Open-access A questão nacional na América Latina

A questão nacional na América Latina*

Octavio Ianni

Prefácio

A questão nacional pode estar na base de algumas lutas e controvérsias fundamentais dos países da América Latina. Em diferentes épocas, principalmente em conjunturas críticas mais profundas, reabre-se a problemática nacional. Alguns dos principais temas da história e pensamento latino-americanos põem em causa as origens, transformações, crises e dilemas da sociedade nacional, do Estado-Nação.

A Nação pode ser vista como uma configuração histórica, em que se organizam, sintetizam e desenvolvem forças sociais, atividades econômicas, arranjos políticos, produções culturais, diversidades regionais, multiplicidades raciais. Tanto o hino, a bandeira, o idioma, os heróis e os santos, como a moeda, o mercado, o território e a população adquirem sentido no contexto das relações e forças que configuram a Nação. A Nação pode ser uma formação social em movimento; pode desenvolver-se, transformar-se, romper-se.

Na América Latina, as guerras e revoluções de independência estão na origem da Nação, estabelecendo alguns dos seus traços principais. As revoluções burguesas são momentos fundamentais do modo pelo qual essa Nação reorganiza aqueles traços e elabora novos As revoluções populares são outras conjunturas da maior importância, quando se trata de conhecer os traços e movimentos da sociedade nacional. Tanto assim que a Nação burguesa pouco tem a ver com a socialista, que emerge da revolução popular; e abre outra história.

A problemática nacional revela-se de forma particularmente aberta quando se colocam alguns dos temas clássicos do pensamento latino-americano. Esses temas sempre implicam em aspectos mais ou menos fundamentais das forças e relações sociais que organizam, desenvolvem, transformam, ou rompem a sociedade nacional, o Estado-Nação.

Os desencontros entre a sociedade e o Estado são um desafio permanente nos países da América Latina, no continente e nas ilhas. Os partidos políticos e os movimentos sociais preocupam-se seriamente com eles. Todos que se dedicam a pensar a democracia e a ditadura são obrigados a examinar esse desafio. A atividade política de grupos e classes sociais, na cidade e no campo, defronta-se com ele Esse é um desafio prático e teórico fundamental para todos.

Muitos dizem que a sociedade civil é débil, pouco organizada. Falam em instabilidade política congênita. Afirmam que as dualidades estruturais são antigas e insuperáveis: arcaico-moderno, patrimonial-racional, indo-americano, afro-americano, costa-serra, litoral-sertão, ibérico-europeu, barbárie-civilização, caliban-ariel. São dualidades que empurram para a frente e arrastam para trás; fazem o caminho tortuoso, labiríntico, mágico. O círculo vicioso da causação circular cumulativa seria a chave de uma história de miséria, violência, autoritarismo, tirania. Na América Latina, a história estaria atravessada pelo precário, provisório, inacabado, mestiço, exótico, deslocado, fora do lugar, folclórico. Nações sem povo, nem cidadãos; apenas indivíduos e população.

Por isso, dizem, o Estado é forte, a democracia episódica, a ditadura recorrente. São as elites deliberantes — militares, civis, oligárquicas, empresariais, tecnocráticas — que sabem e podem. Chega-se a afirmar que um poder estatal esclarecido, apoiado na sabedoria da ciência, ou iluminado pela vontade política, poderá educar a sociedade, dinamizar a economia, conferir responsabilidade aos partidos, criar a opinião pública, lançar o país no leito da legalidade, legitimidade, democracia. O autoritarismo congênito e recorrente seria uma contingência da transição do caos à ordem, dos séculos de patrimonialismo escravista à república democrática, do poder oligárquico ao racional, do absolutismo ibérico à liberal-democracia. Assim, a sociedade civil seria retirada da sua debilidade essencial; do vício para a virtude.

São muitas as lutas e controvérsias que implicam na problemática compreendida pela questão nacional.

A Formação da Sociedade Nacional

A questão nacional se coloca desde o início da história, no primeiro momento, como dilema prático e teórico. As guerras e revoluções de independência sintetizam-se precisamente nesse dilema. O que há de épico nas lutas simbolizadas por Tausaint Louverture, Francisco de Miranda, Simón Bolívar, José Artigas, José Morelos, Miguel Hidalgo, Bartolomé Mitre, Bernardo O'Higgins, Antonio Sucre, José Bonifácio, Frei Caneca, Ramón Betances, José Martí e muitos outros, está enraizado na façanha destinada a emancipar a colônia, criar o Estado, organizar a Nação. Retirá-la do colonialismo, absolutismo, mercantilismo, acumulação originária, conferindo-lhe um nome. A criação do Estado, segundo os princípios adotados na constituição, em conformidade com as forças sociais, as peculiaridades da economia, as diversidades regionais, raciais e culturais, tudo isso representa o empenho de descobrir o perfil da Nação.

A sociedade nacional se forma aos poucos, de modo contraditório, em vais-e-vens, como se estivesse demoradamente saindo do limbo. Paulatinamente, nas terras americanas, os conquistadores vão se tornando nativos, colocam-se em divergência e oposição em face da metrópole, passam a lutar pela pátria. Surgem as inconfidências, insurreições, revoltas, revoluções, nas quais estão presentes nativos, crioulos, nacionais, mestiços, mulatos, índios, negros, espanhóis, portugueses, ingleses, franceses, holandeses e outros. Começam a delinear-se a sociedade, o Estado, a Nação, em torno de uma cidade, região, movimento, líder; ou cidades, regiões, movimentos, líderes. Nesse sentido é que "a nação é uma categoria histórica" (PÉREZ, 1981, p. 3). O território e o povo formam-se nessa história. "É um fenômeno geralmente aceito que, entre os séculos XVII e XVIII, o nativo deixou de sentir-se espanhol (poderíamos acrescentar também português) e passou a considerar-se americano" (CORREA, 1966, tomo VII, p. 373). Estava em curso a formação das nacionalidades latino-americanas.

Esse é um momento primordial da larga, difícil e contraditória metamorfose da raça em povo, ou da população de trabalhadores em povo de cidadãos. Mas estamos, ainda, no começo dessa história. "Os dirigentes decididos a conquistar o poder político, os intelectuais teóricos da liberdade, acorrem necessariamente, em um dado momento, ao descontentamento das massas, à revolução da miséria. Mas, aqui, as massas são — em diversas proporções e segundo os diferentes países — índios, mestiços, negros, livres ou escravos'' (VILAR, s/d, p. 50). Ainda não são um povo, em termos políticos. "Como convencê-los de que formavam parte, junto com a minoria nativa, da mesma 'nação', de uma mesma 'pátria'?" (VILAR, s/d, p. 50). Acontece que o Estado nacional que começava a formar-se emergia como um núcleo de interesses de setores dominantes, geralmente brancos. Apoiava-se na exploração do trabalho de escravos, ex-escravos, encomiendados, yanaconas, peões, agregados, colonos, mineiros, artesãos, camaradas, operários e outros, compreendendo índios, mestiços, negros, mulatos e brancos de origens nacionais diversas.

A gênese de cada sociedade nacional compreende tanto a luta contra a metrópole como as divergências internas, além dos conflitos com vizinhos. "Alguns dos novos estados — Uruguai e Bolívia — encontraram sua verdadeira identidade precisamente no conflito com seus vizinhos americanos." Mas cabe lembrar que, em diversos casos, "as massas tinham escassa devoção pelas nações em que viviam"; tanto assim que "os índios não se integraram nas novas nações'' (LYNCH, 1980, p. 373). Em outros termos, era o que acontecia com os negros. "O sistema político dos novos estados representava a determinação nativa de controlar índios e negros, a força rural de trabalho." Tratava-se de "conter as castas" inferiores (Idem, p. 379-80). Simultaneamente, desenvolvem-se as diversidades e desigualdades entre a cidade e o campo, as regiões. Desde o início, está em curso a luta pela terra e pela disciplina do trabalho.

Junto com as diversidades sociais, econômicas, culturais e raciais, formaram-se também as regionais. Logo se revelou um singular e fundamental desencontro entre as regiões, a cidade e o campo, a região e a Nação. As tropelias oligárquicas, os separatismos, o contraponto civilização e barbárie, ou centralismo e federalismo, nascem nesse contexto. O dilema estava no princípio da história; e entra pelo século XX, naturalmente, em outros termos. O desafio consiste em construir um sistema político unitário e federativo que "compreenda e concilie as liberdades de cada província e as prerrogativas de toda a Nação, solução inevitável e única que resulta da aplicação aos dois grandes termos do problema argentino — a Nação e a Província — da fórmula chamada hoje a presidir a política moderna, consistindo na combinação harmônica da individualidade com a generalidade, do localismo com a nação, ou seja da liberdade com a associação" (ALBERDI, 1981, p. 118-9).

O problema regional tem a maior importância, na maioria dos países latino-americanos. No Brasil, é básico, pelos problemas específicos de cada região e suas implicações nos arranjos do poder estatal. Ressurge em diferentes conjunturas. Ele é um dos segredos de Os Sertões, de Euclides da Cunha. Esta obra está inspirada no incidente de Canudos, ocorrido em fins do século XIX, em um lugarejo dos confins do estado da Bahia. Diante do que se dizia ser o fanatismo e monarquismo de um grupo de sitiantes pobres, o Estado brasileiro foi levado a mobilizar forças militares e policiais, bem como a imprensa e os meios políticos. A opinião pública foi induzida a tomar posição contra a remota comunidade liderada por Antônio Conselheiro. No início do conflito a grita geral era o pedido de extermínio, feito pelos estudantes, pelos deputados e senadores, pelos intelectuais, pelos jornalistas, pelos militares. Mas no momento em que o extermínio se efetiva, todo o mundo se escandaliza. Ao nível do discurso, os termos pejorativos dados aos canudenses são substituídos pelas palavras "brasileiros" e "irmãos". Mortos, tornam-se humanos e compatriotas. Muitos, que antes falavam em "horda de mentecaptos", "fanáticos", "galés", "jagunços", agora recusam-se "a participar das comemorações da vitória. A vergonha nacional é geral. O Exército é coberto de opróbrio. Passado o perigo, vem o remorso. Há um processo generalizado de mea culpa", que "explica em grande parte o imediato e extraordinário êxito de Os Sertões e a guindada de seu autor à celebridade. Como todo grande livro, este também organiza, estrutura e dá forma a tendências profundas do meio social, expressando-as de maneira simbólica. Tudo se passa como se o processo de expiação da culpa coletiva tivesse atingido seu ponto mais alto nesse livro" (GALVÃO, 1981, p. 79).

