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Os Estados Unidos e o comércio mundial: protecionistas ou campeões do livre-comércio?

ESTADOS UNIDOS

Os Estados Unidos e o comércio mundial: protecionistas ou campeões do livre-comércio?

Rubens Ricupero

O CONVITE PARA escrever neste dossiê especial sugeria que se focalizasse o "protecionismo americano". Confesso que me senti desconfortável em fazê-lo. Não que os americanos não sejam culpados de protecionismo seletivo. Destacar a palavra no título, sem qualificações nem alternativas, daria, no entanto, a falsa impressão de que considero os Estados Unidos como excepcionais praticantes desse feio pecado, aliás um dos mais igualitariamente distribuídos e cometidos em todo o planeta.

Tive, sobretudo, receio de reduzir a uma simplificação distorcida da realidade que é extraordinariamente mais complexa. No ano em que o Congresso e o Executivo de Washington reafirmaram a disposição de proteger setores não-competitivos da economia com uma série encadeada de três graves medidas unilaterais - as salvaguardas para o aço, a nova lei agrícola e o mecanismo de consulta especial do Trade Promotion Authority ou fast track - seria absurdo negar a realidade do protecionismo que viceja às margens do Potomac. Contudo, nesse mesmo ano e nos quatro ou cinco precedentes, o déficit em contas correntes aumentou constantemente até superar os 4% e aproximar-se dos 5% do PIB, devido ao insaciável apetite por importações de uma economia que é obviamente uma das mais abertas do mundo. É possível chamar de protecionista um país que se tornou, na segunda metade dos anos de 1990, a única fonte importante de demanda de importações, uma espécie de gigantesco "buraco negro" que vem engolindo parcela apreciável do excedente de mercadorias mundiais, dos calçados baratos chineses aos sofisticados supercondutores sul-coreanos? Quem ignora que hoje a China e o México, ontem (e ainda agora) todos os temíveis tigres asiáticos, desde o Supremo Dragão japonês até as Filipinas e a Indonésia, passando por Taiwan, Hong Kong, Cingapura, Malásia, Tailândia, devem, sem exceção, o essencial do seu êxito exportador aos vorazes mercados ianques?

A contradição ressalta ainda mais se a atenção se desloca para a questão, tão debatida hoje em dia, do unilateralismo versus multilateralismo. No momento em que o Executivo republicano manifesta aversão freqüente pela abordagem multilateral, esse mesmo governo continua a prestigiar as negociações e o sistema de solução de disputas da Organização Mundial do Comércio (OMC) no domínio comercial. Por um lado, os americanos denunciam tratados de desarmamento como o antibalístico, debilitam e obstruem o acordo contra as armas bacteriológicas, recusam as metas do Protocolo de Kyoto, rejeitam o tratado antiminas, retiram a assinatura do que estabelece o Tribunal Penal Internacional. Por outro, fazem prova de flexibilidade e determinação para lançar, em Doha, negociações comerciais abrangentes e ambiciosas e engajam-se seriamente nessas negociações, apresentando propostas e multiplicando iniciativas. Embora tenham perdido alguns julgamentos notáveis no sistema de solução de controvérsias da OMC, em um dos casos envolvendo até a nova rejeição de mudanças legislativas que o Congresso havia aprovado para tentar satisfazer sentença anterior, em outros exemplos, afetando as práticas antidumping, de enorme sensibilidade política, as autoridades e o público aceitaram, nesse particular, o que aparentemente não estão dispostos a tolerar em outros campos, isto é, o prevalecimento de decisões adversas de organismos internacionais sobre interesses soberanos norte-americanos.

A explicação mais evidente para essa exceção na tendência de perseguir os interesses nacionais por meios unilaterais de poder é que, no fundo, apesar de perderem uma parada aqui ou ali, esses interesses continuam a ser bem servidos por um sistema multilateral de comércio do qual a primeira potência econômica do mundo é a principal beneficiária. Além disso, os componentes mais dinâmicos dessa economia - tecnologia de ponta, biotecnologia, patenteamento genético, comércio eletrônico - são os grandes proponentes e eventuais ganhadores de negociações para a adoção de regras em temas ainda não tocados nos esforços passados de regulação. Também não se pode menosprezar a existência de um sistema relativamente eficaz de resolução de conflitos que, não obstante os eventuais percalços, atende muitas vezes aos objetivos das empresas norte-americanas. Pesa, finalmente, a personalidade de Robert Zoellick, o representante comercial dos Estados Unidos (USTR), negociador experimentado, pragmático, não afetado pela extremada ideologia de direita que predomina os assuntos estratégicos, de defesa e relações internacionais, convicto das vantagens que seu país pode extrair do enorme market power (poder de mercado) que possui. Não obstante todas essas razões, não deixa de ser até certo ponto paradoxal que um domínio da política externa habitualmente mais conflitivo que outros, como é o comércio, represente uma das exceções mais merecedoras de análise e destaque em panorama de maneira geral pouco propício aos métodos multilaterais.

