Open-access A atualidade do Manifesto na periferia do capitalismo

O QUE ESTÁ VIVO E O QUE ESTÁ MORTO NO MANIFESTO COMUNISTA?

A atualidade do Manifesto na periferia do capitalismo

Plínio de Arruda Sampaio Jr.

O TOM GRANDILOQÜENTE e triunfalista do Manifesto Comunista contrasta com a sombria situação em que se encontram as forças anticapitalistas neste final de milênio. Escrevendo em um momento de grande efervescência do movimento operário, seus jovens autores subestimaram a capacidade de sobrevivência da burguesia e superestimaram o ímpeto revolucionário do proletariado. O desperdício de conjunturas revolucionárias nas sociedades capitalistas avançadas e o caráter inconcluso e problemático das revoluções socialistas nas economias atrasadas permitiram que a burguesia organizasse uma contra-revolução de longa duração em escala mundial.

A História foi implacável com os perdedores. Depois de amargar os horrores de duas guerras mundiais, de uma grande depressão mundial e do fascismo político, as classes populares estão sendo castigadas pelo fascismo de mercado. Os modernos métodos de cooptação e opressão tornaram adverso e hostil o terreno da luta de classes, gerando desalento e confusão no movimento socialista.

Capitalismo e barbárie

Ainda que as suas previsões otimistas sobre o desenrolar da luta de classes não tenham se concretizado, o Manifesto aponta as razões pelas quais a contra-revolução permanente não é capaz de congelar a História por tempo indefinido. Com muita clarividência, Marx e Engels inferiram que as leis imanentes do processo de valorização do capital, ao provocar a mercantilização ilimitada da vida social e o progressivo desenvolvimento das forças produtivas, levariam à degeneração da própria sociedade burguesa.

Muito antes da crise da civilização ocidental ter ficado patente, o memorável panfleto anunciava: o caráter imperialista do capitalismo é antagônico à sobrevivência da sociedade nacional; a natureza predatória da concorrência econômica é incompatível com a reprodução dos mecanismos responsáveis pela coesão social; as relações monetárias deturpam a personalidade dos indivíduos e solapam os laços familiares; a metamorfose dos ciclos industriais em crises econômicas intermináveis transforma a barbárie em um estado permanente.

Passados 150 anos de sua publicação, o Manifesto impressiona pela precisão de seus vaticínios. Terminada sua missão de libertar o homem das relações servis e de revolucionar seu controle sobre a natureza, o capitalismo voltou-se contra si mesmo, solapando as bases da civilização burguesa. Após ter conquistado o mundo e subjugado todas as resistências ao império dos negócios, o capitalismo passou a confundir-se com a barbárie. A transformação revolucionária da sociedade tornou-se, então, uma necessidade histórica. "A sociedade burguesa moderna, que conjurou gigantescos meios de produção e de troca, assemelha-se ao feiticeiro que já não pode controlar os poderes infernais que invocou".

A crescente contradição entre o desenvolvimento das forças produtivas e a propriedade privada dos meios de produção – contradição que se expressa pela recorrente negação de trabalho vivo – vulnerabiliza a burguesia. A incapacidade do capitalismo de alimentar seus escravos gera um forte sentimento de insatisfação e revolta contra a ordem burguesa. Pode-se abafá-lo mas não há como suprimi-lo. Por esse motivo, mesmo quando as classes subalternas estão prostradas, o fantasma da revolução social atormenta os donos do poder. As derrotas do proletariado nunca são definitivas.

A perspectiva comunista

"Proletários de todos os países, uni-vos!". Eis a fórmula concisa e direta invocada por Marx e Engels para impulsionar as forças políticas anticapitalistas. A tarefa primordial dos comunistas consiste em promover a conexão dos movimentos operários, imprimindo-lhes uma dinâmica revolucionária. Para tanto, o trabalhador precisa adquirir consciência de classe, superando o caráter local e corporativo de suas reivindicações e dando uma conotação antiburguesa e internacionalista à luta política. A mensagem última do Manifesto é clara. O fim da liberdade do capital de subjugar trabalho alheio é uma pré-condição para liberar os indivíduos para sua plena realização humana.

Pode-se sintetizar a fórmula sugerida pelo Manifesto para fazer avançar a revolução proletária em três consignas básicas: somente a negação da propriedade privada é capaz de aglutinar as forças sociais comprometidas com o fim da exploração capitalista; somente a teoria revolucionária é capaz de catalisar o descontentamento anticapitalista de modo a transformá-lo em prática revolucionária geradora de novos horizontes históricos; somente a perspectiva comunista – a utopia de inverter a relação de dominação da tecnologia sobre o Homem e do passado sobre o presente – é capaz de transformar a negação do capitalismo em um salto de qualidade no processo civilizatório.

