Open-access Dialéticas e políticas alteritárias na Dialética da colonização

RESUMO

O artigo intenta uma discussão sobre o sentido e o funcionamento do conceito de dialética na Dialética da colonização de Alfredo Bosi e uma sondagem das políticas alteritárias nela exercitadas. Dialogando com a recepção de Roberto Schwarz dessa obra, tentamos mostrar a produtividade crítica oriunda de um jogo entre certa flexibilidade teórica e o compromisso ético-metodológico inscrito na tradição marxista daquele conceito, e como isso se reflete no complexo afetual-axiológico que enforma as noções de “popular” e “materialismo animista” no livro, assim como no confronto de Bosi com a figura e o trabalho de André João Antonil e em sua leitura das contradições do liberalismo. Finalmente, sugerimos certa afinidade de interesses e procedimentos da Dialética bosiana com a espectropoética-espectrologia de Jacques Derrida.

PALAVRAS-CHAVE:  Dialética; Alteridade; Cultura popular; Materialismo animista

ABSTRACT

The article proposes a discussion about the meaning and functioning of the concept of dialectic in Alfredo Bosi’s Dialectic of Colonization and an exam of the alteritarian politics therein. Dialoguing with Roberto Schwarz’s analysis of this work, we try to show the critical productivity arising from a game between a certain theoretical flexibility and the ethical-methodological commitment inscribed in the Marxist tradition of that concept, and how this is reflected in the affectual-axiological complex that shapes the notions of “popular” and “animist materialism” in the book, in Bosi’s own confrontation with the figure and work of André João Antonil and in his reading of the contradictions of liberalism. Finally, we suggest a certain affinity of interests and procedures of Bosi’s Dialectic with the spectropoetics-spectrology of Jacques Derrida.

KEYWORDS: Dialetic; Alterity; Popular culture; Animist materialism


O Professor Alfredo Bosi (1936-2021) com um exemplar de Dialética da colonização nas mãos.

Para Volmir Cardoso Pereira, com amizade e espírito dialético.

Da contradição à alteridade: a Dialética e suas dialéticas

Publicado pela primeira vez em 1992, mas reunindo ensaios produzidos pelo menos desde o fim da década de 1970, Dialética da colonização está longe de ser um livro ortodoxo. Não por acaso, em sua discussão dessa obra fundamental - certamente um dos testamentos intelectuais de Alfredo Bosi -, Roberto Schwarz sugeriu que ela estaria “causando um discreto escândalo”, confessando-se ele próprio escandalizado; e, embora inicialmente aluda a elementos pontuais (“aqui e ali”) como as razões do incômodo, logo em seguida admite que este “se deve a algo mais geral”: a saber, ao fato de o autor não ser “católico para uso apenas particular, mas também nas concepções e na escrita”, o que traria “uma nota inesperada ao debate, habitualmente agnóstico” (Schwarz, 1993, p.9). Naturalmente, isso teria consequências metodológicas importantes. Em linhas gerais, o que Schwarz censura no livro de Bosi é uma “associação de marxismo e cristianismo” que, ao invés de extrair de seu objeto uma efetiva dialética, “com a sua parte de lógica interna, inconsciência, produtividade, inerência recíproca e interação dos âmbitos”, apresentaria “uma queda-de-braço entre o espírito e a economia”, e cujos fundamentos e horizontes seriam menos materiais do que morais, ou, em todo caso, oriundos do campo simbólico: “As armas da inconformidade nascem fora, e não dentro da disputa material, cujo sentido nefasto é fixo e inequívoco: a humanidade reside nos símbolos, na religião, na memória, e não na empresa econômica, que é o contrário dela” (ibidem, p.9).

Como se vê, um aspecto fulcral dessa crítica é o que podemos chamar de relação entre a internalidade e a exterioridade dos termos em jogo na dialética da Dialética da colonização. Pode-se dizer que Schwarz demanda de Bosi aquele movimento pelo qual, nas palavras de Antonio Candido (2006, p.17, grifos dele), “o externo se torna interno”; sendo, porém, que esse lugar de subsunção ou suprassunção não consumada deveria ser, primeiro, o da materialidade econômico-social, ou mesmo especificamente econômica, e só então o da textualidade crítica. Sem a unidade produzida por esse duplo movimento, a “disputa material” não só perderia sua centralidade como se veria confinada, num pensamento movido pelo ideal humanista, a um lugar de adversidade não dialética. Em suma, o critério que conformaria as análises e discussões de Bosi seria sobretudo ideológico, no sentido de que esse ideal de fundo ético, moral e religioso configuraria uma espécie de última instância crítica, com o apoio da terminologia marxista mas não o compromisso metodológico exigido por ela.

