Open-access Elites em disputa por mercados populares. Concorrência e confiança na economia (i)legal de veículos

Elites in dispute for popular markets: competition and trust in the (il)legal economy of vehicles

Resumo

O artigo analisa as disputas entre elites para expansão de mercados ligados aos veículos rumo a setores populares. Tomamos dois casos como entrada empírica: o setor de leilões de carros usados, que opõe elite tradicional e elites financeiras globais; e as disputas entre seguradoras tradicionais e elites emergentes ligadas às associações de proteção veicular. Argumentamos que a recorrência do uso do termo confiança nesses conflitos evidencia a centralidade do crime, como fato ou ameaça, para a construção e funcionamento de mercados legais de veículos e produtos a eles ligados. O artigo é baseado em entrevistas e na observação participante em eventos; conferências e entrevistas disponíveis na internet; materiais secundários produzidos pelos atores engajados nas disputas; e projetos de lei e legislações.

Palavras-chave: Elites; Mercados populares de carros; Confiança; Leilões; Seguros

Abstract

The article analyzes the disputes between elites for the expansion of markets linked to vehicles towards low income sectors. We take two cases as empirical input: the used car auction sector, which opposes traditional elites and global financial elites; and disputes between traditional insurers and emerging elites linked to vehicle protection associations. We argue that the centrality of trust in these conflicts highlights that crime, as a fact or threat, is central to the construction and functioning of vehicle legal markets and related products. The article is based on conferences, testimonies and interviews available on the internet, materials produced by actors engaged in disputes and draft laws and legislation.

Keywords: Elites; Car low income markets; Trust; Auctions; Insurance

Introdução

Dados de 2021 mostram que dos 38.235.585 veículos circulantes no país, 18,2% tinham entre quatro e dez anos de fabricação e 17,8% tinham entre 11 e 20 anos1. Adicionalmente, apenas aproximadamente 30% dessa frota de veículos brasileira é segurada, sendo que o principal gargalo para o mercado de seguros está em alcançar os donos de veículos com mais de cinco anos de uso e os grupos com renda mais baixa (Fromm e Motta, 2021 e 2022). Esses veículos usados e suas partes são comercializados em estabelecimentos atuantes em economias populares, tais como leilões, garagens de revenda, oficinas mecânicas e desmanches.

Embora os custos nas transações individuais dos mercados populares tendam a ser mais baixos, por serem muito numerosas, em conjunto e quando centralizadas, elas se tornam muito rentáveis. Alguns autores já vêm demonstrando que a expansão das fronteiras de investimento e acumulação em direção a mercados populares está no centro do capitalismo global. Segundo mostram os trabalhos de Roy (2010) na Índia, Rangel (2021) no Brasil e Elyachar (2002) no Egito, especialmente a partir dos anos 2000, a pobreza e a informalidade passaram a estar no centro dos esforços para a dinamização de mercados globais financeirizados, tornando-se insumo e ativo a serem mobilizados através da expansão de produtos financeiros, microcrédito e estratégias de incentivo ao microempreendedorismo. A ênfase desses trabalhos encontra-se em grandes projetos de agências multilaterais e/ou na relação entre grupos empresariais e o Estado, na sua interface com mercados populares.

Entretanto, pouco se discutiu sobre a dimensão das disputas entre elites econômicas instituídas e instituintes2 em seus esforços para expandir e/ou preservar seus negócios voltados a consumidores mais pobres. Neste texto procuramos avançar sobre essa lacuna, descrevendo e analisando essas disputas entre dois grupos distintos de elites, competindo pelos lucros dispersos por uma enormidade de atores populares nas margens, para concentrá-los no centro (Fromm e Motta, 2021; 2022). Ao longo de pesquisas nos últimos sete anos3, temos observado que os circuitos econômicos em torno dos veículos são um posto de observação privilegiado para compreender as conexões entre elites e pobres e circuitos centrais e periféricos, bem como a produção e reprodução de desigualdades e violências (Feltran, 2022). De modo ainda mais específico, os circuitos leiloeiro e segurador ligados a veículos nos permitem visualizar e problematizar as disputas entre elites e a expansão rumo a mercados populares (Pimentel e Pereira, 2022). Por isso, esses dois setores serão tomados como entrada empírica deste artigo.

Na última década, o circuito leiloeiro no Brasil tem sido palco de disputas sobre a regulação da atividade, uma vez que grupos leiloeiros multinacionais ameaçam o monopólio de elites tradicionais. Já o setor de seguros de automóveis no Brasil está no centro de batalhas legislativas e jurídicas contra os chamados “seguro paralelo” e “seguro pirata”. Estes são vendidos por associações mutualistas de proteção veicular a preços mais baixos que os oferecidos pelas seguradoras e incorporam clientes “excluídos” por elas - inadimplentes, carros oriundos de leilão, pessoa de baixa renda ou sem comprovação de renda.

Colocar esses casos lado a lado nos permite avançar na compreensão do modo como as disputas entre elites instituintes e instituídas se dão, seus efeitos e a relação com a conformação e modos de funcionamento de mercados, especialmente aqueles ligados a consumidores pobres. Isso porque os conflitos analisados não são um fenômeno isolado ou uma exceção dos circuitos econômicos em tela. Desde a última década, têm sido cada vez mais recorrentes disputas de mercado entre elites econômicas instituídas que veem seus interesses ameaçados por elites instituintes e por inovações tecnológicas. Evidentemente, os conteúdos e correlações de força vão variar segundo as características de cada mercado, os contextos regulatórios, os atores envolvidos e seus capitais político e econômico. Mas pensemos no caso das plataformas de transporte (Uber, Lift, 99) e taxistas em todo o mundo; empresas imobiliárias (em geral associadas a famílias de elites tradicionais) e aplicativos de anúncio para compra, venda e aluguel de imóveis em grandes centros urbanos; ou ainda a disputa entre associações de entregadores, empresas tradicionais de entregas e os aplicativos de entrega (Ifood, Rappi, Zé Delivery).

