Resumo
No contexto de pandemia do Covid-19, a cadeia automotiva no Brasil foi impactada pela indisponibilidade de semicondutores - microchips utilizados na produção de automóveis e de equipamentos eletrônicos, cujo consumo vem também produzindo impactos nos mercados de automóveis e autopeças. Este artigo objetiva analisar transformações recentes no setor, tomando como mote os deslocamentos contemporâneos na circulação desse componente. Tal análise partirá de dois contextos empíricos distintos: o Porto de Santos e um desmanche de veículos em São Paulo. Argumentamos que as transformações em tela devem ser compreendidas no cruzamento entre mobilidades físicas e comunicativas, apontando para importantes inflexões na cadeia automotiva em escala transnacional.
Palavras-chave: Portos; Desmanches de carro; Semicondutores; Carros; Mobilidades
Abstract
During the Covid-19 pandemic, the scarcity of semiconductors affected the automotive chain in Brazil. The production electronic devices in general, whose consumption also impacts the automotive market, depends on these microchips. This article aims to analyze recent displacements in the automobile system, through contemporary transformations in the circulation of this component. This analysis is based on ethnographic data produced in the Santos Port and a car dismantling store in São Paulo. We argue that such transformations must be understood at the intersection between physical and communicative mobilities which reverberates around the automotive chains in a transnational scale.
Keywords: Ports; Car dismantling stores; Semiconductors; Cars; Mobilities
Introdução
No contexto de pandemia do Covid-19, a cadeia automotiva, no Brasil e no mundo, foi fortemente impactada pela indisponibilidade de semicondutores - microchips utilizados na produção de automóveis e de equipamentos eletrônicos. A intermitência do suprimento desse componente produziu diversos efeitos no mercado automotivo brasileiro, como redução da produção e das vendas de automóveis novos, além de um grande aumento nos preços de veículos novos e usados1.
Referimo-nos como “escassez de semicondutores” a uma dinâmica contemporânea que posicionou esses microscópicos componentes eletrônicos no centro de um debate público global. Ainda no final de 2019, fábricas e montadoras de automóveis (Ford, Fiat, General Motors, entre outras) reduziram a demanda por semicondutores, como estratégia para evitar que houvesse acúmulo de produtos em estoque. Entretanto, a economia se reaqueceu mais rápido do que as projeções do setor. Nesse intervalo de tempo, as principais fábricas desses chips, localizadas na região asiática, redirecionaram o fluxo de oferta para outros setores.
A distribuição global de semicondutores passa a ser definida, portanto, pela prioridade de outros setores sobre o automotivo. Por exemplo, devido à implementação de políticas de isolamento social, ferramentas tecnológicas passaram a ser mais mobilizadas como mediadoras de atividades cotidianas diversas, como o ensino, o trabalho e o consumo. Desse modo, observamos a aceleração do consumo de aparelhos eletrônicos, como computadores, tablets e smartphones - cuja produção, assim como os carros, depende de semicondutores.
O objetivo deste artigo é analisar transformações recentes no mercado automotivo brasileiro, tomando como mote os deslocamentos contemporâneos na circulação e no suprimento de semicondutores e seus efeitos. Esta análise partirá de dois contextos empíricos distintos: o Porto de Santos, infraestrutura por onde passam os fluxos globais que se conectam à cadeia automotiva nacional (inclusive a importação de semicondutores), e um desmanche de veículos, espaço que comercializa autopeças usadas e que vem passando por processos de digitalização. Ambos estão fisicamente localizados no estado de São Paulo e digitalmente conectados a um incontável número de redes do mercado global de carros e autopeças. A despeito de suas funções bastante distintas, nos dois pontos de observação ouvimos relatos sobre formas de pressão do mercado devido à escassez dos semicondutores. Tais impactos, bem como as conexões e discrepâncias entre eles, permitem analisar o entrecruzamento entre trajetórias principais e secundárias (Knowles, 2017) do mercado automotivo.
Este artigo é fruto da pesquisa coletiva Carros globais: uma pesquisa urbana transnacional sobre a economia informal de veículos2 em andamento desde 2021. O trabalho de campo em desmanches de veículos em São Paulo, porém, teve início antes3, e a entrada estabelecida previamente facilitou nossas visitas e observações recentes. Dentre os diversos desmanches visitados nesse período, elegemos o de Paulo4, que retrata bem os fenômenos analisados. A realização de pesquisa empírica no Porto de Santos, por sua vez, iniciou-se em 2020. As duas visitas aos terminais de contêineres e veículos, bem como as conversas com Cláudio, nosso outro interlocutor, aconteceram em 2022. Além das visitas e entrevistas, dados quantitativos sobre o porto, e notícias sobre os efeitos da pandemia na cadeia automotiva, em especial sobre a escassez dos semicondutores, nos permitiram pensar coletivamente algumas conexões entre esses dois contextos aparentemente distintos. Para analisar as interfaces entre redes econômicas em escalas global e local, conduzimos uma etnografia multissituada (Marcus, 1995) que percorre espaços distintos, de estabelecimentos que comercializam mercadorias de segunda mão em escala local às instalações infraestruturais ligadas ao funcionamento de cadeias logísticas globais.