A realidade histórica é que, desde muito tempo, pelo menos desde a metade da primeira presidência de Franklin Delano Roosevelt (1934) e, com absoluta nitidez, a partir do fim da Segunda Guerra Mundial, os Estados Unidos têm sido indiscutivelmente os principais autores, garantes e líderes do sistema mundial de comércio e, nesse papel, não há no horizonte próximo nenhuma potência capaz de substituí-los. A causa responsável por essa situação é apontada e desenvolvida nas diversas variantes da chamada "teoria da estabilidade hegemônica", o paradigma conceitual dominante entre os autores mais representativos da economia política das relações internacionais contemporâneas (1 1 Robert Gilpin , The political economy of international relations. Princeton, Princeton University Press, 1987. ). A teoria é assim definida num estudo recente: "a abertura da economia global depende criticamente da presença de um país hegemônico que possui tanto os motivos quanto os meios para estabelecer uma ordem comercial liberal" (2 2 Craig VanGrasstek, The three dimensions of U. S. trade policy, em preparação para publicação. ). Dessa forma, os mercados mundiais eram relativamente abertos e liberais durante o predomínio hegemônico da Grã-Bretanha, culminando com a primeira fase da globalização, a Era Vitoriana, de 1870 a 1914. O declínio do poderio inglês e a Primeira Guerra Mundial introduziram uma etapa de fechamento e retorno ao protecionismo. A superação desse retrocesso vai se esboçar com a adoção pelos EUA de uma política liberal de comércio a partir de 1934 e, mais acentuadamente, de 1944-45, quando esse país assume plenamente a responsabilidade hegemônica de plasmar a nova ordem econômico-financeira (Bretton Woods, o FMI, o Banco Mundial, o GATT) e político-estratégica mundiais (a Carta de São Francisco, a ONU, a Aliança Atlântica).

Desde então, quase todas as grandes rodadas de negociação que levaram adiante a liberalização progressiva dos mercados tiveram origem em iniciativas americanas e só puderam ser concluídas graças à liderança ativa de Washington, que não hesitou muitas vezes em lançar mão de pressões, ameaças e retaliações para forçar o passo dos recalcitrantes.

Salvo no fiasco de Seattle, resultado em grande parte da ambivalência americana e das divisões entre os pesos-pesados do comércio mundial, o engajamento de Washington foi decisivo em cada uma das etapas definidoras do processo contínuo de liberalização comercial. Seria apenas necessário qualificar tal assertiva categórica com o reconhecimento de que, já nas rodadas de Tóquio e Uruguai, a participação européia atingiu quase o nível de co-liderança. Antes e depois de Seattle, até Doha, a iniciativa do comissário europeu para o comércio, Pascal Lamy, pareceu, por momentos, substituir a americana ou preencher o vácuo criado pelas hesitações do final da presidência Clinton.

Se a liderança ianque voltou a afirmar-se no plano das negociações multilaterais, seria preciso olhar mais de perto para a estrutura do comércio externo dos Estados Unidos a fim de compreender a evolução histórica que conduziu a esse estado de coisas. Da mesma forma que a imensa maioria dos demais países avançados, eles foram um país essencialmente protecionista durante a maior parte de sua história (um século e meio, ao menos), coincidente com a prolongada fase em que defendiam suas infant industries (ou indústrias nascentes) contra a concorrência inglesa. No auge da Primeira Revolução Industrial, quando os britânicos pregavam e praticavam o livre-comércio, os americanos preferiam seguir os conselhos do primeiro secretário do Tesouro, Alexander Hamilton, autor de obra pioneira do protecionismo industrial, considerada a primeira grande crítica de Adam Smith, o Report on manufactures (1791). Em certos momentos, o nível de proteção alcançou as nuvens, como por ocasião da "tarifa de abominação" (1828-31), com a média de 52,7%, ou a "tarifa de guerra", na Guerra da Secessão (1861-71), sendo então a média de 41,3%. Mesmo após a guerra civil, a média tarifária dos produtos não-isentos era ainda de 46,5% (tarifa Dingley, 1898-1909) e 51,5% na "infame" tarifa Hawley-Smoot, na Grande Depressão (1930-34). A história tarifária americana pode ser dividida em duas grandes fases. Na primeira, da Independência até 1934, o Congresso reteve ciumentamente o poder de estabelecer a proteção comercial, mantendo-a em patamar constantemente elevado. Na segunda, o Legislativo iniciou a prática de delegar a autorização para negociar tarifas ao Executivo, que, desde então, ao longo de nove sucessivas etapas (de 1935 a 2000), foi reduzindo as barreiras tarifárias até chegar à situação presente, na qual a média tarifária sobre todas as importações é de cerca de 2% e a média sobre todos os produtos não-isentos é de 4%.

