Resumo
O presente artigo investiga a consolidação histórica da civilização caipira, o seu desmantelamento a partir de mudanças estruturais da sociedade brasileira e a resiliência de características de uma antiga cultura rural. O objetivo é acompanhar as mudanças nos usos do termo “caipira” para compreender o significado atribuído a ele hoje por aqueles que se identificam com tal cultura. Conclui-se que o conceito analisado sofreu um expressivo deslocamento semântico, devido às profundas transformações materiais e sociais pelas quais passou a população rural do centro-sul do Brasil tal como descrita pela Sociologia Rural paulista. Hoje, em vez do tipo humano característico dos bairros rurais, os elementos simbólicos e as referências identitárias tornam-se centrais para designar os indivíduos que se consideram herdeiros da matriz cultural caipira, ampliando-se, assim, os seus significados para tempos, espaços e experiências diversos.
Palavras-chave: Cultura caipira; Mundo rural; Migração; Identidade
Abstract
This article investigates the historical consolidation of the caipira civilization, its dismantling from structural changes in Brazilian society and the resilience of characteristics of an ancient rural culture. The objective is to follow the changes in the uses of the term caipira to understand the meaning attributed to it today by those who identify with that culture. It is concluded that the analyzed concept underwent an expressive semantic shift, due to the deep material and social transformations that the rural population of south-central Brazil underwent, as described by the Rural Sociology. Today, instead of the human type characteristic of rural neighborhoods, symbolic elements and identity references become central to designating individuals who consider themselves heirs of the caipira cultural matrix, thus expanding their meanings for various times, spaces and experiences.
Keywords: Caipira culture; Rural world; Migration; Identity
Introdução
Sobre o sujeito caipira, historicamente recaíram representações antagônicas, estabelecidas a partir da sua alteridade perante os olhares citadinos: ora como obstáculo ao progresso do país, ora ressaltando as suas virtudes de força, pureza e engenhosidade. Tal imaginário pitoresco e anedótico, mas de longa durabilidade, foi em grande medida consumado por meio do regionalismo paulista de Almeida Júnior, Valdomiro Silveira, Amadeu Amaral, Monteiro Lobato, Cornélio Pires, Afonso Arinos, entre tantos outros. Como demonstra Antonio Celso Ferreira, havia ali “sentimentos simultâneos de identificação e afastamento, característicos da sociedade letrada em relação àqueles seres tidos como representantes de um mundo arcaico a ser negado, mas que faziam parte das suas raízes e com os quais guardavam contiguidade física e cultural” (Ferreira, 2002, p. 69).
Frente a tais representações, a partir da década de 1950, sociólogos paulistas buscaram dar um entendimento científico à assimilação do trabalhador rural e às resistências culturais ao processo de mudança social então em curso (Lima, 1997), de modo a conceituar “caipira” como um modo de vida específico. Nessa perspectiva sociológica, com evidente influência do materialismo marxista, a organização econômica da sociedade caipira correspondeu a um tipo humano particular, a saber, pobres sitiantes vivendo do labor familiar em comunidades rurais relativamente isoladas, em relações de produção essencialmente pré-modernas, baseadas na subsistência e nos mínimos vitais. Foi essa configuração socioeconômica, de lenta transformação, que permitiu a colonização de uma vasta área geográfica no centro-sul do Brasil, do século XVI até meados do XX, quando mudanças significativas no campo e na cidade intensificaram o processo de urbanização e êxodo rural, desmantelando a civilização caipira, da qual restam apenas fragmentos.
Apesar da desorganização das bases materiais da sociedade caipira, todo esse processo histórico resultou em uma das mais importantes matrizes culturais brasileiras. A hipótese apresentada no presente artigo é a de que a reflexão sobre os caipiras migrou da Sociologia Rural para estudos culturais diversos, e a Sociologia da Cultura em particular, dado o avanço da crise do mundo caipira, já constatada nos anos 1950, e muito agravada nas últimas décadas.
Este texto é fruto de uma pesquisa de doutoramento em Sociologia pela Universidade de São Paulo, que se dedicou a analisar o desenvolvimento da cultura caipira, tendo como objeto as representações simbólicas presentes na prática artística de violeiros (Guerra, 2021). Aqui, analisa-se a consolidação histórica da civilização caipira e a sua fragmentação a partir de mudanças estruturais da sociedade brasileira, a qual resultou no êxodo rural massivo, mas também na resiliência de elementos de uma antiga cultura rural, para enfim responder à questão: o que significa ser caipira, hoje?
Ascensão e queda da civilização caipira
A formação da sociedade caipira está associada aos processos de colonização do interior empreendidos a partir das bandeiras que, desde o século xvi, saíram de São Paulo com o objetivo de aprisionar indígenas e procurar metais preciosos. Passada a corrida pelo ouro e prata, que atraiu movimentos migratórios de todo o Brasil, a população mestiça se dispersou e sedentarizou, e os sertões foram ocupados por pequenos agricultores, pecuaristas, caçadores e coletores que desenvolveram, com o passar dos séculos, determinados tipos de sociabilidade e cultura.
Tais aspectos culturais elementares da população camponesa do centro-sul brasileiro se expressam em técnicas de trabalho rudimentares, individuais e coletivas, utilizadas na roça, na criação de animais, na construção manual de benfeitorias e artefatos; em relações comunitárias baseadas na vizinhança e no compadrio; em valores e costumes tradicionais, provenientes do catolicismo popular e santorial; em festas religiosas e folguedos, como as folias, as congadas e demais comemorações do calendário hagiológico; em expressões musicais, como a moda de viola e os cantos de trabalho, bem como em danças como o cururu e a catira; na culinária típica; em maneiras de falar a língua portuguesa - o dialeto caipira, como ficou conhecido (Amaral, 1976) etc.