Enquanto um vírus microscópico causava disrupções nos sistemas de mobilidades em escala planetária, não deixa de ser instigante pensar que a escassez de um microchip tenha ocasionado tantas fricções nas cadeias automotivas globais. Nesse sentido, os semicondutores figuram como elementos exemplares tanto da potência das pequenas coisas para fazer agir5, quanto da dependência que os sistemas de alta complexidade, como a cadeia automotiva, guardam em relação a essas engrenagens diminutas. Em condições normais de fluxo, os minúsculos semicondutores garantem as conexões elétricas essenciais tanto para a fabricação de automóveis, quanto de uma infinidade de outros dispositivos. São os semicondutores que fazem objetos grandes e pesados como os carros cumprirem sua promessa de alta velocidade, conforto e segurança. Por se tratar de um sistema complexo organizado em rede, as intermitências na distribuição global desses chips vindos sobretudo da China - bem como o crescimento da demanda por eles - ocasionaram uma série de fricções, e mobilidades de várias ordens acabaram interrompidas, inclusive no Brasil6.
De modo geral, estamos em diálogo com a literatura que propõe a desconstrução de uma imagem hegemônica da globalização (Knowles, 2017; Tsing, 2015), em interlocução com o chamado “giro móvel” (Freire-Medeiros e Lages, 2020; Sheller e Urry, 2006; 2016). Buscando explorar a potência dos automóveis enquanto objetos analíticos que permitem pensar a categoria “mobilidade” em configurações e desdobramentos plurais (Featherstone et al., 2005), tomamos os carros e suas partes como objetos cujas articulações entre mobilidades físicas, imaginativas e comunicacionais revelam, de maneira exemplar, jornadas multiescalares que transitam entre economias locais e grandes cadeias globais - e que possibilitam analisar a globalização enquanto fenômeno empírico. A crítica logística (Cowen, 2014; Chua et al., 2018; Schouten et al., 2019; Stepputat e Hagmann, 2019; Toscano, 2014) nos inspira a pensar nas adaptações que vêm ocorrendo no Porto de Santos como evidências das fricções nos sistemas circulatórios de mercadorias. Muitas vezes entendidos como unificados e coerentes, tais sistemas elidem trajetórias menos contínuas e mais turbulentas.
Ao mesmo tempo, consideramos que a descrição desses recentes processos deve incluir as vias secundárias (Knowles, 2017) da cadeia automotiva e as interações em entrelaçamentos entre o “on-line e off-line” (Hine, 2015; Miller e Slater, 2000). A desmontagem veicular, que durante muito tempo era lida exclusivamente como uma economia popular informal, atualmente é também uma atividade econômica em processo de formalização e modernização. Enquanto um setor de venda de autopeças usadas mais baratas que as disponíveis nas concessionárias, os desmanches suprem parcela significativa do universo do mercado consumidor brasileiro, alimentado em grande parte por veículos mais antigos e desgastados. Como veremos adiante, o crescente uso de ferramentas digitais, quer para vendas de peças através de plataformas on-line ou para a realização de outras tarefas (cadastramento das peças, organização do estoque etc.), é um elemento central nesse processo.
Após esta introdução, mergulhamos em descrições etnográficas dos dois campos de pesquisa. Apresentamos variações no sentido e conteúdo da circulação de peças e de carros que passam pelo Porto de Santos. A seção 3 se ocupa das relações comerciais que se desdobram facilitadas pelo uso de ambientes digitais em um desmanche de veículos. Nas considerações finais, sintetizamos os principais argumentos da análise.
Porto de Santos: infraestrutura central para a cadeia automotiva
“Todas as etapas da cadeia produtiva dos automóveis passam pelo Porto”, Cláudio afirma com a convicção de quem trabalha há mais de duas décadas em uma empresa de logística integrada e operadora portuária no Porto de Santos, nosso primeiro ponto de observação. Com cerca de 45 anos de idade, Carlos possui longa experiência de ter trabalhado em dois terminais: um de veículos (TV) e outro de contêineres (TC). Ele acumula um conhecimento notável sobre o Porto e diz ter proximidade com funcionários das montadoras de veículos nacionais, que estão entre as maiores clientes de ambos os terminais: do TV, por importar e exportar veículos montados e também por importar o próprio maquinário das montadoras7; e do TC, pela importação de componentes e de peças necessárias para a produção de veículos.
Considerado o maior do Hemisfério Sul8, o Porto de Santos é responsável por cerca de 25% do total de veículos movimentados via portos no Brasil9. Mais de duzentos navios Ro-Ro10 embarcam e desembarcam ali a cada ano. Se, por um lado, o Porto é responsável por grande parte das importações e exportações de veículos no Brasil, os veículos, por sua vez, também representam um volume significativo entre as cargas por ele movimentadas, ocupando a primeira posição entre as importações (quanto ao valor em milhões de dólares) e a nona posição entre as exportações. Diversas autopeças também aparecem nos dados das dez cargas mais importadas e exportadas11.
Enquanto caminhávamos ao lado de Cláudio pelo TV, ele ia produzindo uma narrativa que conectava, estruturalmente e desde a origem, o Porto e a indústria automotiva: “a primeira fábrica da Ford no Brasil passou inteira por aqui”. Ele se referia aos maquinários e componentes necessários para a produção de veículos da Ford. Dessa forma, os terminais que integram o Porto de Santos são espaços estratégicos para as montadoras nacionais, o que reforça a centralidade das infraestruturas portuárias para a cadeia automotiva como um todo. “O Porto fecha todo o ciclo logístico das montadoras”, pois movimenta não apenas veículos montados, mas também os componentes usados em sua produção e até mesmo as máquinas utilizadas pelas montadoras que os produzem.
