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O mito fascista da romanidade

Resumos

Este ensaio procura analisar como o mito de Roma foi utilizado por Mussolini para criar uma "especificidade" fascista que coincidisse com uma "especificidade" da nação italiana. Práticas rituais, gestos, valores, símbolos foram retomados, de forma variamente arbitrária, para construir um mito que gerava novas ambigüidades, e que constituiu, à diferença do nazismo, um empecilho para a própria sobrevivência da "romanidade" após Mussolini.

Fascismo; Roma antiga; Mito; Religião da política


This essay aims to analyze how the myth of Rome was used by Mussolini to create a fascist specificity that coincided with a specificity of the Italian nation. Ritual practices, gestures, values and symbols were retaken, sometimes arbitrarily, in order to build a myth that generated new ambiguities and that, different from Nazism, constituted a hindrance to the survival of "romanity" after Mussolini.

Fascism; Ancient Rome; Myth; Religion of politics


DOSSIÊ NAÇÃO NACIONALISMO

O mito fascista da romanidade

Andrea Giardina

RESUMO

Este ensaio procura analisar como o mito de Roma foi utilizado por Mussolini para criar uma "especificidade" fascista que coincidisse com uma "especificidade" da nação italiana. Práticas rituais, gestos, valores, símbolos foram retomados, de forma variamente arbitrária, para construir um mito que gerava novas ambigüidades, e que constituiu, à diferença do nazismo, um empecilho para a própria sobrevivência da "romanidade" após Mussolini.

Palavras-chave: Fascismo, Roma antiga, Mito, Religião da política.

Disciplina e poder

O MITO de Roma foi utilizado por Mussolini, com múltiplas referências positivas, já antes da transformação do fascismo de movimento em partido.1 1 Para os precedentes, cf. Salvatori (2006, p.749-89). Estava claro, desde o princípio, que o modelo de comportamento proposto para os militantes fascistas valia, em perspectiva, para toda a sociedade. A adoção de símbolos e ritos romanos, como o fascio littorio, a saudação com a mão estendida e a marcha cadenciada, permitia qualificar, com eficácia, uma especificidade fascista, apresentando-a, porém, ao mesmo tempo, como especificidade da nação.

A saudação fascista – braço direito levantado com a palma da mão em posição estendida –, usada originalmente pelos legionários da expedição em Fiume de Gabrielle D’Annunzio, encontrava correspondência em um amplo repertório iconográfico romano, mesmo se não faltam atestações numerosas de uma saudação idêntica na arte grega. Na sociedade romana, os significados para esse gesto, que não era o único gesto de saudação, nem o mais difundido, eram variados e mudavam segundo os contextos. Prevalece, porém, na escultura e nas representações monetárias, um significado augural, sem nenhuma conotação estritamente política.

No ritual fascista esse assume, ao contrário, uma forte conotação política e ideológica, porque indicava uma adesão ao partido impregnada de caráter guerreiro. Ele era também exaltado pela sua maior higiene e pela sua rapidez, que bem exprimia o dinamismo fascista. A assunção dessa saudação (depois retomada pelo Deutscher Grüss nazista) entre os cânones do estilo fascista trouxe graves conseqüências para a imagem difundida da romanidade: em muitos filmes de tema romano, mesmo recentes, esse gesto aparece como uma espécie de marca antropológica, exibida de forma paroxística, em toda circunstância. O romano mostra-se, portanto, como um tipo humano doentiamente marcado por uma coação obtusa, que o leva a repetir, até mesmo nos salões, gestos de acampamento militar. É óbvio que a força política de um mito não depende da autenticidade histórica dos ritos, dos valores, dos eventos, dos gestos que o atualizam, e seria mesmo possível sustentar que, em algumas circunstâncias, a eficácia de um mito é diretamente proporcional ao seu grau de falsificação do passado.

O uso fascista da romanidade foi extremamente difundido, e utilizou – pela primeira vez na história do mito de Roma – meios de comunicação de massa em dimensão planetária, suscitou entusiasmo e interesse não somente na opinião pública italiana, mas também no exterior, permeou a maior catástrofe do século XX: por todos esses motivos, a imagem fascista da romanidade tornou-se, tout court, a imagem de Roma.

No início do fascismo, o conceito que mais freqüentemente era ligado à idéia de Roma exprimia-se com a bela palavra latina disciplina. Essa virtude era representada principalmente por meio do rito da marcha fascista, destinado a infundir nos participantes um sentido de união, de solidariedade e de força, e nos espectadores a sugestão de um modelo confortante, feito de ordem e compostura.

O nexo entre a marcha e a disciplina permaneceu um ponto constante da visão política de Mussolini: "Nós também" – ele proclamou já em 1921 –

abolimos assim e tendemos a abolir o rebanho, a procissão. Abolimos tudo isso e substituímos essas formas antiquadas de manifestação pela nossa marcha, que impõe, em cada um, um controle individual, que impõe a todos uma ordem e uma disciplina. Porque queremos instaurar uma disciplina nacional sólida, porque pensamos que sem essa disciplina a Itália não pode se tornar a nação mediterrânea e mundial que está nos nossos sonhos.

A virtude da disciplina – única cura eficaz para um país como a Itália, que Mussolini definia "anarquizante nas tendências e nos espíritos" –, típica das camisas negras, deveria se propagar em todo o povo italiano, restabelecendo a ordem interna e pondo-se, ao mesmo tempo, como fator de poder externo. Nesse sentido, a disciplina romana e fascista era inseparável da exaltação mística da idéia de nação.

