Acessibilidade / Reportar erro

Reflexões sobre nação, Estado social e soberania

DOSSIÊ NAÇÃO NACIONALISMO

Reflexões sobre nação, Estado social e soberania

Paulo Bonavides

RESUMO

Condensa este artigo, de início, o substrato idealista do conceito de nação. Emprega vocabulário de termos afins e usuais que, em geral, denotam o sentido utópico daquela expressão, de profundas raízes políticas e espirituais. Sem embargo de toda a complexidade conceitual e cognitiva, a nação continua sendo, em certa maneira, a força motriz do universo político de nosso tempo, como expressão de poder e de vida. Algumas reflexões aqui expendidas acerca das implicações de sua associação à temática do Estado social, da soberania e da federação têm em vista designadamente a realidade do Brasil, em seus elementos históricos, com abrangência de três épocas: a colonial, a monárquica e a republicana.

Palavras-chave: Nação, Colônia, Monarquia, Estado social, Soberania nacional, Democracia, Justiça social.

Conceito idealista de nação

NAÇÃO é alma, consciência, sentimento, humanismo, cidadania e apotegma de valores. Nação é o povo na intuição da fraternidade, da justiça e da liberdade; nação é direito, integridade e dignidade cívica na comunhão do destino, na solidez compacta dos valores, no patrimônio dos tempos onde jaz a grandeza das tradições; na memória perpétua e coletiva da identidade, na correnteza das idéias que perenizam a energia do povo em se manter uno na adversidade e estóico na amargura dos reveses.

Nação é a marcha para a universalidade, o caminho moral do homem em direção às apoteoses do triunfo e a bem-sucedida convivência de todas as parcelas sociais.

Nação é sacrifício, abnegação e sangue nas causas que confinam com o heroísmo do gênero humano; é também a expressão da imortalidade do povo calcinado de dores, mas resgatado de esperanças.

Nação é o culto do solo, o gênio da língua, a inspiração da poesia, a música do patriotismo, a fé da religião, a força da ideologia, a vocação da liberdade e do direito; todos esses valores que as gerações memorizam e consagram, movidas da esperança, e do propósito e do pensamento de fazê-los eternos e indestrutíveis como as forças supremas da natureza, sobre as quais não tem o homem jurisdição para cominar-lhes a pena capital e extingui-las.

Nação é a pátria que gera os bravos, os justos, os artesãos do progresso e da civilização, tecendo o fio da igualdade para estendê-lo a todas as esferas sociais; nação é a pátria mesma dizendo não à soberbia, ao ódio, ao privilegio, ao preconceito, à discriminação.

Nação é o breviário que psicologicamente liberta o ser humano dos cativeiros espirituais e das sujeições materiais por onde se lhe corrompe a índole; é do mesmo passo o compromisso pela causa dos oprimidos; o pavilhão dos combatentes patriotas soerguendo o braço e a voz das resistências constitucionais para colocar o Estado ao serviço dos magnânimos interesses sociais que fazem a dignidade do homem elevar-se às alturas da fruição de todos os direitos fundamentais possíveis.

Nação é a história e o idioma forjando o elo de união das gerações passadas, coevas e porvindouras, projetando assim a imortalidade da pátria e a eternidade do direito natural na consciência dos homens.1 1 Na nota 11 do capítulo 5 da nossa Ciência política (São Paulo, Editora Malheiros, 2007, p.88) reproduzimos lugares admiráveis da obra de Ramalho Ortigão em que esse primoroso escritor mostra como Portugal se vincula a Os lusíadas. Com efeito, após cair debaixo do domínio espanhol, a nação, ferida de morte, desapossada da independência, ainda sobrevive e, em seguida, se restaura depois de sessenta anos de cativeiro. O poema de Camões, memória e breviário das glórias de Portugal, conquistadas pelas caravelas dos navegadores, inspira diretamente a ressurreição, em 1640, da independência perdida no deserto africano, entre as areias de Alcácer-Quibir. São páginas da história, em que a nação, ilustrada nesse exemplo, se vê restituída ao seu papel de mantenedora e guarda de um passado, que foi parte do patrimônio da civilização e ficou perenizado pelo gênio de Camões nas estrofes do poema imortal, "pedra monumental", onde, segundo Ortigão ( Figuras e questões literárias, Lisboa, Livraria Clássica Editora, 2. ed, 1945, t.I, p.199, 200-3 e 213-9), "os portugueses terão de vir afiar as suas espadas de combate [...] para resistir a esta invasão terrível com que lutamos e que se chama – a decadência".