Nesse terminal, uma enorme área plana e concretada, víamos centenas de carros novos estacionados. Segundo Cláudio, o terminal sozinho pode transportar até 20 mil veículos em um único mês, e tem capacidade operacional de 300 mil ao ano. Naquele momento, sua capacidade total estava longe de ser ocupada, ainda assim a quantidade de carros que havia ali nos impressionava. Também nos chamavam atenção os deslocamentos de trabalhadores e veículos operacionais em alta velocidade. Mas o que nos cabe descrever agora são as (i)mobilidades dos carros novos que, diferente daqueles que garantem o vaivém dos funcionários e das coisas, ainda não realizaram sua vocação como “objeto que move outros objetos” (Elliott e Urry, 2010).
Enquanto caminhávamos por entre os carros novos, Cláudio nos explicava como funcionam as regras de distribuição, circulação e permanência naquela infraestrutura portuária, integrada às mobilidades e fricções de objetos, informações, sinais, regulações e imagens. Os carros que olhávamos eram produzidos no Brasil e destinados à exportação. Depois de desembarcados dos caminhões-cegonha12 que os traziam das montadoras, os veículos passavam por um gate13, onde eram inspecionados, e depois estacionados no TV. Cada um dos carros possuía uma etiqueta, que permitia rastrear sua biografia. Ela não apenas dá conta da posição exata no espaço e no tempo presente, mas permite saber em que navios serão embarcados e para qual destino seguirão. As etiquetas indicam que os principais destinos das exportações daqueles carros eram outros países da América Latina: Argentina, Colômbia, Chile, Peru e México - países vizinhos que figuram entre os maiores importadores de carros brasileiros.
Todo o processo de circulação dos carros no TV é acompanhado por profissionais que unificam essas informações em sistemas compartilhados por equipes de logística. As reflexões de Cláudio possibilitam compreender que as infraestruturas não são apenas materiais, são também redes de signos, dados e informações articuladas nos esforços cotidianos para fazer as coisas se moverem pelo porto e para além dele (Cowen, 2014; Chua et al., 2018).
Naquele momento no TV, havia mais carros brasileiros para exportação do que carros estrangeiros importados. Esse cenário reflete não só os números de importações e exportações de veículos no Porto de Santos (como podemos ver no Gráfico 1), mas a própria tendência do mercado automotivo nacional como um todo, que exporta mais veículos novos do que importa (Anfavea, 2022).
O comércio exterior de veículos no Brasil é majoritariamente composto por carros novos. A importação de carros usados com menos de 30 anos, por exemplo, é proibida; a exportação de usados, por sua vez, é permitida, porém limitada14. A presença de carros importados no mercado consumidor brasileiro é bastante residual, grande parte composto por veículos nacionais15. Ao mesmo tempo, dentre os veículos produzidos no Brasil, também são poucos os destinados para exportação, pois grande parte dessa produção é voltada a abastecer o mercado local16. Isso, no entanto, não significa que as infraestruturas portuárias sejam menos importantes para a cadeia automotiva brasileira. E o contexto recente, marcado pela escassez dos semicondutores, evidencia a relevância logística do Porto de Santos.
Depois de caminharmos pelo TV, Cláudio nos levou, por meio de um carro operacional, para conhecer o TC operado pela mesma empresa. Uma verdadeira imensidão sociotécnica, o TC é povoado por milhares de contêineres, empilhados em filas a perder de vista, que aguardam sua vez de serem embarcados, em navios ou em caminhões e trens, adquirindo, a partir daí, novas qualidades e usos. Novamente, observamos trabalhadores, veículos operacionais e portêineres17, movendo-se em ritmo ainda mais frenético - ali, sequer podíamos caminhar, apenas observar de dentro do carro em que Cláudio nos conduzia. Era através de contêineres como aqueles que os semicondutores, importados sobretudo da Ásia, eram desembarcados, e depois seguiam seus destinos até as montadoras de veículos. Cláudio nos diz que grande parte dos componentes usados na produção nacional de veículos é produzida no Brasil atualmente, porém cerca de 40% desses componentes, dentre eles os semicondutores, ainda são importados.
O protagonismo da indústria automotiva brasileira nas escalas nacional e continental não significa que sua produção seja autossuficiente; ao contrário, a produção de carros no Brasil é dependente do acesso a vários componentes importados de outros continentes. Impactos da escassez dos semicondutores evidenciam o grau de dano que intermitências no suprimento desses componentes podem causar na cadeia automotiva nacional - mas não apenas. Na indústria automotiva, a demanda por semicondutores tem relação com avanços tecnológicos na tentativa de produzir carros cada vez mais modernos, conectados, que se pretendem mais seguros, inteligentes e menos poluentes. Isso porque os semicondutores são utilizados na produção de sensores e módulos eletrônicos, dispositivos imprescindíveis nos automóveis de tecnologia mais avançada. A redução da oferta desses microchips, portanto, foi diretamente responsável por atrasos, interrupções e uma drástica redução da produção nacional nos últimos anos, especialmente a partir de 2020. Ela foi também diretamente responsável pela grande redução das vendas de carros novos, que se tornaram muito mais caros.