No singular e no geral, a questão nacional se coloca, reiteradamente, no curso da história. Mas cabe reconhecer que, em certas conjunturas, ela se torna mais aberta, cria desafios novos, reabre dilemas anteriores em outros termos "O século XIX caracterizou-se pelas tentativas de criar nações a partir das facções dispares e fragmentárias que constituíam a sociedade. Pela altura das décadas de 1880 e 1890, o prolongado esforço para restaurar a ordem e a unidade, em grande parte, obtivera êxito em praticamente todas as nações latino-americanas; o poder se consolidara nas mãos dos interesses oligárquicos, estreitamente associados aos elementos mercantis-empresariais, e de uma nova geração de caudilhos da 'ordem e progresso'. Seguiu-se um período de estabilidade, prosperidade e construção de infra-estruturas nacionais." (WIARDA, 1983, p. 27-8.)

O nacionalismo, portanto, não é um só; cria-se e recria-se, no âmbito das conjunturas históricas, segundo o jogo das forças sociais internas e externas. "As atitudes nacionalistas e ainda o sentimento de pertencimento a uma nação, começaram sendo características das classes alta e média (daí, entre outras coisas, suas vinculações tradicionais com as posições de direita); somente mais tarde os sentimentos nacionalistas se difundem nas classes populares." (GERMANI, 1960, p. 54.) Mas o nacionalismo das diversas categorias sociais não é o mesmo. Seria equívoco imaginar que o patriotismo do militar, o protecionismo do comerciante e industrial e o antiimperialismo de setores populares expressam o mesmo nacionalismo. São várias e diversas as Nações que estão em causa nas controvérsias nacionalistas.

No século XX, o dilema continua em aberto. Multiplicam-se os debates e estudos sobre a questão nacional, ou seus aspectos. As pesquisas sobre oligarquia, populismo, militarismo, liberalismo e democracia, ou economia primária exportadora, enclave, industrialização substitutiva de importações, dependência, bilateralismo, multilateralismo, imperialismo, dívida externa, muitas vezes, compreendem a problemática nacional. Surgem interpretações sobre a instabilidade política congênita, as dualidades básicas, o círculo vicioso da causação circular cumulativa, a marginalidade social, bem como classes, movimentos sociais, partidos políticos, lutas sociais, golpes de Estado, revoluções e contra-revoluções. Alguns propõem tipologias ou escalas, nas quais poderiam classificar-se as Nações mais ou menos formadas, no continente e nas ilhas.

Vejamos um exemplo, uma espécie de escala de nacionalidades, provavelmente inspirada na conjuntura crítica dos primeiros anos da década dos 60. Então, os governos dos Estados Unidos e dos países da América Latina estavam mobilizados contra a revolução socialista vitoriosa em Cuba desde 1959. Essa revolução reabria a problemática nacional e apontava outro modo de encaminhá-la, resolvê-la. A escala sugere o "grau em que diversos países latino-americanos tornam-se verdadeiras sociedades nacionais". Toma por base "critérios, tais como a integração étnica da população, a história política, no que se refere à coesão ou desorganização, à complexidade da cidade e ao âmbito ocupacional do sistema econômico, ao grau de autonomia ou dependência das zonas rurais e ao poder político do campesinato, no caso de que possua algum, fatores de mobilidade e assim por diante. São estes os países latino-americanos que mais próximos estão de constituir o estado-nação: Uruguai, Argentina, Cuba, Costa Rica e Chile, talvez em escala descendente". A categoria seguinte pode incluir "os países que avançam rapidamente no sentido do estado-nação, com sólido consenso social apoiando essa tendência. Em ordem descendente discutível, tais países são: México, Colômbia, Brasil, Venezuela e, recentemente, a República Dominicana. A terceira categoria inclui os países nos quais os grupos superiores se movem fortemente na direção de metas nacionalistas, enquanto que o corpo social responde com apatia. São eles: Peru, Bolívia, Guatemala, Equador, El Salvador e Panamá, sempre numa ordem discutível E, por fim, em Honduras, Paraguai, Nicarágua e Haiti há lentidão de movimentos, pois quase todos os setores sociais estão estacionários" (SILVERT, 1968, p.16)1.

Não é necessário dizer que essa escala de nacionalidades foi questionada pelos movimentos da história, no âmbito de cada um e todos os países, no continente e nas ilhas. Houve o Chile socialista de Allende e há o fascista de Pinochet; houve a experiência socialista em Granada, liderada por Maurice Bishop, e destruída pela invasão militar norte-americana; houve ditaduras militares, de cunho fascista, na Argentina, Brasil e Uruguai, destroçando experiências democráticas e conquistas culturais da maior importância; houve a vitória da Revolução Sandinista na Nicarágua; há uma revolução popular em marcha em El Salvador. "A guerra dura sete anos. O exército, com um efetivo de 60 mil homens bem armados pelos americanos, não consegue derrotar os seis mil guerrilheiros que combatem o governo, 38% dos quais sob mulheres." (COSTA, 1987, p.7.)

Muita coisa houve e há no curso dessa história. As desigualdades e contradições escondidas nas diversidades nacionais irrompem e revertem periodicamente a fisionomia da Nação.

Castas e Classes

A questão nacional é um dilema que continua em aberto. "Na América Latina não concluímos plenamente a travessia no sentido da unidade nacional" (PALACIOS, 1983, p. 19.) As desigualdades sociais, regionais, raciais e culturais, que se manifestam em termos políticos e econômicos, no âmbito de grupos, classes, movimentos sociais e correntes de opinião pública, ressurgem periodicamente, como desafios. São várias as diversidades que escondem desigualdades, gerando contradições mais ou menos básicas.

Na Argentina, Brasil, Colômbia, México, Peru e Venezuela, entre outros países, continua importante o contraponto região e Nação: província e Nação, costa e serra, planície e montanha, litoral e sertão. Os arranjos entre os interesses predominantes nas regiões e, em especial, entre as regiões e a capital, são básicos para a manutenção de estruturas de poder. O gamonalismo, caciquismo, coronelismo, mandonismo e outras formas de dominação patrimonial, ou oligárquicas, sempre têm raízes na província e na capital. As desigualdades regionais são recriadas, quando não criadas, nos arranjos dos blocos de poder que organizam o governo, regime ou Estado. "Existe uma aliança ofensiva e defensiva, uma troca de favores entre os dominadores da capital e os da província: se o gamonal da serra serve de agente político para o mandão de Lima, o mandão de Lima defende o gamonal da serra quando abusa barbaramente do índio." (GONZÁLEZ PRADA, 1982, p. 175.)

Esse é um tecido antigo, na colcha de retalhos em que se desenha o mapa da Nação, na maioria dos países. Acontece que a Nação burguesa formada na América Latina é uma curiosa montagem. Parece múltipla, desconexa, insólita. Mas está organizada segundo os.princípios do mercado, da liberdade e igualdade de proprietários de mercadorias. Por isso é que o seu principal tecido, as linhas mestras da sua anatomia, revelam-se a partir da economia política (PALACIOS, 1983/CORDERA e TELLO, 1984).

No Brasil, as desigualdades entre índios, negros e brancos são um dilema periodicamente reiterado, na história e no imaginário. O mito da democracia racial não impede que as desigualdades e os antagonismos manifestem-se por dentro e por fora das diversidades, das multiplicidades que parecem coloridas. O índio continua a lutar pela terra, cultura e modo de vida, em condições cada vez mais adversas. "O índio vive com independência. Não precisamos depender de ninguém." Não é verdade que "o branco tenha mais sabedoria que índio" (JURUNA, 1982, p. 219). O índio "vive com o pensamento dele, ele tem sabedoria da própria vida dele. Só não sabe explicar com palavras. Porque foi muito difícil para aprender a linguagem do branco" (Idem, p. 245). O fundamental é "reconhecer o índio brasileiro como povo, como índio da nação e como índio da tribo" (Idem, p. 259). O negro, por seu lado, continua a lutar contra o preconceito, em várias formas. "Como se combater este preconceito que gera marginalização econômica, social e cultural de ponderável faixa da atual população brasileira? Para nós, não adiantam campanhas humanitárias, educacionais ou de fundo filantrópico. Necessita-se criar um universo social não competitivo, fruto da economia de uma sociedade que saia do plano da competição e do conflito e entre na faixa da planificação e da cooperação." (MOURA, 1977, p. 87.)

Na Bolívia, Equador, Guatemala, México, Paraguai e Peru, além das desigualdades regionais e outras, ressaltam as que opõem índio, mestiço e branco, compreendendo as condições sociais, culturais, econômicas e políticas que diversificam, classificam e antagonizam. É como se toda uma larga história, desde os tempos coloniais, estivesse sintetizada no presente. "É inegável que a grande maioria dos índios guatemaltecos — e também uma razoável percentagem de operários agrícolas de origem indígena — carecem totalmente de uma noção sequer geográfica do que é a Guatemala e que, em geral, não participam da pátria guatemalteca, apesar de que a Constituição da República os defina como cidadãos com todos os direitos." (MARTINEZ PELÁEZ, 1979, p. 591-2.)

O que ocorre na Guatemala ocorre no Peru, naturalmente em outros termos. "As comunidades ainda isoladas de índios, não conhecem do Peru senão a bandeira. Não sabem sequer pronunciar o nome da pátria; o universo termina para eles nos limites do distrito; não conheciam nem conhecem, quase todas elas, o nome da província, muito menos o do departamento. 'Bandera piruana!', sim, sabem dizer. E procuram proteger-se com ela das incursões dos fazendeiros, das autoridades políticas, dos policiais. E a agitam quando se sentem felizes." (ARGUEDAS, 1982, p. 272.)

Outra vez, as desigualdades e os antagonismos culturais, econômicos e políticos emergem desde as diversidades raciais. "Nossa forma de governo se reduz a uma grande mentira, porque não merece chamar-se república democrática um estado em que dois ou três milhões de indivíduos vivem fora da lei." (GONZÁLEZ PRADA, 1982, p. 178.)

A rigor, os contornos das Nações indígenas não acompanham exatamente as mesmas linhas estabelecidas pelas Nações burguesas; têm outros desenhos. Às vezes estendem-se muito além, no espaço e no tempo, na história e no imaginário.