Nação, entre os povos periféricos, representa a luta pelo Estado da cidadania livre, democrática e participativa, garantindo a paz, distribuindo justiça, conciliando classes, protegendo categorias do corpo social.

Nação é a tópica nos tribunais solvendo com a hermenêutica da eqüidade, por via ponderativa, os casos em que o capital, seguindo a esteira da ambição, da cupidez e da injustiça, comprime e esmaga a causa do trabalho e destrói com a guerra criminosa a harmonia, a cooperação e a paz social dos povos.

Nação, segundo o conceito anteriormente exarado, já se vincula, pelos novos métodos e instrumentos interpretativos, com o princípio, a noção e a idéia de Estado social; em breve será esse objeto de desenvolvimento no conspecto das presentes reflexões.

Conduzido ao domínio jurídico, o conceito de nação se prende ao de soberania constitucional, porque essa é a raiz contemporânea mais profunda do direito; é, em certa maneira, a forma suprema e absoluta de criar, exercitar e concretizar os poderes constituintes como órgãos de soberania que se legitimam como expressão da vontade nacional.

Nação incorpora, por conseguinte, a legitimidade do povo soberano promulgando as constituições democráticas do contrato social.

Levando, porém, mais longe, como urge, a especificidade de uma preferência fundamental derivada da ideologia e da pré-compreensão axiológica, eleja-se por conceito de nação não apenas o que acabamos de exarar, versando-lhe a dimensão jusociológica e também jusfilosófica, senão este que, a seguir, flui do pluralismo, e da generalidade das suas fontes existenciais de matéria e espírito e nos diz numa síntese substancial ser a nação o solo, a pátria, o povo, cristalizados e condensados no tempo e no espaço como vontade e determinação de vida.

Nessa longa seqüência de reflexões sobre o sentido e o conceito axiomático de nação, colhido da história, da tradição e das suas raízes morais, culturais e espirituais, é possível estabelecer a identidade e a vocação dos povos para perpetuar elementos de cultura, de vida, de solidariedade, de consenso e valor, que a retórica de Renan resumiu e condensou nesta expressão célebre: "a nação plebiscito de todos os dias".

Com o desenvolvimento da doutrina, o conceito complexo de nação, antes de chegar à inteligência, à razão e ao cérebro já cursou a intuição, o sentimento e o coração. E aí fez, por muito tempo, sua morada, e não ali, porque é no músculo nobre da vida, nas suas palpitações, que a nação nasce com o patriotismo e fenece com as circunstâncias e vicissitudes do tempo, pelo açoite das discórdias e das dissidências, pela fereza dos ódios civis inconciliáveis, pelo separatismo e secessão que acendem as labaredas da guerra civil, pela traição das elites extremistas e radicais que não raro atraem aos rincões do solo pátrio a intervenção das armas estrangeiras.

Armas, em geral, desagregadoras e perpetuadoras habituais do quebrantamento da unidade nacional, desfeita na colisão ideológica, arruinando nações, espargindo rancores, abrindo as feridas do passionalismo ressentido. Essas, nem o tempo, que tudo apaga e cicatriza com a distancia histórica, logra fechar.

Com efeito, tais desastres acontecem sempre, mediante o rompimento da coesão, do equilíbrio e da unidade dos sistemas, dissolvidos na fragilidade das bases de anuência e contratualismo. Isso quando o bom senso já não tem linguagem nem força nem capacidade para opor-se, vitorioso, à degeneração e à falência que os mergulhou na corrupção; quando aqueles dois poderes, a saber, o Executivo e o Legislativo, se eximiram de exercitar sobre a cidadania a jurisdição da legitimidade; quando o Legislativo, convertido numa assembléia de capitulações e de deserções aos deveres da legislatio, é apenas a sombra funesta de um parlamento que abdicou competências de órgão de soberania e se rendeu à prepotência e soberba de um poder rival; quando o Executivo, nas suas expansões de arbítrio, invade prerrogativas dos poderes constitucionais de ação paralela no exercício da soberania, quando os dois poderes mais ativos dessa mesma soberania – um que faz leis, outro que as executa –, desfalcados da ética dos governantes e da fé dos governados, se retraem da senda democrática por resvalarem no abismo da tirania e na fatalidade das ditaduras; quando aquele Executivo, enfim, faz das Medidas Provisórias o salvo-conduto de todas as usurpações e violações ao princípio da separação de poderes, e o poder governante despedaçando a Lei Maior se transfigura em fantasma da Constituição e opróbrio da democracia e do Estado de Direito.