Porém, isso não necessariamente fez com que o volume de veículos novos movimentados pelo TV diminuísse. Desde 2020, mesmo diante da redução da produção e das vendas de carros produzidos no Brasil, tanto as importações quanto as exportações de veículos através do Porto de Santos aumentaram. Cláudio nos diz que as montadoras brasileiras “viraram a chave” nos últimos anos. Isso significa que, a despeito de a produção nacional ser historicamente voltada para o mercado consumidor local, elas vêm procurando, cada vez mais, expandir suas exportações, sobretudo de carros “premium”, como estratégia para driblar a redução do consumo de veículos novos populares no Brasil. Isso se reflete, por exemplo, na discrepância entre o tempo de espera para o recebimento de um carro novo produzido no Brasil: se, durante a pandemia, um comprador brasileiro poderia esperar até seis meses para receber um veículo produzido por uma montadora nacional, para o mercado externo esse tempo de espera é muito mais curto. “Carro de exportação”, resume Cláudio, “a gente brinca que é como pão quentinho: sempre sai rápido.”
Na lógica de funcionamento do Porto, é importante que não se perca tempo, que o fluxo siga rapidamente conforme o planejado. No cotidiano, contudo, há atritos, fragilidades e consequências indesejadas dos sistemas de mobilidades, sendo a circulação das mercadorias menos contínua do que muitas vezes retratada. Para compreender o que ocorre no pátio, precisamos também olhar para o que acontece nos espaços responsáveis pela mobilidade de informações que determina a movimentação das cargas.
Cláudio nos conduziu à sala do operacional. Estava cheia, com muitos funcionários. Aquele ambiente dá a impressão de que todos estão trabalhando em um ritmo acelerado, olhando as telas, falando ao telefone e via rádio. Na mesa de cada funcionário há dois monitores médios. No final da sala, diversas telas com informações dos navios, tabelas, câmeras do pátio etc. No canto, ficava a pessoa responsável, em cada turno, por fiscalizar os gates. “Hoje em dia é tudo informatizado”, o funcionário disse. Não é necessário mais estar nos gates fisicamente, pois se utilizam diferentes tecnologias disponíveis no Porto. Toda essa infraestrutura informatizada é complementar ao que ocorre nos pátios a céu aberto. E em quase todos esses equipamentos os microchips asiáticos estão presentes.
Cláudio e outros funcionários possuem aspirações de superar atritos, diminuir custos e aumentar os lucros a distância. Mas especialmente naquele dia da visita havia muito trânsito de caminhões de grãos, porque era momento de safra, e ainda ocorria no Brasil uma greve dos caminhoneiros pelo aumento do preço do diesel. Como todas as cegonhas circulam pelo mesmo sistema Anchieta-Imigrantes18, a chegada dos veículos no TV atrasou e irritou nosso interlocutor. A ordem logística parece ser altamente poderosa em longas distâncias, porém, na prática e de perto, pode ser extremamente vulnerável (Chua et al., 2018). Nem toda a tecnologia disponível no Porto de Santos é suficiente para impedir contingências nessas complexas cadeias globalizadas de circulação.
Digitalização e formalização: o caso de um desmanche de veículos em São Paulo
No ano de 2019, um carro importado, produzido no México, chega ao mercado brasileiro através do Porto de Santos, e é vendido em uma concessionária em São Paulo. Na época, seu valor de mercado era estimado em 130 mil reais. Depois de colidido, esse veículo foi recuperado pela seguradora da qual seu proprietário era cliente, e posto à venda como “sucata”19 em um leilão20, em 2022. Passados três anos de sua produção, o mesmo veículo tinha seu valor estimado em 157 mil reais.
Paulo é um empresário que possui um desmanche de veículos no interior paulista. Mesmo a cerca de 100 km de distância, ele acompanha esse mesmo leilão pela internet, e arremata a “sucata” por 20 mil reais. Depois de percorrer trajetórias “principais” do mercado automotivo - da montadora, no México, à concessionária em São Paulo, passando pelo Porto de Santos -, esse veículo agora percorre algumas de suas “vias secundárias” (Knowles, 2017), alimentando o mercado de autopeças de segunda mão.
Os preços das “sucatas” em leilões de carros vêm aumentando significativamente nos últimos anos e, em especial, desde o início de 2020. “Carro que antes [da pandemia] a gente comprava por 5 [mil reais], hoje a gente compra por 10 [mil reais]”, nos explica Paulo. Embora não tenha mencionado a “crise dos semicondutores” no mercado automotivo, Paulo percebe na prática alguns de seus efeitos. Assim como carros novos, os de segunda mão, e até mesmo os em fim de vida útil, se tornaram mais caros. Como consequência, o preço das peças vendidas em desmanches também subiu. Mas essa alta nos preços não teria impactado negativamente suas vendas, afinal a demanda por carros de segunda mão, que requerem mais reparos e trocas de peças, segue em alta.
Depois de arrematada a “sucata” em leilão, Paulo contrata, através de seu smartphone, um guincho para trazê-la para o desmanche. Quando ela chega ao seu destino, é desmontada, e suas peças são cadastradas, fotografadas, anunciadas em uma plataforma de vendas on-line e, por fim, embaladas e estocadas. Dentre as peças aproveitáveis, um jogo de sensores de estacionamento - uma das muitas peças presentes em carros atuais que utilizam semicondutores em sua produção - é colocado à venda por mil reais. O anúncio de Paulo na plataforma competia com outros que ofertavam opções mais baratas, como “kits de peças paralelas”21 (em sua maioria também importados através do Porto de Santos) e até mesmo peças usadas de “procedência duvidosa”, possivelmente oriundas de carros roubados.