Neste sentido, a designação “caipira” não é usada da maneira do senso comum, como um adjetivo de sentido amplo, frequentemente com acepção pejorativa. Para a Sociologia Rural paulista, o caipira é um tipo humano específico: refere-se aos homens e mulheres livres e pobres do campo de uma ampla região do interior do Brasil, que compreende os atuais estados de São Paulo, Minas Gerais, Goiás, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Paraná e estados adjacentes. Em outras palavras, diz respeito às populações rústicas que povoaram as enormes extensões de terra - os sertões - não ocupadas pelos latifúndios escravocratas.
Antonio Candido, em Os parceiros do Rio Bonito ([1964] 2001), defende que a estrutura fundamental da sociabilidade caipira eram os bairros rurais, ou seja, pequenos núcleos habitacionais dispersos, originados da economia predatória e seminômade dos bandeirantes, baseados em relações de vizinhança e parentesco, arraigado tradicionalismo, práticas de auxílio mútuo e sentimento de localidade, onde predominava relativa homogeneidade social devido à economia quase fechada, voltada à subsistência. A produção dos meios de vida pouco dependia do mercado, de forma que os produtos agrícolas e a quantidade abundante de terras possuíam pouco valor financeiro, sendo raro o dinheiro em espécie. O parco excedente produzido era vendido em vilas ou cidades próximas para a compra do que não se conseguia produzir, como sal e instrumentos de metal.
Ao reformular a noção de cultura rústica, cara aos anteriores estudos de comunidade (Willems, [1944] 2009), enfatizando a relação entre a obtenção dos meios de vida e as formas de sociabilidade, Antonio Candido influenciou uma série de estudos decorrentes sobre as populações do campo focada no bairro rural, ao mesmo tempo que forneceu uma interpretação abrangente da formação social de parte significativa do Brasil, inserindo-se na tradição do pensamento social brasileiro (Jackson, 2001).
Para demonstrar essa densidade investigativa, vale a pena nos determos em algumas das ricas descrições que Candido faz de elementos culturais da sociedade caipira tradicional, a começar pelas moradias, artefatos e outros aspectos dos modos de vida:
A sua casa (significativamente chamada rancho por ele próprio, como querendo exprimir o seu caráter de pouso) é um abrigo de palha, sobre paredes de pau a pique, ou mesmo varas não barreadas, levemente pousado no solo. […] A esta rudeza correspondiam técnicas e usos igualmente rudimentares. […] Todos faziam fio de algodão, que as tecedeiras transformavam em pano, com o qual se confeccionava a roupa: camisolão até o joelho para meninos e meninas; camisa e saia para as mulheres; ceroula e camisa, usada sobre aquela, para os homens. Trançavam-se em casa excelentes chapéus de junco […], “que duravam dois anos”. Andava-se geralmente descalço, e o único calçado era a precata (alpargata), feita igualmente em casa. […] Os utensílios eram, na maior parte, feitos em casa. Mais tarde foram entrando os do comércio, e as pessoas deixaram de fazer os antigos: gamela de raiz de figueira, vasilha e prato de porungaetê, cuia de beber, pote de barro, colher de pau etc. […] Para iluminação usava-se candeeiro de barro, com banha de porco ou azeite de mamona, e torcida de algodão, tudo feito em casa, menos quando o candeeiro era de ferro. […] Indústria caseira eram também o açúcar, a rapadura e a garapa (que o substituíam frequentemente como adoçante), envolvendo a utilização de aparelhos feitos pelo próprio roceiro, como moendas, geralmente manuais, de madeira, e os fornos de barro, além de outros adquiridos, como fôrmas ou tachos, de lata e cobre (Candido, 2010, Parte I, capítulo 1, pp. 48-52).
A alimentação é abordada a partir da lente sócio-histórica, como se pode perceber neste trecho:
O feijão, o milho e a mandioca, plantas indígenas, constituem, pois, o que se poderia chamar triângulo básico da alimentação caipira, alterado mais tarde com a substituição da última pelo arroz. […] Em torno destes alimentos básicos, ordenavam-se outros, frequentes, embora não constantes: as diversas abóboras, […]; tuberosas, como a batata-doce, o cará, o mangarito - todas autóctones. Outras plantas logo se aclimataram aqui, devendo-se mencionar os legumes que mais penetraram na dieta do caipira: a couve e a chicória, presentes desde o século XVI, mais a serralha - todas aqui naturalizadas.
Quanto aos temperos e condimentos, alma da culinária, já vimos que a influência portuguesa assimilou por meio deles os alimentos da terra. As pimentas […], adubo de índio, passaram principalmente às populações litorâneas e nortistas, mas também às caipiras; nunca, todavia, em detrimento do sal e da gordura. O toicinho imperou, absoluto, quase até os nossos dias […]. Ligado à criação doméstica do porco, podia ser obtido, ao contrário do sal, sem o estabelecimento de relações fora do grupo. […] A atividade caipira por excelência era todavia a caça, através da qual se obtinha quase toda a ração cárnea (Candido, 2010, Parte I, capítulo 2, pp. 68-72).
Ademais, Candido também ressalta o amálgama existente entre a cultura e o trabalho nos bairros rurais:
E um dos elementos de sua caracterização era o trabalho coletivo. [...] A obrigação bilateral é aí elemento integrante da sociabilidade do grupo, que desta forma adquire consciência de unidade e funcionamento. Na sociedade caipira a sua manifestação mais importante é o mutirão. […] As várias atividades da lavoura e da indústria doméstica constituem oportunidades de mutirão, que soluciona o problema da mão de obra nos grupos de vizinhança (por vezes entre fazendeiros), suprimindo as limitações da atividade individual ou familiar. E o aspecto festivo, de que se reveste, constitui um dos pontos importantes da vida cultural do caipira.