As disputas aqui analisadas são mais um exemplo desse fenômeno e dos diversos efeitos político-econômicos que desencadeia. Entretanto, tanto nos casos das disputas entre leiloeiros tradicionais e multinacionais, quanto no das seguradoras e as associações de proteção veicular (apvs), observamos uma especificidade: um esforço deliberado em demonstrar confiança e segurança de seus serviços e modos de operar. Em um primeiro aspecto, a confiança será mobilizada para aludir à dimensão das regras do jogo e da regulação econômica estatal que garanta uma concorrência justa. Em uma segunda acepção, a confiança vai se referir à segurança a ser oferecida aos seus consumidores. Ou seja, aqui nos interessa perscrutar os sentidos atribuídos pelos diferentes atores envolvidos nessas duas disputas à noção de confiança.

Há um amplo debate nas ciências sociais acerca do tema da confiança, seja em teorias sobre a modernidade (Giddens, 1991; Beck, 2010), em discussões sobre laços e redes sociais (Granovetter, 1985), reflexões sobre as fontes e condições para a emergência da confiança a partir de estudos empíricos (Gambetta, 1988; Gambetta e Heather, 2005; Hart, 1988; Cook; Levi e Hardin, 2009; Costa, Fernandes e Gonçalves, 2017) e escritos que se voltaram para a definição do conceito (Gambetta, 1988; Dasgupta, 1988; Cook; Levi e Hardin, 2009). Mas aqui, propomos uma discussão em outra direção, qual seja, como o uso do termo confiança, nos conflitos analisados, aparece associado de modo recorrente ao crime, seja nas demandas em torno da regulação formal desses mercados informais-ilegais ou nas acusações morais feitas aos concorrentes. Isso porque os mercados ligados a automóveis têm, invariavelmente, que lidar com dinâmicas ilegais, ou melhor, com a ameaça ou a iminência delas, na forma de fraudes, golpes, roubos e furtos ligados à complexa economia dos carros (Feltran, 2022).

Nesta direção, os casos analisados nos permitem vislumbrar como, atrelada à ilegalidade concreta ou iminente, há a constituição de mercados de proteção cada vez mais profissionalizados e tecnológicos, os quais se organizam ao redor da economia informal-ilegal de veículos e congregam uma série de instrumentos e atores (seguradoras, websites, aplicativos, rastreadores, leiloeiros, blockchain, mecanismos de cybersecurity, entre outros). Seus negócios giram em torno da mercantilização da proteção e da confiança entre os atores envolvidos nas transações econômicas (sejam empresas, clientes ou agências reguladoras).

Seguindo a perspectiva de Onto (2017), entendemos que o fato de a confiança estar no centro dessas disputas tem efeitos na própria constituição e funcionamento desses mercados. Lançar mão da luta contra o crime para garantir nichos de mercados e a expansão de seus negócios revela como as dinâmicas criminais e sua iminência estão intimamente conectadas com a propulsão de mercados legais. Essa conexão ocorre não só em termos de se nutrirem e funcionarem mutuamente, conforme um conjunto de trabalhos tem discutido (Feltran, 2020; 2022; Telles, 2010; Hirata, 2018; Fromm e Motta, 2022), mas também pelos modos como os mercados formais se imaginam, se organizam e funcionam (Onto, 2017; Garcia, 1986). O crime e sua iminência se constituem, portanto, como um propulsor de mercados e formas de acumulação, ocupando o centro dos modos de organização e funcionamento de mercados legais, financeiros e globalizados. Roubo de carros, fraudes em leilões, leilões falsos, seguradoras ou associações fantasmas são uma preocupação para as elites, sejam elas tradicionais, financeiras globais ou emergentes, instituídas ou instituintes. Por isso, o setor leiloeiro e o de proteção patrimonial de veículos têm construído um mercado de proteção e segurança privada em torno do mercado de carros em si, mas também de produtos a eles associados, como os seguros.

A pesquisa empírica apresentada neste artigo foi realizada pelos autores entre os anos de 2017 e 2022. Diante da complexidade desse fenômeno, recorremos a estratégias etnográficas móveis e a uma multiplicidade de fontes: entrevistas em profundidade realizadas pelos autores com atores do setor de seguros e leiloeiro; observação participante em eventos promovidos por associações e grandes companhias; sites, vídeos de conferências e eventos on-line, matérias jornalísticas, materiais produzidos pelos próprios atores e entrevistas públicas disponíveis em mídias abertas. A partir desses materiais e da articulação entre dados empíricos primários e secundários, na próxima seção, descrevemos os dois casos em tela. Nas terceira e quarta seções, discutimos como a noção de confiança vai se referir a duas dimensões dessas disputas: o primeiro sentido é relativo à confiança nas regras e na garantia da concorrência justa, e o segundo refere-se à confiança e segurança a serem oferecidas aos consumidores. Ao final, apresentamos breves notas conclusivas.

Elites em disputas: os casos em tela

O caso dos leilões: leiloeiros tradicionais brasileiros versus leiloeiras multinacionais

Comprar um carro novo é uma dificuldade para os mais pobres. Um levantamento realizado com dados da pnad mostrou que 36,6% da população brasileira com algum tipo de trabalho recebia até um salário mínimo no primeiro trimestre de 2022 (Vieceli, 2022). No mesmo período, um carro popular novo custava, em média, 60 salários mínimos. Leilões são uma alternativa essencial para a venda, distribuição e consumo de veículos usados para as classes populares, devido aos seus preços mais acessíveis.

Segundo dados da Associação da Leiloaria Oficial do Brasil (Aleibras), em 2020, o setor de leiloaria movimentou cerca de 70 bilhões de reais no Brasil, dos quais 15 bilhões estavam relacionados à comercialização de veículos. Entretanto, em comparação com outros países, as aquisições em pregão no Brasil são muito baixas, totalizando cerca de 10% do que é posto à venda nos pregões.

Ainda que o percentual de vendas em pregões seja baixo, a atividade leiloeira no Brasil é muito rentável para seus operadores, que são um grupo muito restrito. A principal lei que regula a atividade leiloeira no Brasil, conhecida como “Lei do Leiloeiro”, é o Decreto de Lei de 1932, que permanece praticamente inalterado até os dias de hoje4. Segundo o Decreto, leiloeiros são pessoas físicas que exercem uma “função pública” intransferível em seus nomes, não podendo atuar como empresários. Leilões são, então, meios de transação formais e legais envolvendo leiloeiros individuais. E de onde viriam os lucros dos leiloeiros? A legislação estabelece uma taxa de 5% sobre o valor pago no bem, a ser paga pelo comprador, como a taxa do leiloeiro.