Embora notável, essa redução, comum ao conjunto dos países avançados, deve ser corrigida por duas indispensáveis qualificações. A primeira é que se trata de média estatística e, como se sabe, o estatístico é o indivíduo que morre afogado em rio cuja profundidade média é de apenas 40 centímetros. Isto é, a maioria das importações paga tarifa baixa ou nenhuma, o que não impede que alguns produtos (não um ou dois, mas algumas centenas) sejam gravados por taxas consideravelmente mais onerosas que a média. O mais grave é que, conforme se verá adiante, as tarifas pesadas concentram-se justamente sobre os artigos exportados pelos subdesenvolvidos, às vezes pelos mais pobres, e afetam de modo particular o Brasil. A segunda qualificação é que as tarifas estão longe de constituir a arma única ou mais temível do arsenal protecionista. À medida que as tarifas sofriam redução, elas foram sendo substituídas, até com vantagem, pelas medidas de "proteção comercial" (salvaguardas, antidumping, direitos compensatórios contra subsídios) e por barreiras teoricamente destinadas a fins legítimos específicos mas que, na prática, se vêm desviadas para intuitos protecionistas (requisitos sanitários e fitossanitários para alimentos e produtos agrícolas, barreiras técnicas para manufaturas, exigências ambientais etc.). Antes do final da Rodada Uruguai, em meados dos anos de 1980, Michael Finger, então economista do Banco Mundial, utilizou modelos matemáticos de pesquisadores do MIT para concluir que, naquele instante, quando a média tarifária americana era de 5,3%, o nível efetivo de proteção subia a mais de 20% ao serem convertidas em cifras as barreiras das cotas de têxteis e vestuário, os direitos antidumping contra calçados e aço, as "restrições voluntárias de exportação" então vigentes em matéria de automóveis e aço. Não conheço estudo que tenha atualizado o cálculo do nível de proteção corrente, mas não é difícil estimar que ele seja considerável, uma vez que muitas das restrições anteriores seguem em aplicação.

A descrição da evolução histórica que acabo de fazer é a abordagem habitual nos estudos sobre protecionismo comercial. Argumentando que ela é incapaz de captar a complexidade do panorama atual, o professor de Harvard, Craig VanGrasstek, em livro ainda não publicado, mas cujo original pude ler, propõe uma maneira inovadora de analisar o sistema comercial do seu país e de qualquer outro. Em obra que intitulou provisoriamente de As três dimensões da política comercial dos EUA, em lugar de fixar-se apenas na altura da barreira aduaneira, compara essa política a um pacote ou volume com três dimensões. A primeira, a altura, mede o grau de intervenção estatal no comércio, principalmente por meio de barreiras às importações (tarifas, quotas, medidas não-tarifárias etc.). A segunda, a largura, avalia o nível de discriminação aplicado aos vários parceiros de forma diferenciada. A terceira, a profundidade, depende da amplitude dos temas incluídos no sistema comercial em anos recentes (serviços, propriedade intelectual, investimentos, concorrência, meio ambiente, questões trabalhistas e, quem sabe, uniformização de impostos no futuro). É o que alguns chamam de "expansão das fronteiras do sistema", passando da integração rasa (comércio de bens aberto) à profunda (uniformização da legislação). Desse modo, em vez da dicotomia maniqueísta - protecionismo versus comércio livre -, é possível afirmar que os EUA evoluíram de um regime comercial que era alto (tarifas e barreiras elevadas), estreito (todos eram tratados mais ou menos igualmente) e pouco profundo (só abrangia o comércio de mercadorias), para um sistema que é baixo (tarifas pequenas), largo (proliferam os regimes discriminatórios conforme a natureza dos parceiros) e profundo (cada vez mais abrangente).