Um mecânico de carros no estado de Goiás, a cerca de 900 km de distância do desmanche de Paulo, vê esse anúncio on-line e compra o jogo de sensores, por mil reais mais o custo do frete (feito pela plataforma por cerca de 30 reais). O produto chega ao comprador dois dias depois da compra. Através desse anúncio on-line, a peça tem sua capacidade de mobilidade potencializada, podendo alcançar localidades diversas e distantes. Segundo indicado no próprio perfil do desmanche de Paulo, ele havia realizado mais de quatrocentas vendas nos últimos sessenta dias22.
O desmanche de Paulo articula fluxos de objetos, informações e pessoas, realizadas através de dispositivos digitais, infraestruturas e redes logísticas, que se desdobram entre o presencial e o on-line. A escassez dos semicondutores impacta a desmontagem veicular de diversas maneiras: pela presença dos microchips em autopeças comercializadas; na alta nos preços de carros (novos, usados e até sucateados) e através da crescente centralidade do uso de dispositivos digitais, cuja recente expansão do consumo sinaliza redirecionamentos na oferta global do componente.
Os mercados formais e informais que atuam com carros e autopeças de segunda mão movimentam recursos intensamente disputados por uma pluralidade de agentes e de repertórios de regulação (Feltran, 2012; 2014), estatais, policiais, privados e até mesmo criminais, inclusive em escala transnacional (Pimentel et al., 2022; Barrera-Enderle, 2021; Clarke e Brown, 2011). Os desmanches de carros em São Paulo não fogem disso. A desmontagem veicular é uma “economia de sobras” (Bize, 2020), que figura como opção de consumo de autopeças a preços mais acessíveis do que os praticados por concessionárias de veículos e revendedores de peças “genuínas”. Apesar de historicamente vistos como uma economia popular informal e estigmatizada, por serem considerados o principal destino de carros roubados ou furtados (Pinho et al., 2022), os desmanches legalizados atualmente são um mercado que movimentaria mais de 4 bilhões de reais por ano23, e que está conectado a outros agentes econômicos mais “legitimados”, como companhias de seguros e leiloeiros. Por muito tempo, essa atividade foi exercida de maneira informal, até que, no ano de 2014, foi implementada uma lei propondo a formalização do setor - a “lei do desmonte” (Motta et al., 2022)24. Esta foi uma articulação que envolveu também agentes estatais e privados, como leiloeiros (Pimentel e Pereira, 2022) e o mercado segurador (Fromm, 2022).
Paulo já trabalhava com desmanche de carros muito antes da implementação da lei. Ainda jovem, no início dos anos 1990, abriu seu próprio estabelecimento numa movimentada avenida da zona leste da capital, popular pela grande presença de comércios desse tipo. Não faz muito tempo que Paulo trocou sua oficina na metrópole por um amplo terreno na cidade onde nasceu. Orgulhoso, ele nos conta que construiu “do zero” o enorme galpão, estrategicamente situado à beira de uma rodovia, onde trabalha sobretudo com o comércio on-line.
“Antes nós todos trabalhávamos de um jeito bastante informal”, ele admite, mas se reconhece sempre como um “empresário honesto”, diferenciando-se daqueles que atuavam com peças de carros roubados. Ele foi um dos muitos empresários do setor que participaram ativamente do processo de implementação da lei. Além de permitir uma melhor separação entre “os honestos” e “os ilegais”25, a lei contribuiria também no estabelecimento de condições mais estáveis para que “os honestos” pudessem crescer e prosperar, segundo ele.
O atual desmanche de Paulo poderia ser considerado como um “modelo” de desmanche formalizado e digitalizado. Ele utiliza um sistema digital, que faz o gerenciamento de estoque e gera anúncios em plataformas de vendas on-line de forma automatizada. Após o desmonte dos carros, as peças são, individualmente, cadastradas nesse sistema, que tem por objetivo facilitar as vendas através dessas plataformas. (Figura 1)
Etiquetas com QR codes, dispositivos físicos que integram o sistema digital de gerenciamento de estoque e anúncios on-line utilizados pelo desmanche de Paulo. Foto de Apoena Mano.
Esses processos de formalização e digitalização dos desmanches destoam muito da forma como a atividade da desmontagem veicular era exercida no contexto anterior à lei. Tais processos, no entanto, não se dão de forma homogênea, uma vez que ainda há estabelecimentos de menor porte econômico que não dispõem dos mesmos recursos para se adaptarem às novas demandas impostas pela formalização (Pinho et al., 2022). A recente expansão das vendas on-line produz deslocamentos importantes no mercado da desmontagem veicular. Ela possibilita que uma economia historicamente centrada em interações presenciais e dinâmicas em uma escala local tenha suas vendas expandidas a uma escala nacional. O primeiro desmanche de Paulo, localizado na zona leste de São Paulo, era territorialmente circunscrito, e seu público limitava-se a moradores e frequentadores do bairro - “um pessoal já conhecido, quando precisavam de alguma peça procuravam a gente”. Eram trocas comerciais dependentes das relações de confiança construídas em copresença e rotinizadas no tempo.