Ou seja, o setor leiloeiro no Brasil é caracterizado por movimentar volumosos recursos, os quais estão concentrados nas mãos de poucos operadores; além disso, é um setor que tem grande potencial de expansão, especialmente quando se trata de veículos. Por essas razões, o setor de leilão de veículos vem chamando a atenção de elites financeiras globais, entre elas a Car Auction Corp5. Fundada em 1982, a multinacional americana atua em onze países, administrando mais de duzentos pátios. Somente no Brasil, onde atua desde 2012, é responsável por cerca de catorze pátios, distribuídos entre estados das regiões Sul, Sudeste e Centro-Oeste. Não por acaso, foi no ano seguinte que a atividade de leiloaria passou por mudanças importantes em sua legislação.

O início de suas atividades ocorreu em meio a contestações por parte de organizações leiloeiras nacionais. No geral, as imputações giram em torno da forma de operacionalização e regulação da atividade em território nacional. Baseado na Lei do Leiloeiro de 1932, o setor tradicional defende nas denúncias que a atividade da leiloaria é personalíssima, algo que estaria sendo usurpado pela Car Auction Corp. Por isso, representantes do setor brasileiro de leilões alegam que a atuação de empresas estrangeiras se dá em meio a “confusões jurídicas”. Isso porque a elite leiloeira tradicional argumenta que a empresa multinacional estaria contratando leiloeiros para realizarem as vendas mediante o recebimento de um preço fixo e abaixo dos 5% praticados.

Em entrevista à imprensa, o ceo da companhia internacional no Brasil disse, em defesa da atuação da empresa no país, que “Contratamos leiloeiros que cedem a comissão, o que é suportado pela lei, e pagamos a eles um valor fixo por leilão”. A companhia internacional de leilões argumenta que a própria Lei do Leiloeiro de 1932 respaldaria sua atuação no país, na medida em que atribui exclusivamente aos leiloeiros a venda em hasta pública ou pregão público, isto é, a divulgação básica e a condução do leilão. Mas outras condutas passam a ser necessárias para que essa atividade final ocorra, e a atuação da companhia estaria circunscrita a essas outras atividades-meio.

A elite leiloeira tradicional, organizada em sindicatos e associações nacionais e regionais, tem defendido que a flexibilização das normas criaria um ambiente de concorrência desleal. Especialmente através de matérias veiculadas no jornal produzido pelo próprio setor leiloeiro tradicional há mais de duas décadas, a categoria tem afirmado que essa flexibilização abriria margem à operação de estelionatários e sites falsos, uma vez que expandiria o mercado, que se tornaria, por isso, menos controlável. A leiloeira multinacional, por sua vez, defende que sua entrada no país “incomodou oligopólios já estabelecidos”. As práticas de associações brasileiras estariam sendo danosas ao mercado, onde todos podem lucrar.

Esses embates aconteceram ao longo da última década e envolvem processos em Juntas Comerciais de estados brasileiros, assim como denúncias encaminhadas a órgãos responsáveis pela política de defesa da concorrência econômica - como o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade). Além disso, articulações junto ao poder legislativo têm sido empreendidas tanto pela associação de leiloeiros brasileiros quanto por empresas multinacionais, representadas pela Car Auction Corp.

O caso dos seguros: seguradoras tradicionais versus associações de proteção veicular

Sempre foi praticamente impossível para os mais pobres, no Brasil, comprar seguros de grandes instituições financeiras. São as classes médias e altas, proprietárias de carros novos, os principais clientes das seguradoras de automóveis. No entanto, há muitos veículos que circulam pelas ruas sem a contratação de uma apólice de seguro. Seguradoras estimam que eles representam cerca de 70% da frota nacional. Ao longo da última década, começaram a surgir produtos de proteção alternativos para essa demanda não incorporada pelas seguradoras, tal como empresas de rastreamento e monitoramento, de recuperação de veículos roubados, de segurança privada etc. Essas empresas passaram a oferecer serviços e, sobretudo, formas de ‘seguro’ para as parcelas mais pobres da população. Tais grupos têm optado, de maneira crescente nos últimos anos, por comprar seguros de propriedade de associações locais, muitas vezes administrados por indivíduos de suas próprias comunidades.

A chamada proteção veicular passou a ser um produto conhecido nos grandes centros urbanos, principalmente nas favelas e periferias de diversos estados. Esse tipo de proteção de veículos é vendido pelas chamadas “associações mútuas” espalhadas por todo o país, mas concentradas sobretudo em São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais. Essas associações têm atuado de maneira irregular e na intersecção entre o cooperativismo e o mundo empresarial. Convém esclarecer uma diferença importante entre o serviço de proteção oferecido pelas seguradoras e o das apvs. Em uma apólice de seguro, o risco, conforme especificado no contrato, é transferido para a seguradora mediante o pagamento do prêmio. Já as apvs estabelecem contratos de responsabilidade mútua, ou seja, o cliente se torna “sócio” do risco. Assim, os membros da associação dividem os custos de sinistros em um determinado período.

Iniciar uma apv é algo simples, assim como não há grandes dificuldades em encerrá-la quando não é mais possível pagar os riscos que assumiram, mesmo sem ressarcir os prejuízos de seus cooperados. Nessas situações, seus membros entendem que haviam comprado um seguro e que a associação deveria indenizar seus danos. Porém, dada a legislação vigente6, não podem ser considerados consumidores, porque são enquadrados como participantes de uma atividade econômica de benefício mútuo e sem fins lucrativos. Enquanto cooperativas, as apvs não poderiam ter objetivo de lucro e deveriam atuar em benefício comum. Na prática, como não há fiscalização, a gestão dos recursos do fundo fica a critério de seu ‘dono’ ou ‘criador’. Tampouco as apvs poderiam oferecer seu contrato para pessoas desconhecidas e externas à comunidade de solidariedade. Porém, cada vez mais, é possível ver grandes outdoors nas ruas e anúncios nas redes sociais oferecendo os serviços de proteção veicular.

