TRANSCRIÇÕES E NOTAS
Carvão vegetal no Brasil: gestões econômicas e ambientais* * Publicado originalmente em São Paulo Energia, nº 64, maio/junho de 1990
José Otávio Brito
Engenheiro florestal, mestre e doutor pela ESALQ/USP. Atualmente, exerce a função de professor-assistente-doutor do Depto. de Ciências Florestais da ESALQ/USP, na área de Recursos Energéticos Florestais
1. O contexto maior
Nas últimas duas décadas, foram adotados importantes redirecionamentos no que diz respeito ao uso de energia no Brasil. Na esteira da crise do petróleo, surgiram várias proposições para a utilização de novas e renováveis opções energéticas. Nesse contexto,"descobriu-se" na biomassa um grande potencial energético, o que resultou no lançamento de vários programas, sendo o PRO-ÁLCOOL o exemplo maior. No passado, com uma modesta participação, o álcool e o bagaço, resultante de sua produção, hoje representam cerca de 10% do consumo nacional de energia.
No despertar do interesse sobre o uso de biomassa para fins energéticos, surgiram também várias propostas referentes ao emprego da biomassa florestal. Foi nesse instante que houve um importante despertar de atenção quanto ao papel da madeira como fonte de energia em nosso País. O principal aspecto a chamar a atenção foi o da expressiva participação da madeira na história do consumo energético nacional. Até o ano de 1972, a madeira representava a primeira fonte de energia do País. Somente em 1973 é que a sua liderança foi perdida para a energia derivada do petróleo, e somente em 1978 é que ela foi suplantada pela hidroeletricidade.
A tendência histórica do rápido declínio da participação da madeira no balanço energético nacional sofreu uma grande redução entre as décadas de 70 e 80, principalmente em função da crise do petróleo. Apesar de previsões passadas de que a madeira tenderia a desaparecer do cenário de consumo de energia em nosso País, hoje ela ainda se mantém firme na posição de nossa terceira fonte energética, representando em torne de 17% do total da energia consumida. A crise de oferta de energia elétrica, preconizada para a atual década, provavelmente se incumbirá de manter a madeira nessa posição até o final do século.
Se a posição ocupada pela madeira no balanço energético nacional é expressiva, os números envolvendo os volumes absolutos de consumo são de causar ainda maior impacto.
Segundo os dados do Balanço Energético Nacional, entre os anos de 1970 e 1988 o nosso consumo de madeira para energia situou-se em torno dos 170 milhões de metros cúbicos por ano. Tomando-se o ano de 1980 como referência, o consumo nacional de madeira como matéria-prima para indústrias de serrarias, indústrias de chapas e similares e indústrias de celulose e papel foi de cerca de 40 milhões de metros cúbicos.
Esses simples números indicam que o consumo de madeira para energia vem suplantando de longe os tradicionais consumos industriais de madeira do País. Apesar disso, não temos dado, na devida proporção, a atenção para tal realidade. Na maioria das vezes, as questões relativas ao uso da madeira para energia são tratadas de forma marginal, principalmente no momento da tomada de decisão de ordem estratégica para o País, quer seja no âmbito do setor energético, quer seja no âmbito do setor florestal brasileiro.
2. O papel do carvão vegetal
Se a madeira tem grande destaque como fonte de energia em nosso País, grande parte desse fato é devido ao carvão vegetal que dela é oriundo. No ano de 1988, foram empregados em nosso País em torno de 114,0 milhões de metros cúbicos de madeira destinada à obtenção de carvão vegetal. Representando 67,0% do total de madeira usada para energia no Brasil naquele ano, tal volume permitiu a produção de aproximadamente 11,0 milhões de toneladas de carvão vegetal. Esse número coloca o Brasil como o maior produtor mundial de carvão vegetal.
