DOSSIÊ FAPESP
A MESA EDITORIAL de ESTUDOS AVANÇADOS decidiu promover um exame sobre a política científica e tecnológica em São Paulo. Como primeiro passo buscou reunir opiniões e depoimentos sobre a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP). Para tanto, recorreu ao professor honorário do Instituto de Estudos Avançados da USP, Alberto Carvalho da Silva, solicitando seu apoio para a realização de duas reuniões. A primeira, com cientistas que participaram ativamente da organização da FAPESP, com o objetivo de registrar a memória sobre o projeto e a implantação de uma entidade que desempenha papel invulgar no desenvolvimento científico e tecnológico no Brasil.
Na segunda reunião o objetivo foi coletar opiniões e sugestões sobre os desafios e os planos da FAPESP daqui para a frente. Nesse encontro participaram dirigentes atuais da entidade, destacadas personalidades da comunidade científica e tecnológica e empresários que sentem a importância do trabalho conjunto das universidades com as indústrias no esforço pelo aprimoramento tecnológico das atividades produtivas no Brasil.
Complementa este dossiê um texto do professor Alberto Carvalho da Silva. Nele está uma visão de conjunto das atividades da FAPESP, com dados expressivos sobre seu desempenho no cumprimento da missão que lhe foi atribuída pela legislação do Estado de São Paulo.
(Marco Antônio Coelho, jornalista, é editor-executivo de ESTUDOS AVANÇADOS).
FAPESP: origens e implantação
DEPOIMENTOS
EM JUNHO DE 1996 o Instituto de Estudos Avançados da USP reuniu algumas pessoas que tiveram papel relevante na implantação e nos estágios iniciais da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP) e contribuiram para a formação de seu perfil, reconhecidamente um dos mais adequados à função de financiar pesquisa e de formar pesquisadores. Participaram dessa reunião: Antonio Barros de Ulhoa Cintra, reitor da Universidade de São Paulo na época em que a FAPESP foi criada, incumBIDo de instalá-la pelo governador do estado, Carlos Alberto Alves de Carvalho Pinto e primeiro-presidente do seu Conselho Superior; Warwick Estevãm Kerr, primeiro diretor-científico; William Saad Hossne, duas vezes diretor-científico, a primeira delas sucedendo a Kerr, e também membro do Conselho Superior em 1983-1989; Oscar Sala, membro do Conselho Superior de 1967 a 1969, seu presidente de 1985 a 1994 e diretor científico de 1969 a 1975; Alberto Carvalho da Silva, membro do primeiro Conselho Superior até 1968 e em 1983-84, diretor científico em 1968 e parte de 1969 e diretor-presidente do Conselho Técnico Administrativo de 1984 a 1993; Paulo Emílio Vanzolini, membro do primeiro Conselho Superior e autor da Lei que rege a FAPESP, um dos fatores que mais tem contribuído para o seu bom desempenho, foi convidado para a reunião mas, não tendo podido comparecer, foi depois entrevistado.
A seguir, os depoimentos dos seis convidados. Eles foram divididos em três partes: origens, implantação da Diretoria Científica e a FAPESP e o movimento militar de 1964. A razão de ser das duas primeiras partes é óbvia; a terceira foi incluída por mostrar que uma entidade ao prestar bons serviços à sociedade e respeitar os princípios pelos quais se rege, sobrevive até à intransigência, ao preconceito e à desinformação. Faltou, por razões óbvias, o depoimento de Carvalho Pinto, o homem que acreditou e, por isso, construiu. Mas a história da Ciência em São Paulo e no país sempre lhe fará justiça.