O modelo tridimensional presta-se melhor que os tradicionais para o nosso propósito. Não me deterei tanto na profundidade - a abrangência ou amplitude do território coberto pelo sistema - assunto que tem alimentado o debate público antiglobalização, sobretudo nos aspectos atinentes aos vínculos entre o acordo sobre propriedade intelectual ou Trips (Trade Related Intellectual Property Rights) e o combate à Aids e a proteção da saúde pública. As restrições no acesso às patentes e à tecnologia, assim como a proibição do uso de requisitos como o do "conteúdo local" ou "índice de nacionalização" na aprovação de projetos de investimento estrangeiro, são algumas das conseqüências da extensão das fronteiras do sistema, acarretando o estreitamento das opções de política industrial e colocando fora do alcance dos subdesenvolvidos muitos dos instrumentos largamente utilizados pelos ricos durante seu processo de desenvolvimento. Como se diz no jargão dos negociadores, essa ofensiva equivale a "chutar a escada" pela qual os abastados de hoje galgaram o ápice e onde não querem ser perturbados por adventícios importunos.

Vou concentrar-me de preferência na segunda dimensão, a largura da discriminação entre parceiros. Não só porque é de particular atualidade na discussão da ALCA (Associação de Livre Comércio das Américas), mas também pelo seu extraordinário potencial pernicioso como instrumento, quer para substituir as reduções do protecionismo da primeira dimensão, em conseqüência das negociações, quanto para pressionar os que resistem ao expansionismo do sistema na direção da terceira dimensão. Em outras palavras, a manipulação seletiva da discriminação pode revelar-se a ferramenta diabólica que faltava aos ricos para compensar a gradual perda de competitividade em setores crepusculares de suas economias, estendendo e congelando, ao mesmo tempo, o domínio de uma superioridade incontrastável nas áreas de ponta em tecnologia ou outros domínios nos quais os menos desenvolvidos têm ainda poucas condições de competir.

A meu ver, a ameaça da segunda dimensão é mais perigosa que a da terceira. Durante a ocupação japonesa da China, Chiang Kai Chek dizia temer mais os comunistas de Mao que os invasores nipônicos, porque enquanto os últimos não passavam de inimigos do corpo, os primeiros podiam matar a alma. Com o comércio é a mesma coisa. Nada no sistema impede, em princípio, sua extensão dentro de limites razoáveis. Já a não-discriminação é a própria alma, o coração do sistema. Ao contrário do que se crê correntemente, o GATT e a OMC não têm como objetivo primordial a liberalização imediata e total do comércio mundial, mas a sua liberalização progressiva, conforme não se cansam de repetir os europeus em defesa de sua política agrícola.

O artigo 1º do Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio (GATT) é intitulado "tratamento geral de nação-mais-favorecida", justamente para sublinhar a absoluta prioridade da não-discriminação. Estipula que "qualquer vantagem (...) concedida por qualquer parte contratante a qualquer produto (...) de qualquer outro país será concedida imediata e incondicionalmente a todo produto similar originário (...) das demais parte contratantes (...)". O artigo 2º reforça a obrigação, ao dispor que "cada parte contratante concederá ao comércio das demais partes contratantes um tratamento não menos favorável que o previsto no (...) presente Acordo".

A cláusula da nação-mais-favorecida (MFN em inglês, NMF em português), ou seja, a expressão positiva da não-discriminação, é a pedra fundamental sobre a qual foi edificado o regime do GATT/OMC. Houve sempre exceções para acolher as preferências preexistentes a 1947 ou com o fim de ajudar os subdesenvolvidos a superar suas limitações estruturais, "tratando desigualmente os desiguais" (o GSP, ou Sistema Generalizado de Preferências, por exemplo). Essas exceções deveriam ser raras, concedidas criteriosamente e com duração provisória em tese, embora pudessem prolongar-se pelo tempo necessário para superar o problema que se destinavam a resolver.