A formação da nacionalidade, desde o Brasil colonial ao Brasil monárquico

Na época do Brasil colônia as guerras coloniais de fundo nativista foram, por sem dúvida, as primeiras manifestações embrionárias da nacionalidade em gestação. E o foram por obra social de luta, de resistência, de adesão do elemento humano aglutinado no processo assimilativo por onde se ia formando e definindo com lentidão uma conjunção de bens, interesses e valores, que abrigavam precursoramente o sentimento de autodeterminação.

Mas foi a tragédia da Inconfidência, o cadafalso de Tiradentes, o degredo de patriotas nas selvas e asperezas dos sertões africanos, bem como a repressão cega desencadeada da metrópole com o braço-de-ferro dos seus prepostos, que convergiam para a formação de uma consciência tosca e rudimentar, de substrato um tanto autonomista, do elemento colonial.

Com efeito, tudo dantes confluía para o estuário da violência e da opressão. Mas a força feroz do colonialismo fora impotente em riscar ou apagar da memória a brasilidade nativa de Porto Calvo e dos Guararapes, coroada de feitos que culminaram na expulsão dos invasores holandeses e no estabelecimento de fortes laços de comunhão de sangue e cooperação, das três etnias constitutivas do primitivo tecido da nacionalidade. Essa união, a historiografia há celebrado por um dos fatores que criaram o germe da consciência nacional num período ainda recuado da colonização.

Na guerra surda do Brasil colônia, aparelhou-se a substituição do espírito colonial de vassalagem das populações nativas por um espírito diverso, que alentava o ânimo secessionista da emancipação, conforme ficara patente nas tribulações da Inconfidência Mineira, desde o final do século XVIII. Desse derradeiro espírito vingaram depois duas sementes: a de Estado, que elevou o Brasil de colônia a reino unido, sob o pálio da coroa bragantina, e a de nação com a Revolução Pernambucana de 1817, debaixo do influxo republicano e federativo da União Americana.

A fase imediatamente precursora da emancipação formal, contudo, só transcorre quando se dá a transmigração da corte portuguesa à colônia, com a fuga de D. João VI aos exércitos invasores de Napoleão, comandados por Junot. E se estende até a volta do rei a Portugal, em 1821. Não podemos deixar de ter, porém, na vinda de D. João VI e sua comitiva de fidalgos um dos episódios que mais aceleraram o processo constitutivo das nacionalidade.

Passos fundamentais se deram nesse sentido. A trasladação, por exemplo, fez o Brasil sede provisória da monarquia portuguesa, gerando efeitos positivos de progresso na organização administrativa do país emergente.

Do mesmo modo, o decreto de abertura dos portos, seguido alguns anos mais tarde da Carta Régia de 1815, que estabelecia o reino unido, passando a certidão do nascimento de um novo ramo institucional da monarquia portuguesa, erguido no continente, pareciam inculcar um certo grau de autonomia com o propósito de pôr freio às iminentes erupções do vulcão separatista, que D. João VI tão bem intuiu na despedida saudosa ao aconselhar o filho a cingir a coroa imperial.

A seguir, houve o grito do Ipiranga, que proclamou a independência, dissolveu o reino unido e pôs termo à união política dos dois povos; união desigual que encobria a continuidade do vínculo colonialista à velha metrópole, conforme ficou comprovado pelos decretos reacionários e restauradores das cortes de Lisboa, os quais precipitaram o movimento da independência, consumada formalmente em 7 de setembro de 1822.

Despontava o Estado sob a forma de Império, mas a nação prosseguia a caminhada rumo à definição e consolidação da identidade.2 2 É possível lavrar a certidão de idade de um Estado porque o Estado é como a lei: tem data certa de seu estabelecimento. A nação, ao revés, é como o costume: obra do tempo, não se lhe conhece, todavia, o momento em que aparece ou ingressa na história.

Com a independência, José Bonifácio era a Monarquia; com a Confederação do Equador, em 1824, Frei Caneca era a República. Mas essa só veio 67 anos depois. A primeira ocupa quase todo o século XIX; a segunda chega até aos nossos dias: são cinco repúblicas, com a de 1988, desde a queda do Império.

O Império constituiu a menoridade; a República, a maioridade na formação do nosso povo como nação e Estado. Maioridade alcançada, sem embargo do feudalismo branco dos coronéis. Durante a Primeira República prevaleceu o fenômeno social e político do coronelismo, em substituição da sociedade de senhores e escravos, ou seja, da casa grande e senzala, cujos traços de hegemonia desapareceram com a abolição.