Consiste essencialmente na reunião de vizinhos, convocados por um deles, a fim de ajudá-lo a efetuar determinado trabalho: derrubada, roçada, plantio, limpa, colheita, malhação, construção de casa, fiação etc. Geralmente os vizinhos são convocados e o beneficiário lhes oferece alimento e uma festa, que encerra o trabalho. Mas não há remuneração direta de espécie alguma, a não ser a obrigação moral em que fica o beneficiário de corresponder aos chamados eventuais dos que o auxiliaram. Este chamado não falta, porque é praticamente impossível a um lavrador, que só dispõe de mão de obra doméstica, dar conta do ano agrícola sem cooperação vicinal (Candido, 2010, Parte I, capítulo 4, pp. 87-88).
Nota-se, pelas descrições, que os bairros rurais eram caracterizados por uma situação de manifesta pobreza, que se revelava no aspecto precário das moradias, nas ferramentas e utensílios domésticos, nas técnicas de trabalho, na alimentação cabocla e nas roupas dos seus moradores fiadas por eles mesmos. A sua pobreza fez com que tantas vezes os caipiras fossem julgados como ignorantes, enfermos e preguiçosos, como a clássica caricatura do Jeca Tatu de Monteiro Lobato ([1918] 2004). Porém, Candido esclarece que a cultura rústica dos caipiras foi resultado de exitosa adaptação civilizatória, ao produzirem apenas os mínimos vitais de alimentação e abrigo que pudessem ser garantidos pela economia de subsistência. Em outras palavras, a formação dos bairros rurais representou o equilíbrio ecológico e social que, por séculos, permitiu a fixação dessas populações nos sertões, garantindo-lhes sobrevivência e margem de lazer, alheias à dinâmica mercantil, enquanto houve ampla disponibilidade de terras e manutenção das necessidades restritas aos mínimos vitais.
Assim, a existência autônoma, ainda que modesta, do bairro rural, exigia certa dispersão e isolamento. Esse aspecto é reforçado por Antonio Candido como pressuposto para a manutenção da subsistência caipira. Embora reconheça a necessidade de relacionamento com cidades e bairros vizinhos, afirma que ela se dava de modo restrito aos limites impostos pela economia fechada. Maria Isaura Pereira de Queiroz, por sua vez, propõe uma compreensão mais flexível da organização dos bairros rurais, a qual possibilita uma definição ampliada do sujeito caipira, pois abrange relações de trabalho e produção não circunscritas à subsistência familiar. Para ela, a relação com o mercado não implicaria, necessariamente, a dissolução do bairro rural, já que a sua sobrevivência dependeria, sobretudo, do equilíbrio com a sociedade externa.
Assim, a análise da autora revela maior resiliência do mundo caipira, se comparada aos prognósticos de Candido. As atividades de subsistência poderiam ser combinadas com a venda de criações, pescados, leite, ovos, hortaliças, frutas, verduras, cultivos e extrativismos diversos, além de produtos de fabricação caseira, como doces e artesanatos. A pequena comercialização de mercadorias obtidas com técnicas tradicionais, conjugada com a produção para subsistência, permitia relativa elevação do nível de vida, complementação da dieta e maior contato com áreas urbanas. Com a complexificação social do meio rural brasileiro, os bairros caipiras tornaram-se lócus de tipos intermediários de trabalhadores rurais, tais como parceiros, agregados e colonos. Esses tipos intermediários não provocaram o abandono da produção para subsistência e organização sociocultural própria do bairro rural, mas, ao contrário, exigiram a sua conservação, afinal o pagamento da força de trabalho era insuficiente para a sua própria manutenção.
Entretanto, durante o século XX, os bairros rurais assistiram a uma progressiva e acelerada desagregação. Rompeu-se o equilíbrio que possibilitava a economia de subsistência e exauriu-se o estilo de vida baseado nos mínimos vitais como possibilidade de ajuste social. A viabilidade desse equilíbrio dependia da compressão das necessidades a ponto de poderem ser satisfeitas pelo trabalho dos sitiantes com o uso restrito da mão de obra familiar e técnicas produtivas tradicionais. Com as comunidades rurais cada vez mais integradas à dinâmica mercantil, novas necessidades foram introduzidas e a produção para a subsistência tornou-se, assim, insuficiente. Outro fator que colaborou de maneira decisiva para o rompimento do equilíbrio sobre o qual se assentavam os bairros rurais foi a disseminação de latifúndios nas áreas ocupadas pelos pequenos sitiantes. A riqueza dos caboclos era a superabundância de terras no sertão, espoliada pelo processo de concentração fundiária.
Com a valorização do preço das terras, que se tornaram escassas e passaram a ser usadas predominantemente com vistas à exploração lucrativa, enquanto os sitiantes se viram pressionados a vender as suas propriedades e a sua mão de obra para a lavoura comercial, os agregados e parceiros passaram a ter que alugar a terra, pagando em espécie pelas glebas onde costumavam morar de favor ou em troca de parte da produção familiar. Essa inserção cada vez maior nas relações capitalistas estimulou a necessidade de dinheiro, o que provocou a crise da subsistência e impeliu os pequenos produtores independentes a buscarem empregos como assalariados, garantindo uma oferta abundante de mão de obra para o trabalho nas grandes fazendas vizinhas, quando não o êxodo rural. A própria expansão da pecuária extensiva contribuiu para a desarticulação da produção agrícola tradicional, ao passo que a demanda por pastos implicou o desflorestamento de vastas áreas de mata virgem.