Disciplina e poder eram os valores essenciais da romanidade que os fascistas propunham para todos os italianos: mas a disciplina era o pressuposto do poder, porque, sem uma disciplina férrea, toda aspiração ao império seria uma veleidade, como ensinavam os fracassos africanos dos governos anteriores. A adoção, por parte do fascismo, do modelo imperial romano em chave atualizada de poder colonial repetia, no momento, os tons tradicionais da política exterior liberal. Era, no entanto, absolutamente nova a adoção da romanidade como modelo global, válido como estilo de vida para um partido, para os exércitos, para a sociedade civil: "Celebrar o Nascimento de Roma" – proclamou Mussolini em 21 de abril de 1922, poucos meses antes da marca sobre Roma –

significa celebrar o nosso tipo de civilização, significa exaltar a nossa história e a nossa raça, significa apoiar-se firmemente no passado para se projetar melhor no futuro. Roma e a Itália são dois termos inseparáveis [...] A Roma que honramos não é certamente a Roma dos monumentos e das ruínas, a Roma das ruínas gloriosas entre as quais nenhum homem civil circula sem sentir um frêmito de veneração trepidante [...] A Roma que honramos, mas principalmente a Roma que desejamos e preparamos é uma outra: não se trata de pedras insignes, mas de almas vivas: não é contemplação nostálgica do passado, mas preparação dura do futuro. Roma é o nosso ponto de partida e de referência; é o nosso símbolo, ou, se quisermos, o nosso mito. Sonhamos a Itália romana, ou seja, sábia e forte, disciplinada e imperial. Muito do que foi o espírito imortal de Roma renasce no fascismo: o lictor é romano, a nossa organização de combate é romana, o nosso orgulho e a nossa coragem são romanos: "Civis romanus sum" (Mussolini, 1956, v.XVIII, p.160ss).

O fascio

O símbolo fundamental da nova era foi o fascio littorio (fasces lictoris). A assunção desse símbolo ocorreu muito cedo no fascismo e aconteceu – juntamente com a multiplicação das referências simbólicas à romanidade – antes mesmo da fundação do partido. Nessa primeira fase, o fascio evocava valores tipicamente republicanos, mas logo após a formação do governo Mussolini, es-sas implicações republicanas foram abandonadas: uma emissão monetária de 1923 trazia, de um la-do, o vulto do rei, e, do outro, o emblema fascista, celebrando a colaboração entre a monarquia e o fas-cismo que tornara possível o advento do novo regime. Sucessivamente, o símbolo do Estado consistiu no escudo dos Sabóia erguido pelos dois feixes laterais.

Para individuar a for-ma canônica do fascio distinguindo-a de todo precedente que não fosse o da antiga Roma, e principalmente das implicações republicanas e libertárias que assumira durante a Revolução Francesa (Scuccimarra, 1999), pediu-se a consultoria do senador Giacomo Boni, figura de grande prestígio da arqueologia italiana. Boni cumpriu rapidamente seu dever, ajudado pelas múltiplas representações de feixes presentes na escultura romana: impôs-se, assim, o tipo do fascio littorio constituído pelas varas e pela acha em posição lateral, destinado a ocupar todo o espaço da iconografia da nação, mais ainda do que a águia e a loba romana, e a marcar a conversão – sancionada oficialmente em 1926 – de um emblema de partido em emblema estatal. Além das moedas, os italianos o observariam nos selos, nos documentos, nos edifícios públicos, nas novas obras do regime, nos uniformes, nos livros e nos anúncios publicitários.

O fascio littorio exprimia uma imagem severa, permeada de obscuridade, e com tons fúnebres. Encontramos essa imagem descrita em uma página de Alberto Moravia: "A praça estava deserta, parecia maior do que o habitual. Eu inicialmente não vi o feixe de ouro na grande bandeira negra e pareceu-me mesmo uma bandeira de luto". O emblema fascista indicara perfeitamente os valores da disciplina e da ordem que o novo regime pretendia impor aos italianos. Era uma inversão radical: a Itália solar e despreocupada dos tocadores de bandolim, a Itália com o boné de estalagem, "meta de todos os ociosos, carregando seu odioso Baedeker", tão detestada por Mussolini, era substituída com a Itália austera e turva do fascio littorio, evocada freqüentemente com tonalidades terrificantes: "as varas do Fascismo estão mais do que nunca poderosamente apertadas: e a acha é mais cortante do que antes".

Festividades romanas, era fascista

Um dos primeiros atos formais do novo regime foi a instituição, em 21 de abril de 1923, da festa do Nascimento de Roma. Essa festa era anteriormente celebrada em âmbito exclusivamente municipal; tornava-se assim, com uma evidente caracterização de partido, o "dia fascista", que assumia um caráter nacional e passava a substituir o dia do trabalho, que se celebrava em 1º de maio.

A ocupação fascista do calendário realizou-se pela indicação, introduzida em 1926, do ano da era fascista (a partir de 1922) junto à do ano depois de Cristo. A associação das duas ocorria com a aproximação dos números romanos aos números arábicos, mas também se podia usar somente o número romano. O impacto psicológico dessa inovação era forte, porque propagava a idéia do caráter epocal do regime que, como regime impregnado de romanidade, se pressupunha destinado a durar muito além da existência dos contemporâneos.

Por feliz coincidência, em poucos anos caíram três bimilenários, todos de importância extraordinária: o de Virgílio (1930), o de Horácio (1935) e o de Augusto (1937). Os primeiros dois bimilenários prestavam-se a ser usados para exaltar, junto aos poetas romanos, a colaboração entre os intelectuais e o poder que era fortemente desejada pelo regime. Os homens de letras que Mecenas reunira em volta de si e de Augusto ofereciam um modelo de mobilização das energias intelectuais destinada ao fortalecimento do consenso. Os sinais de atua-lização sugeridos pela obra de Virgílio cobriam toda a gama de possibilidades: como anunciador do cristianismo, ele era o símbolo do acordo entre o fascismo e a Igreja Católica; como poeta da vida campestre, era a alma antiga do ruralismo fascista; como cantor da dominação romana, era também o profeta da vontade de poder da Itália mussoliniana; como poeta da pacificação após o desastre das guerras civis, era, enfim, o espelho da Itália pacificação pelo fascismo (Canfora, 1985, p.469-72).

Foi menos fácil encontrar na obra de Horácio temas suscetíveis de uma atualização tão imediata e persuasiva: privilegiou-se, em todo caso, Horácio poeta civil, não sem exageros e funambulismos valorizados, como sempre, por uma parte do mundo acadêmico (Cagnetta, 1998). O bimilenário de Augusto ocorreu após a conquista da Etiópia, quando a Itália fascista assumira uma orgulhosa severidade imperial. Na ocasião, entre tantas outras celebrações, foi organizada em Roma a "Mostra da romanidade de Augusto", uma vitrina extraordinária da Roma antiga e do culto fascista da romanidade: os visitantes eram introduzidos nos usos, costumes, técnicas, cultura do mundo romano, junto aos valores antigos que a Itália fascista tinha tornado contemporâneos. O eco na Itália e no exterior foi enorme (Scriba, 1995).