Os coronéis, sucessores dissimulados dos senhores do cativeiro, mantinham, porém, em servidão branca, consideráveis contingentes da população rural, privada do exercício da legítima cidadania, porque não era cidadania o voto de quem assinava em cruz atas eleitorais falsificadas.

Os braços do campesinato sustentavam, assim, nos sertões e nas faixas litorâneas a economia do campo, que fazia a riqueza dos donos da terra, a opulência dos estamentos privilegiados, o desequilíbrio da organização social, que perdurava injusta, desigual, desumana e atroz.

Finda a Monarquia, abolida a escravidão, suprimidas as instituições do sistema, inspiradas do modelo europeu, o sacrifício do parlamentarismo, a partir da introdução da forma presidencial de governo, constituiu o maior erro político da República nascente. Desse erro, responsável maior foi Rui Barbosa. Dislate que logo arruinou a legitimidade representativa, de último abalada também pelo volume de corrupção e decadência ética do corpo legislativo nas duas Casas do Congresso Nacional, traduzindo a miséria do presidencialismo, donde brotaram, pelo golpe de Estado, as piores ditaduras militares do continente.

Ao traçar a estrutura política da República, Rui Barbosa, principal redator da Carta Republicana, inspirou-se no modelo americano que associava três novidades desconhecidas à América lusitana: a república, o presidencialismo e o regime federal; os dois derradeiros foram, em verdade, criações originais do gênio constituinte dos autores da Magna Carta americana.

O golpe de Estado, de 1889, que alterou todo o quadro institucional do Brasil, fora tão imprevisível para os monarquistas do gabinete de Ouro Preto e para outras figuras do regime, incluindo o próprio imperador, que cuidavam todos eles estar unicamente em presença de crise ministerial, de manifesta gravidade; nunca, porém, suscetível de derrubar o Império.

A ação fulminante do golpe, determinando a ruptura do sistema imperial, surpreendeu também em certa maneira o próprio Deodoro.

Parece não haver tido ele consciência plena e imediata de seu ato, ao montar o cavalo na cena militar do Campo de Santana.

O herói da Guerra do Paraguai, o amigo do imperador, talvez cuidasse estar sendo protagonista de um desagravo do exército, tendo por conseqüência, mais uma vez, a simples queda do gabinete, e não a revolução silenciosa da dissolução de um império; porque revoluções silenciosas ao pé do trono, a Monarquia já as vira, sem perda de sua continuidade, no 7 de abril de 1831, com a abdicação de D. Pedro I, que pôs termo ao Primeiro Reinado, e, do mesmo modo, em 1840, com o decreto da Maioridade, cingindo a coroa na cabeça de D. Pedro II e inaugurando o Segundo Reinado.

O advento das bases nacionais de um Estado social

O Brasil, desde a segunda metade do século XIX, deixara de ser apenas Estado ou Império para mostrar o rosto de uma nação já constituída ou pelo menos assim encarada.

Entrara, portanto, a gravitar ao redor de causas nacionais, como a da abolição, de cunho social; ou as da federação e da república, de caráter institucional. Todas debaixo da bandeira dos elementos mais organizados e supostamente capacitados a abrir o canal de comunicação da sociedade e do Estado com o corpo político da cidadania em gestação.

Quando vamos à história buscar o pensamento precursor do Estado social no Brasil, a grande surpresa que nos depara é verificar que ele nasceu no Império e não na República.

Em rigor, a omissão e a neutralidade social da Constituição de 1891, a Primeira da República, se faz mais patente, retrógrada e sentida, se a cotejarmos com o que constou do Projeto constituinte de 1823, bem como da Constituição Política do Império, outorgada por D. Pedro I em 1824.

O Título XIII do Projeto de Constituição que Antonio Carlos, depois de redigir as Bases de outro para a malograda Revolução Pernambucana de 1817, submeteu à Constituinte dissolvida pelo imperador, era deste teor: Da instrução pública, estabelecimentos de caridade, casas de correção e trabalho.

Rezava a letra do art. 250: "Haverá no Império escolas primárias em cada termo, ginásios em cada comarca e universidades nos mais apropriados locais".

E fechava o Título XIII com o art. 255, não menos perpassado da vocação precursora do Estado social, como se infere de seu conteúdo, em que se dizia: "Erigir-se-ão casas de trabalho para os que não acham emprego...".