A expansão desse mercado informal em direção aos negócios do mercado de seguros tradicional tem preocupado empresários do setor e desafiado a hegemonia das elites instituídas, especialmente no setor de proteção de automóveis. Os preços de proteção dos veículos são em média 70% inferiores às apólices de seguro típicas oferecidas pelas grandes seguradoras. Algumas cooperativas incluem até mesmo a instalação gratuita de rastreamento de veículos, seguro de vida e assistência funerária como parte dos contratos. Além de menores custos e serviços suplementares, ao contrário das seguradoras tradicionais, essas associações não realizam verificações de crédito sobre os membros. Mesmo aqueles considerados perfis de risco inaceitavelmente alto pelas seguradoras tradicionais (os altamente endividados, inadimplentes, motoristas de caminhões e carros velhos, moradores de bairros com altas taxas de roubo etc.) são bem-vindos nas cooperativas. Dados os preços mais acessíveis e a facilidade de aquisição dos produtos, tais associações têm crescido e se espalhado pelos diversos estados do país, incorporando cada vez mais parcelas das classes médias.

Enquanto as associações mútuas se autodescrevem como mais inclusivas e mais democráticas, pois aceitam os “rejeitados” e os “excluídos”, e oferecem proteção àqueles que são mais “vitimizados” e “vulneráveis”, as seguradoras tradicionais se posicionam como vítimas de ilegalidade e “pirataria”.

Confiança e regulação: o problema da concorrência

Tanto nas disputas de elites do setor leiloeiro quanto nos conflitos entre elites acerca do seguro de veículos, é evidente a centralidade das reivindicações em torno das regulações das atividades, para garantir a justa concorrência. Como veremos, o que significa justiça e como garanti-la vai variar de acordo com as especificidades de cada disputa e das posições de poder de cada ator.

Entre a elite leiloeira tradicional (instituída) e leiloeiras multinacionais (instituintes), há uma disputa em torno da própria Lei do Leiloeiro. Como dito antes, o aumento da operação da multinacional de leilões Car Auction Corp em território nacional tem levado atores ligados às elites tradicionais a acusá-la de funcionar à margem da lei. Uma das denúncias formais ocorreu ainda em 2019, apresentada à Junta Comercial do estado de Minas Gerais (jucemg), em face da atuação de um leiloeiro em 2014. O Sindicato dos Leiloeiros daquele mesmo estado encaminhou a denúncia de que o leiloeiro haveria delegado suas funções públicas e atividades privativas à companhia internacional, pessoa jurídica, mediante o recebimento de um valor fixo e não da taxa de 5%. Caso fosse provada alguma irregularidade em sua conduta, o leiloeiro poderia perder o direito de exercer a profissão. O encaminhamento, todavia, foi favorável ao leiloeiro, e a denúncia do sindicato considerada improcedente. A decisão sustentou-se na interpretação de que a atividade exclusiva do leiloeiro seria somente a venda pública, sendo possível que ele fosse contratado por terceiros para desempenhar sua atividade específica. No jargão utilizado, decidiu-se que o leiloeiro não teria delegado sua “atividade-fim”, essa sim personalíssima, mas sua “atividade-meio”.

A decisão gerou controvérsias, que foram documentadas em jornais e revistas que representam e/ou são produzidos pela elite tradicional leiloeira. Um exemplo é uma manchete de 2021, publicada no jornal dos leiloeiros tradicionais. Na edição em questão, foram listados atores a quem não interessa a “Lei do Leiloeiro”. A multinacional de leilões foi citada junto com estelionatários que praticam fraudes e o até então diretor do Departamento de Registro Empresarial e Integração (Drei), órgão regulador das Juntas Comerciais no plano técnico. Para os editores desse número, a participação de empresas em leilões desorientaria a finalidade legal dos leilões, já que estaria usurpando a função pública de leiloeiros. Na defesa da manchete, o jornal afirma que a multinacional teria respaldo de sua atividade em “interpretações absurdas” da Lei feitas pelo Drei. Em defesa da manutenção de uma regulação mais restritiva, argumentam que isso permitiria a atuação de empresas que não estariam sob o controle e regulação estatal, beneficiando estelionatários e sites falsos de leilões on-line.

A Car Auction Corp, por sua vez, defende-se com base nas Instruções Normativas de 2013 e de 20197, que permitem a empresas privadas exercerem atividades acessórias como apoio, guarda, logística e organização da leiloaria. Ou seja, defende que a flexibilização das normas e critérios restritivos da Lei do Leiloeiro, traduzidos nas Instruções Normativas, seja garantida e, assim, novos atores possam atuar no mercado leiloeiro nacional. Em entrevista a um importante meio de comunicação, o ceo da empresa no Brasil ressalta que o modelo alternativo pode assustar outros operadores, “mas tem espaço para todos no mercado”. Associações brasileiras de leiloeiros queixam-se, ainda, de competirem com uma multinacional, chamada de “big shark”. Haveria concorrência desleal, já que se trata de uma empresa de capital internacional, com grande estrutura e experiência no mercado.

Em reação à resistência dos leiloeiros tradicionais, a Car Auction Corp denunciou ao Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) a existência de condutas anticompetitivas de Associações e Sindicatos de leiloeiras brasileiras. O órgão estatal é acionado, então, como meio garantidor das práticas de livre concorrência no mercado adotadas no setor. Segundo a representação da companhia internacional, a falta de competitividade estaria implicando a formação de cartéis e abuso de poder econômico no modo de operação desempenhado por leiloeiras brasileiras. A concorrência desleal, na visão da multinacional de leilões, estaria no modo de operação de leiloeiros brasileiros, que estabelecem entraves ao seu funcionamento. Face às denúncias da Car Auction Corp em janeiro de 2022, o Cade instaurou Inquérito Administrativo para apurar práticas anticoncorrenciais no setor leiloeiro.