Contribuição de Carvalho Pinto
Antonio Barros de Ulhoa Cintra - No governo, dois grupos trabalharam pela implantação da FAPESP: um, na Secretaria da Agricultura com a participação destacada de Paulo Emílio Vanzolini, assessor do secretário José Bonifácio Coutinho Nogueira; outro, junto ao gabinete do governador, formado por vários cientistas da Universidade e por mim coordenado com a energia dedicada às iniciativas que me pareciam dar maior contribuição para o desenvolvimento da Ciência. Havia vozes discordantes, mas nunca chegaram a criar maiores dificuldades. Carvalho Pinto tinha idéias muito claras. Avaliava bem a importância da Fundação. A sua única preocupação era que a organização fosse simples e adequada aos seus objetivos. A meu ver, uma das maiores demonstrações do prestígio de que, já no início, a Fundação gozava e do respeito que merecia, ocorreu no governo de Adhemar de Barros, subseqüente ao de Carvalho Pinto. Quando propuseram a Adhemar - homem de conhecidas liberalidades em suas práticas administrativas - uma ação de interesse político junto à Fundação, a resposta foi imediata: "Lá, não! Lá, ninguém mexe! Aquilo é coisa séria!".
A experiência da USP
Oscar Sala - O ponto de partida para a criação da FAPESP foi a instalação dos Fundos Universitários de Pesquisa pelo professor Jorge Americano, reitor da USP, em 1942, logo depois que o Brasil entrou na guerra. Um dia, visitando o então Departamento de Física, que era dirigido por Gleb Wataghin, Jorge Americano nos convidou a desenvolver trabalhos que fossem de interesse para a defesa nacional. Depois de discutir a proposta, Marcelo Damy de Souza Santos e Paulus Aulus Pompéia decidiram que o desenvolvimento de sonares para detecção de submarinos inimigos seria de grande interesse. Em pouco mais de um ano os primeiros sonares estavam sendo entregues, não apenas à marinha brasileira mas também à norte-americana. Desse trabalho participei ainda como estudante, com bolsa dos Fundos Universitários.
Terminada a guerra, Gleb Wataghin e Marcelo Damy, com auxílio da Fundação Rockfeller, foram para os Estados Unidos para conhecer os desenvolvimentos mais recentes da Física. Damy entusiasmou-se pela física nuclear e, com apoio da Rockfeller, comprou o primeiro Betatron para a USP. Cheio de entusiasmo pela nova área, Damy me incumbiu de desenvolver um outro acelerador, cabendo a mim decidir de que tipo e como. Depois de algum tempo e vários contatos, fixei-me na Universidade de Wisconsin onde, durante mais de um ano, fiz pesquisa em física nuclear e desenvolvi os planos para o acelerador eletrostático Vander Graf, que atualmente existe no Instituto de Física, em São Paulo.
Foi seguindo o modelo desenvolvido pelos Fundos Universitários de Pesquisa - incluindo bolsa para estudantes participarem de investigação científica; auxílio aos laboratórios para pesquisa; viagens e estágios para pesquisadores atualizarem conhecimentos e discutirem idéias; e recursos para aquisição e instalação de novos equipamentos -, que a FAPESP se desenvolveu e atingiu a sua estatura atual.
O modelo adotado
Paulo Emílio Vanzolini - A lei que rege a FAPESP foi escrita por mim com a ajuda de Breno Asprino, Almeida Salles e Hélio Bicudo. Para isso me vali de minha experiência em pesquisa e de visitas que, no decurso de viagens de estudo, fiz às Fundações Rockfeller, Ford e, principalmente, Guggenheim. Nesta última, discutimos também os modelos do Max Plank, na Alemanha e da Academia Russa de Ciências, em Moscou. Tendo em conta os modelos dessas entidades e também o do CNPQ que, no Brasil, já contava com quase dez anos de experiência, convenci-me de que nenhum deles se adaptava às nossas condições. O que precisavamos era de uma fundação que atendesse diretamente ao pesquisador mas não tivesse seus próprios institutos pois, do contrário, era para estes que acabariam sendo canalizados os recursos. O governador Carvalho Pinto acreditava em uma estrutura semelhante à do Max Plank, com seus próprios pesquisadores, mas era um espírito aberto, capaz de aceitar opiniões que contrastavam com as suas. Assim, não foi difícil convencê-lo de que, na atividade de pesquisa e formação de recursos humanos, eram a Universidade e os institutos de pesquisa que deveriam expandir-se; à Fundação cabia lhes dar os meios para cumprir tal função e não substituí-los ou competir com eles. O ante-projeto de lei foi encaminhado ao Conselho Universitário, no qual foram introduzidas algumas modificações. Mas os dispositivos essenciais como, por exemplo, a proibição de criar órgãos próprios de pesquisa, assumir encargos externos permanentes ou auxiliar atividades administrativas de instituições de pesquisa, foram integralmente mantidos.