A Constituição outorgada em 1824 por D. Pedro I trazia por igual o germe das regras sociais no art. 179, afiançando que a Constituição também garante os socorros públicos, que a instrução primária é gratuita, que em colégios e universidades serão ensinados os elementos das ciências, belas-letras e artes.

A profecia do Estado social do porvir parecia estar posta, delineada e introduzida nesses dois textos de larga visão prospectiva.

Aliás, desde 1934 se intenta edificá-lo, em bases constitucionais, mas em ritmo tão vagaroso que parece ter analogia com a lentidão do cristianismo quando erguia no Ocidente as suas catedrais.

Havia, portanto, naqueles primeiros elementos da razão constitucional em nosso país, disposições expressas de proteção social, dilatada à educação e ao emprego, conforme já nos fora dado assinalar em 1992, ao proferirmos o discurso de recepção da Medalha Rui Barbosa num Congresso Nacional da Ordem dos Advogados do Brasil.

Com efeito, aquele testemunho documental claramente demonstra que o constitucionalismo da Monarquia, apesar de inspirado e embebido dos cânones da doutrina liberal, em toda a pureza de suas fontes mais autênticas e autorizadas, fora, todavia, muitas décadas antes, menos conservador que o da República em matéria social.

O silêncio constitucional de Rui se mostrava, contudo, tardio e – singular ironia! – ficara paralítico na retaguarda das idéias por contrastar com um final de século que já ouvira a pregação do realismo, materialmente constitucional de Lassalle, a nosso parecer, ressuscitado de forma tão brilhante e atualizada pelo texto clássico de Konrad Hesse acerca da força normativa da Constituição. Hesse, sem perceber ou sem disso fazer cabedal, é o constitucionalista da juridicidade do Estado social. E o é na medida em que a hermenêutica, em sua versão contemporânea de mudança e renovação metodológica, pode a ele arrimar-se também, ao declarar normativa e de aplicabilidade imediata a categoria dos direitos fundamentais da segunda geração ou dimensão, a saber, a dos direitos sociais, assim reconhecidos e proclamados pela grande revolução jurídica do constitucionalismo de nosso tempo.

As lutas políticas, sociais e constitucionais desencadeadas e feridas na primeira metade do século passado em nosso país contra o imobilismo social do Estado liberal tiveram princípio no anseio reformista de mudança indefinida, jacente nas agitações da década de 1920, nos levantes militares dos dois 5 de julho, no dedo repressivo dos estados de sítio decretados pelo governo oligárquico e contraditório de Bernardes, que, por paradoxo, abriria um respeitável e forte sentimento de nacionalidade e de proteção à riqueza nacional, adormecida nas jazidas de ferro de Minas Gerais. E, por derradeiro, na explosão revolucionária de 1930, seguida da Constituição de 1934.

Explosão batizada de Revolução Liberal, ela no seu reformismo trazia, por inteiro, as sementes sociais donde resultara a concepção de um novo Estado em que a ideologia fazia prevalecer na organização institucional do sistema algumas idéias e alvitres ou sugestões constitucionais tirados de dispositivos deveras inovadores, legislados pelos constituintes do México em 1917, e de Weimar em 1919, e que traçaram a grande pauta precursora da normatividade dos direitos fundamentais da segunda geração.

Inauguraram-se então as primeiras formas concretas e rudimentares de Estado social, as quais, sem embargo de sua efemeridade e de suas constituições serem grandemente programáticas, como ficou depois comprovado designadamente no caso da Alemanha, tiveram, todavia, considerável ressonância e influxo sobre as Cartas promulgadas no período compreendido entre as duas Grandes Guerras Mundiais, tanto na Europa como na América Latina.

Os efeitos desse influxo caíram, porém, a baixo nível depois que se averiguou, com o tempo, o teor meramente retórico e doutrinário desses preceitos introduzidos pelo revisionismo social das Leis Fundamentais.

A época weimariana, num mundo prestes a desabar e conflagrar-se novamente, em proporções nunca vistas, representaria em matéria social um ciclo de reduzida densidade normativa. Mas que parece louvável pelo alcance e ineditismo dos avanços do constitucionalismo daquela época

Com efeito, o Estado social nascente, cujo berço vamos encontrar nas comoções ideológicas do socialismo do século XIX, tanto o de Proudhon como o de Marx, ainda estava longe de amadurecer ou de trasladar-se, por via normativa eficaz, às esferas positivas do ordenamento jurídico como seu título mais sólido de legitimidade; unicamente a concretização dos direitos da segunda geração, os direitos sociais, pôde outorgar e materializar aspirações de progresso, isonomia e liberdade, definir o advento de uma nova época constitucional, em que a nacionalidade se exprime pela paz social interna, por onde se fazem legítimos os governos da nação quando consagram os direitos fundamentais de todos as dimensões.