Utopia comunista

e dilemas dos povos de origem colonial

Formulado para atender às exigências da luta operária nos países mais desenvolvidos da Europa Ocidental, o Manifesto trata de problemas que pressupõem Estados nacionais já consolidados. Por isso, não surpreende que o panfleto preparado a pedido da Liga dos Comunistas não enfrente os dilemas da luta de classes nas sociedades que fazem parte da periferia do sistema capitalista mundial. Encontramos nele, entretanto, metodologia para o preenchimento dessa lacuna. Trata-se de buscar no processo histórico de cada formação social as tendências concretas da luta de classes. "As proposições teóricas dos comunistas não se baseiam, de modo algum, em idéias ou princípios inventados ou descobertos por este ou aquele reformador do mundo. São apenas expressão das condições efetivas de uma luta de classes que existe, de um movimento histórico que se desenvolve diante dos olhos".

Em economias capitalistas de origem colonial, como o Brasil, o sentido da formação social é dado pela longa transição da colônia de ontem para a nação de amanhã (1). O dínamo desta transição é o sentimento de profundo mal-estar da população com relação à situação de pobreza, irracionalidade, corrupção e instabilidade que caracteriza a vida nas economias periféricas. As esperanças e as aspirações destes povos polarizam-se, em conseqüência, em torno de um objetivo maior: controlar os fins e os meios do desenvolvimento. O desafio é completar a formação da nação, livrando a sociedade de suas três principais mazelas: o caráter dependente de seu sistema econômico – uma forma de organização da vida material que deixa o país sujeito às vicissitudes dos movimentos especulativos do capital internacional; a natureza particularmente assimétrica das estruturas sociais – um padrão de estratificação social que cria um abismo entre ricos e pobres; o pesado fardo do colonialismo cultural que compromete a capacidade da sociedade de discernir suas verdadeiras necessidades uma concepção de mundo estreita que transforma a cópia dos padrões de consumo das economias centrais na prioridade absoluta que orienta a organização da economia e da sociedade.

A utopia possível na periferia do capitalismo

"Os homens fazem sua própria história, mas não a fazem como querem; não a fazem sob circunstâncias de sua escolha e sim sob aquelas com que se defrontam diretamente, legadas e transmitidas do passado", escreve Marx em O Dezoito Brumário. A utopia do Manifesto supõe um grau de desenvolvimento econômico, social e cultural que não está presente nas economias capitalistas dependentes.

Logo, antes de almejar a sociedade comunista, os trabalhadores da periferia devem enfrentar um difícil processo de consolidação de seus Estados nacionais e de superação do subdesenvolvimento. Tal ruptura não é a utopia comunista apregoada por Marx e Engels, mas representa, para os povos de origem colonial – as maiores vítimas da pilhagem e espoliação capitalista –, o único meio de resgatar a esperança de uma vida digna. Enquanto o patrimônio tecnológico da civilização ocidental permanecer monopolizado pelas grandes potências capitalistas e pelas empresas transnacionais, o raio de liberdade das economias atrasadas será muito reduzido. O máximo a que podem aspirar os países que se rebelarem contra a ordem hegemônica é socializar pelo conjunto da população os padrões de vida material e cultural que lhes são acessíveis, tendo em vista o grau de desenvolvimento de suas forças produtivas e as possibilidades de assimilação de progresso técnico geradas pela participação na economia mundial (variável que depende em última instância da reação dos centros decisórios do imperialismo). Não é pouco quando se considera que a alternativa – avançar, em maior ou menor velocidade, na modernização mimética dos padrões de consumo – está conduzindo a uma acelerada desagregação social.

Na era da globalização dos negócios, em que a burguesia dependente renunciou a qualquer veleidade nacionalista, associando-se definitivamente ao imperialismo, é muito difícil imaginar que o esforço de superar o mito da modernização a qualquer custo possa ser feito nos marcos do capitalismo. Vencer o subdesenvolvimento, construir as bases de uma sociedade socialista e derrubar as fronteiras que separam os povos, começando pelos vizinhos com dilemas históricos análogos, são os passos possíveis, quando vistos de uma perspectiva histórica de longo prazo, para diminuir a distância entre um ideal comunista ainda muito distante e a dura realidade do capitalismo selvagem na periferia. São tarefas heróicas que devem ser realizadas por aqueles que só perdem com a continuidade do status quo: a classe operária e todos os segmentos sociais que estão condenados a viver as agruras do capitalismo e a permanecer marginalizados de seus benefícios.

Nota

Plínio de Arruda Sampaio Jr. é professor do Instituto de Economia da Universidade Estadual de Campinas (IE-Unicamp).

  • 1
    Entre as interpretações que fundamentam esta interpretação sobre o sentido da formação social em sociedades de passado colonial, cabe destacar os seguintes clássicos do pensamento brasileiro:
    Formação do Brasil contemporâneo
    , de Caio Prado Jr.;
    Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Hollanda; e
    Formação econômica do Brasil, de Celso Furtado.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      11 Maio 2005
    • Data do Fascículo
      Dez 1998
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