Alberto Carvalho da Silva - Desde o início de sua administração, em 1956, o governador Janio Quadros criou fortes conflitos com a Universidade. Além de incidentes e ameaças de punições a professores, como Cruz Costa e Livio Teixeira, Janio cortou verbas e forçou demissões que nem sempre se justificavam pela economia. Por exemplo, eu tinha três auxiliares em nível universitário, que me ajudavam em meus trabalhos de nutrição experimental. Fui forçado a ceder um mas ele não foi demitido; foi deslocado para outro Departamento no mesmo andar, com o mesmo vencimento.
Para resistir às arbitrariedades do governador, e também porque a estrutura da carreira universitária merecia ser atualizada e a gratificação por tempo integral tinha se tornado praticamente incompatível com a dedicação exclusiva, em 29 de agosto de 1956 foi fundada a Associação dos Auxiliares de Ensino, da qual fui o primeiro presidente. A Associação incluía em suas metas a instituição da Fundação, prevista no Artigo 123 da Constituição Estadual de 1947. Em 25 de fevereiro de 1959, entregamos ao governador Carvalho Pinto um memorial em que se mostrava a grande queda no orçamento da USP, baixado de 3,5% da arrecadação do estado em 1952, para 1,5% em 1957. Era perigosa a escassez de recursos para pesquisa e havia necessidade urgente da implantação da Fundação. Na mensagem encaminhando à Assembléia o anteprojeto da lei 5.918 criando a FAPESP, o governador faz referência à colaboração dada pela Associação.
A diretoria científica
Warwick Estevãm Kerr - Fui contratado como diretor científico a partir do dia 4 de junho de 1962, 12 dias depois da aprovação dos estatutos. As inscrições para recepção de projetos tinham sido abertas em março e já havia uma pilha deles quando começei. Assim mesmo começamos a pagar os primeiros auxílios em 16 de junho e nos primeiros dois meses aprovamos e pagamos 507 pedidos, usando parte da verba de US$1.688 de que dispúnhamos para apoio à pesquisa.
Nesse mesmo ano recebi convite da Fundação Rockfeller para visitar instituições em Estados Unidos, Canadá, Inglaterra, Noruega e familiarizar-me com os sistemas usados em cada um desses países. As visitas foram de grande utilidade. Tive oportunidade de me certificar do valor da assessoria e do currículo no julgamento das propostas. Mas não consegui introduzir em São Paulo o apoio à pesquisa agrícola nas propriedades e às cooperativas de pesquisa. Todavia, muitos dos procedimentos adotados nos países que visitei não podiam ser transferidos para São Paulo, ou se pudessem, não seriam úteis.
Durante minha administração tive a colaboração de dois outros diretores do CTA, Jayme Arcoverde como diretor-presidente e Celso Bandeira de Melo como diretor-administrativo. Além deles, minha secretária Paulina Steffen e o assessor jurídico José Geraldo Ataliba Nogueira foram de extrema valia: a Paulina, expondo-se a todas as críticas para servir de minha barreira de defesa; e o Geraldo, trabalhando com os três diretores para elaborar os regulamentos de forma a beneficiar o pesquisador.