As Nações indígenas transbordam da geografia e história. Assim como os três ou quatro séculos de colonialismo invadem o século XX, também as dezenas de séculos de cultura, modo de vida e trabalho de Nações indígenas invadem as Nações burguesas, no século XX. "As fronteiras culturais e lingüísticas da América Hispânica raras vezes coincidem com as estatais, na maioria das vezes traçadas arbitrariamente e freqüentemente modificadas." (MALMBERG, 1974, p. 135.)

Outra vez se põe o contraponto passado e presente, isto é, presente e passado. "A cultura indígena de toda a área andina da Bolívia e Peru tinha tal força, e os índios continuaram a ser tão numerosos, que isto teve conseqüências duradouras na situação lingüística e cultural da zona. Nos Andes peruanos, o quechua continua a ser a língua da população; inclusive, emprega-se em escolas e igrejas, para o ensino e a prédica religiosa. Bem perto da capital podemos encontrar índios que não entendem o espanhol" (Idem, p. 139.)

Em perspectiva histórica ampla, a permanência de Nações indígenas, bem como africanas, de permeio às nacionais formadas desde os tempos coloniais, torna as relações, processos e estruturas sociais bastante complexos e contraditórios; muito além da multiplicidade colorida. Há padrões e valores remanescentes da sociedade de castas, produzida pelo colonialismo e escravismo, subsistindo junto aos valores e padrões da sociedade de classes que emerge a partir do século XIX. Tanto assim que, no século XX, as sociedades nacionais continuam a mesclar o passado e o presente, a casta e a classe, o patrimonialismo e o liberalismo.

Os séculos de colonialismo e escravismo, compreendendo índios, mestiços, negros, mulatos e brancos originários de diferentes nacionalidades, produziram as linhas de casta. Além das desigualdades e hierarquias sociais, econômicas e políticas, desenvolveram-se as diversidades culturais, compreendendo língua, religião, família, padrões e valores culturais, modalidades de consciência, visões do mundo. O escravismo e o colonialismo não subordinaram tudo. A estrutura de castas não dissolveu nem a originalidade nem a força das culturas e modos de vida de quechuas, aymaras, guaranis, maias, astecas, caribes e outras Nações indígenas. O mesmo se pode dizer dos membros de Nações africanas transportados para o Novo Mundo como escravos.

É claro que o fim do colonialismo, a independência das antigas colônias, a abolição da escravatura do negro e do índio, a diversificação das atividades econômicas, a expansão do capitalismo no campo e cidade, a industrialização, a urbanização e outros processos estruturais, criaram a sociedade de classes. O escravo se transforma em trabalhador livre, o senhor em burguês. Tanto assim que emergem outros arranjos da estrutura social, idéias diferentes, novas modalidades de lutas sociais. Os dilemas da democracia, que floresce e fenece, simbolizam muito do que passa a ser a sociedade nacional, a Nação burguesa.

Entretanto, nas estruturas de classes subsistem as linhas de casta. O índio e o mestiço, assim como o negro e o mulato, sabem e sentem que a discriminação que os atinge não é apenas a de classe, do mercado, da sociedade competitiva, mas de raça, isto é, de casta. É como se um remanescente arqueológico, pretérito de longe, fosse recriado cotidianamente na trama das relações de classes. Tanto assim que os trabalhadores brancos, negros, mulatos, índios, mestiços e outros são classificados diferencialmente pelos que os empregam, compram a sua força de trabalho. Aliás, distinguem-se entre si, na mesma fábrica, fazenda e outros locais de trabalho.

Esse problema adquire significado especial, quando queremos compreender como se forma e re-forma a Nação. Tudo leva a crer que a Nação tem a fisionomia burguesa, em geral branca, organizada segundo a racionalidade do mercado, mercadoria, lucro, mais-valia, Tem a máscara das classes dominantes. Não reflete, a não ser em escassa medida, os segmentos subordinados da sociedade nacional. Sem esquecer que esses segmentos estão estruturados em uma forma muito singular, combinando linhas de classe e casta, passado e presente.

Nesse sentido é que o poder burguês expressa, principalmente, uma parte da Nação. A multiplicidade não aparece na organização do Estado nacional, a não ser como ideologia, colorido, folclore. Ao contrário, a multiplicidade não só esconde desigualdades como pode ser manipulada em favor dos que detêm o poder econômico, político, militar. Por isso a história das formas da Nação esconde-se na história das formas do Estado.

São diversas e surpreendentes as formas da Nação na América Latina. Podem ser oligárquica, liberal, populista, autoritária, democrática. O que cabe ressaltar é que a forma da Nação muda ou consolida-se, nesta ou naquela ocasião, conforme o jogo das forças sociais internas e externas. A constituição, hino, bandeira, idioma, moeda, mercado, heróis e santos são apenas alguns elementos de uma realidade histórico-social complexa, contraditória, em movimento.

Terra e Liberdade

A história da formação da sociedade nacional latino-americana é a história de uma longa luta pela terra. No primeiro dia, todos ouviram o grito: — Terra à vista! No depois, sempre, há a colonização, bandeirismo, pioneirismo, busca do ouro, coleta de especiarias, escambo com os nativos, donatárias, sesmarias, escravização do índio e do negro, economia primária exportadora, enclave, industrialização substitutiva de importações, associações de capitais, latifúndio, fazenda, plantação, engenho, estrada, rodovia, barragem, agroindústria, fábrica, cidade. Sempre se repete o grito: — Terra à vista! Desde o primeiro dia, está em andamento a luta pela terra. Desenvolve-se um longo processo de monopolização da propriedade e exploração da terra.

O problema agrário também está na base da questão nacional, como um dos seus aspectos mais importantes. Nos países da América Latina esse problema sempre envolve índios, mestiços, negros, mulatos e brancos nacionais e imigrantes; e não apenas camponeses, operários, grileiros, latifundiários, fazendeiros etc. Estão em causa diferentes formas de organização social e técnica do trabalho, produção e apropriação. A família, a comunidade, a cooperação, a divisão social do trabalho, o camponês e o operário mesclam-se todo o tempo na produção para o mercado e para o autoconsumo.

Durante a época colonial, compreendendo a escravatura e outras formas de trabalho compulsório, já se estabeleciam as linhas mestres de uma estrutura agrária problemática, polarizada na sesmaria, latifúndio, fazenda, plantação, engenho e outras formas de organização social e técnica da produção. É nessa época que se estabelecem algumas das marcas que delimitarão o território nacional.

Depois da independência, com o predomínio dos interesses oligárquicos associados à economia primária exportadora, ao enclave, realizaram-se vastas operações de deslinde e demarcação de terras devolutas, indígenas, comunais, ocupadas. Muitas comunidades indígenas, Nações inteiras, foram desalojadas de suas terras, ou mesmo liquidadas. No México, Nicarágua, Argentina, Brasil e outros países, estava em marcha a organização do Estado nacional, a formação do mercado de trabalho, a monopolização da propriedade da terra. Esse era um capítulo fundamental da revolução burguesa, no qual a criação do trabalhador livre acompanhava a transformação da terra em propriedade privada, mercadoria.

A revolução agrária, provocada pela acumulação originária em curso no século XIX e entrando pelo XX, desalojou, expulsou, proletarizou e lumpenizou muitos trabalhadores rurais. Indios e mestiços aqui, negros e mulatos acolá, além de brancos nacionais e imigrantes em vários lugares, muitos foram e continuam a ser alcançados pelas marchas e contramarchas da revolução agrária que acompanha os desenvolvimentos do capitalismo no campo. Simultaneamente, criam-se, desenvolvem-se ou agravam-se as desigualdades sociais, culturais, raciais, regionais (MOLINA ENRÍQUEZ, 1979/ROMÁN, 1979/LIMA, 1954).

Persiste, no entanto, a luta pela terra. Trabalhadores rurais das mais diversas categorias lutavam, e continuam a lutar, pela posse e uso da terra; pela conservação, conquista ou reconquista da terra. Na maioria dos países, o problema agrário está na base de alguns dilemas tais como: as articulações das regiões com a Nação; as desigualdades sociais, culturais e outras; a metamorfose da população em povo.

Naturalmente, cabe lembrar que a reforma agrária realizou-se em alguns países, e em outros continua a realizar-se. No México, Bolívia, Chile e Peru, entre os países capitalistas, houve distribuição de terras a trabalhadores. No México chegou-se à proposta de ejido coletivo, como uma forma de resgatar as bases econômicas, sociais e culturais da comunidade indígena. Não há dúvida de que houve realizações notáveis em alguns países. Mas também houve e há decepções, recuos. As famílias e núcleos camponeses criados com a reforma agrária acabam subordinados aos mecanismos de mercado, são obrigados a abrir mão de uma parcela crescente do produto de seu trabalho, ou transformam-se em operários disfarçados. Há casos em que as terras distribuídas são as piores, menos férteis, distantes dos meios de comunicação e mercados, ou mesmo impróprias para cultivo e criação. Isto é, o problema agrário passa a colocar-se em outros termos, mas ainda adverso aos trabalhadores rurais.

Acontece que a reforma agrária tem sido uma operação principalmente econômica, a despeito de apresentar-se, à primeira vista, como social, política. Nem sempre é acompanhada de medidas políticas que favoreçam o engajamento do trabalhador rural no sistema nacional de poder, salvo como subalterno, administrado, regulado. Implica na cidadania tutelada, por meio do sindicalismo governamental, a assistência técnica e o crédito manipulados por agências do poder público etc. Ou seja, não se traduz em conquistas políticas democráticas. Tudo se subordina aos mecanismos do mercado, às exigências da produção, produtividade, lucro.

Não há dúvidas de que no México realizou-se uma reforma agrária de amplas proporções. Os governos dizem que "já não há mais terras para entregar aos camponeses". De fato, a reforma agrária modificou drasticamente as estruturas fundiárias do país, destruindo "formas de dominação e exploração" seculares Mas os camponeses passaram a defrontar-se com novas modalidades de subordinação. Estão sujeitos a "uma exploração mais eficaz". Há um "neolatifundismo", resultante da forma pela qual a sociedade camponesa passou a ser submetida ao industrialismo. Os mecanismos de mercado, os processos de financiamento, as exigências da maquinização e quimificação criaram novos e poderosos vínculos dos capitais industrial, bancário e comercial com a produção camponesa. O neolatifundismo opera com base nos "critérios de maximização dos rendimentos econômicos", estabelecidos conforme os movimentos dos mercados nacional e internacional. "Surgiram novas e talvez mais refinadas formas de opressão, que mantêm o campesinato em posição subordinada, dependente, e sujeito a uma exploração mais eficaz." (WARMAN, 1980, p. 27-8.)