Contemporaneamente, foi novamente aberta a "Mostra da revolução fascista", que fora inaugurada em 1932 para celebrar os dez anos do regime, e que até 1934 registrara cerca de quatro milhões de visitantes, entre italianos e estrangeiros (Salvatori, 2003, p.439-59).2 2 Sobre a primeira Mostra, cf. Schnapp (2003). Naqueles anos, a capital tornou-se objeto de uma peregrinação imponente, que pelas suas dimensões tinha poucos concorrentes na história da capital. Antigamente, ia-se a Roma para ver o papa, a basílica de São Pedro e outros lugares sagrados; agora, vai-se a Roma também (e, talvez, principalmente) para ver o duce, para admirar os monumentos restaurados, extasiar-se com os novos cenários romanos abertos pelo regime. Atraídos pelo triunfo do fascismo e pela miragem da antiga Roma, milhões de italianos viram a capital pela primeira vez (Gentile, 1993, p.148ss).

Cenários romanos

Enquanto os danos infligidos pela retórica fascista à imagem difundida da Roma antiga serão no futuro reabsorvidos, mesmo se lentamente, por outras imagens, os danos provocados por seus testemunhos materiais são irreversíveis (cf. Giardina, 2002, p.86-90).

Sabe-se que Mussolini não se limitou a formular uma política de diretrizes gerais para o renascimento da capital: ele orientou e discutiu os projetos, usou freqüentemente de seu inapelável poder de decisão, reivindicou o mérito de ter ideado e desejado a nova imagem da cidade. O princípio inspirador do plano regulador de 1931, do qual se declarou pai espiritual, é perfeitamente sintetizado nas palavras dirigidas pelo próprio Mussolini (1957, v.XXII, p.48) ao governador de Roma:

Continuareis a libertar o tronco do grande carvalho de tudo o que ainda o sombreia. Abrireis espaço em volta do mausoléu de Augusto, do teatro de Marcelo, do Capitólio, do Panteão. Tudo o que cresceu em volta nos séculos de decadência deve desaparecer [...] Os monumentos milenares da nossa história devem agigantar-se na solidão necessária.3 3 Para esses fatos, ver Cederna (1980) e Vidotto (2001, p.178ss).

Essa operação teve uma grande importância ao delinear uma falsa imagem física e social da Roma antiga, destinada a se perpetuar bem além do fascismo, como reconhecem todos os que viram as cenografias externas dos filmes de tema romano após a Segunda Guerra Mundial: uma cidade fria e arrogante, que exprimia, mesmo em seus monumentos, uma vocação a intimidar. O caso da posteriormente chamada Via do Império é exemplar. Aberta no espaço deixado vazio pela demolição de todo um bairro medieval e moderno, apoiada nas ruínas dos antigos foros imperiais, essa artéria abriu uma perspectiva grandiosa sobre o Coliseu, criando ao mesmo tempo uma relação especular ideal com a Praça Veneza, a platéia para a qual o duce falava, a partir do famoso balcão, e o mais grandioso dos monumentos romanos, enquanto a estátua gigantesca de Vitório Emanuel no Altar da Pátria vivia uma marginalização definitiva. Essa artéria tornou-se, além do mais, o percurso triunfal do regime, ao longo do qual as forças da nova Itália guerreira desfilavam diante da multidão romana e, graças ao uso como propaganda dos cinejornais, diante da inteira nação. Também nesse caso, repetia-se o equívoco que caracterizava a relação entre o fascismo e a romanidade: no pressuposto de que o fascismo tivesse redescoberto o mundo romano, a imaginação coletiva via a Roma antiga pelo filtro do presente, enquanto era verdade o contrário: as imagens atuais inventavam as antigas.

O fascismo não se limitou a restaurar e a liberar os monumentos antigos: criou também uma arquitetura moderna de inspiração romana, freqüentemente decorada com inscrições em italiano ou em latim, que traziam quase sempre aclamações e declamações tiradas dos discursos e dos escritos do duce.

A Itália rural e guerreira

Deu-se também grande destaque à tradição agrária da Itália antiga, que se perpetuava na vocação agrária da Itália contemporânea. Esse tema pode ser considerado um nó crucial de múltiplos aspectos da política fascista, alguns presentes no arco de todo os vinte anos do fascismo, outros típicos principalmente dos anos 1930. Com efeito, ele se mostra sempre ligado à campanha para o desenvolvimento demográfico (as famílias camponesas eram mais prolíficas do que as outras), à autarquia proclamada em resposta às sanções decretadas pela Sociedade das Nações após a agressão à Etiópia, à especificidade dos estabelecimentos italianos nas colônias (estabelecimentos de cultivadores, repetia-se, em oposição ao caráter mercantil dos impérios "plutocráticos"), à polêmica antiburguesa, às leis raciais (ver adiante), à relação entre o trabalho dos campos e o valor guerreiro: para cada um desses aspectos era possível, segundo a mensagem fascista, encontrar um espelho límpido na história da Roma antiga.

Uma primeira fase significativa dessa política foi a assim chamada "batalha do trigo", iniciada em 1925 por Mussolini, com uma terminologia guerreira redundante. O objetivo da campanha era fazer crescer a produção de cereais reduzindo a entidade das importações: o objetivo foi substancialmente atingido, mesmo se à custa de desequilíbrios graves e de um atraso na modernização da agricultura.

Um outro grande momento de exaltação do ruralismo como caráter da estirpe romana e italiana começou em 1928, com a política da "bonificação integral" que, prosseguindo e relançando iniciativas iniciadas após a formação do Estado unitário, visava à recuperação de todas as principais zonas pantanosas da península. Na propaganda do regime, a bonificação não era apresentada somente como um desafio técnico e social concreto. Ela assumia o caráter de uma metáfora global na construção do homem novo nascido da têmpera do homem antigo: como os colonos romanos, os colonos da era fascista teriam vencido os espaços selvagens, civilizando a natureza, criando famílias prolíficas das quais nasceriam soldados prontos para servir a Pátria. A metáfora do arado e da espada ilustrava perfeitamente esse programa: "é o arado que traça o sulco, mas é a espada que o defende. E a relha e a lâmina são ambos de aço temperado, como a fé de nossos corações" (Mussolini, 1953, v.XXVI (18.12.1934), p.402). A guerra contra os pântanos era concebida como o treinamento moral para outras guerras bem mais sangrentas: nesse sentido, a bonificação integral pode ser vista como a premissa para as guerras da Etiópia e da Espanha.