Confiança na regulação e concorrência desleal também estão na pauta dos conflitos entre atores formais e informais que disputam as definições das fronteiras entre os seguros “legais” e os “piratas”. Uma das frentes dessa batalha tem sido o legislativo federal. Em 2016, um congressista e pastor evangélico elaborou um projeto de lei para formalizar e regular a proteção veicular e protegê-los da “perseguição” da Superintendência de Seguros Privados (Susep). Entretanto, após um debate polêmico, outro congressista, aliado dos corretores de seguros, foi nomeado relator do projeto de lei e rapidamente recomendou sua desaprovação. O projeto de lei foi, então, arquivado. Em resposta, um congressista ligado aos corretores de seguros rapidamente propôs um projeto de lei próprio que criminalizaria as atividades de tais associações. Esse projeto de lei propunha que as associações estivessem sujeitas aos mesmos padrões e regulamentos impostos às grandes seguradoras tradicionais pela Susep, o que tornaria as pequenas associações mútuas economicamente inviáveis. Até o momento o projeto não foi aprovado.

O fato é que, diante da expansão da proteção veicular, os atores da indústria de seguros tradicional a acusam de ser uma atividade paralela ou marginal que só funciona onde a fiscalização está ausente e que instaura uma concorrência desleal porque as cooperativas não estão sujeitas às mesmas regras que as companhias de seguros e, na prática, tampouco atuariam enquanto cooperativas. A fala do presidente da Organização das Seguradoras Tradicionais (ost) elucida o argumento do setor segurador tradicional:

O seguro tem […] regras de acesso ao mercado e regras de exercício depois de acessado o mercado. Ambas as regras podem ser divididas em regras de capital […] ele tem que constituir as reservas técnicas. É preciso dizer que são as garantias, efetivamente, que fazem com que as seguradoras em estado de previdência privada […] possam, efetivamente, cumprir com aquilo que prometeram. […] Mas não é só isso, não é só dinheiro, é reputação, é responsabilidade. […] Os administradores têm que provar que tem capacidade técnica, administrativa, operacional para poder oferecer isso tudo. Os administradores estão sujeitos a penalidades […]. Ora, nas associações não existe nada disso. Nada. Absolutamente nada. Sequer pagam impostos. Então […] não é possível que um seguro que tem todos os atributos necessários de capital, de responsabilização, de mobilização de pessoas, de pagamento de impostos, de respeito às leis trabalhistas e tudo mais que regula a atividade privada, possa oferecer um custo para quem nem um tostão é necessário colocar. Existe uma assimetria absurda de custo regulatório, de custo de reputação, e de custo de funcionamento mínimo para atendimento ao consumidor que não há que se comparar uma coisa com a outra. De forma alguma você tem termos de comparação com relação a isso. (Presidente da OST em Live sobre o mercado irregular de seguros).

O cerne do argumento das seguradoras tradicionais é que elas suportam altos custos operacionais para cumprimento das leis vigentes. Custos aos quais as associações não estão submetidas, dada a ausência de regulação. Elas argumentam ainda que esses custos têm um impacto significativo no valor de seus produtos, tornando-as menos competitivas em comparação com o mercado paralelo. Mas a fala do presidente da ost chama atenção para o fato de que a demanda por maior atuação do Estado não se refere apenas à maior fiscalização e punição das apvs. De fato, as denúncias da ost assumem que a operação das associações mutualistas é uma “falha de mercado” que precisa ser corrigida não apenas com maior fiscalização e punição, mas também com flexibilização das regras para as seguradoras, a fim de garantir condições justas para a concorrência, corrigindo “uma assimetria absurda de custo regulatório”, como esclareceu o presidente.

Um analista técnico do setor de seguros explica sobre as investidas do setor de seguros para a flexibilização da regulação:

Porque grande parte do problema [das associações mutualistas] vem de uma demanda não atendida. […] A Susep [Superintendência de Seguros Privados] tem uma agenda de reformas infralegais bastante fortes que, como consequência, está uma diminuição do espaço para esse mercado irregular. O que a gente objetiva muito com essas reformas infralegais? A gente quer trazer inovação para o mercado, simplificação da regulação, redução desse estoque regulatório, então diminuir a quantidade de regras… […] deixar mais liberdade, mais flexibilidade para o mercado [segurador] inovar, simplificar as nossas regras. Quais os benefícios que a gente espera obter com essa agenda de simplificação? Atrair novos investimentos, trazer novos atores, novas seguradoras, mais competição, trazer novas tecnologias, reduzir custos, enfim, tornar o seguro regular muito mais competitivo vis-à-vis esse seguro irregular. Aí você reduz o espaço para o seguro irregular. […] o consumidor, ele vai até pagar um pouquinho a mais, se for um pouquinho realmente, pelo produto oficial. Ele não vai comprar o pirata. Ele compra o pirata quando a diferença de preço é muito significativa. (Analista do órgão ligado à regulação de seguros).

Tanto no caso das disputas do setor leiloeiro quanto naquele entre seguradoras e APVS, fica evidente uma demanda de atuação do Estado, seja no sentido de manter a regulação restritiva, como demandam os leiloeiros tradicionais; flexibilizar para facilitar a entrada de novos atores no mercado, como querem as leiloeiras multinacionais e os representantes das associações mutualistas; intensificar a fiscalização para punir atores que atuam em suas margens ou brechas, como deseja o setor segurador tradicional; ou flexibilizar as regras para permitir o controle e a hegemonia em um mercado, como também demandam as seguradoras tradicionais. O ponto a ser sublinhado aqui é que as reivindicações por uma concorrência justa ou até mesmo para funcionamento do livre mercado não prescindem das reivindicações pela demanda da atuação estatal. Ao contrário do que uma leitura apressada supõe, no neoliberalismo não se trata de menos Estado e mais mercado. Como propõem Dardot e Laval (2014) sobre a relação entre mercado e Estado no neoliberalismo, o que temos visto é uma demanda crescente do Estado para garantir que o mercado, sua lógica e seus mecanismos funcionem sem entraves. Com efeito, cada um dos atores demanda que o Estado produza regulações e sanções para a criação de um ambiente de mercado confiável e para que o mecanismo da concorrência legítima funcione plenamente, ainda que suas definições de justiça e legitimidade possam variar e divergir.