O Estado social, de bases nacionais, busca sob a égide do Estado de direito exercitar um poder democrático, aberto, pluralista e idôneo para conter os efeitos funestos e devastadores das crises de governabilidade.

Em geral, são crises derivadas da incapacidade e da incompetência de quem governa sem a visão republicana do poder, rendido ao egoísmo dos estamentos elitistas, os mais empenhados em revogar ou derruir a normatividade jurídica do sistema social de proteção ao trabalho, estabelecido contra as agressões do capital.

Essa normatividade, cimentada em princípios, é, sem dúvida, garantia e penhor de sustentação das instituições nos períodos mais graves de crises supostamente irremediáveis.

Em ocasiões culminantes da diátese nacional, o povo brasileiro tem revelado por traço maior de sua personalidade, seu caráter e seu temperamento uma acentuada vocação de concórdia, compromisso e transação, ou seja, de tornar efetivos, na composição dos interesses, os meios conciliatórios que abafam a aspereza da luta de classes perpetuada pelo capital, como sustentáculo de poder das minorias injustas, que governam e comprimem a sociedade, desamparando-a dos valores republicanos de justiça, liberdade e democracia. Democracia, sim, mas do cidadão participativo, do elemento humano movido de compreensão e de lealdade constitucional às instituições do povo soberano.

Desse povo não se pode apartar o cidadão. Se o fizer, terá perdido a dignidade, que o constitui parcela da nação-cidadã, da nação-povo, da nação-consenso, da nação-soberania constitucional. Só essa pacifica o corpo social de classes amotinadas na diversificação turbulenta de seus interesses colidentes.

Desde a Carta de 1988, Estado social e nação se unificam na tradição brasileira, de duas décadas já vividas e atravessadas, numa sinopse axiológica que traduz a grandeza, a solidez e o vigor da solidariedade na alma do povo brasileiro, abraçado ao compromisso irrevogável de sua Carta Magna, dirigido à concretização da justiça social.

Sendo, como é, uma Carta de princípios – e princípios normativos –, foi a primeira da era republicana que deu neste país estabilidade ao regime constitucional, não se fazendo mister esconjurar, ao longo de vinte anos, o fantasma dos golpes de Estado e da intervenção dos quartéis, lembranças funestas do passado.

A dimensão federativa do Estado Nacional no Brasil

A geografia no Brasil, pelas dimensões continentais do país, composto de vastas e distintas regiões, tem sido forte fator natural que não só recomenda como impõe ao Estado, por imperativo de governança, a forma federativa de sua organização.

Desde o berço da nacionalidade, o espectro da federação apareceu como uma constante ao longo do Império unitário e centralizador. Esse o exorcizou quanto pôde, sem, todavia, lograr fazê-lo ausente das reivindicações autonomistas do Ato Adicional de 1834, durante os debates públicos e parlamentares que o antecederam, desde a abdicação, e fizeram da regência uma época constitucional de espírito republicano.

A plêiade conservadora do Império, os chefes políticos da grei mais afeiçoada ao trono viveram sempre debaixo do pesadelo das idéias reformistas porventura agitadas pela corrente política mais avançada do liberalismo imperial e mais propensa a mitigar a rigidez de um sistema de poder, e de uma máquina de governo, por extremo unitarista, introduzindo-lhe mudanças que só em conjeturar despertavam já no ânimo do elemento conservador o temor da secessão, da desorganização, do esfacelamento, da ruptura e perda da unidade imperial, consoante a crítica política da época e a leitura histórica das crises da regência bem demonstram.

Já os liberais, evidenciando o contraste, temiam o oposto, ou seja, que o excesso de zelo no preservar a unidade do país monárquico, em virtude daquelas apreensões generalizadas, determinasse, como aliás determinou, durante o Segundo Reinado, um impulso centralizador e unitarista sufocante. Seus efeitos negativos para as instituições efetivamente aconteceram, adicionados a outros fatores não menos graves, a saber, a questão abolicionista, a questão militar, a questão religiosa, a questão político-partidária, a questão do poder pessoal do imperador – que abalaram a governabilidade da realeza, minaram o edifício da Monarquia e acabaram por ocasionar em 1889 a queda do Império.