Por esse motivo, os Estados Unidos foram, no início, muito rigorosos, quase fundamentalistas na defesa de um multilateralismo exclusivo e excludente de qualquer condescendência. Nos anos de 1930, o Brasil enfrentou problemas com Washington devido aos acordos chamados de "marcos de compensação" com a Alemanha nazista, cujo ministro da Economia, o dr. Schacht, os promovia com nações centro-européias, o Egito e nosso país. Os americanos abriram exceção maior ao tolerar e até incentivar, por motivos estratégicos ligados à necessidade de conter a URSS durante a Guerra Fria, o Tratado de Roma (1957) e o Mercado Comum Europeu, com seus cinco membros fundadores (Alemanha, França, Itália, Países Baixos, Bélgica-Luxemburgo). Desde então, a integração econômico-comercial européia não cessou de se aprofundar e expandir, chegando aos atuais 15 membros, que serão 25 a partir de 2004. O potencial de crescimento não se detém aí, podendo o número facilmente atingir e superar os 30, com a incorporação de nações menores nos Bálcãs, na Europa Oriental, a Turquia. Se a esses acrescentarmos os acordos de livre-comércio com países da África do Norte, do Mediterrâneo e do Oriente Próximo, assim como as mais de 70 ex-colônias, signatárias do Tratado de Cotonou (antigamente acordos de Lomé), os denominados países ACP (África, Caribe, Pacífico), é forçoso constatar que os europeus teceram um sistema comercial próprio, sem abandonar ou repudiar o sistema multilateral. A rigor, os europeus mantêm três regimes comerciais: o mais aberto, no interior dos 15, logo 25; o segundo, quase equivalente às antigas "preferências imperiais", com ex-colônias e assimilados, e o terceiro, o da OMC, em relação ao resto do mundo. Esse verdadeiro império comercial, que substituiu com vantagens o vetusto imperialismo dos avoengos, permitiu à Europa Ocidental, entre outras proezas, a de construir, não com os mecanismos de mercado, mas graças a pesados subsídios, a perniciosa Política Agrícola Comum (PAC). O resultado é que, embora tenham uma agricultura reconhecidamente não-competitiva, conseguem preencher quase todos os lugares dentre os 12 maiores exportadores agrícolas, salvo raras exceções.

Cansados de deblaterar contra a situação, os Estados Unidos fizeram o que costumam fazer os poderosos em casos semelhantes: juntaram-se aos europeus, não mediante a adesão à União Européia mas na imitação do exemplo. Em 1985, véspera do início da Rodada Uruguai, Washington assinou, pela primeira vez em décadas, um acordo de livre-comércio com Israel. Esse primeiro foi seguido, alguns anos depois, pelo Nafta com o Canadá e México, o acordo com a Jordânia, as negociações da ALCA com os 33 países do hemisfério ocidental, "do Alasca à Patagônia", além de numerosas outras iniciativas com distintos graus de tratamento preferencial: as "preferências andinas" para combater o cultivo da coca, a Iniciativa da Bacia do Caribe, o AGOA (African Growth Opportunity Act) para os africanos. Somando a discriminação negativa (por exemplo, a não-aplicação da cláusula de nação-mais-favorecida a países comunistas, as sanções contra Cuba, Iraque etc.) com a positiva (os acordos preferenciais), os EUA passaram de regime de "protecionismo igualitário e não-discriminatório" no século XIX à situação atual, descrita por VanGrasstek nos seguintes termos: "Hoje, o puro tratamento de nação-mais-favorecida, conhecido agora como relações comerciais normais (NTR, em inglês) constitui uma categoria residual (apesar de ainda grande) na hierarquia de tratamento estendida pelos Estados Unidos a seus parceiros de comércio" (3 3 Craig VanGrasstek, op. cit. ).

Por muito tempo e mesmo hoje em dia, o discurso oficial de todos os praticantes desse jogo tem sido o de repetir que tais acordos devem ser vistos como building blocks, não como obstruções ou stumbling blocks à meta última do sistema, que continuaria a ser a implantação definitiva, em futuro impreciso, de regime comercial não-discriminatório e aberto, abrangendo todo o planeta. Sem pôr em dúvida a sinceridade de proclamações desse tipo, é permitido indagar se os responsáveis por elas acreditam no realismo de esperar que a meta se concretize em tempo plausível. A onda dos acordos preferenciais tornou-se tão avassaladora que hoje, até os mais renitentes opositores, Japão e Cingapura, decidiram negociar um entre si. O USTR Zoellick vem pressionando o Congresso com o risco de que os EUA percam a liderança em matéria comercial se não forem capazes de imitar e superar o ativismo de europeus e mexicanos na multiplicação de acordos de livre-comércio. Por fim, talvez a razão principal para um saudável ceticismo provenha das vantagens evidentes que os acordos preferenciais rendem aos poderosos, dificilmente igualáveis por qualquer avanço que se possa lograr nas negociações multilaterais.