Há muito de pertinente, a nosso ver, nessa avaliação de Schwarz. Algo que é preciso sublinhar, no entanto, é sua estrita dependência de uma concepção de dialética - a do materialismo histórico, naturalmente - que, em sua pretensão de cientificidade, tende a refutar de antemão outras tradições e usos mais flexíveis desse conceito; ainda mais quando esses usos incluem a apropriação direta dos trunfos teóricos e compromissos éticos da própria tradição marxista, como se dá na Dialética bosiana. E o fato é que, quer configurem, quer não algo como um sistema teórico ou metodológico, o funcionamento do conceito, aliás, da noção a rigor extremamente ampla de dialética, no texto de Bosi, é não apenas muito próprio, como, mais que consciente, zeloso de sua heterodoxia; e o tributo mínimo que se deve prestar a isso é tentar compreendê-lo na complexidade de sua lógica interna, à qual os termos de Schwarz fazem no máximo um aceno.

Por outro lado, é significativo que o próprio Schwarz não deixe de reconhecer que esse funcionamento heterodoxo comporta, em si mesmo, certa produtividade crítica. Um momento em que isso se dá de forma explícita, embora não sem contrapontos e talvez certa ironia, é na referência à “análise paramarxista da ‘práxis’ dos missionários [jesuítas]” como propícia a “denunciar de dentro a aliança histórica da Igreja com o dinheiro e o poder” e “dar perspectiva histórica e científica ao trabalho com as novas massas pobres em surgimento na América Latina” (Schwarz, 1993, p.11).

O fato, porém, é que o vocabulário e o método marxistas funcionam e ressoam de diferentes formas na Dialética da colonização. Há momentos, por exemplo, em que o conceito-chave inscrito no título desse ensaio feito de ensaios confina de forma mais ou menos estreita com o esquematismo trádico atribuído, com maior ou menor razão, a Hegel, Marx e seus herdeiros, e no qual uma dualidade, interna ou não, aponta para uma síntese superior.1 Em outros, ele parece se investir de uma generalidade quase aconceitual, ou de uma complexidade e uma potência proliferante para além de qualquer esquematismo. E, na prática, essas situações básicas como que prestam contas uma à outra: o dualismo quase sempre se desdobra em dialéticas mais complexas ou, no mínimo, é atravessado por uma complexidade adicional, enquanto as relações complexas quase sempre se reportam, em algum grau e em algum momento, a uma ou mais de uma oposição nuclear.

No ensaio sobre o indianismo de José de Alencar, por exemplo, a “dialética de oposição” constituída pela polaridade Brasil/Portugal no processo da independência, e na qual se combinam aspectos político-ideológicos e econômico-sociais, desdobra-se em outra dialética, de cunho estético-ideológico: a do “complexo sacrificial na mitologia romântica de Alencar” (Bosi, 1996, p.179), que por sua vez tanto avulta na singularidade estética de sua “síntese” figural - o nativo alencariano - quanto, de fato, se deixa subsumir numa última instância ideológica.

Já no ensaio de matéria mais diretamente política do volume, Bosi (1996, p.209) fala de uma “dialética do liberalismo no seu momento de expansão a qualquer custo”, expressa no postulado de uma liberdade econômica que destrói a liberdade alheia. Um tipo de contradição interna que não pode produzir nenhuma síntese para além de si, e que talvez conviesse chamar simplesmente de contradição, não fosse o fato de ela demandar, enquanto “momento” provisório, uma oposição mais viva, capaz de demovê-la de sua imobilidade. É justamente esse outro polo ao mesmo tempo externo e interno, pois integrante de um mesmo complexo ideológico e conceitual, que se anuncia na forma de um outro e “novo liberalismo”, na expressão de Nabuco encampada e grifada por Bosi (1996, p.224): este que se distingue do “antigo” pela bandeira abolicionista.

Por mais que essa outra dialética de oposição - a expressão também caberia aqui - pertença à esfera que Marx (2008, p.47) chamou de “superestrutura”, e não à “base real”, dita material, da sociedade, ela não se furta à matriz metodológica marxista, quando menos pela densidade inamovível dos processos e interesses econômicos que constituem seu pano de fundo; como não o faz a plêiade de posições e oposições intermediárias em que sua dualidade básica se desdobra.

