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De batedor de carteira a assaltante de bancos

DOSSIÊ CRIME ORGANIZADO

De batedor de carteira a assaltante de bancos

Marco Antônio Coelho

O RELATO DA taquigrafia é direto. Nenhum sentimento transparece na fala gravada de um preso. Fatos e mais fatos, apenas. Tudo está nas declarações de uma pessoa com um nome desconhecido – Marcos Willians Herbas Camacho. Mas muito conhecido pelo seu apelido – Marcola. Exatamente o acusado, numa lista de crimes, de ser o chefe do Primeiro Comando da Capital (PCC), em São Paulo.

Simplifica tudo ao resumir – "vim da miséria". É órfão desde seus nove anos e foi criado na Praça da Sé, em São Paulo. Na infância, ali tomava banho e dormia encostado numa parede da Catedral. Sua mãe morreu afogada. Não se lembra de seu pai. Tem duas irmãs e seu irmão foi morto. Tem uma filha com pouco mais de sete anos. Sua mulher foi assassinada, mas não acusa ninguém por esse crime. Traz no corpo cicatrizes de facadas. Diz que a vida também é muito curta para o traficante de armas. Pensa que não irá viver mais vinte ou trinta anos. Está convencido de que, quem é ligado à violência, a tendência é ser morto pela violência.

Sua primeira prisão foi aos quatorze anos, como batedor de carteiras. Depois virou assaltante de bancos. Está preso desde 1999 e já fugiu cinco vezes de diferentes prisões. Viveu seis meses no Paraguai. Quando voltou de lá, por acaso foi encontrado pela polícia de São Paulo, quando estava num carro roubado.

Foi condenado a 44 anos de prisão e afirmou que no presídio já se encontrava havia cinco anos e meio no Regime Disciplinar Diferenciado (RDD), regime em que o preso recebe o tratamento mais duro. Pensou em suicidar-se, mas depois não teve coragem de pôr termo à sua vida. Deseja morrer velho, mas não tem nenhuma motivação para viver.

Não acredita em Deus e declarou-se agnóstico. Informa que sua vida mudou quando teve acesso a livros. Virou um autodidata, estuda seus direitos e leu diversos livros sobre política. Autores preferidos: Nietzsche, Vitor Hugo, Santo Agostinho, Voltaire e a Bíblia.

Depoimento na CPI da Câmara dos Deputados

Seu depoimento prestado na Comissão Parlamentar de Inquérito da Câmara dos Deputados, encarregada de pesquisar o tráfico de armas, durou quatro horas e treze minutos. Essa reunião privativa foi realizada no dia 8 de junho de 2006, no presídio de Presidente Bernardes (SP). A CPI foi presidida pelo deputado Moroni Torgan, e o seu relator foi o deputado Paulo Pimenta. Nessa audiência participaram oito deputados federais.

A transcrição dessa fala está na internet – www1.folha.uol.com.br/folha/cotidiano/20060708-marcos_camacho.pdf. A respeito desse documento, trechos e comentários foram divulgados por diversas publicações. Uma fotografia dessa reunião foi tirada da porta da sala em que foi tomado o depoimento.

Como essa audiência aconteceu logo após a rebelião havida em vários presídios de São Paulo, além de atentados e ações violentas contra delegacias e viaturas da polícia paulista, várias perguntas a propósito daqueles acontecimentos foram suscitadas pelos membros da CPI.

Um deputado indagou sobre a vida nas prisões. Marcola confirmou a existência de organizações dos presos, acrescentando que ultrapassam as fronteiras de um presídio. Revelou que "há uma regra de convívio em todos os presídios, independentemente do PCC e de qualquer outra organização, criminosa ou não". Para Marcola, "em todas as cadeias há uma disciplina interna criada pelos próprios presos ... uma disciplina, porque senão o cara vai querer fazer sexo com a mulher do outro, por exemplo. Se ele for mais forte e o outro mais fraco, naturalmente poderia fazer isso. Mas, a própria regra que existe dentro da prisão proíbe essa atitude".