Havia sido estabelecido que, da dotação da FAPESP, no máximo 5% fossem destinados à administração, como, aliás, manda artigo 17 da Lei que instituiu a Fundação; 15% para formação do patrimônio; e 80% para apoio à pesquisa, dos quais eu podia gastar 5%, para posterior prestação de contas. Foi essa resolução que me deu grande flexibilidade e me permitiu apoiar o trabalho do Instituto Biológico na erradicação do cancro cítrico. O Instituto havia nos pedido uma camionete para trabalho de campo nesse programa. Quinze dias depois procurou-me a doutora Vitória Rossetti, muito preocupada, perguntando se seria possível acelerar o andamento desse pedido porque o único veículo de que o Instituto dispunha para o trabalho havia quebrado. A FAPESP acabara de comprar uma camionete para meu uso quando em serviço. Entreguei-lhe a chave e ela saiu dirigindo o veículo. Creio que foi a doação mais rápida que a Fundação fez até hoje e é uma pena que isso não se repita com freqüência. Mas, é claro, fica em xeque o discernimento do diretor científico, que pode ser demitido se errar.
Tentativas de corrupção? Lembro-me de uma. Naquele tempo a balança analítica Mettler era a grande novidade e, para a compra dessa balança, havia muitos pedidos. Um dia entrou um rapaz na minha sala e me fez uma proposta. Em cada balança que eu aprovasse eles me dariam 15%. Chamei a Paulina e perguntei-lhe quantas balanças eu já havia autorizado. Creio que 20, disse ela. Então, Paulina reduza o preço em 15%; esse dinheiro vai dar para pagar mais uns dois ou três projetos. O rapaz achou que eu tinha entendido mal. Respondi: "Foi assim que entendi e qualquer coisa diferente disso vai no tapa!" Ele saiu de lá, juntou os outros vendedores para dizer que a FAPESP era uma organização honesta e que eles sempre informassem nas propostas o valor do abatimento concedido à Fundação.
No fim do meu mandato como diretor científico foi nomeada uma comissão para examinar as minhas contas. O presidente dessa Comissão, creio que era da Química, disse nunca ter visto antes tantas irregularidades. Por exemplo, um pesquisador fez pedido de um aparelho. Verifiquei que ele tinha vários semelhantes e, quando reclamei, esclareceu que eram modelos mais antigos. Então, fizemos um acordo em que eu aprovaria o novo, mas ele me daria os antigos para serem doados a laboratórios no interior, onde ainda seriam muito úteis. Desse modo, fiz a doação de equipamentos que pertenciam a outra instituição. Felizmente o presidente da Comissão concluiu que todas as irregularidades foram cometidas em benefício do povo paulista e da Ciência no Brasil e o governador acolheu essa justificativa.
As normas estabelecidas
William Saad Hossne - Quando assumi minha primeira gestão, como diretor científico em 1964, a FAPESP já estava praticamente em fase final de estruturação administrativa, graças ao trabalho do Kerr. Restavam algumas coisas que a experiência da gestão dele mostrava como deveríamos alcançar. Um dos pontos importantes, principalmente agora que se fala do futuro da FAPESP, refere-se à que um de seus compromissos deveria ser com o pesquisador e com a pesquisa bem feita, em qualquer área do conhecimento, sem entraves burocráticos. Este era um compromisso básico. A política da FAPESP não era ter normas rígidas, mas sim bastante flexíveis. Essas normas poderiam ser quebradas quando fosse do interesse da pesquisa. O exemplo que o Kerr deu, o da camionete, também aconteceu comigo. Para bolsistas que precisavam viajar dois ou três dias após terem recebido convite, o processo nem passava pela assessoria. O diretor científico assumia e respondia pela decisão. O princípio era ter normas flexíveis que poderiam ser quebradas face ao interesse da pesquisa e do pesquisador.
É evidente que levávamos em conta as prioridades estabelecidas pelo Conselho. Mas de que maneira? Ao apresentar seu projeto, o pesquisador devia fazê-lo de forma adequada. O assessor analisava a relevância do projeto para o desenvolvimento da área. Em seguida vinha o interesse do projeto para o país. Uma coisa era a relevância para o desenvolvimento do grupo ou da área e outra era a relevância para o país. Outro ponto que se levava em conta era a harmonia interna do projeto, isto é, se o pesquisador era capaz de harmonizar o que queria com o que estava pedindo.