A reforma agrária realizada no Peru, a partir da década dos 60, não produziu a emancipação do camponês, índio, mestiço ou branco. As exigências da indústria, comércio e banco logo se tornaram imperativas. O governo e os grupos dominantes, nacionais e estrangeiros, empenham-se em redefinir as relações do campesinato beneficiado pela reforma com as exigências da economia nacional, isto é, do grande capital. Trata-se de abrir possibilidades de operação de empreendimentos agroindustriais, o que envolve a redefinição dos limites da propriedade agrária; criar "dispositivos adequados para capitalizar na agricultura ". Para isso, "o governo do Peru introduzirá mudanças na reforma agrária de 1969- 76, a fim de possibilitar o investimento agropecuário privado, que atualmente é proibido" (TRIVERI, 1987, p, 17).

Nesse sentido é que o problema agrário continua a ser um aspecto importante da questão nacional, Expressa desigualdades e antagonismos sociais que dizem respeito a famílias, grupos sociais e setores de classes, compreendendo remanescentes de Nações indígenas deslocados, expropriados, desenraizados de suas condições de vida, trabalho e cultura.

A terra não se reduz à natureza, ao território; ela é social, histórica; ganha as formas que lhe dá o trabalho. "Às vezes o camponês fala da terra como de algo sagrado." (LACAYO, 1982, p. 224.)

Os sentidos físicos e espirituais dele estão particularmente desenvolvidos no que se refere às suas formas. Para ele, ela pode ser virgem, mata, campo, serrado, pampa, montanha, vale, desmatada, queimada, seca, úmida, fofa, fértil, gorda, semeada, cultivada, descansada, pronta. Sem terra, o camponês sente-se morrer, errante. "É como um zumbi" (LACAYO, 1982, p. 225), arrancado do seu elemento, desenraizado. É da terra que se arrancam as raízes de muita gente, muito povo.

A revolução burguesa não tem sido capaz de resolver o problema agrário, no que se refere aos interesses de amplos setores da sociedade nacional. Pode-se imaginar que as desigualdades originárias desse problema alimentam contradições que podem ser decisivas na emergência de movimentos sociais, protestos, revoltas. Toda revolução popular na América Latina conta com segmentos camponeses, quando não arranca do mundo camponês. A história de Tupac Amaru, Wilka, Antônio Conselheiro, Zapata, Villa, Sandino e muitos outros, desde os tempos coloniais até o século XX, passa pelo mesmo grito: — Terra e liberdade! A revolução socialista em curso no continente e nas ilhas tem raízes distantes, longas.

A Quinta Fronteira

Poucas vezes a Nação se delimita na fronteira. Tanto pode ultrapassá-la como manter-se aquém. O território é um espaço que a sociedade, o povo, os grupos e as classes criam e recriam, na quantidade e na qualidade. Mas o que é singular no território da Nação é que ele é história. Por seu povo, cultura, organização social, atividades econômicas, geopolíticas etc., a Nação transborda da sua fronteira; ou nem chega a alcançá-la.

A problemática nacional sempre implica nas relações externas. A fisionomia do México, no que se refere ao nacionalismo, à valorização da cultura popular, às heranças astecas e maias, à mexicanidade, ao autoritarismo, à matança de Tlatelolco, naturalmente tem relação com a história e vicissitudes da vizinhança dos Estados Unidos. "A perda de mais da metade do território nacional para os Estados Unidos marcou a consciência política da nação até os nossos dias." (CASANOVA, 1985, p. 101.)

Em outros termos, a questão nacional no Uruguai, Paraguai e Bolívia implica nas relações com a Argentina e o Brasil, além dos Estados Unidos; sem esquecer a influência da Inglaterra em tempos passados. Todo o Caribe faz parte de um capítulo fundamental da geopolítica norte-americana. Esses e outros fatos apontam para a importância das relações externas no desenho da sociedade nacional.

Na América Latina, as relações externas constituem uma determinação essencial; entram decisivamente na definição do perfil da Nação. Uns falam em interdependência, parceria, associação etc.; outros se referem à subordinação, perda da soberania, administração externa. Podem mudar as interpretações, mas todos reconhecem a importância das relações externas na conformação externa e interna tanto do Haiti como do México, do Paraguai como do Brasil.

Por isso é que a expressão quinta fronteira pode ser um fato e uma metáfora. No caso do Panamá, é uma realidade decisiva. "Começamos um processo que vai garantir às futuras gerações a erradicação dessa Quinta Fronteira. Porque vejam, vejam este caso: o Panamá limita ao Norte com o Atlântico, ao Sul com o Pacífico, a Oeste com Costa Rica, a Leste com a Colômbia e no centro com os gringos. Onde já se viu!" (TORRIJOS, 1984, p. 17.)

Em outros países, a quinta fronteira pode ser um fato ou uma metáfora. Em 1954, uma invasão de tropas mercenárias organizadas pelo governo norte-americano interrompeu um processo de reformas democráticas da maior importância na Guatemala. Em 1965, uma invasão de forças militares norte-americanas e brasileiras interrompeu uma revolução popular em curso na República Dominicana. Em 1973, a assessoria norte-americana e brasileira foi decisiva para a deposição do governo socialista de Salvador Allende. Em 1983, tropas norte-americanas invadem Granada, interrompendo a experiência socialista do governo Maurice Bishop. Em 1987, o governo norte-americano continua a financiar e organizar tropas mercenárias contra o governo sandinista da Nicarágua. E financia a contra-revolução também em El Salvador. "Foi na America Central que o Pentágono inaugurou o chamado 'conflito de baixa intensidade', modalidade de guerra contra-insurgente que pretende evitar, para os EUA, os custos políticos e militares registrados no Vietnam. Os EUA entram com as armas, o dinheiro, os planos e os assessores; o pais com os soldados." (COSTA, 1987, p. 7.)

Essa é uma longa história, vinda do século XIX, atravessando o continente e as ilhas, os mares e as montanhas, os governos, os regimes e as formas do Estado nacional. Na maioria dos casos, sem metáforas (NEARING e FREEMAN, 1966/ BEMAN, 1928/RONNING, 1970/ BARBER e RUNNING, 1966/ DREIFUSS, 1986).

Porto Rico é um caso particularmente importante do que é a problemática nacional. Colônia da Espanha até 1898 e dos Estados Unidos desde essa data. Um povo com as características históricas, culturais, sociais e raciais construídas no largo de muitas lutas. Entretanto, não alcançou a vitória nas batalhas pela independência travadas contra a Espanha. Foi submetido militarmente pelos Estados Unidos em um momento dessas batalhas. Nunca resolveu o seu dilema. Oscila entre as opções polarizadas pelos três partidos principais: estadista, autonomista e independentista. O estadista propõe a pura e simples transformação da ilha em um estado da federação norte-americana, ao passo que o autonomista preconiza a manutenção da situação atual, vigente desde a década dos 40, quando se formou o Estado Livre Associado. E o independentista luta pela emancipação nacional. É claro que há distintas tendências em cada partido. Mas todos são obrigados a colocar-se à problemática nacional. No independentista, há tendências que levantam a proposta de socialismo, como um modo de resolver a questão nacional e a questão social, em conjunto.

Os partidos autonomista e estadista predominam no cenário político nacional. Às vezes, revezam-se no controle da administração da ilha, sempre em consonância com os interesses organizados nas instituições jurídico-políticas estabelecidas pelos norte-americanos. O estatuto vigente, de Estado Livre Associado, confere a Porto Rico a condição de um país administrado por organizações políticas locais, mas em conformidade com as diretrizes políticas, jurídicas, econômicas, militares e culturais do governo dos Estados Unidos.

Note-se que o portorriquenho é cidadão norte-americano desde 1917. Sua moeda é o dólar. E o inglês é a língua que é obrigado a falar e escrever quando os interesses norte-americanos estão em causa. O Congresso dos Estados Unidos "recruta jovens e os envia à guerra", desde a Primeira Guerra Mundial; "decide quem entra e sai, conforme as suas leis de imigração e emigração; mantém, aqui, um tribunal federal que processa e condena portorriuenhos conforme as leis federais; controla o rádio e a televisão, e sem a sua anuência não se pode levantar em nosso país uma torre emissora, nem enviar ou receber mensagem alguma através destes meios de comunicação". Também "controla nosso comércio e a nossa economia mediante o monopólio". E "mantém um absoluto e incrível controle sobre os fretes marítimos e aéreos". Interfere "com exclusividade nas leis sobre falência, naturalização e cidadania". Inclusive, "dirige com exclusividade as relações exteriores". E "cobre terra, mar e ar portorriquenhos com seu exército, marinha e aviação, sem sequer ouvir o nosso parecer nem consentimento, para encobrir as aparências de um sistema que tem a pretensão de ser democrático" (MALDONADO DENIS, 1974, p. 190-1)2.

Apesar de atravessado pelos compromissos de setores sociais dominantes locais com os norte-americanos, o povo sente-se diferente, diverso, oposto, com referência aos Estados Unidos. Apesar de atravessado pelo bilingüismo, o inglês permanece o idioma externo, referido à coisa pública, ao passo que o espanhol característico do lugar é o idioma que vale para o público e o privado, a razão e o sentimento, a memória e a história, a dita e a desdita.

Quando quer pensar-se no pretérito, durante os quatro séculos de colonização ibérica, pensa-se em espanhol. E quando quer pensar-se no presente, influenciado pela dominação e administração dos norte-americanos, pensa-se em espanhol, complementado pelo inglês. O inglês pode ser indispensável na prática dos negócios públicos relacionados com os interesses dos norte-americanos e seus associados locais. Também o é no que se refere à cultura universal que se encontra nesse idioma, por sua produção original e traduções.

Entretanto, a maioria do povo afirma e reafirma o espanhol como forma de pensar e sentir, ser e devir.