A digitalização das operações, intensificada após a pandemia, modifica as dinâmicas de funcionamento desse mercado. A questão territorial ainda é relevante, tendo em vista que o novo estabelecimento de Paulo é localizado à beira de uma rodovia, conectado, portanto, a infraestruturas viárias essenciais para a realização dessas transações “on-line”. As mobilidades digitalizadas, viabilizadas pelas mobilidades físicas dos semicondutores (através de infraestruturas logísticas, viárias e portuárias), possibilitaram que Paulo incrementasse suas transações comerciais para além dos constrangimentos territoriais e das relações face a face: “não tem mais a questão da fidelidade com o cliente, mas a gente vende muito mais e para o Brasil todo”.
Desmanches de menor porte econômico, ou mesmo desmanches informais e/ou ilegais, também podem usar plataformas de vendas on-line para expandir a escala de suas vendas, ou podem mobilizar dispositivos digitais de outras formas (como anúncios através de redes sociais ou atendimento através de aplicativos de troca de mensagens). Alguns, no entanto, não conseguiram migrar para as vendas on-line, e ainda atuam em uma escala mais circunscrita às interações presenciais e com certos limites territoriais26. Além disso, desmanches de grande porte dispõem de mais recursos para fazerem a transição para as vendas on-line de forma mais eficiente - como por exemplo o uso de serviços adicionais como o já referido sistema de gerenciamento de estoque e anúncios on-line. Tais recursos permitiram a estabelecimentos como o de Paulo manter suas vendas mesmo diante das políticas de isolamento social, enquanto muitos outros encontraram mais dificuldades, chegando inclusive a falir. Essa “digitalização excludente” está também associada à “formalização excludente” (Rangel, 2019), que produz clivagens entre aqueles que podem se adaptar à formalização e aqueles que não terão acesso a ela.
Atuar com vendas on-line demanda capital de rede (Urry, 2007; Elliott e Urry, 2010; ver também Freire-Medeiros, 2022; Menezes e Mano, 2020). Concebido na interlocução com os capitais econômico e cultural, o capital de rede pretende sublinhar a importância de competências e recursos valorizados - e desigualmente distribuídos - no capitalismo globalizado. Dito de outro modo, a inclusão socioespacial passa, como Paulo não nos deixa esquecer, pelo acesso contínuo a infraestruturas de transporte, pontos de informação e dispositivos de comunicação, assim como pelo domínio de idiomas estratégicos (com destaque para a linguagem da rede) e disponibilidade para gerenciar um tempo que já não está tão vinculado ao território (Elliott e Urry, 2010, p. 10‐11; Urry, 2007, pp. 197‐198). Em um cenário no qual a plataformização (Poell et al., 2020) e a dataficação orientam as dinâmicas das transações econômicas intermediadas por plataformas digitais, o capital de rede pode inclusive ser mensurado através de marcadores objetivos que estabelecem clivagens entre vendedores - como avaliação da “reputação” do vendedor, seu volume de vendas e o grau de satisfação dos clientes.
Considerações finais
Os semicondutores são objetos centrais para a produção de automóveis e também dispositivos eletrônicos, conectados a sistemas e plataformas digitais. Por isso, são motes potentes para analisarmos as interfaces entre o fenômeno da “expansão digital” e a (re)constituição de cadeias econômicas e de infraestruturas logísticas. Os fluxos que se produzem em meio a essa expansão da digitalização, impulsionada no contexto da pandemia, também dependem de fixos e fricções (Freire-Medeiros e Lages, 2020).
Há cerca de três anos, antes da pandemia, era possível encontrar veículos populares novos na faixa dos 30 mil reais; atualmente os carros mais baratos disponíveis no mercado brasileiro custam em torno de 65 mil. A própria noção de “carro popular” parece ter seu sentido suspenso nesse contexto. Essa grande alta dos preços está associada a uma queda do consumo de carros novos. Os preços de carros usados, por sua vez, também subiram. Este e outros fenômenos foram observados de modos complementares a partir dos dois pontos de observação etnográfica explorados neste artigo: o Porto de Santos e o desmanche de Paulo.
O Porto de Santos, enquanto infraestrutura central para a cadeia automotiva nacional, nos permitiu observar de que forma as trocas transnacionais que compõem essa cadeia impactaram a escassez dos semicondutores e foram por ela impactadas. Por um lado, ela evidencia a dependência da importação de componentes para a produção nacional de automóveis. Por outro lado, como estratégia para driblar a recente redução da produção e das vendas no mercado local, montadoras nacionais optaram por expandir as exportações de veículos brasileiros - movimento descrito por Cláudio, funcionário dos terminais portuários, como “virada de chave”. Esses processos não impactam apenas o setor automotivo, tendo em vista que automóveis e autopeças representam uma parcela significativa do comércio exterior do Brasil como um todo.
Já os desmanches nos permitem ver outros tipos de impacto. Assim como veículos inteiros, novos e usados, veículos “sucata” vendidos em leilões de carros batidos tiveram seus preços inflacionados nos últimos anos. Isso contribuiu para que as peças usadas também se valorizassem nos desmanches. Pudemos ver também efeitos da mobilização de dispositivos e plataformas digitais como instrumento de formalização e modernização de uma economia antes mais popular, informal e estigmatizada. Nesse processo, alguns empresários do setor que conseguiram se destacar puderam utilizar essas ferramentas para expandir suas vendas a uma escala nacional. Os desmanches, em certo sentido, representam alguns efeitos recentes da digitalização na esfera do consumo de peças de carro.