Confiança e consumidores: o problema da fraude e da segurança

Tanto nas disputas do setor leiloeiro como naquelas do setor segurador, as acusações e defesas entre as partes sobre a importância da confiança nas regras não se referem apenas à criação de um ambiente de concorrência justa. As demandas pela atuação do Estado na regulação desses mercados também estão ligadas aos discursos sobre defesa do consumidor. Reivindicar maior fiscalização, restrição ou flexibilização nesses mercados seria uma forma de garantir a segurança do consumidor e a construção de uma relação de confiança entre os clientes e os produtos e serviços oferecidos por esses atores.

No caso dos leilões, a associação entre a construção da confiança junto ao consumidor e a demanda por regulação dessa atividade está diretamente relacionada com as transformações tecnológicas que têm atingido o setor nas últimas décadas. No começo dos anos 2000, os leilões on-line eram um mercado novo e visto com desconfiança. Hoje, as vendas em leilões já ocorrem com predominância no ambiente digital, o que permitiu a ampliação delas e dos lucros. Entretanto, o mundo da internet traz desafios, já que “a internet está combalida pela falta de verdade”, como afirma Renato. A questão que se impõe aos leiloeiros no momento é garantir mais transparência e segurança nas transações, fazendo frente ao aumento de fraudes que utilizam nomes de leilões conhecidos e sites falsos de leilões. Estima-se que “o número de sites falsos que aplicam golpes de leilão de veículos aumentou 900% no primeiro semestre deste ano [2020], em relação ao mesmo período do ano passado”8.

Figura 1
Alerta de fraude em página de tradicional organização leiloeira

A leiloeira da família de Renato, uma das maiores da América Latina com foco na comercialização de veículos, se posicionou oficialmente em seus sites e redes sociais sobre os golpes. (Figura 1) Conforme reiterado nas publicações da leiloeira, muitos desses sites se passavam pela Orlowski Leilões Ltda., com nomes que faziam alusão a ela. Outros possuíam vendedores que se passavam por representantes da organização. Como afirmam, os fraudadores agiriam “com o intuito de se apropriarem da credibilidade de quem está há mais de 40 anos no mercado de leilões”. A construção da confiança dos clientes na organização leiloeira, conforme nos disseram, está relacionada com a tradição e a qualidade de um serviço prestado ao longo de décadas, especialmente na comercialização de veículos. As fraudes no setor são um problema porque contribuem para a desconfiança sobre esse mercado como um todo, o que impede sua expansão e aumento de popularidade.

Na fala de Renato, muitos desses problemas se devem à forma como a própria atividade se organiza atualmente no Brasil. Leiloeiros possuem uma certificação das Juntas Comerciais de cada estado que os autorizam a exercer a profissão. Ou seja, os representantes das leiloeiras tradicionais defendem que comprar em um leilão verdadeiro seria seguro, já que a origem do bem é ilibada. Mas Renato explica que “essa certificação não está comprovada na internet. Ninguém conseguiu comprovar isso que ‘eu sou oficial na internet’. Porque os falsários estão fazendo páginas-cópias”. Diante desse cenário, Renato propõe o que chama de uma nova revolução cultural - mais que tecnológica - no setor, semelhante àquela que ele mesmo protagonizou no início dos leilões on-line, quando criou um ambiente de “credibilidade para a base vendedora” anunciar na internet. Para o empresário, essa nova revolução se daria por meio dos registros das transações através da tecnologia de blockchain:

Eu já estou praticando em um […] setor [de] falta de confiança […]. Opa, se nascer essa confiança aqui já é o primeiro passo para a gente fazer uma revolução aqui. E mais do que isso, a gente parte de um princípio que é uma lei de 1932, que vai encaixar em um modelo econômico na internet atual, [uma lei que] criou um cartório de transição de bens, que obriga a escriturar tudo em livro. Então todos os leilões que a gente conhece, esses oficiais, são escriturados: o nome do vendedor, a autorização, os produtos […]. Mas o que eu tô colocando é que uma forma de se pensar culturalmente há oitenta, noventa anos atrás, a tecnologia que nasceu aqui de blockchain, de registro, ela cabe que nem uma luva […]. E aí você fala “pô, então há vinte anos atrás a internet coube que nem uma luva no leilão. Você tá me dizendo que blockchain tá cabendo que nem uma luva na Lei [de 1932] do leiloeiro?”. Eu vou falar: “Exatamente”. (Renato, criador da Rede Oportunidade de Blockchain para Leilões, grifos nossos).

Como é reiterado em várias reportagens, sua rede blockchain, a Oportunidade, é a primeira de leilão no Brasil. A especialização do serviço seria criar soluções digitais para promover ambientes de negociação on-line mais seguros, autênticos, neutros, confiáveis e acessíveis para empresas e pessoas. A blockchain aplicada a leilões consiste em cartoriar as transações eletronicamente. O que hoje é registrado manualmente nos livros dos cartórios, nos quais as juntas comerciais se baseiam para fiscalizar os leilões, passa a ser feito de forma digital através da blockchain. Cria-se, assim, uma espécie de cartório eletrônico em que vendedores, compradores e leiloeiros podem rastrear e garantir a confiabilidade das transações, de gravar os registros e, assim, fornecer a proteção do consumidor no universo da internet, já que nenhuma transação poderia ser fraudada. Ele defende que se trata da garantia pela ordem da matemática, de como se praticam os registros. Esses registros ficariam disponíveis em um protocolo comum na linha do tempo entre os participantes de determinada transação, no caso para compradores e vendedores em leilão. Em um momento de crescimento de leilões falsos, a infraestrutura para o setor ajudaria a restabelecer a confiança pelo lado do consumidor, na medida em que empoderaria os usuários sobre o domínio de seus próprios dados, dinheiro, procedência de suas compras e transações comerciais na internet. Ou seja, dá garantia de que o produto vendido existe, o comprador é real e o pagamento será devidamente realizado. Segundo Renato em conversa em um podcast corporativo, isso daria “confiança para negócios que requerem segurança, que requer a confiança da transação e [permite] que você tenha garantias que hoje, na internet, você não tem”.