Uma parte essencial da vida e trabalho, história e cultura do portorriquenho, sintetiza-se neste idioma. O espanhol portorriquenho falado e escrito expressa as mais diversas realizações e lutas compreendidas no passado e presente. A produção intelectual revela aspectos fundamentais da nacionalidade, em termos de análises e impressões, ficção e interpretações, memória e história. Não é possível pensar e lutar em Porto Rico sem levar em conta as lutas e os pensamentos de Betances, Hostos, Albizu Campos e muitos outros. São muitas as obras em que muito da nacionalidade portorriquenha se revela como história e imaginário: Antônio S. Pedreira, Insularismo; Tomás Blanco, Prontuário Histórico de Puerto Rico; Manuel Maldonado Denis, Puerto Rico; José Luis González, El País de Cuatro Pisos; Ángel Quintero Rivera, José Luis González, Ricardo Campos e Juan Flores, Puerto Rico: identidad nacional y clases sociales; Manuel A. Alonso, El Gibaro; Manuel Zeno Gandia, La Charca; Luis Pales Matos, Tuntún de Pasa y Grifería; Luis Rafael Sánchez, La Guaracha del Macho Camacho; Luis Hernández Aquino (org.), Cantos a Puerto Rico (Antologia Siglos XIX y XX). Há estudos que buscam essa historia lá longe, como em Tribu y Clase en el Caribe Antiguo, de Francisco Moscoso. Há toda uma memória do povo resgatada e decantada na sua produção intelectual. Tanto assim que o povo portorriquenho pode pensar-se no passado e no presente; e no futuro.

Mas Porto Rico é uma Nação atravessada pela geopolítica norte-americana. Uma geopolítica que não compreende apenas o Caribe, e sim o conjunto da América Latina. Envolve a defesa ou segurança dos Estados Unidos, compreendendo o predomínio desse país nas ilhas e no continente. É óbvio que entram aí interesses econômicos, políticos e culturais, além dos militares. Ainda que um objetivo básico seja a luta ideológica entre capitalismo e socialismo, cabe reconhecer que há interesses norte-americanos no Hemisfério Ocidental que se opõem aos interesses de europeus e japoneses. Convém não esquecer que durante a Segunda Guerra Mundial os norte-americanos aproveitaram para expulsar esses interesses e alargar a sua penetração. Depois, com as várias fases da Guerra Fria, a ilha de Porto Rico continuou a ser importante, redefinida segundo as exigências das conjunturas críticas emergentes no Caribe, América Central e o conjunto da América Latina. O exército, marinha e aviação que cobrem terra, mar e ar portoriquenhos cobrem terra, mar e ar latino-americanos. Porto Rico é um caso singular, extremo, do que tem sido a diplomacia total dos Estados Unidos no Hemisfério Ocidental, que é a expressão mais freqüente nessa diplomacia.

Sob o domínio norte-americano, desenvolveu-se uma revolução burguesa insólita. Verdadeira revolução econômica, com sérias transformações sociais, políticas e mesmo culturais. Mas o povo, mesmo beneficiado por ela, sente-se administrado, ocupado. "As contradições de uma revolução burguesa incompleta e imposta colonialmente encobriram o significado do imperialismo para a luta social e política do proletariado. . . Significava modernização da economia: opressiva e alienante, pelas relações de trabalho capitalistas, mas positiva quanto ao desenvolvimento das forças produtivas, especialmente o trabalho livre, elemento que possibilita a alternativa socialista. Significava, além disso, o estabelecimento das liberdades civis: liberdade de reunião, associação, imprensa, palavra etc., que tornavam possível, por outro lado, o desenvolvimento de organizações operárias." (RIVERA, 1981, p.34-36.)

Uma revolução burguesa colonial, colonizadora, que não resolve a questão nacional.

No entanto, essa sociedade nacional afirma e reafirma as suas peculiaridades no contraponto com os Estados Unidos. Sente-se latino-americana e não norte-americana. Seus heróis são Betances, Hostos, Albizu Campos e muitos outros3. Possui sua história literatura, poesia, teatro, cinema, pintura e outras produções, nas quais ressoam lutas e façanhas nacionais. O seu sentido de humor é uma arma carregada de passado e presente. A irreverência, a burla da solenidade, sermão ou arenga têm raízes na cultura popular. Por sua arte e sátira verifica-se que o povo portorriquenho está decidido a sobreviver "de qualquer maneira" (GONZÁLEZ, 1980, p. 102/SÁNCHEZ, 1983).

É claro que Porto Rico tem as suas contradições internas. As suas diversidades regionais, raciais e culturais são desafios da maior importância, no que se refere ao modo pelo qual se forma e expressa o povo.

É evidente que os partidos principais refletem as divergências e oposições de grupos e classes. As polarizações estadismo, autonomismo e independentismo têm raízes nas diversidades internas. Pode-se mesmo dizer que essas diversidades são trabalhadas em termos práticos e ideológicos, segundo os interesses que predominam na organização do poder que administra o país.

Entretanto, os problemas compreendidos por essas diversidades estão subordinados ao da soberania. Trata-se de uma sociedade com história, façanhas, cultura, povo, literatura, poesia e riso, obrigada ao bilingüismo imposto, à moeda estrangeira, ao passaporte alheio, ao militar da ocupação. "Uma nação não pode existir sem a posse de toda a sua riqueza material. A agricultura, a indústria, o comércio, as comunicações, franquias e toda forma de riqueza têm de estar em mãos nacionais para poder assegurar a vida da nacionalidade." (ALBIZU CAMPOS, 1984, p. 22.)

Trata-se de uma sociedade obrigada a organizar o seu modo de vida e trabalho principalmente, ou exclusivamente, conforme as exigências externas. "Porto Rico apresenta o cenário de um naufrágio dos valores humanos mais importantes: a honra, o patriotismo, o sacrifício. No que se refere à moral, o imperialismo ianque nos levou ao desprezo de nós mesmos" (Idem, p. 24.)

Os mesmos laços que negam, criam novas possibilidades de reafirmação da nacionalidade. As lutas ressurgem em outros patamares. "A independência, como futuro do povo de Porto Rico, depende essencialmente da feliz conclusão de uma luta tenaz em prol da conservação da nacionalidade portorriquenha." (MALDONADO DENIS, 1974, p. 234.)

Os novos patamares criados pelo colonialismo institucionalizado no Estado Livre Associado permitem resgatar lutas e lições passadas. São lutas e lições que, muitas vezes, vêm desde longe, do fundo do povo. "A pátria é a humanidade de um povo. A pátria em Porto Rico a constituimos todos os portorriquenhos." Legalmente, Porto Rico "não pode ser propriedade exclusiva de uns poucos". A pátria sempre quer dizer "comunidade de irmãos. E entre os irmãos, por lei natural, não pode existir amo." (RIVERA, 1981, p. 30)4.

Sob todos os aspectos, Porto Rico é uma Nação sem Estado, no sentido de que não se expressa em um Estado que reflete a cara do povo. Os administradores pensam e falam em inglês. Para comunicar-se com o povo, traduzem para o espanhol. Possuem dupla solidariedade, uma das quais é a principal. Não expressam o idioma, a cultura, a história, a irreverência do povo. Correspondem a um poder alheio, estranho, estrangeiro. Por isso Porto Rico é uma Nação em busca de um Estado.

Estados Associados

A Nação não se delimita na fronteira, mas por suas relações internas e externas, de cunho social, econômico, político e cultural. Não é na geografia que se localiza a fronteira. Ela está na sociedade, Estado, história. O jogo das forças sociais, compreendendo grupos e classes, movimentos e partidos, configura o Estado-Nação: soberano, subordinado, associado etc.

A história de Porto Rico mostra como é um Estado Livre Associado, isto é, administrado segundo os interesses do governo dos Estados Unidos. Um caso extremo, na gama das situações latino-americanas. Revela uma tendência muito forte do que são as relações dos Estados Unidos com os países da América Latina. Tanto assim que se pode afirmar que há outros Estados associados no continente e nas ilhas. Definem-se como soberanos, interdependentes, aliados, parceiros dos Estados Unidos. Mas também podem ser Estados-Livres-Associados. "Uma sociedade vive uma situação colonial quando é governada em função dos interesses econômicos de classes dominantes de uma sociedade estranha." (MARTÍNEZ PELÁEZ, 1979, p. 574.)

Nessa situação, fica difícil descobrir alguns contornos ou algumas determinações essenciais à Nação. "Não existe uma história nacional. Trata-se de uma mistificação, que tem a sua origem no fato de que nossos países têm vivido passivamente a conformação das suas estruturas sociais por forças que operam, principalmente, do exterior; têm sofrido as suas mudanças sociais, em lugar de as promover eles próprios; e que se têm visto empurrados em suas transformações estruturais por grandes mudanças na correlação das forças imperialistas, mudanças com as quais, como é óbvio, pouco têm tido que ver. Paradoxalmente, a atitude de acomodação passiva a forças que atuam de fora, ao inibir todo discernimento no plano da consciência, induz à ilusão oposta: a da autogestão das próprias características, no que estas têm de fundamental E assim se fala em história nacional" (ARRUBLA, 1984, p. 71-2.)

A quinta fronteira vai e vem. Poucas vezes está no território. Mas freqüentemente está nas relações econômicas, políticas, militares, culturais. Influencia ou mesmo cria instituições. Além do mais, os consórcios não têm pátria. Associam-se aqui ou lá, segundo as exigências do movimento do capital. "Se em cada nação não encontrassem gente que, em pequeno, fazem o mesmo que eles em grande, não poderiam dominar tantos povos e propriedades. Entendem-se facilmente com essa gente e, juntos, empenham-se em ganhar mais com o menor esforço." (ARGUEDAS, 1982, p. 211.)

Muitas vezes, setores das classes dominantes, ou classes dominantes inteiras, com os seus associados de classes médias, parecem uma quinta fronteira. "As burguesias nacionais, que vêem na cooperação com o imperialismo a melhor fonte de vantagens, sentem-se bastante donas do poder político para não preocupar-se seriamente com a soberania nacional" (MARIÁTEGUI, 1969, p. 87.)

Daí resulta uma dissociação entre largos segmentos da sociedade nacional e as tendências que predominam nas esferas de poder. "A aristocracia e a burguesia nativas não se sentem solidarizadas com o povo pelo laço de uma história e uma cultura comuns." (Idem, p. 88.)

Em vários casos, as classes dominantes e a maioria do povo parecem raças diferentes, estranhas, como em Nações conquistadas.