As relações de trabalho passaram a ser definidas pelos termos do vínculo salarial entre patrão e empregado. Tornaram-se cada vez mais raras as relações de trabalho tradicionais como a mão de obra familiar, a parceria e o colonato, que forneciam certa autonomia ao trabalhador rural ao permitir o dispêndio de parte da energia laboral à subsistência. A concentração de terras, a mecanização da agropecuária e a disseminação do contrato de trabalho assalariado fizeram emergir novas categorias profissionais, como os boias-frias e os volantes, trabalhadores que moram nas cidades e são contratados para a execução de tarefas sazonais nas grandes monoculturas de cana-de-açúcar, soja, algodão, eucalipto etc. Profissões antes essenciais à sociedade caipira, como os tropeiros, os carreiros e os boiadeiros, entraram em vias de extinção, rendendo-se ao desenvolvimento da logística rodoviária.
Aos habitantes dos bairros rurais que não lograram resistir em sua autonomia de pequenos proprietários na sua própria região, para não serem absorvidos como mão de obra barata nos latifúndios circundantes, restou a alternativa do êxodo. As migrações podiam ocorrer para novas fronteiras agropecuárias, que se expandiam para o interior das regiões Centro-Oeste e Norte, onde as terras ainda se mantinham desvalorizadas; ou para as cidades médias e metrópoles, engrossando as levas de migrantes que se integravam ao proletariado urbano, caminho ao qual foi impelida a maior parte da população caipira.
Entre as décadas de 1960 e 1970, a população brasileira tornou-se majoritariamente urbana. Se, na década de 1940, a taxa de urbanização era de apenas 26,35%, em 1980 chegou a 68,86%. Nesses quarenta anos, a população total do Brasil triplicou, mas a população urbana cresceu muito mais, sete vezes e meia (Santos, 1993, p. 29). Os bairros caipiras típicos tornaram-se cada vez mais raros, a ponto de a população rural nas regiões Sudeste e Centro-Oeste atualmente não passar de 10%, de acordo com o Censo de 2010 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Em contrapartida, as cidades médias e as grandes metrópoles assistiram a um crescimento vertiginoso, em que caipiras se encontraram com migrantes de outras regiões.
Entretanto, o êxodo rural não pode ser reduzido a uma expulsão passiva de um mundaréu de caipiras. Na verdade, trata-se de uma miríade de histórias particulares de migrações de sujeitos motivados pela busca de melhores condições de vida frente às transformações socioeconômicas profundas e desfavoráveis que inviabilizaram a vida tradicional dos pequenos produtores rurais (Durham, 1978). Na cidade, os migrantes encontraram oportunidades de emprego, ainda que precários; puderam adquirir imóveis econômicos em bairros periféricos; alcançaram maior acesso a bens de consumo e serviços públicos básicos; viram seus filhos frequentarem escolas regulares, na esperança, tantas vezes concretizada, da ascensão social familiar pela educação dos descendentes. Para tanto, tiveram que barganhar o contato com a natureza, a vida em comunidade do bairro rural, os valores tradicionais que organizavam a sua vida social e a autonomia de produzir para si mesmos.
A mudança de um sistema de relações socioeconômicas para outro, assentados sobre valores tão díspares, inevitavelmente, fez com que os migrantes perdessem - pelo menos - parte dos fundamentos culturais da sociedade caipira. Por outro lado, as tradições atuaram como mediadoras das transformações sociais, atenuando-as. Vários elementos identitários lograram sobreviver, amoldando-se fora do contexto rural de origem, expressando-se nos costumes e sotaques, na nostalgia, na moralidade autodefensiva ou por meio das diferentes alternativas pelas quais os caipiras buscaram reinventar-se cultural e economicamente nas urbes (Martins, 2001).
Não apenas nas pequenas cidades interioranas (onde o limite entre o rural e o urbano é mais fluido), mas nas médias de influência regional e, inclusive, nas capitais e grandes metrópoles, a migração massiva de caipiras incutiu lógicas da cultura rústica nas cidades, especialmente nas periferias. Ainda hoje, fazem parte do cotidiano de zonas urbanas de muitos municípios do Brasil central as vias de terra batida, a criação de animais, a manutenção de hortas, pomares e pequenas lavouras, o uso de cavalos e veículos de tração animal para locomoção, o hábito do banho em córregos que cortam as cidades, entre outras práticas.
Dessa forma, com o êxodo, persistiram nas cidades culturas híbridas, resultado da reelaboração por parte dos migrantes de elementos da sua identidade originária, ainda que vivos apenas na memória. O sujeito caipira foi progressivamente se urbanizando, mas as cidades acabaram por absorver também aspectos culturais tipicamente rurais trazidos pelos migrantes.
O novo mundo rural
As transformações estruturais ocorridas e intensificadas ao longo do século XX alteraram profundamente a organização econômica e social das populações rurais do centro-sul do Brasil, bem como a sua relação com o meio natural e comunitário. A paisagem do interior do país transfigurou-se com o declínio demográfico das populações camponesas. Sem dúvida, entre trabalhadores rurais assalariados e pequenos e médios proprietários que habitam os interstícios de grandes extensões de pastos e lavouras mecanizadas, é comum encontrarmos vários elementos típicos da civilização caipira, como o uso de ferramentas e técnicas de cultivo tradicionais, construção manual e rudimentar de artefatos e benfeitorias, emprego de equinos e bovinos como meio de trabalho e transporte, folguedos e práticas do catolicismo popular, costumes e maneiras de se relacionar com o tempo e com a natureza distintos do modo de ser urbano. Entretanto, por mais tradicional que pareça ser, à primeira vista, o estilo de vida de muitos dos habitantes de chácaras, sítios e fazendas, a realidade hoje é muito distinta daquela que levou a Sociologia a definir os bairros rurais como unidade elementar da organização econômica, social e cultural das populações do campo do centro-sul brasileiro.