Mas as vantagens do uso da tecnologia do blockchain em leilões não se encerrariam na segurança oferecida aos consumidores. Renato também destaca como o uso dessa ferramenta fomentaria a competitividade e o desenvolvimento desse mercado, favorecendo também o consumidor:

O leilão nasceu com vício de origem. Qual é o vício de origem de um leilão? Aquele leiloeiro que convenceu a empresa a fazer a venda, ele se torna exclusivo da venda. […] A palavra exclusividade, ela estagna o mercado, ela deixa o mercado imperfeito porque o serviço não é melhorado, o atendimento não é melhorado, nada é melhorado. […] Se eu criei o cartório eletrônico de transação, […] eu tenho todo o flow [fluxo] da transação… […] Então, eu construí o movimento da blockchain para construir o cartório [eletrônico], para botar a aplicação [a Rede Oportunidade] em cima e […] abrir uma exchange [transação] entre eles. […]. Aquele leiloeiro que tem poder de confiança com o vendedor, ele vai falar com o vendedor e dizer o seguinte: “Agora eu abri mão da minha exclusividade para todos os leiloeiros poderem vender”. O que vai acontecer com isso? O consumidor vai ser impactado de uma outra forma. […] [Porque] eu, como leiloeiro, vou ser ativo em te convencer a vir comprar. Então a desconfiança, o medo, vai ser ultrapassado porque a gente vai abrir um hall de novos operadores […]. Então, no que a Oportunidade se transformou? Em um integrador de marketplace de leilão, trazendo o produto para o centro e dizendo para o consumidor: “Escolha o seu leiloeiro de preferência, aquele que melhor te atende” (Renato, criador da Rede Oportunidade de Blockchain para Leilões, grifos nossos).

Além da segurança e da confiança, a criação da plataforma Oportunidade utilizando a tecnologia do blockchain funciona como uma espécie de resposta às críticas das multinacionais leiloeiras que acusam esse mercado leiloeiro no Brasil de ser antiquado e pouco moderno. Renato, com seu pioneirismo, sustenta que a Lei de 1932 não impede a modernização do setor, ao contrário, “cabe como uma luva”, na medida em que o controle rigoroso e centralizado da atividade leiloeira pelas Juntas Comerciais locais na pessoa física do leiloeiro garantiria um mercado mais seguro, exatamente por ser mais restrito, controlado e rastreável.

Assim como nas disputas do setor leiloeiro, a proteção e a segurança ao consumidor têm emergido com centralidade nas disputas entre seguradoras e associações de proteção veicular nos últimos anos. As acusações por parte do setor de seguros tradicionais de que não haveria concorrência justa entre seguradoras e associações de proteção veicular convergem com as denúncias de desproteção e riscos aos clientes. Nesse sentido, o setor de seguros, liderado pela Organização das Seguradoras Tradicionais (OST), tem organizado uma série de eventos on-line voltados para discussões acerca do consumidor de seguros, seja para discutir satisfação, fidelização, expansão ou proteção de seus segurados.

Em um dos eventos organizados pela OST, um importante especialista em direito do consumidor e parceiro do setor de seguros comenta sobre os riscos da falta de clareza dos consumidores sobre a diferença entre seguros e associações mutualistas:

A gente costuma dizer que o maior risco é aquele que a gente não vê. Ela não faz análise do perfil do consumidor exatamente porque ela trabalha de outra forma. Parece que é uma livre entrada, mas essa livre entrada tem um preço que pode significar pagar e não receber. Depois, as regras de rateio. Quando você tem uma seguradora, o valor pode ser definido previamente, combinado não sai caro. Combina, estabelece, o consumidor se quiser contrata, ali a regra está combinada. O outro? Você não sabe. O valor é variável, o valor máximo é flutuante. Então você imagina: você entra pagando pouco e imagina a conta que fica depois. […] Então notem o problema que a gente tem. Coparticipação e franquia? Está na apólice. Não varia no caso de seguros. No outro? Vale tudo, é dinâmico. Falta de pagamento? Em caso de seguros, cobra-se um juro, tem um período de carência, tem uma regra que garante ao consumidor não só clareza, mas lealdade nesse processo. No outro, parou de pagar, perde o benefício. Dá cinco dias, põe o consumidor para fora da associação. Então não é por casualidade que essas reclamações têm chegado até os órgãos de defesa do consumidor e têm trazido preocupações aos órgãos, até porque muitas associações defendem, logo de início, que não estão sujeitas ao Código de Defesa do Consumidor para não ficarem sujeitas nem à Susep, nem aos Procons. (Especialista em Direito do Consumidor em live da OST).

A fala do especialista é representativa dos argumentos do setor segurador, que tem destacado que garantir o cumprimento das normas é uma forma de proteger o consumidor e, consequentemente, produzir confiança dos clientes nos produtos securitários oferecidos pelas seguradoras e no setor em si.

Por outro lado, representantes de associações mutualistas argumentam que confiança é ter a certeza de que seu bem será assegurado, mesmo sem ter renda comprovada, estar com o nome “sujo”, morar em uma área considerada perigosa e ter um carro velho. A capilaridade das apvs também estaria relacionada com a confiança, mas de um outro modo. Um de nossos interlocutores de pesquisa, Seu Raul, homem de 65 anos, aposentado, morador de uma cidade em uma região metropolitana no Sudeste do país, nos contou as razões de ter decidido aderir a uma associação mutualista e não mais renovar o seguro que tinha com uma seguradora renomada. Segundo ele, os preços para segurar seu carro 2012 não eram muito diferentes, mas a opção pela associação deveu-se ao fato de que os contratos com as seguradoras nunca são legíveis para ele, o que o deixa inseguro, especialmente em tempos de negociações on-line. Em contraste, seu vizinho, Luquinhas, amigo do filho de Seu Raul e que conhece desde criança, “abriu” uma APV. Toda a conversa foi feita pessoalmente, as dúvidas esclarecidas e os termos ficaram mais claros. Seu Raul confia em Luquinhas, sentiu-se seguro. Quando há alguma dúvida, Seu Raul liga para Lucas ou simplesmente bate em seu portão. Ele diz saber dos riscos de a associação fechar, mas confia que Lucas irá avisá-lo se algo acontecer. Outro fator mencionado por Seu Raul é o fato de que outros vizinhos já têm o “seguro da associação” de Luquinhas e relataram nunca terem tido problemas.