Formou-se, todavia, em contrapartida, aquele juízo histórico segundo o qual a excelência ímpar da Monarquia entre nós residira em haver concretizado o milagre dos milagres num continente retalhado de repúblicas, que eram a imagem das divisões políticas de um passado irremediável: o milagre da unidade nacional dos povos emancipados, tão desejada e nunca lograda pela América hispânica, e que só foi possível na América portuguesa por obra do governo imperial, segundo a corrente preponderante de opinião em nossa historiografia.

Com efeito, é de pasmar que a América castelhana, na vizinhança do Império, e onde concorriam iguais elementos comuns de herança étnica, lingüística, cultural e religiosa, portanto pressupostos homogêneos de sangue, de tradição e de fé, não lograsse estabelecer nos Estados emergentes do domínio colonial, como fora o sonho e esperança dos libertadores, a unidade continental das instituições políticas, debaixo da aparição de uma ou duas, no máximo, três grandes nacionalidades, todas republicanas, sob a égide do princípio federativo. O exemplo mais definido e edificante em que se pode inspirar provinha da União Americana, das bases instituídas pelos autores da Carta de Filadélfia.

É a nação uma ressurreição da pólis nos países periféricos?

A nação está para o Estado moderno assim como a pólis esteve para o Estado antigo, o Estado da Antigüidade clássica.

A nação é, por um certo ângulo, a pólis da contemporaneidade. Como unidade de valores, levanta o edifício do Estado com as pedras e o cimento da solidariedade política e social.

Seu vínculo com o Estado é um cálculo de legitimidade e de justiça social nos países de periferia, onde se faz indissolúvel quando se trata de estabelecer o conceito de soberania, que no caso é a soberania nacional.

Indissolúvel por igual, o vínculo estabelecido com o povo, porque esse, qualitativamente, é o corpo da nação, o seu elemento humano, tanto quanto a população, quantitativamente, o é também do Estado.

Nessa acepção ora desenvolvida, nação é povo, e soberania nacional é soberania popular; ambas fundamento da mesma legitimidade do poder, da mesma força condutora dos elementos éticos na organização do Estado moderno e democrático, da idade contemporânea.

Com efeito, não há como separá-las ou fazê-las distintas, as duas soberanias; ao revés, por conseguinte, do que fez a teoria constituinte da Revolução Francesa, por determinantes ideológicas, no confronto da burguesia com o povo, dos moderados com os radicais, ao escreverem o derradeiro capítulo da Grande Revolução.

Operada pelo extremismo doutrinário dos revolucionários, deu-se a cisão de nação e povo como duas categorias políticas, como duas entidades distintas e independentes, mas que dantes comungavam dos mesmos propósitos, a saber, o da derrubada do regime feudal.

A nação, titular da soberania nacional, outorgou a Constituição francesa de 1791, aquela que aboliu as instituições do feudalismo.

O povo, titular da soberania popular, a soberania do povo revolucionário, promulgou, com ênfase na igualdade, a Constituição de 1793; ambas as soberanias fortes na doutrina, mas fracas na realidade; ambas eternas na utopia, mas efêmeras na positividade.

Em verdade, a teoria da soberania nacional é, a nosso parecer, a única que teoriza e estabelece, pelo ângulo político, a unidade de nação, povo e Estado.

De tal sorte que quem diz nação, diz também povo, e diz do mesmo passo Estado, porque Estado, segundo essa concepção, só se constitui legítimo se não transgredir o princípio da nacionalidade.

Conciliar nação com Estado, nos termos do ideal de legitimidade, parece dominar nossa época na madrugada do terceiro milênio, como dominou o século XIX.

Mas isso só se nos afigura possível, entre as repúblicas do continente, quase todas da periferia política, com um passado de ditaduras funestas e atrozes, se exercitarem as franquias públicas do regime democrático e o respeito à fruição inviolável dos direitos fundamentais.

Nessa direção caminham ou devem caminhar, porquanto é unicamente por essa via que se chega, na plenitude constitucional, ao tão almejado Estado social da justiça, da legitimidade e da democracia participativa, sob a égide, por conseguinte, da nação soberana, do povo livre e da cidadania atuante.