Deu outro exemplo de normas que foram aceitas pelos presos – acabar com o uso do crack, decisão tomada por consenso. Explica o sucedido: "Alguém dá uma idéia, raciocina e fala – 'gente, o que vocês acham de abolir o crack?'. Isso foi transmitido por celular para as outras penitenciárias". E continua Marcola:"Também a maioria decidiu abolir o homossexualismo, ou seja, um cara estuprar outro preso, o que acontecia com freqüência no sistema penitenciário de São Paulo e as autoridades jamais conseguiram acabar com isso. Foi a organização que estabeleceu regras de convívio para se enfrentar uma prática que afronta a dignidade humana".

A miséria e a violência

Sentindo que poderia aproveitar a oportunidade para defender a causa dos presos, Marcola afirmou: "Desde crianças somos habituados a conviver com a miséria e a violência. Em qualquer favela diariamente há assassinatos. A violência é o natural do preso, por isso as organizações dos presos combatem essa natureza violenta. O que fazem? Proíbem os encarcerados de tomarem certas atitudes que para eles seriam normais, mas que invadem o espaço do outro. O senhor entende?".

Um parlamentar pediu uma informação sobre a contrapartida que a organização exige do preso. Marcola retruca: "Ninguém paga nada dentro da prisão. Isso acabou. Houve uma época que alguns presos mensalmente pagavam vinte reais a uma determinada organização. Era uma caixinha para que pudessem ter advogados, assistência jurídica... Mas isso foi abolido".

Marcola disse que é normal a solidariedade entre os presos e seus familiares: "Nosso idealismo é o da solidariedade, do preso saber que existe muita injustiça no sistema penitenciário e que o cara que está lá dentro precisa de apoio jurídico, assim como das visitas de seus familiares para ele sobreviver lá dentro. Isto porque a alimentação geralmente é horrível. E se depender de remédio não conseguirá se tratar".

Quando um parlamentar observou que o crescimento dessa organização dos presos tirou a autoridade do Estado e que não vai ser fácil restabelecer essa autoridade, Marcola concordou, dizendo que realmente isso aconteceu. Por diversas vezes, no curso do depoimento, Marcola refutou a versão, apresentada inclusive nos jornais, de que ele seria o chefe do PCC, afirmando que "embora a imprensa fantasie romanticamente sobre tal liderança, tudo isso é uma balela. Há pessoas esclarecidas dentro da prisão que angariam a confiança de outros presos. Por quê? O preso vem com um problema, você dá uma solução, mostra uma lógica, mostra a forma pela qual ele está sendo tratado e a forma que ele deveria estar sendo atendido".

Quando o deputado Raul Jungmann afirmou que julga imprescindível uma política para ressocializar o preso, Marcola aproveitou a oportunidade para tratar dessa questão: "Desculpe, mas o senhor não acha que, quando são feitas leis de repressão, aproveitando agora este momento de sensacionalismo e tudo o mais, não se deveria também fazer leis destinadas a ressocializar os presos? Por que vocês têm a opção de reprimir e não têm a opção de ressocializar? ... Cadê o interesse nisso, não dá voto?".

Marcola pergunta: "Como a gente vai parar de ser bandido? Eu queria saber. Se soubesse isso, vou dizer ao senhor, já teria de alguma forma tentado sair do crime, entendeu? Não existe política nenhuma de reabilitação no sistema penitenciário...".

Como os presos são utilizados? Marcola responde: "Todo mundo, de alguma forma ganha dinheiro às nossas custas. Quando são construídas dezenas de prisões, o senhor não acha que nelas tem gente ganhando dinheiro? ... Várias são as formas de nos usarem. E os presos facilmente são usados. Eles não podem falar. Não é dado a eles o direito de fazer alguma coisa, de falar e votar. Nada ... Então, fazem da gente o uso que desejarem...".