Considerações finais

Como os casos apresentados colocam em evidência, os sentidos e acepções das noções de confiança e segurança variam na luta por ganhar ou manter fatias de mercados populares. O discurso em torno da confiança pode emergir quando os atores se referem à concorrência justa. Nesses casos, o centro das demandas se dirige, sobretudo, ao Estado enquanto instância reguladora, ao qual se demanda flexibilizar os marcos regulatórios considerados excessivos sobre alguns grupos ou intensificar e expandir a regulação (e a punição) a grupos que estão fora dela ou que a burlam. Ou seja, estamos muito distantes do que uma leitura apressada e superficial poderia supor sobre a menor presença e importância do Estado no neoliberalismo. Trata-se de uma demanda pela forte e constante atuação do Estado na regulação das regras para o “livre” funcionamento do mercado (Dardot e Laval, 2014). Entretanto, ainda que essas demandas encontrem concretude nas disputas em torno da regulação, não podemos reduzir os conflitos a esta dimensão. Com efeito, nos casos analisados, são comuns acusações e tentativas de vinculação de um grupo a atividades criminais ou irregulares através de afirmações de que os produtos oferecidos por certos atores não são confiáveis ou que os consumidores não teriam seus direitos e garantias assegurados. Temos também uma dimensão moral importante quando a confiança é mobilizada no sentido de proteção do consumidor.

Seja nas disputas em torno da regulação, seja nas acusações mútuas entre os atores em disputa, as justificativas são sempre as mesmas: é preciso combater o crime, entendido como fraudes e golpes, sejam concretos ou potenciais. Os dois casos em tela nos permitem um diálogo com a proposição de Misse (2007; 2010) de que a todo mercado ilegal se associa um mercado de proteção, operado pelos próprios agentes criminais ou por agentes estatais - policiais, fiscais etc. - que deveriam regular, fiscalizar e coibir esses mercados ilegais. Nos casos analisados, o centro da disputa é construir e expandir mercados que vendem confiança e segurança atreladas aos seus produtos - blockchain para leilões e proteção patrimonial de veículos. Nesse diálogo, ao menos três especificidades dessa disputa merecem ser destacadas. A primeira refere-se ao fato de os atores criminais serem players importantes nessas disputas, não no sentido de se demandar proteção extralegal aos seus mercados (Misse, 2007), mas na medida em que é contra as ações criminais e a possibilidade delas que são construídos argumentos e estratégias de criminalização entre as partes em conflito (elites instituintes e instituídas). Em segundo lugar, as disputas no circuito leiloeiro e no setor de seguros nos mostram, por um lado, a associação de bens e serviços de proteção e segurança a mercados formais, indo além do quadro do autor. E em terceiro lugar, por outro lado, esses são conflitos que não envolvem participação direta de agentes estatais, transacionando mercadorias políticas (Misse (2007; 2010).

Nesse sentido, podemos observar como mercados ilegais e a iminência do crime se constituem como forças propulsoras de mercados legalizados e estão no centro das acusações e defesas que marcam as disputas entre elites instituintes e instituídas, ambas cada vez mais financeirizadas, por mercados populares. O crime, como substantivo, é importante não apenas porque esses atores se esforçam para combatê-lo (ao menos discursivamente). Mas o crime é importante, ainda, como verbo, uma vez que se torna, recorrentemente, categoria de acusação que pode assumir sentidos múltiplos a depender de quem fala e a quem se dirige. De fato, são recorrentes os esforços para criminalizar as elites concorrentes, aproximando-as ou as associando a ações e grupos de criminosos.

Além de nos mostrarem que há pouca rentabilidade analítica na separação estanque entre mercados legais e ilegais, formais e informais, na medida em que eles estão ligados empírica e discursivamente, os casos analisados nos permitem questionar uma outra imagem corrente: a de que elites estão sempre em posição confortável, beneficiando-se da exploração dos mais pobres, especialmente no neoliberalismo. O que vimos aqui é que as elites dependem de mercados populares para sobreviver e/ou manter sua condição e posição. E, para conquistá-los, precisam lutar; lutar com outras elites, sejam elas tradicionais, multinacionais, emergentes e criminais.

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  • 1
  • 2
    Utilizamos as categorias “elites instituídas” e “elites instituintes” situacionalmente e de maneira relacional. Em ambos os casos analisados, frações das elites financeiras globais (multinacionais leiloeiras e grandes seguradoras) figuram como protagonistas das disputas por mercados populares. No entanto, como ficará claro, no caso dos leilões atuam como “elites instituintes” e, no caso dos seguros, como “elites instituídas”.
  • 3
    A regulação dos mercados (i)legais: mecanismos de reprodução de desigualdades e violência - Processo Cepid/CEM 2013/07616-7; Carros globais: uma pesquisa urbana transnacional sobre a economia informal de veículos (Europa, África e América do Sul), Processo Fapesp 2020/07160-7.
  • 4
    Há apenas uma inclusão em 1933, e uma mais atual, em 2015, permitindo a realização de “leilões on-line”. Lei n. 13.138, de 26 de junho de 2015.
  • 5
    Os nomes de pessoas, empresas e associações são fictícios, e as fontes de algumas falas não são mencionadas para preservar esse anonimato.
  • 6
    Lei n. 5.764, de 16 de dezembro de 1971.
  • 7
    Instrução Normativa n. 17, de 5 de dezembro de 2013, e, após ser revogada, a n. 72, de 19 de dezembro de 2019.
  • 8
    “Número de denúncias de sites falsos aumentou 900%, segundo associação de leiloeiros” (11 ago. 2020). Jornal Hoje, reportagem disponível em https://globoplay.globo.com/v/8768501/.
  • Financiamento
    Este texto apresenta resultados da pesquisa Carros globais: uma pesquisa urbana transnacional sobre a economia informal de veículos (Europa, África e América do Sul), Processo Fapesp 2020/07160-7.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Jun 2023
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2023

Histórico

  • Recebido
    10 Nov 2022
  • Aceito
    16 Jan 2023
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