Com efeito, se essas negociações tivessem de realizar seriamente suas promessas, deveriam levar não só os EUA e a UE, mas o Japão, a Coréia do Sul, a Suíça e a Noruega, a aceitarem, em prazo razoável, um comércio agrícola sem subsídios ou barreiras e a abertura de seus mercados para manufaturas intensivas em mão-de-obra, tais como os tecidos, as confecções, os calçados, os artigos de couro, os móveis, sem mencionar o aço dos subdesenvolvidos. Ora, esses produtos representam justamente o "caroço duro" do protecionismo, os setores defendidos por poderosos lobbies internos. Enquanto as negociações multilaterais condenam esses setores ao virtual desaparecimento, os acordos preferenciais permitem-lhes transferir as operações para países de salários baratos dentro da zona preferencial, preservando o controle e o lucro principal, ou mesmo evitando e adiando as concessões nas áreas críticas, em troca de preferências para produtos menos sensíveis. O primeiro caminho foi, por exemplo, o seguido no Nafta em matéria de têxteis e confecções, mediante a regra de "tríplice origem", que fez do México o principal supridor desses produtos ao mercado norte-americano. Por meio de regras diferentes, a Europa estabeleceu regime similar com países mediterrâneos, dos quais a Turquia converteu-se no maior exportador ao mercado europeu.

Outro exemplo interessante ocorreu quando a indústria automobilística americana conseguiu vencer a ameaça dos japoneses em meados dos anos de 1980. Confrontadas com essa concorrência, as três grandes montadoras - GM, Ford e Chrysler - transferiram, a partir de 1986, boa parte de suas operações à zona fronteiriça mexicana, onde construíram plantas basicamente destinadas a exportar modelos para os EUA utilizando mão-de-obra barata local. Essa foi uma das iniciativas concretas que acabaram levando à negociação do Nafta. O segundo caminho é o que conduz os africanos e caribenhos beneficiários do tratamento preferencial em bananas ou quotas de açúcar a se agarrarem a suas margens de preferência, em vez de apoiar outros subdesenvolvidos, que insistem na liberalização do comércio agrícola. Aliás, uma das vantagens adicionais dos acordos preferenciais é que eles possibilitam aos poderosos isolar e talvez dobrar os impertinentes como o Brasil e a Argentina, culpados da ousadia de pretender que a teoria das vantagens comparativas aplique-se igualmente ao suco de laranja, ao açúcar, à carne, à soja, e não só aos produtos eletrônicos, às máquinas e aos equipamentos sofisticados, nos quais os avançados não temem concorrência. É esse o mecanismo clássico das pressões na negociação da ALCA: insinua-se que se o Brasil persistir no "irrealismo" de reclamar concessões nos setores em que é competitivo, arrisca-se a ficar sozinho com seus princípios, abandonado pelos demais latino-americanos, que passariam a viver e prosperar, para sempre felizes no acolhedor e maternal regaço do mercado americano.

Idêntico mecanismo serve igualmente para fazer expandir as fronteiras do sistema comercial na direção desejada pelos que o dominam. Alega-se, por exemplo, que assuntos como agricultura e antidumping são globais e sistêmicos, só podendo avançar-se no âmbito multilateral. A OMC constituiria, assim, o teto máximo do que é viável alcançar em tais questões. Curiosamente, porém, em temas que são tão ou mais globais que esses - serviços, propriedade intelectual, investimentos, competição, compras governamentais - Washington deseja não só negociá-los na ALCA mas obter resultado além da OMC ou "WTO-plus". Não seria mais lógico transferir todas as questões globais para a OMC, ou alternativamente, ter o mesmo nível de ambição estendido à agricultura e ao antidumping? Essa seria a lógica socrática mas não a do poder, que prefere a regra "o que é meu, é meu; o que é seu, é negociável". Mais uma vez, como os outros estão ansiosos em receber fatia das preferências, não custa muito esforço persuadi-los a engolir gradualmente todos os setores novos. Em alguns dos acordos de livre-comércio, até os temas trabalhistas e ambientais acabaram incluídos.