O processo de digitalização, impulsionado pela pandemia de Covid-19 - também visível na operação de grandes infraestruturas logísticas, como o Porto de Santos -, produz efeitos diversos, desde a “digitalização excludente” até mesmo a convivência (não em condições de igualdade) entre produtos novos e usados, originais e “paralelos”, comercializados por vendedores formais e informais, e até mesmo itens de origem lícita ou ilícita (produtos falsificados, contrabandeados ou receptados de roubo ou furto). Nesse sentido, a “plataformização” (Poell et al., 2020) desloca de maneira significativa a própria conformação de redes que alimentam o comércio popular em centros urbanos no Brasil (Pinheiro-Machado, 2008; Rabossi, 2015). As ditas “vias secundárias da globalização” (Knowles, 2017) se produzem em meio às disputas, conflitos e ambiguidades envolvidos na formalização de economias informalizadas e na convivência entre mercados legais e ilegais, locais e transnacionais, disputando de forma acirrada a atenção de compradores em busca de opções de consumo mais baratas.
Para encerrar, não podemos deixar de indicar questões de escala mais ampla e seus possíveis impactos na cadeia automotiva nacional e internacional. Como consequência direta daquilo a que nos referimos como “escassez dos semicondutores”, pudemos notar uma tendência de descentralização da produção global destes componentes. Apesar do reaquecimento da economia após os momentos mais graves da pandemia e do decorrente isolamento social, decisões políticas ocorridas em 2022 nos levam a perceber os efeitos de uma disputa geopolítica a partir da produção, oferta e demanda desses componentes.
Países como os Estados Unidos e a Alemanha vêm fazendo investimentos para redirecionar demandas globais - e evitar novas exposições aos riscos políticos de um monopólio asiático. Por sua vez, o Brasil também tenta nacionalizar a produção de semicondutores. Em dezembro de 2022, foi aprovada a Lei 14.302, que prorroga até o ano de 2026 os incentivos do Programa de Apoio ao Desenvolvimento Tecnológico da Indústria de Semicondutores (Padis)27. Em apoio à decisão, Márcio de Lima Leite, presidente da Anfavea (Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores), mencionou que há um consenso entre os setores público, privado e acadêmico sobre essa necessidade de produção no país. Indicamos que futuras pesquisas interessadas sobre a cadeia automotiva devem direcionar atenção a essas questões.
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Em certo sentido, esse processo dialoga com as transformações que a cadeia automotiva vem enfrentando nos últimos anos, no Brasil e no mundo. A crescente financeirização do setor (Do Carmo et al., 2019), bem como uma maior demanda pela produção de veículos mais tecnológicos e menos poluentes, vem contribuindo para um deslocamento nas geografias da produção automotiva, e para um reposicionamento do Brasil no mercado automotivo global - o que, inclusive, chegou a resultar no fechamento de montadoras sediadas no país (Lima e Dulci, 2021).
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Projeto temático apoiado pela Fapesp (processo n. 2020/07160-7). Registramos nossos agradecimentos a toda a equipe do projeto pela oportunidade de reflexão coletiva, sob a coordenação de Gabriel Feltran e Bianca Freire-Medeiros, e também às organizadoras pelo trabalho de organização deste dossiê. Apoena Dias Mano e Anna Clara Pereira Soares realizaram visitas conjuntas a desmanches em 2021, e também a outros espaços ligados ao mercado automotivo, sobretudo às economias de carros de segunda mão, como lojas de carros batidos e seminovos. Isabela Vianna Pinho conduz, desde o ano de 2020, pesquisa etnográfica no Porto de Santos como parte de seu doutorado, além de ter realizado pesquisa de campo em desmanches em períodos específicos entre 2018 e 2021 (Pinho et al., 2022). André de Pieri Pimentel, que pesquisou mais a fundo os leilões de carros batidos entre 2017 e 2020 (Pimentel e Pereira, 2022), está desenvolvendo pesquisa etnográfica em desmanches para seu doutorado.
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Isabela Vianna Pinho e André de Pieri Pimentel participaram do projeto Regulação de mercados (i)legais: mecanismos de reprodução de desigualdades e violência - projeto vinculado ao Centro de Estudos da Metrópole (Cepid Fapesp - processo nº 2013/07616-7), desenvolvido entre 2018 e 2020. Esse projeto resultou na publicação do livro Stolen cars: A journey through São Paulo’s urban conflict (Feltran, 2022).
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Os nomes de ambos os interlocutores citados neste artigo são fictícios.
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Na qualidade de “actantes”, ou mediadores “que transformam, traduzem, deslocam e distorcem e modificam o sentido ou os elementos que eles supostamente carregam” (Latour, 2005, p. 39), os semicondutores são centrais em um vasto número de cadeias econômicas globais contemporâneas, incluindo a cadeia automotiva, e sua escassez produz efeitos diversos.
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Dados da Associação Nacional de Fabricantes de Veículos Automotores (Anfavea) ajudam a ilustrar essa questão. Em 2019, foram montados 2,9 milhões de modelos automotivos no país. Em 2020, pudemos observar uma queda de -31,6% no total de pouco mais de 2 milhões de veículos. Em 2021, houve crescimento de 11,6%, totalizando a produção de 2,2 milhões de unidades. Por sua vez, o ano de 2022 superou as projeções e chegou a 2,37 milhões de unidades, com uma nova alta de 5,4%. Fonte: Anfavea, 2022 https://anfavea.com.br/site/press-releases/ .