O ruralismo fascista recebeu um grande eco internacional, porque suas principais iniciativas coincidiram com a crise que, em 1929, devastou as economias ocidentais, tocando em medida menor a Itália. O bimilenário de Virgílio, em 1930, forneceu, além do mais, a ocasião para a propaganda fascista da construção de um cruzamento sugestivo entre humanismo e economia, entre antigo e moderno: o sucesso dessa propaganda foi notável também no exterior.

A romanidade e o homem novo

Na cerimônia solene, em 21 de abril de 1924, em que foi conferida ao duce a cidadania romana, esse afirmou que a continuidade de Roma era um fenômeno impenetrável para a investigação histórica: os raciocínios frios dos estudiosos não conseguiam vencer a lenda, porque o motivo da eternidade de Roma era um mistério (Mussolini, 1956, v.XX, p.234). Mesmo a multiplicação das descobertas arqueológicas podia ser considerada uma manifestação desse mistério:

Não passa dia em que não retorne à luz do Sol algum documento da grandeza de Roma. A terra parece ansiosa de restituir os vestígios do que foi o mais vasto império da história. Por que negar a existência de algo misterioso no fato de que essas descobertas, em todo canto da Europa, coincidem com o tempo fascista, que retomou os símbolos de Roma e que atribui ao povo italiano as virtudes que tornaram dominante e poderosa Roma? (Mussolini, 1953, v.XXVI (13.9.1933), p.51)

O sentido fascista da romanidade prescindia dos livros, porque era principalmente ação e intuição. Era a idéia de que Roma deveria agir na consciência do povo italiano de modo quase instintivo e em virtude de uma transmissão milenar que várias vezes, no passado, pareceu ter sido perdida, mas que sempre renasceu em virtude de uma vitalidade subterrânea e indestrutível. Era uma força desconhecida e mística que, ligando o passado ao presente, assegurava mais uma vez o triunfo de Roma. Com a expressão "mistério de Roma" indicava-se a natureza de um fenômeno extraordinário não somente pela sua potência originária, mas, principalmente, pelos seus renascimentos e pela sua duração, expressões não mais da vontade dos indivíduos singulares e das alquimias políticas, mas de uma vitalidade quase subliminar. O início da política racial teria adicionado a esse tema um aspecto biológico.

A insistência, que se estendeu por anos, sobre a distinção entre erudição e intuição, revela um ponto crítico na ideologia fascista da romanidade: consistia no temor de que uma inspiração romana tão forte e difundida fosse entendida como uma forma de misoneísmo e como o sinal de uma incapacidade de projetar o futuro. Por isso deviam-se evitar, absolutamente, fórmulas como "retorno à romanidade", "restauração da romanidade", e semelhantes, que sugeriam um comportamento passivo e ocultavam a dimensão criativa do culto fascista de Roma.

O resgate dos italianos e sua futura glória não dependiam unicamente do renascimento de virtudes que foram típicas dos romanos. O fascismo queria realizar uma revolução antropológica. O homem novo: esse produto da educação fascista era, em parte, um homem do passado, porque mantinha vivo em si o espírito da romanidade, mas era, principalmente, uma criatura original, que teria tornado possível a longa duração, se não a eternidade, da era fascista. Nesse sentido, como acentuou recentemente Emilio Gentile (1999, p.155), não se pode dizer que o mito fascista da romanidade exprimisse uma ideologia fundamentalmente antimoderna.

O retorno do império

Qual Roma? Na época fascista, a dificuldade em conciliar a Roma republicana e a Roma imperial em um mito único e harmonioso se revelou de forma aguda. A república, na fase anterior às guerras civis, oferecia aos fascistas o modelo de um povo compenetrado na vida do Estado, a antiga realidade do Estado entendido como "totalitário". Em época imperial, esse estilo de vida desapareceria e com seu desaparecimento começaria a decadência (Ludwig, 2000 (1932), p.138). Mas o império oferecia, ao mesmo tempo, pelo menos nos dois primeiros séculos, o modelo de uma dominação mundial estável, de uma Romanidade tornada universal e de uma sociedade que, após os traumas das guerras civis, tinha recuperado ordem e disciplina. E assim, a Roma atualizada por Mussolini acaba por amalgamar os aspectos preferidos de uma e outra imagem, recompondo em sincronia alguns caracteres da história romana, defasados cronologicamente: o rigor moral do cidadão republicano e o poder do príncipe, a síntese austera da nação e o fascínio do sistema imperial em sua fase madura. Mas é evidente que, após a conquista da Etiópia, o modelo dominante só podia ser o imperial.

Em 9 de maio de 1936, o duce pôde finalmente anunciar, do balcão habitual, "após quinze séculos, a reaparição do império sobre as colinas fatais de Roma":

Todos os nós foram cortados pela nossa espada reluzente e a vitória africana permanece na história da pátria, íntegra e pura, como os legionários mortos e sobreviventes sonhavam e desejavam. A Itália possui finalmente seu império. Império fascista, porque traz os sinais indestrutíveis da vontade e do poder do Littorio romano [...] Império de paz, porque a Itália quer a paz para si e para todos e decide pela guerra somente quando é obrigada pelas necessidades imperiosas, incoercíveis, da vida. Império de civilização e humanidade para todas as populações da Etiópia. Isso se encontra na tradição de Roma, que, após ter vencido, assimila os povos ao seu destino. (Mussolini, 1959, v.XXVII, p.268ss)

A conquista da Etiópia representou, na Itália, o momento de maior consenso para o regime, e, igualmente, o momento de maior sucesso do mito da romanidade. As empresas dos novos legionários italianos pareciam, com efeito, sancionar a validade da promessa, baseada na relação entre disciplina e poder, que os fascistas fizeram aos italianos desde o início: a ditadura aparecia agora concretamente justificada pela história e a idéia de nação tomava decididamente um caráter romano-imperial.

O imperialismo fascista, como herdeiro e êmulo do imperialismo romano, pretendia distinguir-se dos demais. Os italianos, dizia-se, possuíam a mesma fecundidade exuberante dos antigos romanos: por várias décadas após a Unidade, foram obrigados a emigrar e a serem explorados pelas nações mais ricas, as mesmas que negavam à Itália o direito à expansão colonial. O renascimento do império punha fim a essa injustiça e dava, finalmente, vazão à sua população exuberante: para os italianos, as colônias não eram, como para os outros povos, terras a serem exploradas e roubadas, mas zonas de estabelecimento, a serem valorizadas com o trabalho nos campos. Atribuindo ao imperialismo romano a natureza de um expansionismo demográfico de base agrária, valorizava-se, ao mesmo tempo, o antigo lugar-comum da relação entre agricultura e civilização: "Roma retorna não somente com a entidade material do império, mas com a sabedoria de sua civilização. Pois onde combate, aí a Itália semeia e ara; onde conquista, habita e prolifera" (Bottai, 1939, p.12). O ruralismo fascista, exaltado durante a campanha do trigo e a bonificação integral, dava agora uma linfa ideológica também à conquista.