Sob vários aspectos, a quinta fronteira é realidade e metáfora. Não apenas no Panamá e em Porto Rico, mas também no México, Brasil, Argentina e outros países. Nos últimos tempos, o volume da dívida externa constituiu-se numa determinação essencial da gestão interna dos assuntos econômicos, políticos e sociais em vários países. Isso implica no desenvolvimento da crise do Estado-Nação. "Em termos reais, os pagamentos anuais de juros dos países latino-americanos consomem até 50% de seu Produto Nacional Bruto. A conseqüência prática é que os juros são pagos não a partir do crescimento econômico, mas graças a novos empréstimos de credores que, por sua vez, produzem uma carga de juros maior nos anos seguintes. A natureza circular do problema é ilustrada pela escalada da dúvida latino-americana desde o início da crise, em 1982: a dívida do México aumentou de US$ 77 bilhões para US$ 102 bilhões; a da Argentina, de US$ 36 bilhões para US$ 53 bilhões; a do Brasil, de US$ 74 bilhões para US$ 108 bilhões." (KISSINGER, 1987, p. 53.)

O círculo vicioso embutido na dívida revive a metáfora da venda do mar pelo ditador perpétuo. Diante de uma dívida descomunal, impossível de ser paga pela Nação, o tirano vende o mar, com todos os seus tesouros, mistérios e magias. "Levaram o Caribe em abril, levaram-no em peças numeradas os engenheiros náuticos do embaixador Ewng para semeá-lo longe dos furacões nas auroras de sangue e de Arizona, levaram-no com tudo o que tinha dentro, meu general, com o reflexo de nossas cidades, nossos tímidos afogados, nossos dragões dementes." (MÁRQUEZ, 1975, p. 238.)

O tema da fronteira está na história e no pensamento latino-americanos. Nem sempre na mesma linguagem, fórmula, cor, som, imagem. Mas é um elemento permanente, uma espécie de obsessão enlouquecida, iluminada.

Umas vezes são os agrimensores que chegam, descidos na planície não se sabe vindos de onde. Deslindam e demarcam as terras indígenas, tribais, comunais, familiares, camponesas, apossadas, devolutas. Transformam toda terra em propriedade privada dos outros, em monopólio de alguns. De nada adiantava provar a posse pelo trabalho, cultura e moradia. Os agrimensores não faziam caso. "Andavam de cá para lá, insolentemente, medindo tudo e anotando coisas em seus livros cinzentos com grossos lápis de carpinteiro." Eles estavam em toda parte, protegidos por homens a cavalo. Uma tempestade sem chuva nem vento. "Muitos camponeses, montados em seus burricos, carregando galinhas e porcos, abandonavam suas choupanas, entre os gritos e as lágrimas das mulheres, para refugiarem-se nas montanhas." (CARPENTIER, 1966, p. 111-2.)

Os agrimensores plantam o que não medra, estiola. Plantam uma fantástica cerca caminhando sem parar, comendo as terras com a voracidade de bicho do outro mundo. "Fazia semanas que a cerca tinha nascido nos capinzais de Rancas." Os homens corriam, temendo ser alcançados "por aquele verme que sobre os humanos levava uma vantagem: não comia, não dormia, nem se cansava". Muitos rezavam "nas praças, aterrados", já que não podiam mais fugir. "Os habitantes das terras baixas podiam embrenhar-se nas selvas ou subir para as cordilheiras. Mas eles viviam no telhado do mundo." Não pode ser outra coisa, "essa cerca é coisa do demo" (SCORZA, 1972,p. 12-3, 29).

A poética da quinta fronteira vai longe. Pode ser a cerca, o canal, a dívida, a invasão, o mar. Mas vai longe, não pára. Pode ser a Anaconda Copper Mining, Mr. Smith, o Presidente Roosevelt. Ela tem muitas formas, está sempre na história e no imaginário dos povos da América Latina, uma obsessão enlouquecida, iluminada.

Outras e muitas vezes se recolocam as formas históricas da Nação: soberana, independente, interdependente, associada, parceira, subordinada, administrada. Só na aparência a fronteira está lá fora. Muito mais freqüentemente está no de dentro, que leva para fora (MELO NETO, 1986, p.70-5)5.

Esse é um dos dilemas que reabrem periodicamente o debate sobre o conjunto dos países do continente e das ilhas. Por isso em todo debate sobre a questão nacional formam-se correntes visando acomodar ou resolver o dilema da quinta fronteira, em escala internacional: Monroísmo e Bolivarismo, Hemisfério Ocidental e Ibero-americanismo, Imperialismo e Nuestra América. A utopia de Bolívar, Martí, Betances, Sandino e muitos outros ilumina muita história. Cada um e todos lançam desafios e abrem horizontes. Sintetizam lutas e façanhas de grupos e classes, movimentos sociais e partidos políticos.

Cada experiência, vitória ou derrota é uma façanha que pode abrir perspectivas para outros, ou todos. "Porto Rico e as outras Antilhas constituem o campo de batalha entre o imperialismo ianque e o ibero-americanismo. A solidariedade ibero-americana exige que cesse toda ingerência ianque neste arquipélago, para restaurar o equilíbrio continental e assegurar a independência de todas as nações colombianas. Dentro dessa suprema necessidade, é imprescindível nossa independência. Nossa situação dolorosa sob o império dos Estados Unidos é a situação que Norte-América pretende impor a todos os povos do continente. Nossa causa é a causa continental. Os pensadores ibero-americanos vêem claro o problema conjunto da América Ibérica diante do imperialismo ianque. Se triunfa a absorção norte-americana em nossa terra, o espírito de conquista ianque não terá freios..." (ALBIZU CAMPOS, 1984, p. 19-20.)

A quinta fronteira é uma determinação essencial dos contornos e movimentos de cada sociedade nacional. Pode ser realidade ou ficção: canal, base militar, enclave, joint venture, doutrina de segurança nacional, civic action, guerra de baixa intensidade ou low profile, indústria cultural, idioma do outro, valores da civilização ocidental e cristã interpretados pelo governo norte-americano, Estado-Livre-Associado. Tanto articula a associação, parceria, interdependência entre setores dominantes estrangeiros e locais, como desenvolve desigualdades e antagonismos internos, compreendidos nessas mesmas relações. Pode-se dizer que a descoberta, ou invenção, da quinta fronteira é um momento essencial da questão nacional. É olhando no de fora que se descobre o que está dentro. O de dentro fica mais nítido, quando se vê o que se levou para fora.

A Nação Imaginária

A Nação está na história e no imaginário. É uma realidade inquestionável, consubstanciada na sociedade civil e no Estado. Mas também é uma fabulação. Ressoa no pensamento do historiador, filósofo, escritor. A Nação que aparece no imaginário, não é a da história. Não está no real. Pode nascer de um incidente, personagem, situação. Mas não permanece nesse ponto. Solta-se nos espaços e movimentos propiciados pelo idioma, a cor, o traço, a imagem, o som. No romance, poesia, teatro, pintura, música, cinema, ela é fantasia, quimera, obsessão. É fruto da inventiva, liberdade poética, linguagem, imaginação. Há muitas Nações no imaginário latino-americano. Cada época, escola, tendência artística cria o mundo à sua feição. Talvez se possa mesmo dizer que a Nação latino-americana tem sido barroca, romântica, parnasiana, realista, moderna, mágica. A do imaginário, é pura invenção.

Na produção intelectual sobre a ditadura, a Nação histórica e imaginária revela-se particularmente nítida, surpreendente, insólita. Há escritos sobre as formas do Estado, os regimes políticos, os populismos e militarismos, nos quais o que se procura é conhecer a anatomia da ditadura.

A ditadura pode ser uma configuração particularmente extrema da problemática nacional. Essa é uma época em que a Nação é levada a fundir-se no poder estatal. A figura do ditador personifica o governo, o regime, o Estado e a Nação. Tudo se refere a ele. Tanto assim que o maniqueísmo toma conta de todos. Quem não é favorável ao governo, é contra. Impossível a indiferença, a dúvida.

Há ditaduras de meses, anos. Outras levam décadas. Podem ser abertas e disfarçadas, civis e militares. Há perpétuas, marcando de modo profundo a cultura política nacional, o estilo de governo, as estruturas estatais, a visão da história, pretérito e presente.

A freqüência, força e duração das ditaduras produzem uma espécie de obsessão na vida e pensamento latino-americanos. Esse é um tema que atravessa o continente e as ilhas. Várias formas de Estado confundem-se com ditaduras abertas ou dissimuladas, civis ou militares, episódicas ou perpétuas. Por isso é que na história e sociologia, teatro e cinema, romance e poesia, é grande a presença do ditador, ditadura ou tirania. "Na América hispânica a ditadura é, ao mesmo tempo, a forma de governo mais freqüentemente praticada e a mais fundamentalmente desprovida de legitimidade. Sendo assim, não é surpreendente que o exame das raízes históricas das ditaduras hispano-americanas tenha sido tão amiúde, empreendido na perspectiva de um conflito entre o vício e a virtude." (DONGHI, 1986, p. 24.)

É tão importante o desafio prático e teórico representado pela recorrência e força da ditadura, que alguns encontram as suas raízes no passado distante, remoto, colonial, absolutista, ibérico, da contra-reforma. O desafio é tão forte que o pensamento e a imaginação deslocam-se para a larga duração, a filosofia da história, a evasão sofisticada, erudita, pretérita. A proliferação de regimes autoritários "não é uma aberração moral ou política, mas a manifestação de um estilo de comportamento político, uma disposição secular da sociedade latino-americana" (VÉLIZ, 1984, p. 15). Como a matriz está no passado, o presente está condenado. Pode resignar-se à sabedoria do pretérito.

Em vários momentos a história e o imaginário confundem-se. No empenho de buscar as condições, origens e raízes da tirania, alguns parecem reificar o passado. Abandonam o jogo das forças sociais, perdem de vista a historicidade das conjunturas críticas, desesperam-se diante da recorrência, força e duração da tirania.

Ocorre que a tirania latino-americana muitas vezes supera a imaginação. Apresenta-se como uma realidade inverossímil. É algo que é dado na história e vida das pessoas, grupos, classes, sociedade. É verossímil, mas contém um elemento de absurdo, paroxismo, loucura. "Cardoza y Aragón disse um dia a Carpentier que a realidade supera os romances de ditadores. Carpentier respondeu que se os romancistas narrassem a realidade seus romances seriam 'inverossímeis'. 'A realidade é inverossímil', replicou Cardoza, acrescentado uma reflexão impessoal: — "Há algo mais. . . A imaginação não pode inventar um Somoza." (CASANOVA, 1986, p. 222.)