Acho que um ponto importante da FAPESP desde o começo e que se manteve até a gestão do Sala - e quero crer que se mantém até hoje -, é o papel da assessoria não ser apenas o de dizer se o projeto é bom, se o aprova ou não. O que se pedia era que o assessor ajudasse no delineamento do projeto e isso era tão importante a ponto de bolsistas que, tendo de abrir mão da bolsa por terem sido contratados, pediram para continuar como bolsistas, a fim de poder enviar o relatório de pesquisa e este ser analisado pelo asssessor da FAPESP, recebendo críticas e sugestões.
Na minha primeira gestão houve um problema sério. Tínhamos ainda naquele tempo a figura do catedrático. Às vezes, vinham do mesmo laboratório ou do mesmo grupo pedidos do catedrático e do assistente, mas o projeto bom era o do assistente. O diretor tinha de enfrentar o catedrático e dizer não a ele. No início, causou certa estranheza a gente receber tantos pedidos de entrevistas. Eu, que assumi depois do Kerr e, mais tarde, depois do Sala, mantive a norma, como diretor cientítico, de ler o parecer do assessor e me enfronhar no projeto, mesmo que não fosse de minha área, transcrevendo para o pesquisador o que achava importante do parecer. Esse tipo de trabalho obrigava o diretor científico a assumir a responsabilidade por uma negativa, de modo que quando na entrevista um catedrático perguntava "Como? Foi negado?", eu tinha argumentos para dizer porquê, e não apenas "a assessoria negou". O diretor científico usava o assessor, mas assumia a responsabilidade, podendo até dispensar o assessor.
Quanto ao caso dos investimentos para renda, é um ponto importante na vida da FAPESP. A Lei diz que a Fundação tem de formar uma renda própria. É claro que nenhum de nós queria tirar dinheiro da verba da pesquisa para fazer um patrimônio rentável. Então o Conselho Superior - principalmente os professores Cintra, Eurípedes e Jorge Rezende - atuou junto ao governo argumentando que, como a Constituição era de 1947 e a FAPESP deveria ter recebido 0,5% desde então, o estado nos devia os atrasados. O governo estadual não pagou a partir daquele ano, mas a partir de 1956. Essa é a origem dos US$ 5.7 milhões que Carvalho Pinto transferiu à FAPESP, além da dotação anual, que permitiram iniciar a formação de um patrimônio rentável, adquirir o terreno na avenida São Luís e construir a sede atual, sem nunca ter retirado dinheiro da verba anual da FAPESP. Ao contrário, as rendas do patrimônio permitiram não apenas construir a sede mas também suplementar a dotação da instituição.
Outro ponto que merece destaque na minha primeira gestão foi a compreensão do Conselho Superior; dava-me carta branca, limitando-se a estabelecer a política geral.
Havia grande tendência, no início, de a Fundação investir na área tecnológica. A FAPESP procurou investir sempre onde houvesse gente competente, com bons projetos. Nas minhas duas gestões nenhum bom projeto deixou de ser atendido por falta de verba. Entendíamos que, se não houvesse gente competente e bons projetos, seria desperdício investir. Na minha gestão, coube-me fomentar o setor de ciências humanas, que estava em expansão. Fui procurado pelos professores Rui Coelho, Florestan Fernandes e Antonio Candido, que pleiteavam maior apoio a esse setor. Também demos apoio ao cebrap, que tinha sido instituído com recursos da Fundação Ford, para evitar a emigração em massa dos cientistas sociais perseguidos pelo movimento militar.
Depois de seis ou sete anos de atividades, a Fundação passou a manter um mapeamento dos grupos de pesquisa nas várias áreas do estado de São Paulo, o que permitiu desenvolver um programa de iniciativas. Cito, como exemplos, o projeto de pesquisa permanente da Amazônia, o arquivo de fotografias aéreas, e o acervo histórico de filmagem de documentos.