Mussolini assumiu as feições de Augusto. Com as celebrações do segundo milênio de Augusto em 1937, que culminaram na "Mostra da romanidade de Augusto", a exaltação de Augusto/Mussolini atinge o paroxismo. Os historiadores competiram para encontrar analogias entre a política do duce e a do primeiro imperador romano: ambos pacificaram a Itália pondo fim a uma grave crise social e política, expurgaram o Senado, redimensionaram as assembléias populares, promoveram o crescimento demográfico, defenderam a moralidade e a família, relançaram a agricultura, transformaram a milícia de partido em milícia nacional, valorizaram a religião dos antepassados. Visto que, além do mais, o segundo milênio coincidia com o envolvimento dos legionários fascistas na guerra civil espanhola, foi também acentuado que Augusto conduzira operações bélicas na Cantábria e nas Astúrias (Cagnetta, 1976, p.139-81; 1977, p.185-207).

A analogia mais forte, no entanto, dizia respeito à obra dos dois personagens como restauradores e revolucionários. A comparação consentia em reencontrar, após tantos séculos, um estilo político que se mostrava como um caráter peculiar da italianidade. Na ação de Augusto e de Mussolini, encontrava-se a genialidade do político que transforma tudo, dando a impressão de não tocar nada. Respeito formal das instituições e renovação substancial consentiram, em ambos os casos, superar, sem recorrer ao terror, uma crise extremamente grave (Bottai, 1937, p.37-54). Discursos como esses não podiam, porém, ter uma ampla circulação entre as massas: no nível da sensibilidade difundida, o que seduzia e permanecia impresso era a imagem de uma Itália disciplinada e poderosa como a Roma antiga ao máximo de seu fulgor, enquanto o duce assumia um carisma imperial e a dimensão temporal do fascismo tendia à eternidade.

Roma, o fascismo e a raça

O fascismo, interpretando nisso os sentimentos mais difundidos entre os italianos, excluíra o racismo da própria ideologia, e a palavra raça, no uso mussoliniano, significava simplesmente "o povo italiano em sua expressão física". Em várias ocasiões, o duce manifestara abertamente sua total recusa do racismo biológico: por exemplo, em um discurso de 1934, aludindo ao racismo nazista, dissera que "olhava com enorme piedade para algumas doutrinas além dos Alpes". A normativa severa que visava impedir a promiscuidade entre italianos e indígenas nas colônias ("humanidade, sim, promiscuidade, não", proclamou Mussolini já em 1936) culminou, em 1938, com a promulgação das leis anti-semitas e na difusão do chamado Manifesto dos cientistas racistas. Os motivos de uma tal mudança foram numerosos: alinhar, mesmo nesse aspecto, a política italiana à do aliado nazista; vingar-se da participação limitada e da hostilidade crescente ou da desconfiança com a qual alguns ambientes hebraicos italianos e estrangeiros acolheram a política mais recente do regime; impedir a promiscuidade entre italianos e mulheres indígenas nos territórios coloniais, promiscuidade que prejudicara a dignidade dos conquistadores e suscitara rebeliões; relançar o crescimento demográfico e o fortalecimento físico das novas gerações; infundir nos italianos o sentido da dignidade da estirpe e cancelar seus complexos de inferioridade; infligir mais um golpe duro ao sentimentalismo e pacifismo burgueses; revitalizar o fascismo desgastado e galvanizar os jovens decepcionados pela sua revolução.

Também em relação à política racial, os antigos romanos foram indicados como modelo: "eram racistas ao extremo", afirmou Mussolini. Um julgamento como esse marcava uma mudança radical relativamente a apreciações expressas anteriormente pelo próprio Mussolini. Por exemplo, em um discurso pronunciado em 1924 no Fórum romano, o duce até mesmo exaltara a inclinação da antiga Roma em integrar os estrangeiros:

O destino da humanidade era decidido aqui e Roma perseguia seu sonho segundo uma direção de força que não era nunca separada de direções de extrema sabedoria. Roma queria, justamente, enfraquecer os povos que a ela se opunham; era, justamente, severa na conduta de guerra [...] Mas depois, quando os povos reconheciam sua superioridade, os acolhia em seu seio; tornava-os cidadãos de sua cidade; doava-lhes as leis, o direito, que é ainda o nosso, senhores! Fazia que participassem de sua civilização e respeitava seus usos e sua religião. No Panteão há um altar para todos os deuses, mesmo para o deus desconhecido! (Mussolini, 1956, v.XX (4.6.1924), p.305)

Agora Roma tornava-se, ao contrário, sinônimo de discriminação. Se, em âmbito colonial, a política da raça era dirigida contra a população indígena, na Itália essa atingia quase que exclusivamente os judeus. E se os italianos eram os romanos da modernidade, os judeus eram os cartagineses da modernidade. O judeu mostrava-se cada vez mais como a antítese do romano: o romano exprimia a estabilidade, a ligação à terra, o sentido do Estado, o primado da ruralidade; o judeu exprimia o caráter nômade, individualista, irrequieto, o primado da cidade (Mariani, 1970, p.231).

Esse tema se ampliou cada vez mais até se tornar uma metáfora que qualificava a antítese entre o universalismo romano-fascista e seus inimigos. Na véspera da Segunda Guerra Mundial e durante essa, a propaganda fascista projetou a réplica contemporânea de Cartago nas potências "plutocráticas" e, em particular, na Grã-Bretanha, e o conflito iminente foi definido por Mussolini como "a quarta guerra púnica". Em pleno século XX, um lugar comum extremamente antigo, formulado na origem pelos gregos, e retomado pelos romanos, era desenterrado para dar um pathos a mais à propaganda nacionalista. Os antigos representavam os fenícios, e, conseqüentemente, os cartagineses, como um povo ávido e traiçoeiro; essa índole teria sido determinada pelo fato que se dedicavam ao comércio, uma atividade que se baseava inevitavelmente no engano e na mentira: a "perfídia púnica", ou seja, a má-fé desse povo, a sua distância irredutível da fides – um princípio civil e, ao mesmo tempo, religioso, que devia regrar as relações entre os indivíduos, entre as comunidades, entre as gentes – permaneceu um ponto fixo das antigas representações etnográficas. Agora esse lugar comum era adaptado às nações inimigas do fascismo, que subordinaram a ética aos tráficos e que aplicavam às relações entre os Estados a mesma falta de escrúpulos que possuíam ao procurar o próprio interesse material.