Atualmente, o meio rural conta com infraestrutura de bens e serviços que até pouco tempo era exclusiva às zonas urbanas. O fornecimento de energia elétrica, por exemplo, é hoje o serviço domiciliar mais abrangente no Brasil, tendo alcançado neste século os mais recônditos rincões do país, especialmente após o programa Luz para Todos, implantado pela gestão petista do governo federal, a partir de 2003. Assim, se em 1950, 24,6% dos domicílios brasileiros dispunham de energia elétrica (sendo 60% dos domicílios urbanos e apenas 3,6% dos rurais), em 2010, 89,7% dos domicílios rurais já contavam com o serviço. O censo de 2010 mostrou ainda que apenas 1,3% do total de domicílios brasileiros não possuem energia elétrica, sendo a maioria deles nas regiões Norte e Nordeste1.
Ressalta-se que a chegada da rede de energia elétrica em uma comunidade rural eleva significativamente seu nível de vida, trazendo consigo novas necessidades materiais impossíveis de serem satisfeitas com a produção exclusivamente voltada à subsistência, a começar pela tarifa do serviço a ser paga. O usufruto da comodidade provida pela eletricidade depende de objetos que não podem ser produzidos de maneira artesanal, como lâmpadas, chuveiro elétrico, geladeira, eletrodomésticos, aparelhos de rádio, televisão e telefone celular, hoje acessórios prosaicos no cotidiano dos habitantes das zonas rurais.
Também o sistema viário deu um salto colossal nas últimas décadas. Além do adensamento e expansão da malha rodoviária, a facilidade de aquisição de veículos automotores e a implantação de linhas municipais e interestaduais de transporte coletivo promoveram a integração de bairros e propriedades rurais. O próprio alargamento do perímetro urbano ocasionou a aproximação física entre cidades e comunidades rurais, preenchendo as vias de acesso com comércios e entrepostos que testemunham o avanço da urbanidade.
Romperam-se as barreiras que mantinham o relativo isolamento das populações do campo até poucas décadas atrás. Os bairros rurais, outrora habitados exclusivamente por aqueles que trabalhavam a terra, hoje abrigam muitas pessoas que realizam o trânsito pendular para os centros urbanos, onde trabalham, estudam e frequentam por motivos diversos de lazer, de consumo ou de acesso a serviços. Podemos notar uma reorientação das funções dos antigos bairros rurais, que deixam de ser o princípio organizador da economia e da sociabilidade camponesa, para assumir um vínculo primordial com as cidades mais próximas. Com o passar do tempo, as comunidades tenderam a perder população, desarticulando-se ou até desaparecendo, mas eventualmente incrementaram-na, evoluindo para distritos ou subsumidas ao contínuo da cidade, passando a ser consideradas pelo zoneamento municipal como bairros urbanos.
As transformações mais recentes na configuração dos bairros rurais foram de fato profundas e irreversíveis, se levarmos em conta a função que tiveram desde o período colonial na organização socioeconômica dos habitantes dos sertões do centro-sul do país, ou mesmo se compararmos à situação em que tais comunidades se encontravam em meados do século passado. Mesmo aqueles sociólogos que buscaram compreender os antigos bairros rurais a partir de uma perspectiva mais flexível, ressaltando suas capacidades adaptativas e complementares em relação às cidades, como Queiroz (1973), não poderiam prever a intensidade e a velocidade extraordinárias das mudanças estruturais ocorridas na última transição dos séculos, que integraram definitivamente as populações rurais nesse largo passo da modernização ocidental chamado de globalização.
A rigor, podemos afirmar que o tipo humano clássico do caipira e o seu habitat tradicional, o bairro rural, do ponto de vista das suas condições materiais de existência, tal como definidos pela Sociologia Rural entre as décadas de 1950 a 1970, deixaram de existir. Retomemos a concepção sociológica dos bairros rurais caipiras para compreendermos o real sentido dessa contundente asserção. De acordo com Antonio Candido, os traços característicos definidores de tais unidades societárias e seus habitantes seriam a economia agrícola de subsistência autossuficiente; o emprego de mão de obra exclusivamente familiar; a produção direta dos meios de vida dimensionados pelas necessidades básicas (mínimos vitais); o relativo isolamento (mínimos sociais); o auxílio vicinal; a homogeneidade social; a margem de lazer e a ampla disponibilidade de terras (Candido, 2010; Queiroz, 1973, pp. 7-8). Atualmente, porém, nos encontramos diante da quase total desarticulação desses elementos que por tanto tempo condicionaram a forma de povoamento que originou a cultura caipira do interior do Brasil.
Desse modo, não se trata de decretar a morte do sujeito caipira, mas sim de apontar para a sua ressignificação, no esforço de compreender, sobretudo em termos culturais, o que é ser caipira no século XXI, para aqueles que se identificam como tal.
O principal vetor de reconfiguração do campo brasileiro - nos seus aspectos espaciais, demográficos, produtivos, laborais, sociais e culturais - foi o desenvolvimento do modelo empresarial de atividade rural integrado e dependente do mercado internacional, com baixo emprego de mão de obra não qualificada e uso intensivo de tecnologias visando a maior produtividade e lucro. O avanço do chamado agronegócio, além do drástico impacto na agricultura tradicional familiar, promoveu a ascensão econômica de várias regiões interioranas, estabelecendo novos arranjos entre campo e cidade nessa grande área do centro-sul do Brasil para a qual estamos olhando.
Nas últimas décadas, assistimos ao avanço de extensas plantações de soja, cana-de-açúcar, milho, café, algodão, laranja, eucalipto etc., as quais, conjugadas a diversas modalidades de atividade pecuária, resultaram em complexas cadeias agroindustriais, que envolvem de cooperativas locais a agroindústrias internacionais, de pequenos produtores a poderosos latifundiários. A produção agropecuária é cada vez mais mecanizada e informatizada, regida por técnicas empresariais, de acordo com padrões transnacionais. Nesse sentido, os sistemas de comunicação, a engenharia química, agronômica, veterinária e a biotecnologia operaram uma verdadeira revolução na atividade primária no Brasil e no mundo, no tocante a maquinários, defensivos agrícolas, correção de solos, seleção e melhoramento genético de sementes e raças de animais, inseminação artificial, estímulos hormonais, controle de doenças, métodos de engorda e ordenha, estruturas de granjas, invernadas, confinamentos, frigoríficos, usinas etc., como formas de controle, intervenção e invenção da própria natureza.