A FAPESP, em 1968, época em saí da diretoria científica, me parecia tão espetacular que não acreditava em sua sobrevivência por mais de dez anos. Mas, qual não foi minha surpresa, dez anos depois, quando voltei para ser novamente diretor científico, ao encontrá-la ainda melhor. O destino me deu uma oportunidade espetacular. Vi pessoas que eram bolsistas de iniciação científica e, dez anos depois, já eram orientadores de pesquisa. Nessa hora vi de perto os resultados dos investimentos que o estado vinha fazendo.
A FAPESP e o governo militar
William Saad Hossne - Um dia recebemos a informação de que um grupo do Comando Militar de São Paulo viria visitar a FAPESP. O prédio ficou cercado e subiram vários oficiais. Queriam saber o que era a FAPESP e que atividade desenvolvia. Os diretores presidente e administrativo, Jayme Cavalcanti e Celso Bandeira de Melo, deram informações detalhadas. Em seguida, um dos oficiais pediu a lista de assessores. Esclareci que isso não seria possível porque eram de confiança do diretor científico; os assessores desempenhavam essa função em caráter confidencial e seus nomes eram mantidos em sigilo para evitar constrangimentos e pressão de interessados. Pediram então a lista de auxílios já aprovados e os que estavam em estudo. Expliquei que, com relação aos auxílios concedidos, estavam disponíveis na Relatório Anual da FAPESP; quanto aos que estavam em estudo, eram considerados sigilosos e não podíamos autorizar o exame. Um dos visitantes insistiu em que eu teria de fornecer a lista. Respondi que não forneceria e enquanto o Cavalcanti conversava com eles, falei com o professor Cintra pelo telefone. Ouvi o seguinte: "É isso mesmo. Não dê!". O resultado foi o Comando Militar reconhecer que a FAPESP gozava de bom conceito, ter plena confiança em nossa palavra e afirmar que não pretendiam interferir nas atividades da Fundação.
Mais tarde, porém, seguindo a norma aplicada a outras entidades de apoio, foi pedido que a FAPESP apresentasse, não me lembro bem se ao Itamatary ou ao Conselho de Segurança, a lista dos bolsistas no exterior. Esclarecemos que a aplicação dessa norma criaria obstáculos burocráticos e que, além do mais, as decisões da FAPESP se baseavam no mérito, sem qualquer patrulhamento ideológico. Tivemos o apoio irrestrito de dois secretários de Estado - José Mindlin e Marcos Fletcher -, e a FAPESP, ao contrário de outra entidades, nunca submeteu listas de bolsistas no exterior aos órgãos de segurança. Também houve situações em que tivemos de ajudar a tirar bolsistas nossos da prisão, alegando que se tratava de pesquisadores sob nossa responsabilidade.
Warwick Estevãm Kerr - Fui preso no 11º dia do que chamam de revolução - eu chamo de golpe de Estado. Dizem que fiquei preso 40 dias, mas fiquei só 13 horas. Saindo da cadeia, soube que o Isaías Raw estava preso. Fui visitá-lo. O coronel estranhou que eu, mal saído da cadeia, estivesse visitando outro preso. O Isaías estava todo encolhido debaixo de uma escada. Fiz ver ao coronel que o Isaías era um homem importante no cenário da química brasileira, e que estava sendo submetido a tortura física. O coronel reclamou. Disse que os universitários eram uns corporativistas. Depois transferiu Isaías para um quarto. Perguntei por que nos chamava de corporativistas e ele me contou que um físico, de nome Oscar Sala, tinha vindo visitar outro preso, Mario Schenberg, pedindo que o libertassem. Então, mostrei ao coronel como ele estava enganado e que não se tratava de corporativismo e sim de respeito pela justiça. Sala e Schenberg eram ambos físicos mas não eram amigos. Ao contrário. Outro caso foi o do Saldanha. Foi demitido da USP e, na mesma hora, a FAPESP lhe concedeu uma bolsa de estudos.