Diante das potências mercantis e plutocráticas, o fascismo valorizava a índole agrícola da Itália (herdeira da romana), que, sem renunciar à modernização industrial, colocava o trabalho dos campos entre os valores sociais mais altos. A presença desses valores favorecera, na Itália fascista, a identificação entre o povo e o Estado, enquanto as assim chamadas democracias, dominadas pelos negócios, miravam exclusivamente a vantagem dos mais ricos.

O teatro da romanidade

Em uma parte da historiografia do pós-guerra e na opinião difundida na Itália e no exterior, o resultado desastroso da participação italiana na Segunda Guerra Mundial refletiu-se, em termos redutivos, no julgamento relativo à efetividade do culto de Roma antiga, a sua capacidade de servir como mito político válido e de plasmar a identidade coletiva, seu papel na ideologia fascista e no consenso: a falência bélica demonstraria, no final das contas, a inutilidade do mito. Se os soldados italianos tivessem vencido a guerra, ou, mesmo perdendo, tivessem combatido e resistido como os alemães, hoje diríamos que ter assumido as couraças dos romanos conferira a eles orgulho, motivação e coragem, ou seja, três dentre os requisitos decisivos para a vitória ou para uma derrota honrável. Desde as origens, quando o fascismo era um movimento e não ainda um partido, a sua inspiração romana fundara-se em dois valores estreitamente relacionados: disciplina e poder (§ 1).

Ao longo de toda a história do fascismo, esses valores permaneceram os fundamentos do mito da romanidade. Não se pode negar que, nas vésperas da entrada em guerra, os italianos tornaram-se um povo disciplinado (independentemente dos modos com que se obtinha essa disciplina). Diferentemente do que ocorreu com os alemães, os italianos verificaram, porém, quase imediatamente, não ter poder, e a humilhação foi inevitavelmente aumentada pela lente da romanidade: o insulto que os inimigos começaram logo a repetir – Mussolini era um "César de gesso", e os italianos eram, conseqüentemente, "romanos de gesso" – encontrou espaço autônomo na consciência dos próprios italianos. Pode-se, portanto, afirmar que o mito da romanidade durou até o momento em que o pressuposto de poder em que se fundava – reconhecido em âmbito internacional e confirmado pela conquista da Etiópia e pela vitória na guerra civil espanhola – evidenciou-se como uma falta de poder. Mas tinha sido o poder suposto, não o efetivo, que animara o mito, e, portanto, a falência não pode ser considerada um elemento útil para a avaliação do próprio mito.

Era, em todo modo, inevitável que após a guerra o culto da romanidade fosse considerado um aspecto pitoresco e patético do regime. O passo e a saudação com a mão estendida, as águias imperiais, o fascio, o império e tudo o que o regime pretendera reviver apareceram universalmente como a manifestação secundária e marginal de um delírio tornado um desastre coletivo. Quando se dava algum destaque à romanidade fascista, isso ocorria no âmbito de interpretações. Ela servia a explicar tudo, ou quase tudo, atribuindo uma centralidade absoluta ao caráter teatral do povo italiano, representado no nível mais alto pelo seu duce: Mussolini, grande chefe cômico, e os italianos apaixonados espectadores/atores na representação contemporânea da romanidade.

É discutível, em tais interpretações, não tanto o uso do conceito de teatralidade, quanto o papel fundamental que lhe era reservado (quase que uma explicação monocausal), e o juízo de absolvição que, inevitavelmente, disso derivava: uma espécie de infantilismo coletivo para o qual olhar, no final das contas, com indulgência. Também o problema espinhoso do consenso era, no fundo, atenuado, ou mesmo desativado.

A interpretação teatral, quando formulada com medida e sem preensões exaustivas – como em uma biografia recente de Mussolini –, não possui nada de escabroso:

Em um país em que a arte lírica é rainha, e em que a representação do sagrado é envolvida por cenários reluzentes, o que muitos italianos apreciam na liturgia fascista é seu caráter teatral, e o que os captura no Duce é seu talento de tenor e ator. O que hoje nos faz sorrir são os períodos longos pronunciados por uma voz poderosa, do alto do balcão de Palácio Veneza, os diálogos com a multidão herdados do ritual de D’Annunzio, as fórmulas para chocar, as saídas à meia-voz, o gesto de provocação, que devem, porém, ser situados em sua época e seu contexto. (Milza, 1999, p.561)

O que se mostra, porém, discutível em tais enunciados é um esquecimento surpreendente: os ritos coletivos do Terceiro Reich foram bem mais teatrais do que os fascistas, e atingiram níveis insuperáveis de organização e força sugestiva. O próprio führer, como encantador, não era menos dotado do que o duce, e se revelou mestre na arte de transformar a ação política em ação dramática. Em seus discursos, a lógica interna era menos importante do que o ritmo, e a modulação da voz, dos tons quase abafados até os urros paroxísticos, tinha um efeito quase hipnótico. Por que então Mussolini teria sido um tenor e um ator, e Hitler não? Por que os italianos um público teatral, e os alemães não? Evidentemente porque em um caso participavam da representação do poder e, ao mesmo tempo, o possuíam, enquanto, no outro caso, limitavam-se à representação. Mas essa interpretação, como se disse, não é mais do que uma contaminação retrospectiva.

