente distintas e definidas em posições de superioridade-inferioridade.
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4
Declaração feita pelo governo britânico na forma de uma carta endereçada a Lord Rothschild - que representava no momento a comunidade judaica inglesa -, na qual se manifestava favoravelmente pela constituição de um Estado judeu no território da Palestina.
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Grande parte dos argumentos sobre o oportunismo de Said provém de críticas de Aijaz Ahmad e Timothy Brennan, que ressaltam as relações de Said com os circuitos de poder e opinião da academia científica de países centrais, assim como seus vínculos em relação aos cânones da cultura e teoria europeias (Sprinker, 1993, pp. 17-18).
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6
Nesse sentido, não parece coerente a afirmação de Yu (2006, p. 18) de que Said não teria refletido sobre a posição do intelectual estrangeiro que passa da posição de estudado para o posto, no âmbito acadêmico de países centrais, de examinador de sua própria cultura. O paradoxo epistemológico de tal situação foi uma das preocupações de Said e embasa sua ideia de exílio.
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
25 Jan 2021 -
Data do Fascículo
Sep-Dec 2020
Histórico
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Recebido
14 Mar 2018 -
Aceito
06 Nov 2018