Resta ver se os esquemas preferenciais serão capazes de impedir por muito tempo uma das maiores iniquidades do regime comercial norte-americano: a concentração das tarifas mais elevadas nos produtos exportados pelos pobres de fora, os subdesenvolvidos e consumidos pelos pobres de dentro. No estudo America's hidden tax on the poor (4 4 Edward Gresser, America's hidden tax on the poor - the case for reforming U. S. tariff policy. Washington, Progressive Policy Institute, março de 2002. ), Edward Gresser, que foi assessor da USTR, Charlene Barshefsky, revela que os tecidos, roupas e calçados representam apenas 6,7% das importações americanas mas suportam metade da carga tarifária incidente sobre as importações. Em 2001, as importações totais somaram US$ 1,132 trilhões, sobre as quais foram arrecadadas US$ 18,6 bilhões de tarifas (a média da tarifa efetivamente aplicada foi de apenas 1,6%). Os calçados e roupas produziram US$ 8,7 bilhões, quase metade das tarifas cobradas, apesar de não terem chegado a 7% das importações. Mais chocante é verificar que a tarifa média incidente sobre os produtos originários de Bangladesh, um dos países mais pobres do mundo, foi de 14,1%, ao passo que as exportações da França tiveram de pagar apenas 1,1%. As cifras correspondentes à Mongólia e à Noruega foram, respectivamente, de 16,1% e 0,5%, ao paupérrimo Camboja e à próspera e tecnologicamente avançada Cingapura, de 15,8% a 0,6%, e assim por diante. Também é difícil entender por que as roupas baratas consumidas pelos pobres americanos, sobretudo mulheres, pagam 16% de tarifa, em contraste com as caras, de seda, gravadas só em 2,4% ou menos.

Chegamos finalmente ao exemplo do Brasil, nação particularmente prejudicada pelo protecionismo seletivo dos Estados Unidos, uma vez que muitas de nossas exportações atuais ou potenciais se concentram em áreas consideradas sensíveis: produtos agrícolas, frutas, vegetais e carnes afetados por barreiras sanitárias, aço e ligas de ferro, vítimas favoritas de antidumping e direitos compensatórios, ao lado de calçados e roupas, que têm de afrontar também as tarifas proibitivas. É bastante conhecido o estudo realizado em 2000 pela Embaixada do Brasil em Washington. Utilizando dados de 1999, o estudo comparou a tarifa média aplicada pelos EUA aos 15 principais produtos brasileiros de exportação da época, concluindo que essa média alcançava 45,6%. Em contraste, a tarifa média brasileira para as 15 maiores exportações norte-americanas para nosso mercado era de 14,3%. O USTR contestou a metodologia empregada, alegando que se havia recorrido à média tarifária simples e não à ponderada por volume de comércio. O contra-argumento da Embaixada pareceu-me então válido e assim continuo a pensar. De fato, certas tarifas americanas, em especial as incidentes sobre exportações que excedam quotas, são de tal maneira elevadas que eliminam qualquer possibilidade de exportação. Esse é, por exemplo, o caso do açúcar (236% extra-quota), tabaco (350% extra-quota), etanol (2,5% mais US$ 0,52 por galão), suco de laranja (US$ 0,785 por litro). Ademais, diversos estudos indicam que cerca de 60% de todos os produtos exportados pelo Brasil para os EUA são afetados, de uma maneira ou de outra, por barreiras tarifárias e não-tarifárias, alguns tendo desaparecido completamente do mercado americano após a imposição de sanções, outros tendo de enfrentar tarifas altíssimas como certos têxteis (38% ad valorem, mais US$ 0,485 por quilo). Seria, portanto, enganador utilizar a média ponderada por volume de comércio, já que não se pode estimar qual seria o fluxo das exportações se as tarifas e outras barreiras não fossem tão aniquiladoras de qualquer comércio.