Para compreender o teatro fascista da romanidade, é preciso renunciar às divagações sobre a índole teatral dos italianos e inseri-lo, como alguns estudiosos fazem desde algum tempo, na pista aberta por George Mosse, no quadro de uma estética da política que remonta à Revolução Francesa, e no grande processo de nacionalização das massas. Em um momento de exaltação pela conquista da Etiópia, Luigi Pirandello falou do duce como de um "verdadeiro homem de teatro, herói providencial que Deus, no momento justo, quis conceder à Itália", que agia como "autor e protagonista no Teatro dos Séculos" (Quadrivio, 3.11.1935). Essas palavras, escritas pelo maior dramaturgo da época, eram altamente elogiosas e correspondiam à autodefinição de Mussolini como artista que plasma as massas: o duce punha em cena a história com o talento de um homem de teatro, mas não se tratava de uma ficção (a própria poética pirandelliana da relação entre máscara e vida torna supérflua essa afirmação). O juízo de Pirandello pode ser comparado, para dar um único exemplo, ao de Robert Brasillach, que definiu Mussolini como um "poeta da revolução". Os artistas revelaram, pois, uma sensibilidade aguda quando notavam o vínculo particular entre estética e política estabelecido por Mussolini.

O duce, já antes de sua ascensão ao poder, identificara a importância de relacionar a atualização do mito de Roma à adoção de um ritual e de gestos que representavam um estilo romano e fascista, destinado a se tornar o estilo de todos os italianos. A biografia "oficial" do duce descreve eficazmente a rapidez da difusão deste modelo: "um certo modo de olhar, de caminhar, uma certa expressão do rosto faziam e fazem identificar o fascista, mesmo sem distintivo no paletó. Formou-se uma moda, um estilo, e mesmo o tipo físico do fascista"; a componente romana desse estilo não tomara forma em seguida a uma recuperação erudita, mas "com a espontaneidade automática de um instinto ancestral" (Sarfatti, 1926, p.244ss).

Mesmo ostentando a recusa total dos princípios de igualdade da Revolução Francesa, o fascismo entendera perfeitamente a importância do ritual político jacobino na construção de uma religião leiga. Mussolini intuíra imediatamente a utilidade em generalizar vários aspectos da liturgia política inventada por Gabrielle D’Annunzio em Fiume. Segundo o duce, os símbolos e os ritos da antiga Roma serviam também para potenciar o "lado místico" da política: dado que a verdadeira força motriz das massas não era a razão, mas o sentimento e a emoção, aqueles símbolos e ritos eram, junto a outros, o instrumento mais eficaz para dar uma alma às massas, enquadrando-as na política. Com uma mão de artista, o duce identificara o modo de dar forma e cor ao povo: "A saudação romana, todos os cantos e as fórmulas, as datas e as comemorações são indispensáveis para conservar o pathos de um movimento. Assim acontecia na antiga Roma" (Ludwig, 2000 (1932), p.93).

Para difundir o culto da romanidade, os discursos contaram mais do que os escritos, tanto os discursos pronunciados dos balcões quanto os transmitidos pelo rádio (embora a difusão dos aparelhos radiofônicos na Itália fosse ainda muito limitada e, de qualquer forma, inferior à da Alemanha, a audição era freqüentemente coletiva). Os monumentos, antigos e modernos, e as imagens contaram ainda mais do que os discursos:

os italianos freqüentaram a romanidade essencialmente através de uma aproximação visual, por meio da rica emissão de imagens, emblemas e sinais retirados da cultura de Roma que podiam servir como suporte para a hermenêutica da romanidade no nível de massa. A repetição e a freqüência da imagem-símbolo permitia que, fora de uma leitura cultural, fasci, águias, colunas, arcos triunfais agissem sobre o público com uma relação perceptiva imediata e primária, análoga a do slogan publicitário. (Malvano, 1988, p.153)

Um papel importante foi representado pelos cinejornais do Instituto Nacional Luce (a União cinematográfica educativa), fundado em 1924 com o objetivo de difundir a cultura popular e a instrução geral por meio da cinematografia. Em 1926, a projeção dos cinejornais tornou-se obrigatória em todas as salas italianas, e por meio daquelas mensagens o público familiarizou-se com o regime e com a romanidade. Surpreende, ao contrário, o desinteresse do cinema do período fascista pela história romana. Nas várias centenas de filmes produzidos naquele período, somente dois foram de argumento romano: Nero, interpretado no teatro por Ettore Petrolini e filmado por Alessandro Blasetti (1930), e Scipione l’Africano, de Carmine Gallone. Este último foi filmado em 1936, contemporaneamente à campanha de Etiópia, e tinha um claro intuito de celebração: a história do comandante que desembarca na África, derrota Aníbal e domina Cartago era destinada a ilustrar a vitalidade do espírito guerreiro que a história romana transmitira à Itália contemporânea. O filme não foi um grande sucesso, o que deve ser explicado, mais do que com a pouca participação do público à romanolatria fascista, com seus defeitos macroscópicos: os diálogos insulsos, os gestos ridículos, a recitação péssima do protagonista e de outros atores, a coluna sonora insuportável.

À centralidade do mundo romano na ideologia fascista correspondia uma centralidade análoga do ensino escolar da história antiga, da literatura e das línguas clássicas, com a prevalência óbvia das disciplinas de âmbito romano. Essa hegemonia da romanidade foi reforçada pela reforma realizada em 1923 pelo ministro da Instrução Pública, Giovanni Gentile. No quadro de uma reforma global, inspirada por muitos aspectos em princípios pedagógicos inovadores, conferiu-se ao ensino das disciplinas clássicas o objetivo fundamental de transmitir a consciência da tradição cultural e civil que nascia com Roma e se perpetuava na Itália contemporânea. No liceu clássico, considerado a pedra angular da escola italiana, como lugar de formação da futura classe dirigente, o estudo da Antigüidade dominava por prestígio e número de horas.

A história romana, a história da literatura latina e o latim eram, no entanto, presentes de modo significativo nas escolas de todos os níveis, mesmo naquelas que, segundo a intenção do reformador, deviam receber os estudantes menos dotados, provindos de grupos sociais inferiores, destinados a trabalhos subalternos. A idéia de Roma constelava todo o percurso pedagógico e concorria de modo determinante para a formação dos alunos, levando-os à compreensão da espessura histórica e moral da civilização nacional: "O ensino clássico" – lia-se no texto da reforma – "deve olhar de perto para o mundo clássico, aprofundar-se nele para entender plenamente o nosso mundo" (Cagnetta, s. d., p.309-427; Scotto di Luzio, 1999).