O equívoco da política com os presos

Um tema logo aparece no depoimento – os telefones celulares. Marcola confirma que os presos utilizam esses aparelhos para se comunicarem entre os presídios. Um dos deputados disse que o governo dificultará o uso dos celulares entre os presos.

Marcola não acredita que essa proibição será posta em prática. Afirma: "esse negócio de intimidação – de que o preso apanhado com celular vai ficar três ou quatro anos no RDD nunca funcionou em São Paulo... O cara vem para o presídio, fica um ano sem ter relações sexuais com sua esposa e sem ver televisão. Na última vez fiquei assim dois anos. A maioria que passa por aqui volta para a prisão e não tem medo de voltar para cá, nem ser transferido para uma penitenciária federal, nem para lugar nenhum... Essa forma de resolver o problema não vai dar certo. Apenas jogará areia nos olhos da sociedade, falando – 'resolvemos o problema penitenciário, construindo a prisão mais dura do mundo'... Mas quantos presos vão caber nessa penitenciária? Duzentos? E os outros milhares que estão por aí? Vão criar o quê? Um monte de monstros, um monte de pessoas revoltadas que também não vão se intimidar. Está errado! Acho que primeiro teria de se dar condições dignas para os presos".

A respeito dos funcionários das prisões, um diálogo elucidativo ocorreu entre o relator da CPI e o preso:

Deputado Paulo Pimenta – "Marcola, por que tu tens tanta facilidade, por exemplo, para falar dos policiais corruptos, mas do agente penitenciário corrupto tu não falas?"

Marcola – "Porque são níveis diferentes de corrupção, no meu ponto de vista. O agente penitenciário tem uma vida miserável, muito semelhante à vida do presidiário. Então, o preso acaba se identificando com ele, ou ele com o preso. Porque eles vêm da mesma favela. Agora, com o policial tudo é diferente... O funcionário da prisão não vai ter condições de ganhar 500 mil reais, a não ser que me ajude a fugir daqui. Mas ele não vai ter condições para isso."

A ficha criminal de Marcola

Um outro lado da história aparece quando se consulta a ficha policial de Marcola.* * Pesquisa feita por Leandro Bessa Souza, advogado formado pela Faculdade de Direito da USP, analista criminal da Assessoria de Gestão de Informações do Ministério Público do Estado de São Paulo. @ – bessasouza@uol.com.br A primeira condenação de Marcos Willians Herbas Camacho ocorreu em 1987, por roubo à mão armada a uma jovem no ano anterior. Foi condenado por outros dois assaltos – a um banco e a uma firma de segurança – no início de 1986, mas foi absolvido em outros quatro casos. As demais acusações contra Marcola que vingaram são as referentes a dois assaltos milionários: em julho de 1998, Marcola e seus comparsas seqüestraram o diretor de uma transportadora de valores em São Paulo e levaram quase quatro milhões de reais. Nove meses depois, participou de uma ação em uma agência do Banco do Brasil em Cuiabá, que rendeu ao grupo outros sete milhões de reais.

A pena total de Marcola, fruto dessas cinco condenações, é de 39 anos, onze meses e quatro dias de prisão. Cumpriu menos da metade desse total. Sua punição, no entanto, pode aumentar nos próximos anos. Ele é apontado em diversos processos como mandante dos atentados de maio e julho de 2006, incluindo assassinatos de agentes de forças de segurança e ataques a prédios públicos, além do homicídio do juiz corregedor Antônio José Machado Dias, pelo qual já foi pronunciado.

Marco Antônio Coelho é editor executivo de ESTUDOS AVANÇADOS. É autor de Os descaminhos do São Francisco (Paz e Terra, 2005). @ – macoelho@that.com.br

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    Pesquisa feita por Leandro Bessa Souza, advogado formado pela Faculdade de Direito da USP, analista criminal da Assessoria de Gestão de Informações do Ministério Público do Estado de São Paulo. @ –
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      11 Jun 2008
    • Data do Fascículo
      Dez 2007
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