Tal progresso tecnológico possibilitou, em um curto lapso temporal, a expansão das fronteiras agropecuárias sobre os sertões do Centro-Oeste brasileiro - antes dispersamente povoados por comunidades tradicionais, como indígenas, ribeirinhos e caipiras -, e a substituição das matas do cerrado e do pantanal por pastos e lavouras monocultoras. A expansão dessas fronteiras produtivas provocou tanto a acelerada urbanização do meio rural, quanto o extraordinário crescimento de pequenas e médias cidades.
A explosão demográfica do interior do Brasil central decorrente desse processo foi estimulada por projetos de colonização oficiais e privados encabeçados principalmente por sulistas, que atraíram também, como mão de obra não qualificada, roceiros pobres das respectivas regiões, além de migrantes nordestinos e nortistas. Nota-se, entretanto, que o incremento tecnológico das unidades produtivas e agroindustriais exige maior qualificação técnica para atender as demandas do modelo empresarial de atividade rural. Assim, houve uma significativa descentralização de instituições de ensino técnico e superior, tanto públicas quanto privadas, antes circunscritas às regiões metropolitanas, expandindo-se no sentido do interior do país.
A pujança do agronegócio foi favorecida pela desvalorização do real e pela alta do preço das commodities agrícolas e agroprocessadas no mercado global nas últimas décadas, reforçando a posição do Brasil como um dos principais produtores primários na divisão internacional do trabalho. Liderada pela soja, a exportação de commodities consolidou-se como suporte crucial do produto interno bruto (PIB) brasileiro, de modo que o expressivo desempenho comercial das atividades vinculadas ao agronegócio fortaleceu politicamente as entidades ruralistas. A consolidação do agronegócio contou com decisivo apoio estatal, através de políticas de financiamento e crédito agrícola, incentivos fiscais, renegociações de dívidas, subsídios à comercialização e investimentos em centros de pesquisa, com destaque à Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa). O Estado agiu ainda por meio de políticas de regularização fundiária, demarcação de reservas, colonização de fronteiras agrícolas e assentamentos de reforma agrária, na tentativa de apaziguar os agudos conflitos no campo decorrentes do avanço do agronegócio, envolvendo fazendeiros, posseiros, ambientalistas, camponeses desterrados, indígenas e outras populações tradicionais.
Em A urbanização brasileira, Milton Santos (1993) trata da expansão demográfica e econômica de pequenas e médias cidades, denominando de “cidades do campo” aqueles espaços urbanos não metropolitanos que medeiam os circuitos produtivos locais com demais setores da economia regional, nacional e global. Dentre as cidades do campo, aquelas que concentram as principais funções nas regiões produtivas agrícolas mais dinâmicas são chamadas por Denise Elias (2011) de “cidades do agronegócio”. Essas categorizações expressam o quanto a modernização do campo e a urbanização ampliada puseram em xeque a própria divisão clássica entre as zonas rural e urbana, como mundos distintos. O acesso à infraestrutura e a serviços de saneamento, luz elétrica, redes de comunicação e informação, coleta de lixo, asfalto, saúde, educação, lazer etc., deixa de ser um critério fundamental do corte entre campo e cidade. Além do mais, a própria migração massiva de caipiras transfigurou as cidades que os acolheram, principalmente nas periferias, ao trazerem consigo suas tradições e formas de sociabilidade camponesa.
Para José Graziano da Silva, as Pesquisas Nacionais por Amostra de Domicílios (Pnad) permitem concluir que já não se pode mais “caracterizar a dinâmica do meio rural brasileiro como determinada exclusivamente pelas atividades agropecuárias” (Graziano da Silva, 2002, p. 49). Por um lado, o domicílio de grande parte dos proprietários e trabalhadores agrícolas está hoje nas cidades; por outro, “milhares de profissionais liberais urbanos […] passaram a olhar os campos como oportunidade também para seus negócios” e “milhões de agricultores por conta própria e até mesmo trabalhadores rurais assalariados não especializados buscam formas de prestação de serviços tipicamente urbanas” (Graziano da Silva, 2002, p. 7).
Vários são os motivos que podem levar os habitantes das cidades a procurarem as zonas rurais como local de moradia e investimento: manutenção de terras da família, saúde e bem-estar, opções mais baratas de terrenos e, não menos importante, a memória afetiva direta ou indireta que conservam da vida campestre. Vale destacar que o incremento das condições de vida na zona rural - principalmente com a chegada de estradas, energia elétrica, rede de telefonia móvel e internet - tem servido de atração para as atuais gerações deixarem a cidade e se fixarem no campo, muitas vezes como um movimento identitário de retorno às raízes caipiras, em condições muito mais favoráveis que aquelas que levaram seus antepassados à migração.
José Graziano demonstra que, convivendo com a moderna produção de commodities, na complexa realidade do meio rural brasileiro há pequenos agricultores marginalizados, próximos ao modo de vida caipira tradicional, lado a lado a um conjunto de novas atividades agropecuárias que se vinculam a nichos específicos de mercado, além daquelas atividades não agrícolas ligadas à moradia e aos setores secundário e terciário da economia (Graziano da Silva, 2002, p. ix). As novas atividades agropecuárias de nichos específicos a que se refere o autor são pequenos negócios que se mostram economicamente viáveis nas novas relações do rural com as cidades, como produções em pequena escala, muitas vezes familiar, relacionadas com a horticultura, floricultura, fruticultura, apicultura, piscicultura, criação e doma de animais, produção de leite e derivados, alambiques, manufaturas de artesanato e produtos culinários diversos, bem como uma ampla gama de formas de turismo rural, tal qual pesqueiros, haras, hípicas, pousadas, restaurantes e chácaras de passeio e eventos.