Alberto Carvalho da Silva - Fui diretor científico durante pouco mais de um ano. Desde janeiro de 1968 (quando o governador Sodré pediu que o Saad deixasse a FAPESP e se dedicasse exclusivamente ao seu cargo de professor de Medicina, em Botocatu, para acalmar os estudantes), até abril de 1969 quando me aposentaram pelo ai-5, no cargo de professor-catedrático da Faculdade de Medicina. Durante esses 15 ou 16 meses em que exerci a diretoria científica não sofri qualquer pressão por parte dos militares, embora em 1964 tivesse sido denunciado por uma comissão de professores da USP e submetido a um longo interrogatório; tive só dois pequenos incidentes e esses com civis. O primeiro foi com Gama e Silva, destacada figura ligada ao general Costa e Silva e, na época, reitor da USP. Gama e Silva me enviou um ofício estabelecendo, na qualidade de reitor, que as bolsas e auxílios da FAPESP para docentes e alunos da USP deveriam ser encaminhados à reitoria e ficar sob a supervisão da Universidade. Respondi que essa condição contrariava as normas da Fundação e, se fosse mantida, a FAPESP não poderia conceder auxílio ou bolsas a candidatos da USP. O reitor não insistiu.
O segundo incidente foi com um pedido de auxílio para um pesquisador de um dos institutos do estado, cujas idéias políticas eram notoriamente contrárias às do movimento militar. A diretora do institituto me procurou espontâneamente para explicar que, embora tivesse o maior apreço pelos méritos científicos do candidato, não queria assinar o pedido na condição de diretora porque isso poderia trazer-lhe riscos. Esclareci que a FAPESP decidia com base apenas no mérito e, em sendo este reconhecido pela assessoria, o auxílio seria concedido mesmo sem o endosso da diretora, o que de fato aconteceu.
A reunião da SBPC em 1976
Oscar Sala - Os meus confrontos, como cientista, com o movimento militar relacionam-se muito mais com a SBPC do que com a FAPESP. A reunião anual de 1976 ia ser realizada em Fortaleza. Quando lá estive para acertos finais vi que nada tinha sido feito, por haver resistência no governo. De volta, passei por Brasília. Tive uma longa reunião com o general Golbery de Couto e Silva o qual queria me convencer de que era melhor não fazer a reunião para evitar manifestações dos estudantes. Respondi-lhe dizendo que a reunião era da SBPC e não de estudantes. Fui discutir o assunto com o presidente, o general Ernesto Geisel. Este também insistiu que a reunião deveria ser sUSPensa. Disse então ao presidente: "É muito simples; é só o governo proibir". O general afirmou não querer uma proibição e então respondi que, para mim, isso significava permitir.
Voltando a São Paulo avaliei a situação e conclui que ante a escassez de tempo e de recursos, o lugar viável era o campus da USP. O reitor me ouviu, mas não decidiu. Pediu para "esperar". Quando faltavam só dez dias para a data prevista, voltei a procurá-lo, mas a resposta foi de que, para ser na USP, a reunião teria de ser adiada por um mês. Foi então que a PUC nos ofereceu suas instalações e a reunião se iniciou na data prevista. Mas tínhamos um grande número de participantes de todo o país e não havia dinheiro nem acomodações e, para minha surpresa, formaram-se filas enormes de pessoas oferecendo alojamento em suas residências. E dinheiro? Foi então que os artistas de São Paulo organizaram um espetáculo no estádio da Portuguesa de Desportos e arrecadaram o suficiente para cobrir todas despesas.
Os depoimentos terminaram neste ponto. Não porque faltasse assunto pois foi uma fase em que muitos contribuíram para o desenvolvimento da Ciência em São Paulo. Não apenas nos laboratórios e nas bibliotecas, mas também nos postos de governo, na gestão dos centros de pesquisa, nas agências de apoio à Ciência e nas fronteiras da luta pela liberdade de pensamento e pela democracia (A. C. da S.).
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
07 Jun 2005 -
Data do Fascículo
Dez 1996