Um personagem particularmente importante na produção artística latino-americana é o tirano. Está no romance, poesia, teatro, pintura e outras formas. Metido em incidentes, vivendo situações. Em vários romances, o tirano é o personagem principal, em torno do qual gravitam ministros, secretários, diplomatas, empresários, fazendeiros, intelectuais, duplos, sombras; ao mesmo tempo que aí gravitam a sociedade, a história, a Nação. Alguns exemplares notáveis da galeria de tiranos são criados por Miguel Ángel Asturias, El Señor Presidente; Alejo Carpentier, El Recurso del Método; Arturo Uslar Pietri, Oficio de Difuntos; Jorge Zalamea, El Gran Burundún-Burundá ha Muerto; Oduvaldo Vianna Filho, Papa Highirte; Gabriel García Márquez, El Otoño del Patriarca; Augusto Roa Bastos, Yo El Supremo. Esses são alguns textos, dentre os que lidam com o tirano, como personagem, coleção de incidentes e situações; ressoando a sociedade, a história e a Nação.

Todos estão empenhados em desvendar o mistério da tirania, sem danificar o tirano. Trata-se de compreendê-lo vicariamente, desvendar o seu modo de pensar, sentir, agir. Buscar o segredo do seu poder, como graça e danação. Nos romances sobre ditadores latino-americanos "percebemos o poder através dessa figura carismática que o exerce, a qual revela a aparência de toda potestade humana. Nossa percepção do poder é a da pessoa que o conquistou e a ele se aferra até não ser nada mais do que isso, poder" (RAMA, 1976, p.16).

O poder do tirano está em que ele absorve e sintetiza não só o governo, o regime e o Estado, mas também a sociedade, o povo e a Nação. Esta realiza-se e dissolve-se nele. "O Supremo é a abstração da Nação, não é humano e encarna-se na pessoa do Dr. Francia." Tudo está iluminado e sombreado pela mesma figura, singular e plural. "O poder de Francia é, paradoxalmente, incorpóreo (transcendental) e também encarnado em um ser humano mortal, que trata o Paraguai como se fora uma extensão da sua própria pessoa." (FRANCO, 1986, p. 186, 188.)

O que sobressai é a Nação representada, personificada, sintetizada, simbolizada e dissolvida no tirano. O tirano como presidente, generalissimo, magistrado, supremo, patriarca. Princípio e fim de todas as coisas, de todos. Ele institui o presente e o passado. Movimenta ou estanca o devir. Tem o poder de instituir a ordem e o progresso. "O Supremo é aquele que o é por sua natureza. Nunca nos lembra outro senão a imagem do Estado, da Nação, do Povo, da Pátria. "(ROA BASTOS, 1977, p. 56.)

Institui o certo e o errado, o permitido e o proibido, dissolvendo a realidade no inverossímil, fazendo tudo universal. "Dito-te uma circular a fim de instruir os funcionários civis e militares sobre os fatos cardinais de nossa Nação. Quando a lerem, estes bestas analfabetos acreditarão que falo de uma Nação imaginária." (Idem, p. 52.)

A figura do ditador, manifesta e desenvolvida nas relações com os seus coadjuvantes, expressa aspectos mais ou menos fundamentais da situação nacional. Independentemente das escolas literárias em que se inscrevem, da qualidade artística de cada um, os romances retratam aspectos importantes da questão nacional. São vários os temas e dilemas neles presentes. Lidam com as mais variadas expressões da cultura latino-americana. Apontam as diversidades raciais, culturais, religiosas, lingüísticas, econômicas, políticas, regionais, sociais. Mostram a difícil e contraditória metamorfose da população em povo, das múltiplas formas sociais de vida e trabalho em sociedade nacional, Estado-Nação. Revelam a metamorfose da história em façanha, do tempo em duração, do tirano em prisioneiro da tirania. Em vários países, se não em todos, há romances que constróem a fisionomia da sociedade nacional, enquanto história, cultura, lutas sociais, vitórias, derrotas, façanhas. Fica bastante nítida a ressonância da Nação no romance; e deste na imagem que uns e outros podem construir da Nação. Na América Latina, o romance inventa a sociedade nacional.

A Nação espelha-se na figura do ditador. O ditador é levado às últimas conseqüências, enquanto fantasia do escritor. O tratamento literário dessa figura permite levá-la aos mais incríveis paroxismos. A ambição de mando eleva o poder ao absurdo, de tal modo que o tirano se imagina absoluto, em si. De tão longe que se leva, como figura e figuração do poder, acaba por perder quaisquer vínculos com os outros: familiares, auxiliares, secretários, ministros, setores sociais, povo, população. É tamanho o isolamento em que se põe que termina por sentir-se imagem, reflexo, sombra de si mesmo. Aos poucos, sente-se tão só que se imagina vendo-se póstero, depois de ter existido. Aí descobre plenamente o ponto de vista do povo. Parecia respeitado, seguido, admirado, idolatrado. Na realidade, era invejado, desconfiado, temido, odiado, satirizado.

O paroxismo do poder revela-se na solidão e desdobra-se na duração do tempo. Para ele, o tempo não passa, repassa; não flui, reflui. Adquire o contorno do círculo fechado, torna-se estático, parado, mesmo, atônito, prisioneiro de si. De tanto dominar a todos e a tudo, as atividades e as opiniões, os amigos e os inimigos, o perto e o longe, o tirano acaba por desprezar o curso da história, os movimentos da sociedade, as façanhas do povo. Fecha-se num círculo atônito, monumento de si mesmo petrificado. Glória e vítima do seu poder perpétuo, granítico. Imagina que a duração da sua estátua pode alterar a duração da história.

O escritor do romance da ditadura não escapa ao fascínio da sua criação. Na singular dialética das relações criador e criatura, aos poucos, fica imperceptível a linha que separa o real e o imaginário, a figura e a figuração, a pessoa e o personagem,

o dito e o mito. De tanto compreender o poder, evitando satanizar ou angelizar o ditador, o escritor parece entregar-se ao seu personagem, tornar-se cúmplice do algoz. Quem inventou o romance : o escritor ou o tirano? Esse o preço que o artista paga para desvendar os paroxismos da sua criatura. O pathos da tirania arrasta o leitor, o tirano e o escritor.

Mas é mera aparência o fascínio do ditador sobre o escritor e o leitor. A narração flui todo o tempo sob o signo do riso. Desde o primeiro momento, o humor permeia a construção da narrativa. A força do poder, o desmesurado da façanha, a insólita duração do tempo, a reversão da figura do ditador em outro, duplo, sósia, sombra de si mesmo, a construção de obras públicas monumentais, a reprodução de palácios, capitólios, templos e óperas de modelos estrangeiros, a venda do mar para pagamento da dívida, o palácio do governo transformado em estabulo, os tapetes e as cortinas feitos pastagens de vacas, são muitas as invenções que desvendam a paródia. Tudo é iluminado pela ironia, caricatura, escárnio, grotesco, gargalhada, riso devastador. Tudo se carnavaliza, a partir de uma profunda, surpreendente e insólita compreensão do tirano visto na ótica do povo.

A Nação está na história e no imaginário. Umas vezes a história vai além da imaginação. Outras, é esta que revela o que não se vê na história.

Talvez se possa dizer que a Nação seja uma singular criatura, uma estranha obra de arte. Nela sintetizam-se as façanhas da sociedade civil e a força do Estado demiurgo. A comunidade ilusória não é o Estado, mas a Nação que aparece na história e no imaginário. Tanto assim que ela pode ser barroca, romântica, parnasiana, realista, moderna, labiríntica, mágica. Como o são os que a formam, quando lhe incutem a imaginação.

História e Nação

A Nação não surge pronta, acabada. Forma-se e conforma-se ao longo da história. Nasce e renasce, segundo os movimentos do seu povo, forças sociais, formas de trabalho e vida, controvérsias e lutas, façanhas e utopias. Resgata ou esquece tradições reais e imaginárias, conforme a fisionomia que se pretende construir no presente, segundo a utopia que vai buscar no futuro. Está sempre em movimento. Afina e desafina.

O hino, bandeira, idioma, moeda, mercado, meios de comunicação, instituições, padrões, valores, heróis, santos conferem a todos a ilusão de que fazem parte da mesma Nação. O operário, camponês, empregado, funcionário, artesão, comerciante, estudante, intelectual e outros, compreendendo o índio, mestiço, negro, mulato, amarelo e branco são levados a imaginar-se no espelho do hino, bandeira, idioma, moeda, mercado, governo, regime, Estado.

Mas a Nação está atravessada por diversidades sociais, culturais, políticas, econômicas, regionais, raciais e outras. Uns afirmam que elas são naturais, inevitáveis, como o colorido da multiplicidade; que as desigualdades são incidentes na conformação das diversidades. Outros alegam que as desigualdades freqüentemente escondem-se nas diversidades; que os antagonismos espreitam todo o tempo, desde as diversidades sociais, raciais, regionais, culturais e outras.

Entretanto, o que reina, sobretudo e sobretodos, é a ilusão da identidade simbolizada no Estado.

O Estado não só simboliza como é levado a interferir nas relações internas e externas que configuram a Nação. A partir dos interesses que representa, ou interpreta, confere à sociedade nacional esta ou aquela direção. Às vezes detém uma grande capacidade de mando, ou desmando, podendo incutir na sociedade esta ou aquela direção. Outras vezes parece estar em descompasso, desligado ou mesmo oposto às tendências da sociedade.

São as forças sociais presentes na sociedade civil que conferem ao Estado, em última instância, a capacidade de exercer este ou aquele comando, direção. O povo, os grupos sociais e as classes sociais, por sua atividade na política, economia e cultura, criam e recriam as condições de organização do governo, regime, Estado. As formas do Estado, as recorrências do autoritarismo e as vicissitudes da democracia têm as suas raízes nas relações internas e externas que movimentam a sociedade civil. Mas a sociedade civil não se esgota na constituição, códigos, instituições, sindicatos, partidos, movimentos sociais e correntes de opinião. Ela tem raízes, também, nas diversidades e desigualdades sociais, culturais, regionais, raciais e outras, sem as quais se torna pouco inteligível.

A problemática da questão nacional está presente em boa parte da produção intelectual relativa a cada um e todos os países da América Latina, no continente e nas ilhas. Está na história e sociologia, teatro e cinema, pintura e música, romance e poesia. Nessa produção, ressoam e multiplicam-se os temas, de tal maneira que a Nação parece vagar na história e no imaginário.

Talvez se possa dizer que algumas das principais obras da produção intelectual latino-americana lidam com aspectos mais ou menos relevantes da questão nacional. A menção de obras relativas a alguns países pode dar uma idéia do desafio reiterado que essa problemática exerce entre cientistas sociais, filósofos, escritores, artistas.