Mas que dizer quando, no primeiro ensaio do livro, Bosi (1996, p.30) sugere que, ao lado da “engrenagem de peças entrosadas” do sistema colonial, “se teria produzido uma dialética de rupturas, diferenças, contrastes”? O que está em jogo, aí, é o papel das “formas simbólicas”, particularmente da religião, no processo colonial. Mas, ainda que logo na sequência Bosi invoque as palavras de Marx sobre a religião como a “alma de um mundo sem alma” na Crítica da Filosofia do Direito de Hegel, os termos que descrevem essa “dialética” parecem vagos demais para não serem, em si mesmos, mais do que retóricos.

No entanto, vale a pena esmiuçar a passagem. Note-se, em primeiro lugar, que a citação de Marx, cujo fecho é a famosa definição da religião como o ópio do povo, serve para legitimar a atribuição, na economia axiológica da Dialética, de um valor positivo à religião, no sentido de que “o labor simbólico de uma sociedade pode revelar o negativo do trabalho forçado e a procura de formas novas e mais livres de existência” (ibidem, p.30). Em suma, Bosi enceta aí a “associação de marxismo e cristianismo” acusada por Schwarz, procurando definir os territórios em comum dessa aliança: de um lado, a aspiração libertária; de outro, a intersecção constitutiva do trabalho material com o “labor simbólico” da religião, reivindicada na espécie de gênesis etimológico que abre o ensaio e o livro, e no qual o verbo latino colo dá origem às formas lexicais concernentes a praticamente tudo de que aí se trata:2 a ocupação e o cultivo do solo próprio ou alheio, a exploração do outro, o culto e a cultura em suas várias acepções. O substantivo cultus, particularmente, designaria “não só o trato da terra como também o culto dos mortos, forma primeira de religião como lembrança, chamamento ou esconjuro dos que já partiram” (ibidem, p.13).

Vistos na esfera ao mesmo tempo unitária e alteritária desse duplo labor - alteritário no sentido da irredutibilidade mútua dos campos em jogo -, aqueles termos sequenciados revelam-se bem menos fortuitos. Cada um deles se coaduna de alguma forma com a espécie de coesão instável dos campos em questão: uma coesão, um bom ou mau concerto previamente estabelecido ou intentado, marcado por “rupturas, diferenças, contrastes”. No âmbito dessa irredutibilidade, a forma especular sugerida nesse último termo - e, ademais, invocada em outros momentos da Dialética - não deixa de convir à descrição das relações. Estas, porém, não deixam de ser efetivas, a começar porque os campos se afetam incessantemente, mas também, certamente, porque se implicam de múltiplas formas; só por isso, aliás, são passíveis de rupturas.

Nada mais sugestivo, no entanto, que o tipo de centralidade ocupado pela diferença nessa tríade semiconceitual, em si mesma regida, parece-nos, por uma lógica da semelhança diferida: uma centralidade que é ao mesmo tempo um lugar de passagem entre dois termos intrinsecamente adversativos; o terceiro, é verdade, ainda sublinhando o valor diferencial, de modo que figura quase como uma síntese concilatória dos dois primeiros, ao mesmo tempo que reafirma o lugar do contraditório no efetivo núcleo do conjunto. Ainda aí, portanto, há um prestar de contas à matriz marxista.

Mas nem por isso a diferença deixa de ocupar um lugar efetivo nesse quadro. A começar pela posição ou atitude cognoscente buscada por Bosi, e que passa pelo reconhecimento de uma distância, pode-se dizer, em face do que mais lhe interessa na dialética da colonização: o campo ou os campos copartícipes onde essa se atualizaria de forma mais viva e promissora (com um dedo de vantagem, inclusive, sobre o da arte culta), ou seja, os da “vida popular” e da “cultura popular”. A força gravitacional da noção de popular é tamanha, na Dialética, que é ela que captura esse conceito intitulante de forma mais envolvente, ao mesmo tempo em que se deixa ela própria envolver e moldar pelo mesmo, num tipo de uma subsunção mútua que é também, no que tange à posição autoral, uma dialética de atribuição e reconhecimento.

É precisamente o que ocorre quando Bosi (1996, p.55) fala em uma “dialética humilde” para se referir à abertura da cultura popular “a múltiplas influências e sugestões, sem preconceito de cor, classe ou nação” (e, ainda, “de tempo”); em suma, à sua assimilação e reelaboração “virtualmente universal” de virtualmente “tudo” o que se lhe apresenta. Uma dialética, enfim, mais que tudo acolhedora, e que, muito distante das complicadas e agonísticas sínteses dos filósofos e mesmo da dita arte culta, se resolve num “sincretismo democrático”. E nisso o autor tanto reconhece um dado inequívoco - a pulsão ou propensão acolhedora da dita cultura popular - quanto lhe atribui um caráter absoluto, ou próximo disso. O que se dá, por outro lado, justamente pela conformação do conceito-chave a esse acolhimento inflacionado.