A produção de carvão vegetal, no Brasil, é destinada ao atendimento da demanda de diversos segmentos da indústria (siderurgia, metalurgia, cimento, etc.), bem como para utilização residencial urbana e rural. A principal utilização, no entanto, se faz ver na indústria de siderurgia.
Em 1988, o consumo de carvão vegetal na siderurgia nacional situou-se na ordem de 7,8 milhões de toneladas, ou seja, 86,7% do consumo nacional do produto.
Na siderurgia a carvão vegetal, estão concentradas pelo menos 1/4 de toda nossa produção de ferro-gusa e 1/2 de toda nossa produção de ferro-liga. Nesse parque, estão lotadas um pouco mais de uma centena de empresas, todas praticamente pertencentes à iniciativa privada. Computando-se desde a atividade da produção florestal, passando pela atividade de produção de carvão vegetal e de produção siderúrgica, o setor gerou, no ano de 1988, mais de 250 mil empregos, proporcionou uma geração de impostos de quase 400 milhões de dólares e um faturamento de cerca de 3,4 bilhões de dólares no mercado interno e de quase 1,0 bilhão de dólares com exportações.
Nesse ponto, é importante mencionar que, ao contrário do que ocorre na siderurgia a carvão vegetal, a siderurgia nacional baseada no coque de carvão mineral possui uma alta dependência externa. Em torno de 80% do carvão usado em nossa siderurgia a coque são importados, o que tem representado saídas anuais importantes de divisas de nosso País. O carvão mineral nacional, quantitativamente suficiente para a obtenção de coque siderúrgico, não o e qualitativamente, tendo as indústrias restrições ao seu uso, devido ao grau de impurezas, cinzas e enxofre que contém.
Os dados mais recentes indicam que 78% da matéria-prima usada na obtenção de carvão vegetal em nosso País têm origem na mata nativa.
O uso do carvão vegetal, o grande responsável, inclusive, pelo surgimento da indústria siderúrgica em nosso País, pode ser considerado como irreversível no atendimento da demanda por insumos energéticos e redutores desse segmento industrial brasileiro. São fortes os elementos de ordem técnica, associados à total possibilidade de se alcançar a auto-suficiência e independência de suprimento do insumo. Além disso, há elementos de ordem econômica, não só em termos de custos, mas, e principalmente, pelas características de qualidade dos produtos obtidos.
No entanto, é evidente que a expressividade dos números envolvidos na produção e consumo de carvão vegetal refletem-se por sua vez em seus problemas.
3. Os problemas
3.1. Matéria-prima
O primeiro e, talvez, mais importante dos problemas ligados ao carvão vegetal é o da oferta de matéria-prima para sua produção.
Os dados mais recentes indicam que 78% da matéria-prima usada na obtenção de carvão vegetal em nosso País têm origem na mata nativa.
É fato real que a disponibilidade de material lenhoso proveniente de florestas nativas permitiu o desenvolvimento crescente da siderurgia a carvão vegetal. A demanda de produtos agrícolas cresceu com a população do País e com o aumento da exportação, criando fronteiras novas de produção. O conseqüente desmatamento, seja diretamente com recursos do produtor ou com financiamentos de programas do Governo, tem gerado, em Minas Gerais, Goiás, Sul da Bahia e Mato Grosso, condições para o fornecimento de madeira, que, ao invés de ser simplesmente queimada, vem sendo transformada em carvão vegetal.
Não se pode negar que a atividade de produção de carvão vegetal, tal como hoje ela é praticada junto às fronteiras de desenvolvimento agrícola, tem alguns vínculos negativos em relação à questão ambiental. Por outro lado, é importante ponderar-se que, particularmente em tais regiões, e numa outra visão do problema, pode-se conceder alguns créditos positivos para a atividade. É que, além do benefício econômico do aproveitamento da madeira, a emissão de gases, e particularmente o CO2, é provavelmente menor do que aquela que ocorre quando simplesmente lança-se mão da combustão total da madeira, como freqüentemente verifica-se nas queimadas das florestas. É que na carbonização 30 a 40% da madeira submetida ao processo são recuperados na forma de carvão vegetal e, portanto, não são convertidos em gases. Além de menor, a emissão de gases é diluída ao longo de praticamente todos os meses do ano, e não brutalmente concentrada na época de estiagem, como ocorre nas queimadas.