ARGENTINA: Domingo F. Sarmiento, Facundo (Civilización y Barbárie); Juan B. Alberdi, Bases y Puntos de Partida para la Organización Política de la República Argentina; Ezequiel Martinez Estrada, Radiografia de la Pampa; José Hernández, Martin Fierro.

PERU: José Carlos Mariategui, Siete Ensayos de Interpretación de la Realidad Peruana; Víctor Raúl Haya de la Torre, El Imperialismo y el Apra; José Maria Arguedas, Todas las Sangres; Julio Cotler, Estado y Nación en el Perú.

MÉXICO: Andrés Molina Enríquez, Los Grandes Problemas Nacionales; Samuel Ramos, El Perfil del Hombre y la Cultura en México; Octavio Paz, El Laberinto de la Soledad; Pablo González Casanova, La Democracia en México; bem como a pintura muralista mexicana de Orozco, Rivera e Siqueiros.

PORTO RICO: Antonio S. Pedreira, Insularismo; Tomás Blanco, Prontuário Histórico de Puerto Rico; Manuel Maldonado Denis, Puerto Rico: una Interpretación Histórico-Social; José Luis González, El País de Cuatro Pisos; Ángel G. Quintero Rivera, "Clases Sociales e Identidad Nacional", Luis Pales Matos, Tuntun de Pasa y Grifería; Manuel A. Alonso, El Gibaro.

BRASIL: Oliveira Vianna, Evolução do Povo Brasileiro; Gilberto Freyre, Interpretação do Brasil; Sérgio Buarque de Holanda, Raízes do Brasil; Caio Prado Júnior, Evolução Política do Brasil; José Honório Rodrigues, Aspirações Nacionais; Raymundo Faoro, Os Donos do Poder; Florestan Fernandes, A Revolução Burguesa no Brasil; Lima Barreto, Triste Fim de Policarpo Quaresma; Mário de Andrade, Macunaíma.

Todos estão interessados em compreender como se forma o povo, a sociedade, o Estado, a Nação; em certas conjunturas ou no largo da história. Colocam-se os dilemas relativos às diversidades sociais, culturais, raciais, regionais e outras. Resgatam e esquecem tradições reais e imaginárias, ao mesmo tempo que narram controvérsias e lutas, façanhas e utopias. Querem formar ou conformar a Nação ao passado ou futuro, desde o presente.

Na América Latina, a Nação parece encontrar-se sempre em formação. Não está no começo, avançou muito, mas continua a articular-se e rearticular-se, buscando o seu lugar. Quase todos os países contam com várias, ou muitas, constituições em sua história. Tiveram que começar de novo, recomeçar muita coisa, ou tudo. Os golpes, os surtos de autoritarismo, as ditaduras perpétuas povoam a história. A democracia floresce e fenece.

O povo continua a formar-se, se compreendemos que povo é uma coletividade de cidadãos. O que predomina é a população de trabalhadores, na qual encontram-se camponeses, mineiros, operários, empregados e outros; em geral, compreendendo índios, mestiços, negros, mulatos, amarelos, brancos. Uma população heterogênea, aglutinada ou dispersa, quanto às características culturais, lingüísticas, religiosas e outras. População espalhada e concentrada, na cidade e campo, nesta ou naquela região. Os grupos, classes, sindicatos, partidos, movimentos sociais e correntes de opinião pública estão atravessados pelas diversidades culturais, raciais e regionais. São várias as condições históricas — naturalmente, segundo as peculiaridades de cada país — que dificultam ou distorcem a metamorfose da população de trabalhadores em um povo de cidadãos; pessoas que pertencem e sentem-se pertencer à sociedade nacional.

Acontece que a sociedade civil e o Estado encontram-se e desencontram-se. Freqüentemente dissociam-se. A sucessão de crises, golpes de Estado, ditaduras e interrupções de experiências democráticas assinalam o periódico divórcio entre as tendências predominantes na sociedade civil e as do Estado. O Estado nem está solto no ar, nem é demiurgo. Mais freqüentemente, é prisioneiro de pequenos grupos, as classes econômica, política e militarmente mais fortes; os que mandam.

Daí a impressão mais ou menos permanente de que a Nação é provisória, está por formar-se, procura o seu lugar na história. Pode ser oligárquica, liberal, populista, autoritária, democrática. Está sempre em movimento. Afina e desafina. Sim, a Nação não está pronta, acabada. Ao contrário, as crises e rupturas sucedem-se. Depois de décadas de um processo democrático ascendente, pode ocorrer o retrocesso, o golpe de Estado, a recorrência autoritária, a ditadura. Destróem-se vastas conquistas sociais, políticas e culturais. Precisamente os que falam em civilização, Ocidente etc., mergulham a sociedade na barbárie fascista.

Há conjunturas críticas nas quais o Estado e a sociedade civil dissociam-se bastante, estranham-se amplamente. Diante da violência organizada e concentrada no Estado militarizado, a serviço do grande capital, o povo resiste, subsiste. Mas dá a impressão de que vaga perdido na solidão dos pampas, coxilhas, planaltos, costas, serras, montanhas, vales, matas, campos e construções. Muitos são obrigados a confinar-se dentro de si. Parecem sonâmbulos, zumbis extraviados de um país inexistente.

"No que se refere à sociedade, ia-se arraigando a idéia da desproteção, o obscuro temor de que qualquer um, por inocente que fosse, poderia cair naquela infindável caça às bruxas, apoderando-se de uns o medo paralisante e de outros uma tendência consciente ou inconsciente para justificar o horror. Por algum motivo será, murmurava-se, em voz baixa, como que querendo, assim, abrandar os terríveis e inescrutáveis deuses, vendo como empesteados os filhos ou os países desaparecidos... No delírio semântico, polarizado por expressões como 'marxismo-leninismo' 'apátridas', 'materialistas e ateus' 'inimigos dos valores ocidentais e cristãos', tudo era possível Desde aquele favorável a uma revolução social até os adolescentes generosos que iam às favelas para ajudar seus moradores, todos caíam na rede: dirigentes sindicais que lutavam por uma simples melhora de salários, jovens que tinham sido membros de um centro estudantil, jornalistas que não eram devotados à ditadura, psicólogos e sociólogos por pertencer a profissões suspeitas, jovens pacifistas, freiras e sacerdotes que haviam levado os ensinamentos de Cristo às favelas. E amigos de qualquer um deles, e amigos desses amigos, gente que havia sido denunciada por vingança pessoal e por seqüestrados submetidos à tortura." (Comisión Nac. Desaparición de Personas, 1985, p. 9-10.)

Poucos são os países latino-americanos que não passaram algum tempo, ou largo tempo, por esse horror. Esses são fatos antigos e atuais, pretéritos e presentes. Estão incrustados em agências do poder estatal, na cultura política de grupos e classes dominantes. A repressão contra os descontentes, os que lutam por conquistas sociais, os que almejam uma sociedade alternativa, converte-se em "exercício administrativo" regular. "A piedade e a compaixão tornam-se desonrosas" (MORSE, 1982, p. 160), para quem exerce a sagrada missão de salvar a pátria militar, a civilização cristã, o mercado do capital.

Nem por isso, no entanto, apagam-se as lutas pela democracia política e social. Os mais diversos setores da sociedade, na cidade e no campo, por seus movimentos sociais e partidos políticos, insistem nas suas reivindicações sociais, políticas, econômicas, culturais. Em todos os lugares, as reivindicações e lutas reabrem a problemática da questão nacional. No limite, a Nação está em vias de realizar-se de forma mais plena quando se organiza nos moldes de uma democracia política e social. Nesse momento é que a maioria aparece no âmbito do Estado-Nação.

A Nação tem adquirido a fisionomia que lhe conferem os que mandam, nesta ou naquela época. Tanto assim que tem sido oligárquica, liberal, conservadora, populista, autoritária democrática. São distintas as formas da Nação burguesa. Mas pouco, ou nada, expressam do operário, camponês, empregado e outras categorias que compõem o povo; pouco ou nada expressam das diversidades e desigualdades regionais, culturais e outras. Em geral, subsiste a impressão de que não se conclui nunca a sua formação.

Talvez se possa afirmar que as revoluções burguesas verificadas nos países latino-americanos não resolveram satisfatoriamente alguns aspectos básicos da questão nacional. Em quase todos os países, não se formou o povo, como coletividade de cidadãos. O operário, camponês, empregado e outras categorias, muitas vezes como índio, negro ou branco, não ingressaram de forma ampla nos espaços da cidadania. As diversidades e desigualdades sociais, raciais, regionais e culturais, expressas em termos políticos econômicos, mostram que a fisionomia da Nação burguesa pouco ou nada reflete da cara do povo.

As revoluções populares em curso na América Latina no século XX sugerem outras formas de organizar a sociedade nacional, o Estado-Nação.

Pode-se dizer que um dos segredos da revolução cubana, assim como da sandinista, está em que são revoluções nacionais, ao mesmo tempo que sociais. Fundam-se nas desigualdades que a revolução burguesa, em Cuba e na Nicarágua, não foi capaz de resolver, ou encaminhar de modo a articular maiores segmentos da população em termos de povo, de coletividade de cidadãos. Além das contradições de classes, em âmbito interno e externo, entram em causa as contradições culturais, raciais e regionais. Isto é, o operário, camponês, mineiro, empregado e outros ingressam na luta também como membros de um povo desprezado por suas características culturais e raciais.

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Bibliografía

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  • *
    Texto apresentado no Simpósio
    Interpretações Contemporâneas da América Latina, realização do Instituto de Estudos Avançados — Universidade de São Paulo — São Paulo, 24 e 25 de junho de 1987 - Sala do Conselho Universitário.
  • 1
    Consultar também Gino Germani no seu livro: "Política y sociedade en una época de transición" (1962).
  • 2
    Depoimento de Yamil Galib, diante da Comissão do Estatuto, transcrição de Manuel Maldonado Denis.
  • 3
    Estes são alguns mártires das lutas dos últimos anos: Arnaldo Dario Rosado, Carlos Soto Arrivi, José Rafael Caballero, Santiago Mari Pesquera, Carlos Muñiz Varela, Angel Charbonier e Angel Rodriguez Cristóbal.
  • 4
    As declarações entre aspas - conforme Ángel Quintero Rivera - são de Ramón Romero Rosa, tipógrafo e líder operário, 1904.
  • 5
    Alusão ao poema "Generaciones y Semblanzas".
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      31 Mar 2006
    • Data do Fascículo
      Mar 1988
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