É menos fácil avaliar a contribuição real dos estudiosos ao culto da romanidade. Mesmo se o problema, já bem aprofundado por outros, não entra no campo das questões tratadas neste artigo, não pode ser evitado no momento das reflexões conclusivas. Os especialistas da Antigüidade – historiadores do mundo romano, juristas, filólogos, historiadores da arte, arqueólogos – nunca estiveram tão em auge como durante o fascismo. A atualidade do mundo romano, proclamada pelo regime, punha suas cátedras e suas pessoas no centro da política cultural, conferia prestígio, honras e até mesmo cargos de governo. Viu-se como o fascismo reivindicasse uma relação mística com a romanidade e desencorajasse as tentativas de resolver essa relação somente no plano da erudição: justamente, temia que a própria imagem se mostrasse empoeirada e antiquada.

No momento em que estabelecia o princípio de autonomia da política em relação aos livros dos especialistas do mundo antigo, o regime lhes pediu, em troca do tão inesperado prestígio, uma participação ideológica ativa, o suporte científico e intelectual aos temas romanos usados em chave política, eventualmente alguma boa sugestão na caça às analogias entre história fascista e história romana. O mito da romanidade tinha sido jogado pelos políticos na mesa dos professores; esses, extasiados, o restituíram aos políticos quase idêntico na substância, mas com um acréscimo de decoro e informação. Nenhum aspecto novo no magma compositivo que foi a ideologia fascista proveio diretamente dos historiadores. Esses serviram para enriquecer a problemática (principalmente no âmbito da doutrina do Estado e da política racial), fornecer confirmações e argumentos, sugerir palavras e estilemas: a história romana era, em primeiro lugar, um grande depósito de autoridade, ao qual se recorria em segunda instância.

Foi afirmado que o mito da romanidade era fraco e superficial porque não estava enraizado na consciência das massas, à diferença do mito nazista dos antigos costumes germânicos, que se vangloriava de uma forte tradição popular e que remontava pelo menos ao século XIX. Mazzini não estaria de acordo:

pudemos pôr à prova quanto a nossa antiga convicção relativamente ao poder da idéia de Roma na consciência e na mente dos italianos fosse verdadeira: vimos quanta força moral possua essa idéia em toda parte da nação, em toda camada social, em todo tipo de pessoa: essa se mostra dotada de um vigor extraordinário, evocando, do profundo da consciência nacional, as manifestações grandiosas que atestam as leis essenciais da vida: esta é a própria vida da nação. (La Riforma, 3.10.1870)

Mesmo se a comparação com a Alemanha mantém sua validade, a crise do mito de Roma deve ser compreendida, principalmente, como parte da crise mais ampla – do consenso, das consciências, da própria idéia de nação – que começou a se abrir na Itália após a promulgação das leis raciais e no curso da guerra. A idéia de Roma, para o uso que o fascismo fazia, fora uma idéia plástica, em grau de se adaptar a situações variadas; mas não podia ser explorada além de um certo limite. Esse limite foi representado principalmente pela aliança com a Alemanha: era impossível conjugar o sentimento da romanidade com a irmandade germânica e com o ódio da França, quando a Itália, somente vinte anos atrás, tivera mais de setecentos mil mortos em uma guerra antigermânica que fora apresentada como um conflito entre civilização e barbárie, e durante a qual fora, paralelamente, exaltada a irmandade com a "irmã latina".

O mito de Roma, como ensinava a campanha de Etiópia, suscitava entusiasmos se usado em uma perspectiva colonial, para corroborar o nascimento do império sobre as terras de além-mar, mas era inerte, se não contraproducente, se usado em uma guerra européia. O mito romano, além do mais, não tolerava papéis secundários, e a subordinação da Itália fascista à Alemanha nazista (evidente bem antes da entrada em guerra) incidiu nesse mito como uma ferida grave.

Nem sequer a política racial conseguiu se harmonizar com o mito de Roma. Por um lado, o racismo e o anti-semitismo não estavam entre os sentimentos mais difundidos e enraizados entre os italianos, embora hoje se insista justamente no caráter infundado da mitologia absolutória que faz da Itália um país imune de ideologias e práticas racistas. Por outro lado, o racismo, fosse dirigido contra os judeus ou os negros africanos, escurecia a imagem de Roma e a tornava vã, comprometendo a própria idéia de civilização que animara a campanha de Etiópia.

No nazismo, ao contrário, a raça era um amálgama e um ideal poderoso, que saldava de modo perfeito as origens e a atualidade. O nazismo, apesar da presença de orientações diferentes no seu interior, não se preocupava em querer criar um homem novo: bastava-lhe recriar, na alma e no corpo, o tipo ideal do antigo alemão. O fascismo, ao contrário, não pretendia simplesmente recriar os romanos antigos. Os romanos da modernidade não eram uma réplica de seus antepassados: tinham transmitido algumas células ao povo fascista, mas o "homem novo" era compreendido como uma criatura original (Mosse, 1989, p.5-26). O fascismo era, portanto, obrigado a definir a personalidade desse homem novo, mas o fez de modo vago e aproximativo, e, assim, a projeção da romanidade no futuro permaneceu envolta na neblina.

O próprio culto do duce torna-se, com o tempo, um obstáculo para o mito da romanidade. Mussolini era a encarnação do romano e, ao mesmo tempo, a personificação de grandes homens como César ou Augusto. Os italianos descobriram-se romanos graças a ele, mas teriam continuado a sê-lo, quando o artista, o modelador das massas, tivesse desaparecido? Hitler era, ao contrário, o símbolo de um princípio transcendente, o espírito da raça, e os alemães continuariam a ser germânicos mesmo sem ele.

Notas

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Recebido em 22.1.2007 e aceito em 19.2.2007.

Andrea Giardina é professor de História Romana do Istituto Italiano de Ciências Humanas de Florença. É autor e editor de L’uomo romano (Laterza, 1989), Lo spazio letterario di Roma antica (Salerno, 1989-1991), Storia di Roma (Einaudi, 1999), Il mito di Roma (Laterza, 2000). @ – andrea.giardina@sumitalia.it

Tradução de Paulo Butti de Lima. O original em italiano – "Il mito fascista della roma-nità" – encontra-se à disposição do leitor no IEA-USP para eventual consulta.

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  • 1
    Para os precedentes, cf. Salvatori (2006, p.749-89).
  • 2
    Sobre a primeira Mostra, cf. Schnapp (2003).
  • 3
    Para esses fatos, ver Cederna (1980) e Vidotto (2001, p.178ss).
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      26 Set 2008
    • Data do Fascículo
      Abr 2008

    Histórico

    • Aceito
      19 Fev 2007
    • Recebido
      22 Jan 2007
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