O que significa ser caipira hoje?
Estamos diante de um mundo rural brasileiro multifacetado e integrado ao urbano. Nesse contexto, a própria compreensão do que é ser caipira é completamente ressignificada. Com a desarticulação das bases materiais da antiga sociedade camponesa, tal como a compreendeu a Sociologia Rural, a ideia de “caipira” passou a ser essencialmente concebida não como um tipo humano específico vivendo em um modo de produção baseado nos mínimos vitais, mas sobretudo em termos culturais e identitários, atualizando a sua definição sociológica tradicional para abranger diferentes relações rurais, suburbanas e urbanas contemporâneas.
Em outras palavras, a cultura caipira deixou de ser um conceito restrito a bairros rurais economicamente organizados em um modo de produção pré-capitalista, passando a designar diversas noções de pertencimento a uma região geográfica, hábitos e costumes, variantes linguísticas, música, culinária, vestimenta, fé, ofícios agropecuários variegados e diferentes formas de contato com meios naturais como o cerrado, pantanal, serras; ou seja, variadas relações com elementos materiais e simbólicos vinculados a uma concepção contemporânea de sertão.
Nota-se, entre as novas gerações, um esforço de resgatar os referenciais socioculturais descontinuados pelos movimentos passados de migração massiva para as cidades e estilhaçamento da civilização caipira tradicional. Há, portanto, uma mudança valorativa de 180 graus, se compararmos com a motivação que levou o caboclo caipira a deixar o seu habitat à procura de melhores oportunidades e horizontes sociais mais amplos, considerando o quanto ele foi pejorativamente destratado nas cidades, diminuído em sua ignorância frente aos preceitos urbanos.
Assim, é comum vermos o enaltecimento daqueles valores de antanho, ou seja, da memória familiar do mundo rural deixado para trás. Aqueles que hoje se identificam com as diversas culturas rurais brasileiras, e a caipira em particular, nelas encontram um manancial de valores que se contrapõe à violência, futilidade, individualismo, ganância, egoísmo e inescrupulosidade modernos. Tal concepção não reflete necessariamente a realidade cotidiana das antigas comunidades rurais, mas organiza representações forjadas retrospectivamente e em oposição ao moderno mundo urbano, a partir de uma essência caipira que possa servir de lastro à ação social de indivíduos contemporâneos.
De toda maneira, a recente valorização da cultura caipira tem encorajado muitas pessoas a buscarem na simplicidade da vida rural um meio efetivo de vida, mudando-se para chácaras, sítios, fazendas ou pequenas cidades interioranas com o objetivo de escaparem do acelerado ritmo de vida urbano. Podemos compreender esse movimento demográfico como uma forma de realizar aqueles valores, reatar o elo com o meio natural e as origens rurais familiares, reparando em suas histórias particulares o desenraizamento promovido pelo êxodo e urbanização.
Nesse contexto, a cultura caipira pode ser atualizada de diferentes maneiras, muitas vezes conflitantes. Algumas das representações mais recorrentes materializam-se nas festas de peão de boiadeiro, cavalgadas, comitivas, exposições agropecuárias, rodeios e outras modalidades esportivas de montaria de animais, uso de caminhonetes e na maneira de se vestir, com chapéu, botina, bota e fivela. Aí, o sujeito caipira torna-se sinônimo de cowboy, em um deslocamento simbólico que propõe a superação da visão pejorativa de pobreza e atraso do caipira, para afirmá-lo como gerador de riquezas para o país. Por outro lado, há aqueles que valorizam o vínculo com a natureza, mais próximos da sustentabilidade ambiental do que da ideia do campo vinculado à sua função propriamente econômica, entendendo como verdadeiro caipira aquele camponês que vive em meio a relações socioculturais antagônicas às impostas pelo agronegócio.
Seja qual for a representação assumida sobre o caipira, podemos concluir que o termo passou a ser usado sobretudo em sua dimensão cultural, sem se restringir a sujeitos vivendo da pequena produção rural voltada à subsistência. Por certo, trata-se de um uso que reconhece e valoriza as suas origens em uma antiga sociedade rústica, mas que atualmente serve de guarda-chuva identitário para maneiras muito distintas de se viver, calcadas em diferentes relações entre campo e cidade. Sob a alcunha, podem se abrigar desde pobres roceiros a grandes latifundiários; de habitantes de zonas rurais afastadas àqueles que passaram toda a sua vida em pequenas e médias cidades ou mesmo em metrópoles da região centro-sul do país, mas que se relacionam com tal matriz cultural.
Como elemento unificador desses diferentes discursos acerca do caipira está a noção de “rústico”, visto não como um adjetivo pejorativo, no sentido de tosco ou grosseiro, mas como um substantivo que denota, de alguma forma, um estado de ser que resiste à plena modernização. É interessante observarmos que o aspecto de rusticidade esteve na origem da conceituação sociológica do caipira feita por Antonio Candido e pelos estudos de comunidade que o precederam, tendo sido tantas vezes empregado o termo “cultura rústica” como sinônimo de “cultura caipira”.
Dessa maneira, afirma-se aqui um deslocamento conceitual: a ideia de “caipira” perde a sua importância na Sociologia Rural - à medida em que se consolidam outras formas de ocupação do campo, desarticulando os bairros rurais e levando a grande maioria dos seus habitantes a deixarem de ser sitiantes para se tornarem migrantes nas cidades -, para adquirir a sua relevância em diversos estudos culturais interdisciplinares2 - e em pesquisas no âmbito da Sociologia da Cultura, em particular, que revisitam as obras clássicas sobre o mundo caipira, no intuito de compreender os seus ecos identitários nos dias de hoje.