Independentemente desses aspectos, ocorre que a sustentação de uma importante parcela da produção siderúrgica, baseada no carvão vegetal obtido de madeira de matas nativas, está se tornando difícil. A mata nativa está hoje escasseando, principalmente junto às usinas siderúrgicas, pois grande parte do desenvolvimento agropecuário já se encontra estabelecida nessas áreas.
A conseqüência disso é o distanciamento cada vez maior dos pontos de produção de carvão vegetal, os quais muitas vezes estão localizados a 1000 km dos centros de consumo. Tal situação tem levado os consumidores a empenharem-se no estabelecimento de programas de reflorestamento com espécies de rápido crescimento para o atendimento da demanda de madeira. No aspecto mais amplo do contexto nacional, os reflorestamentos já conseguem suprir 22% do volume de carvão vegetal consumido em nosso País. No entanto, algumas importantes empresas do setor siderúrgico possuem índices que chegam a 100% de auto-suficiência.
Mencione-se que, de 1979 a 1988, a taxa de consumo de carvão vegetal oriundo da mata nativa mostrou um crescimento de 189%, enquanto que a taxa de consumo de carvão vegetal oriundo de reflorestamentos cresceu 369% no mesmo período. Em 1988, os reflorestamentos forneceram o equivalente a 16 milhões de metros cúbicos de madeira para a produção de carvão vegetal.
Outro ponto importante, ligado à oferta de madeira para a produção de carvão vegetal, diz respeito ao manejo racional das florestas nativas.
A capacidade de recuperação de cerrados em Minas Gerais, com vistas à maior e constante produção de madeira para produção de carvão vegetal, tem sido alvo de estudos já há muitos anos. Em algumas regiões do Estado, esta prática já alcançou o produtor de carvão vegetal, sendo possível encontrar-se exemplos reais da recomposição do cerrado após 8 a 10 anos de corte sem o emprego do fogo, muitas vezes com maior produção que no primeiro. Não fosse a especulação motivada pela expansão agrícola, provavelmente esta prática poderia ter uma expressão muito mais significativa no cenário da produção de carvão vegetai. Um programa de zoneamento, que impusesse a prática do manejo sustentado de florestas de cerrado em algumas áreas do Estado de Minas Gerais, poderia ser bastante positivo, quer seja na possibilidade de continuidade da oferta de madeira para a manutenção da atividade econômica da produção de carvão vegetal, quer seja pela contribuição ecológica em razão da manutenção de contingentes importantes de áreas com cobertura florestal.
Algumas empresas já têm como rotina a recuperação de parte desses produtos na forma de alcatrão para uso como combustível.
3.2. Tecnologia de produção
O segundo grande problema envolvido com o carvão vegetal liga-se à questão da tecnologia empregada na sua produção.
O nosso carvão vegetal é hoje produzido, em sua maior proporção, da mesma forma como o era há um século. A tecnologia é primitiva, o controle operacional dos fornos de carbonização é pequeno e não se pratica o controle qualitativo e quantitativo da produção.
Além desses aspctos, a tecnologia atualmente empregada descarta, através da emissão de gases, milhares e milhares de toneladas de componentes químicos. Conforme mencionado anteriormente, do processo de carbonização, aproveitam-se de 30 a 40% da madeira na forma de carvão vegetal. O restante e simplesmente lançado na atmosfera na forma de gases. Já se demonstrou existência de mais de 100 compostos químicos orgânicos presentes nos gases da carbonização da madeira.