Tornamos, ao cabo deste ensaio, a fazer menção dos conceitos de nação, constantes da parte introdutória, para dizer tão-somente que eles podem ser compendiados, restaurados e ressuscitados, se fizermos, por exemplo, do modelo clássico de democracia, o modelo ateniense, o norte ético e axiológico de uma agregação espiritual perene que, na democracia participativa de nosso tempo, há de falar mais alto pela voz do coração, da fraternidade, do sentimento e da comunhão de valores, que da razão, por onde os egoísmos de classe buscam legitimar-se.

Só assim a democracia do porvir, emancipadora dos povos periféricos, e concretizada como direito fundamental do homem, há de ser na escala de valores mais nação que Estado, mais consciência nacional do povo solidário que razão de Estado dos governos autocráticos.

Estado social e nação pressupõem também, ao lado da democracia, em seu teor contemporâneo de legitimidade, o primado da justiça, porque sem justiça a autoridade não se legitima, é dissimulação; a liberdade constitui privilégio; a igualdade, retórica; a segurança, argumento de opressão; a lei, mais regra de força que norma de direito; e o Estado, mais absolutismo que harmonia e separação de poderes.

Sem justiça, a governabilidade é o dogma da tirania, é a nova razão de Estado das ditaduras constitucionais, a dimensão injusta e soez das invasões executivas nas órbitas de competência do legislador e do juiz.

Sem justiça, o governo é ingovernabilidade. É a Constituição desamparada, malferida, humilhada, devastada, conculcada. E por que não dizer? Anexada ao arbítrio, à barbaridade e à onipotência de um Executivo supressor da livre fruição dos direitos fundamentais e das liberdades públicas. Executivo que, se lhe não puserem amarras, aniquilará a essência da cidadania.

Sem justiça, a nação fica a um passo do abismo onde a democracia já não pode respirar e os laços morais e políticos da união republicana se dissolvem.

O Estado social deixa então de ser Estado de direito por se converter tão-somente em Estado social de um sistema totalitário, em que o Legislativo, numa flagrante cumplicidade de submissão, se fez também fantasma do sistema representativo e da Constituição que abjurou e quebrantou. Fazendo mão comum com o Executivo, ambos podem implantar uma ditadura funesta ao futuro da nacionalidade, em razão de dissolver os vínculos democráticos e os valores que os atavam à Constituição.

O triângulo da liberdade na periferia é justiça, nação e Estado social. Fora daí, as tribunas vazias, a sombra do absolutismo, o silêncio das ditaduras.

Notas

Texto recebido em 20.2.2008 e aceito em 22.2.2008.

Paulo Bonavides é catedrático emérito da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Ceará, em Fortaleza. Doutor honoris causa pela Universidade de Lisboa. @ – pbonavides@uol.com.br

  • 1
    Na nota 11 do capítulo 5 da nossa
    Ciência política (São Paulo, Editora Malheiros, 2007, p.88) reproduzimos lugares admiráveis da obra de Ramalho Ortigão em que esse primoroso escritor mostra como Portugal se vincula a
    Os lusíadas. Com efeito, após cair debaixo do domínio espanhol, a nação, ferida de morte, desapossada da independência, ainda sobrevive e, em seguida, se restaura depois de sessenta anos de cativeiro. O poema de Camões, memória e breviário das glórias de Portugal, conquistadas pelas caravelas dos navegadores, inspira diretamente a ressurreição, em 1640, da independência perdida no deserto africano, entre as areias de Alcácer-Quibir. São páginas da história, em que a nação, ilustrada nesse exemplo, se vê restituída ao seu papel de mantenedora e guarda de um passado, que foi parte do patrimônio da civilização e ficou perenizado pelo gênio de Camões nas estrofes do poema imortal, "pedra monumental", onde, segundo Ortigão (
    Figuras e questões literárias, Lisboa, Livraria Clássica Editora, 2. ed, 1945, t.I, p.199, 200-3 e 213-9), "os portugueses terão de vir afiar as suas espadas de combate [...] para resistir a esta invasão terrível com que lutamos e que se chama – a decadência".
  • 2
    É possível lavrar a certidão de idade de um Estado porque o Estado é como a lei: tem data certa de seu estabelecimento. A nação, ao revés, é como o costume: obra do tempo, não se lhe conhece, todavia, o momento em que aparece ou ingressa na história.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      26 Set 2008
    • Data do Fascículo
      Abr 2008
    Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo Rua da Reitoria,109 - Cidade Universitária, 05508-900 São Paulo SP - Brasil, Tel: (55 11) 3091-1675/3091-1676, Fax: (55 11) 3091-4306 - São Paulo - SP - Brazil
    E-mail: estudosavancados@usp.br