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Esse maquinário é importado através do TV como “carga de projeto”, ou seja, cargas que não possuem dimensões ou pesos padrões tradicionais, e demandam planejamento logístico específico, pois não são transportadas por meios convencionais, como contêineres e caminhões.
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Fonte: Ranking “One Hundred Ports”, produzido anualmente pela “Lloyd’s List Maritime Intelligence”, baseado na movimentação de cargas em teu - medida padrão equivalente a um contêiner de 20 pés (stu Supply Chain, 2021).
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Fonte: “Fatos e dados”, 2021. Santos Port Authority.
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Ro-Ro é uma abreviatura do termo roll-on/roll-off, que são navios supercargueiros de “carga rolante” utilizados para transportar veículos de pequeno a grande porte.
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Carretas especializadas para o transporte de automóveis.
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Portões onde entram os caminhões, as cegonhas e as cargas.
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Segundo Cláudio nos disse, essa prática é basicamente restrita à exportação de carros antigos para colecionadores, europeus ou estadunidenses, dispostos a pagar altos valores. Há, porém, redes informais de exportação de veículos brasileiros que não passam pelas infraestruturas portuárias - como, por exemplo, a exportação de veículos roubados para a Bolívia (Pimentel et al., 2022).
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Em 2021, os veículos importados correspondiam a 14,2% da frota nacional (Sindipeças & Abipeças, 2022). No mesmo ano, cerca de 11,97% dos veículos novos licenciados eram importados (Anfavea, 2022).
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As exportações corresponderam a cerca de 17,03% dos veículos produzidos no Brasil em 2021 (Anfavea, 2022).
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Portêineres, ou STS (Ship to Shore Container Crane), são guindastes de contêineres, grandes equipamentos que têm como função agilizar a movimentação de carga e descarga em portos.
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Conjunto de rodovias que interliga a região metropolitana de São Paulo ao Porto de Santos, a Capital ao litoral do estado.
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“Sucatas” são carros em fim de vida útil, que legalmente só podem ser utilizados para a venda de peças - não podendo ser reparados, regularizados e utilizados como carros funcionais. A venda de veículos “sucatas” em leilões de carros é destinada a desmanches.
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Os leilões de carros comercializam carros usados de diferentes origens: “sinistrados” (batidos, recuperados de roubo ou furto, alagados, incendiados), recuperados de financiamento, oriundos de renovação de frota, entre outros. Podem ser públicos (com carros recuperados por órgãos públicos, como a polícia e o Detran) ou privados (com carros recuperados por empresas privadas, como companhias seguradoras, bancos e financeiras). Os leilões alimentam muitos mercados que atuam com carros de segunda mão, incluindo os desmanches (Pimentel e Pereira, 2022).
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Peças “paralelas”, às vezes também referidas como “peças chinesas”, não são fabricadas pelos mesmos produtores das “originais de fábrica” utilizadas pelas montadoras nacionais ou internacionais. Geralmente são importadas da China e vendidas em lojas de autopeças no Brasil a preços mais baixos, e costumam ser desvalorizadas como de menor qualidade e durabilidade.
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Segundo outro interlocutor, um profissional que produz dados sobre a venda de autopeças usadas em plataformas digitais, o ticket médio (preço médio) de autopeças usadas de carros de modelo popular é de cerca de 350 reais. Partindo desse dado, o faturamento das vendas de Paulo nesse período teria ultrapassado os 140 mil reais. Porém, peças de carros mais caros e/ou importados costumam ter ticket médio mais elevado.
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Lei Estadual n. 15.276, de 2 de janeiro de 2014. Defendida como instrumento de combate ao roubo e furto de veículos, essa lei daria origem a uma lei federal implementada no mesmo ano (Lei n. 12.977, de 20 de maio de 2014), e em tese válida para todo o território nacional, porém em outros estados se diz que essa lei “não pegou” (não produziu efeitos práticos).
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Importante ressaltar que essa separação entre o “legal” e o “ilegal” é um discurso êmico, e não uma perspectiva analítica dos pesquisadores. As fronteiras entre o “legal” e o “ilegal”, entre o “formal” e o “informal”, são porosas (Telles, 2010), e se produzem em meio a jogos de poder (Foucault, 2016). Da mesma forma, em ruptura com uma narrativa hegemônica sobre o tema, não tomamos os ditos “mercados ilegais” como espécie de “economia paralela”, mas sim como parte constitutiva da economia global (Beckert e Dewey, 2017; Feltran, 2019). Nessa perspectiva, a produção de clivagens entre o “legal” e o “ilegal”, através de discursos morais ou da implementação de leis, pode ser compreendida como estratégia de disputa pela regulação de recursos movimentados por economias informalizadas.
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Há, por exemplo, casos de desmanches de menor porte que atendem clientes através de aplicativos de mensagens, mas que ainda concretizam suas vendas no balcão da loja. Nesses casos, o atendimento é digitalizado, mas as vendas em si ainda se dão de forma presencial.
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Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
19 Jun 2023 -
Data do Fascículo
Jan-Apr 2023
Histórico
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Recebido
10 Nov 2022 -
Aceito
15 Jan 2023