Considerando-se os grupos mais importantes de compostos químicos presentes nesses gases, e com base na quantidade de carvão vegetal consumido no Brasil em 1988, foram lançados na atmosfera naquele ano:
. 1,79 milhão de toneladas de gases combustíveis, contendo cerca de 0,50 milhão de toneladas de CO2;
. 0,22 milhão de toneladas de ácido acético;
. 0,15 milhão de toneladas de metanol;
. 0,37 milhão de toneladas de produtos leves;
. 0,84 milhão de toneladas de alcatrões.
Apesar da atividade não se encontrar concentrada num único ponto, com grande dispersão de centros de produção no meio rural, o resultado global das emissões de gases é importante, tanto ao nível da perda de produtos químicos valiosos, que poderiam ser economicamente recuperáveis, bem como ao nível de aspectos ambientais.
Preocupadas com a questão, algumas das mais importantes empresas do setor vêm já há vários anos realizando ações no sentido de estudos e efetivas implantações de sistemas de recuperação desses produtos gasosos para a geração de insumos químicos e energéticos. Algumas empresas já têm como rotina a recuperação de parte desses produtos na forma de alcatrão para uso como combustível. Diga-se de passagem que as tecnologias para a recuperação desses produtos são totalmente disponíveis, e têm sido historicamente utilizadas em várias partes do mundo.
E evidente que a adoção de soluções de mais amplo espectro, para a recuperação de outros produtos da carbonização, implicam em profundas alterações na sistemática hoje utilizada no Brasil. São alterações que exigem, em primeiro lugar, a adoção de modernas tecnologias e modernos conceitos agroindustriais, fugindo assim da definição que ainda se dá à atividade em nosso País, como sendo algo marginal e secundário da atividade rural. Além disso, exigem somas mais significativas de investimentos iniciais, principalmente se comparados àqueles necessários para a produção de carvão vegetal pelo modelo tradicional. No entanto, hoje, a moderna sociedade não mais admite, qualquer que seja a situação ou atividade, a não agregação de custos relacionados à necessidade da minimização dos impactos ao ambiente. E eis que chegou a vez do carvão vegetal. Se os investimentos são maiores, os ganhos ambientais, no entanto, são muito significativos. Importantes exemplos de possibilidade da produção de carvão vegetal, em total consonância com as modernas conceituações de controle ambiental, podem ser presenciados em várias fábricas do produto localizadas na Europa, em países como França, Alemanha, Inglaterra, Bélgica, Iugoslávia, etc.
Tais tecnologias já estão disponíveis no Brasil, quer através de iniciativas de desenvolvimento por parte de empresas nacionais, quer pela colocação de tecnologias adaptadas do exterior.
4. A transformação
Dessa forma, na convicção de que o Brasil manterá seu parque siderúrgico a carvão vegetal, além de outros segmentos consumidores desse produto, em franca, expressiva e crescente atividade, fica também a certeza da cada vez maior transformação de conceitos e práticas a ela vinculados. E, sem sombra de dúvidas, as questões de ordem ambiental e econômica terão grande incumbência para a imposição dessa transformação.
Será uma transformação que conduzirá necessariamente ao incremento da área reflorestada em nosso País...
Será uma transformação que conduzirá necessariamente ao incremento da área reflorestada em nosso País, além de forçar o emprego de tecnologias mais racionais de manejo e exploração florestal, em adequada conjugação com o que recomendam as mais modernas estratégias ecológicas. Quanto aos processos de obtenção de carvão vegetal, haverá indução para o emprego de tecnologias que contemplem formas de recuperação e aproveitamento de outros produtos, além do carvão vegetal. Com isso, serão minimizadas as emissões de produtos poluentes, além de diretamente levarem à maior valorização da madeira como matéria-prima.
As respostas tecnológicas para a maioria desses pontos estão disponíveis, havendo apenas necessidade de uma estratégia política para o setor e do incentivo e da disposição para colocá-las em prática.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
10 Mar 2006 -
Data do Fascículo
Ago 1990