Os mesmos problemas tornam problemática e arriscada, embora não impossível, a posição negociadora brasileira na ALCA. Com efeito, em numerosos itens, a tarifa americana já está próxima de zero e, nesses casos, duas possibilidades existem: ou o Brasil já os exporta e não necessita de acordo adicional para fazê-lo (exemplos do café, minério de ferro e aviões, com tarifa zero), ou não os exporta por não ter condições de competir com terceiros, como os asiáticos, em muitos artigos eletrônicos ou químicos, nos quais somos deficitários em nosso próprio mercado. Em tal situação, não será reduzindo um ponto porcentual que mudará a perspectiva. Em compensação, nos produtos em que somos competitivos, não só as barreiras americanas são intransponíveis como a Trade Promotion Authority criou mecanismo novo para dificultar qualquer concessão. Efetivamente, em cerca de 350 produtos sensíveis, o Executivo terá de submeter-se a complicadas consultas, às vezes com não menos que quatro comissões parlamentares (as duas de Agricultura, a "Ways and Means", da Câmara e a de Finanças, do Senado), se quiser negociar a redução de barreiras. As consultas são minuciosas e pre-estabelecidas nos mínimos detalhes. A negociação não está proibida em tese mas na prática não será fácil superar essa verdadeira corrida de obstáculos. Boa parte dos produtos incluídos na lista são aqueles para os quais os Estados Unidos fizeram a menor redução possível no fim da Rodada Uruguai: 15%. Dentre esses produtos, especialmente os 120 mais importantes, encontram-se quase todos os de interesse prioritário para o Brasil.

Pode-se alegar, é claro, que tais produtos correspondam a aproximadamente de 15% a 20% das exportações brasileiras para o mercado americano. Aqui, contudo, volta a incidir a dificuldade que já enfrentamos anteriormente: como calcular o potencial de exportações inibidas hoje por barreiras proibitivas? É possível que existam outros produtos, menos complicados, capazes de substituir os sensíveis, ou talvez haja outras vantagens decorrentes da ALCA, como os investimentos. Não disponho nem do espaço, nem dos dados, para um exame mais aprofundado e satisfatório de todas as alternativas para viabilizar um acordo vantajoso. As considerações deste artigo destinam-se meramente a ilustrar alguns dos problemas provenientes do peculiar protecionismo praticado nos EUA. Não nego, como disse no começo, que esse mercado é, sob muitos aspectos, um dos mais abertos do mundo e certamente o mais dinâmico. Entretanto, a circunstância de que o protecionismo ianque é seletivo, e não generalizado, sendo perfeitamente factível gerar com os Estados Unidos comércio volumoso e até superavitário, como fazem os chineses, não servirá de muito consolo a quem tem a falta de sorte de descobrir-se alvo dessa seletividade, apesar de dispor de condições de competitividade num quadro de livre e leal concorrência.

Em resumo: nas negociações comerciais, como em quaisquer outras negociações internacionais, não se deve jamais perder de vista a centralidade do poder, neste caso o poder do mercado, isto é, a capacidade de um governo como o americano de dosar o acesso dos parceiros a seu mercado de acordo com as concessões que deles obtiver. Mas se o poder é a realidade central das relações internacionais, ele não é, de forma alguma, a única e exclusiva realidade. Essas relações, como as sociais em geral, são uma mistura de conflito, domínio onde se afirma incontrastável o poder, com o interesse mútuo de cooperação, área que permite outras modalidades mais positivas de interação. Tanto nas negociações multilaterias da OMC, quanto nas regionais da ALCA, deve-se trabalhar para que a realidade de uma genuína interdependência conduza a compatibilização dos dois processos, formulando-se um acordo hemisférico aberto, etapa de transição para um sistema multilateral não-discriminatório; e, em relação ao Brasil, que nos dê as condições de aproveitar nossas legítimas vantagens comparativas e de equilibrar, assim, um processo até agora assimétrico.

Notas

Rubens Ricupero é secretário-geral da Conferência das Nações Unidas para o Comércio e o Desenvolvimento (Unctad), professor de Relações Internacionais na Universidade de Brasília e de História das Relações Diplomáticas no Instituto Rio Branco, DF. É autor, entre outros, dos livros O Brasil e o futuro do comércio internacional (1988), Brasil em mudança (1991), O futuro do Brasil (1992), O Brasil, a América Latina e os EUA desde 1930 (1993), A nova inserção internacional do Brasil (1994), Visões do Brasil (1995) e O ponto ótimo da crise (1998).

  • 1
    Robert Gilpin
    , The political economy of international relations. Princeton, Princeton University Press, 1987.
  • 2
    Craig VanGrasstek,
    The three dimensions of U. S. trade policy, em preparação para publicação.
  • 3
    Craig VanGrasstek,
    op. cit.
  • 4
    Edward Gresser,
    America's hidden tax on the poor -
    the case for reforming U. S. tariff policy. Washington, Progressive Policy Institute, março de 2002.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      21 Mar 2005
    • Data do Fascículo
      Dez 2002
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