De fato, essa ambivalência do conceito sociológico de caipira - ao mesmo tempo, um modo de vida específico e uma ampla matriz cultural - já estava presente no estudo seminal de Antonio Candido sobre os bairros rurais paulistas, como ele mesmo deixa claro em uma entrevista realizada quatro décadas após a publicação da primeira edição de Os parceiros do Rio Bonito, na qual afirmou:
As pessoas da região que eu estudei me dizem que hoje já não existe mais nada do que eu vi. Eu então sou levado a crer que a cultura caipira que eu conheci é uma cultura extinta. Agora, as sobrevivências dela estão aí. […] Eu estudei a cultura caipira durante muitos anos, mas queria observar o seguinte: essa é a cultura dentro da qual eu fui criado. De modo que ao falar da cultura caipira, eu sou uma pessoa civilizada, de cidade, mas eu estou também dentro de valores que foram os valores do mundo no qual eu me formei. De modo que eu queria deixar essa ressalva final: eu não falo do mundo caipira apenas como um estudioso, eu falo do mundo caipira como um participante (Candido, 2001).
A título de conclusão, como uma amostra do que hoje são considerados elementos contemporâneos da cultura caipira, podemos citar sotaques linguísticos, técnicas de culinária e gastronomia regional, fogão a lenha, galinhas criadas soltas e seus ovos, cachaça, cigarro de palha, ervas medicinais, construções de pau a pique, decoração rural, artesanatos diversos, moda country, estrada de terra, caminhonetes e tratores, pescaria, caça, criação, doma e montaria de animais, rodeios e outras modalidades esportivas com equinos e bovinos, comitiva, cavalgada, berrante, música sertaneja, sanfona e viola caipira, desafios, cantos, danças e folguedos diversos, festas de santos, quermesse, romaria, crenças e superstições populares, causos, brincadeiras infantis, eventos de produtores rurais, lida agropecuária de toda ordem, habilidades manuais que remetem à produção direta dos meios de vida, costumes simples, valores morais tradicionais, valores alternativos emergentes de proteção ecológica e ambiental e, em geral, o contato com o interior e o meio natural do centro-sul brasileiro.
Referências Bibliográficas
- Amaral, Amadeu. (1976), O dialeto caipira São Paulo: Hucitec.
- Candido, Antonio. ([1964] 2001), Os parceiros do Rio Bonito: estudo sobre o caipira paulista e a transformação dos seus meios de vida São Paulo: Editora 34.
- Candido, Antonio . Os caipiras por Antonio Candido (2001), Direção: Isa Grinspum Ferraz. Série Intérpretes do Brasil / TV Cultura e Arte. São Paulo: Cinematográfica Superfilmes.
- Doria, Carlos Alberto & Bastos, Marcelo Corrêa . (2018), A culinária caipira da Paulistânia: a história e as receitas de um modo antigo de comer São Paulo: Três Estrelas.
- Durham, Eunice. (1978), A caminho da cidade São Paulo, Perspectiva.
- Elias, Denise. (2011), “Agronegócio e novas regionalizações no Brasil”. Revista Brasileira de Estudos Urbanos e Regionais Belo Horizonte, 13 (2): 153-167, novembro.
- Ferreira, Antonio Celso. (2002), A epopeia bandeirante: letrados, instituições, invenção histórica (1870-1940) São Paulo: Editora Unesp.
- Franco, Maria Sylvia de Carvalho. ([1969] 1997), Homens livres na ordem escravocrata São Paulo: Editora da Unesp.
- Graziano da Silva, José. (2002), O novo rural brasileiro Campinas: Unicamp.
- Guerra, Luiz Antonio. (2021), Mestres de ontem e de hoje: uma sociologia da viola caipira 297 p. Tese (Doutorado) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. São Paulo, 2021.
- Jackson, Luiz Carlos. (2001), “A tradição esquecida: estudo sobre a sociologia de Antonio Candido”. Revista Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, 16 (47): 82-98, outubro.
- Lima, Nísia Trindade. (1997), “Jeca Tatu e a representação do caipira brasileiro”. XXIV Encontro Anual da Anpocs Caxambu, 1997 outubro.
- Martins, José de Souza. (2001), “O futuro da Sociologia Rural e sua contribuição para a qualidade de vida rural”. Estudos Avançados, São Paulo, 15 (43): 31-36, setembro/dezembro.
- Monteiro Lobato, José Bento Renato. ([1918] 2004), Urupês São Paulo: Brasiliense.
- Queiroz, Maria Isaura Pereira. (1973), Bairros rurais paulistas: dinâmica das relações bairro-rural-cidade São Paulo: Duas Cidades.
- Santos, Milton. (1993), A urbanização brasileira São Paulo: Hucitec .
- Vilela, Ivan. (2013), Cantando a própria história: música caipira e enraizamento São Paulo: Edusp.
- Willems, Emilio. ([1944] 2009), “O problema rural brasileiro do ponto de vista antropológico”. Tempo Social 1a edição 1944. São Paulo, 21 (1): 187-210, junho.
-
1
Dados da Aneel, disponíveis em https://www2.aneel.gov.br/aplicacoes/atlas/aspectos_socioeconomicos/11_2_1.htm, consultados em 03/02/2022, e do IBGE, disponíveis em https://www.censo2010.ibge.gov.br, consultados em 03/02/2022.
-
2
Grande parte dos estudos sobre a cultura caipira tem sido levada a cabo por pesquisas interdisciplinares no âmbito da música, como a obra de referência de Ivan Vilela (2013). E ainda, sobre a culinária caipira, conferir Carlos Alberto Doria e Marcelo Corrêa Bastos (2018).
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
26 Set 2022 -
Data do Fascículo
May-Aug 2022
Histórico
-
Recebido
04 Fev 2022 -
Aceito
30 Maio 2022