Naturalmente, essa potência ambígua, que afinal reverte instantaneamente a concessão de uma abertura infinita na postulação de um eterno retorno a si, também implica num tipo de absolutização, igualmente ambígua (trata-se, afinal, do poder da humildade), desse ‘outro’ conceitual-social e genérico-espectral - ou seja, espectralmente povoado - denominado “o povo” ou o “popular”. A vox populi que, na leitura bosiana d’Os lusíadas, emerge como força contraditória no episódio do velho do Restelo é apenas um dos lugares onde se explicita essa aliança constitutiva, no complexo axiológico da Dialética, entre o campo do popular e o das experiências místicas, religiosas ou, em todo caso, transcendentes. Ainda que remeta de alguma forma àquele “outro” (o termo é de Bosi) buscado por Anchieta no pão eucarístico, ou seja, “o Deus onipotente” (ibidem, p.91), essa aliança também se exprime em transcendentalismos plurais e mais ou menos mundanos, concernentes a alteridades ôntico-espectrais ou arquétipo-figurais: espíritos, entidades, ‘forças’, a alma do inimigo devorado no rito antropofágico. Assim como no “materialismo animista [...] subjacente a toda a cultura radicalmente popular” (ibidem, p.324, grifo do autor), síntese conceitual da alteridade metafísica encarnada, em seu valor de singularidade irredutível e sua potência afetual, no “outro” social.

Naturalmente, um conceito como esse - também se lê, uma vez, “animismo brasileiro” (ibidem, p.325) - se inscreve com uma força disruptiva face aos postulados do materialismo dialético. Por mais, sublinhe-se, que esse se mostre inamovível enquanto referência ética e metodológica, na injunção de um duplo compromisso - com o real e com os oprimidos e excluídos - que se desdobra em corte crítico. O fato é que uma maquinaria dialética muito peculiar opera na Dialética bosiana, na qual aqueles campos conjugados como que rasgam o círculo dos conceitos cristalizados com a força de alteridades conceituais carregadas de valor afetivo-experiencial e ao mesmo tempo se prestam, eles próprios, às mais diversas subsunções conceituais.

Essa dialética de subsunção e alteridade radical, que se plasma exemplarmente no “processo de assimilação universal do corpo [de Cristo] pela alma amorosa” (ibidem, p.83) na lírica de Anchieta, também se verifica na “relação amorosa” demandada do escritor erudito - “homem de cultura universitária, e pertencente à linguagem redutora dominante” - com a “vida popular”,3 a fim, justamente, de que este não reduza de várias formas possíveis “os modos de viver do primitivo, do rústico, do suburbano” (ibidem, p.331). O contraste entre essa demanda e esses termos em si mesmo redutores (logo na página seguinte o próprio Bosi relaciona o primeiro deles à noção de inferioridade racial em autores como Sílvio Romero e João Ribeiro) diz muito sobre certa estrutura oscilante que informa a Dialética. Algo que não deixa de refletir o quadro de impasse teórico no qual ela vem à luz: o mesmo que Bosi lastima, no “Post-scritptum 1992” que se segue ao ensaio final, ao falar da crise, aliás, da desintegração das “abordagens sistemáticas” e dos “conceitos fortes e bem travados que presidiam à leitura dos processos simbólicos até os anos 60” (ibidem, p.547). O que não o impede de fechar esse diagnóstico com uma nota positiva, na qual invoca entre aspas a “razão pós-moderna” para falar da “esperança de que os usuários peritos nos meios ultramodernos produzam obras de ciência e arte cada vez mais belas, profundas e complexas” (ibidem, p.549-50).

Por mais que contraste com passagens mais críticas, incluindo invectivas diretas contra a “pós-modernidade”, um passo como esse é menos estranho ao espírito da Dialética do que pode parecer a princípio; e não só pelo humanismo de fundo dessa espécie de mcluhanismo para além do medium (mas é o Benjamin da questão da reprodutibilidade técnica que Bosi invoca no parágrafo anterior) como pela abertura constitutiva desse espírito. De fato, o ganho em complexidade aí invocado nos parece um contraponto, prudente, mas perfeitamente consciente, à crise dos “esquemas de unificação e de fechamento do sentido” (ibidem, p.348) lastimada pouco antes.

Em seu caráter metodologicamente heterodoxo e algo impreciso, a Dialética certamente reflete a consciência desse impasse. Ao invés, no entanto, de se conformar a ele, e ainda que por vezes a contrapelo de si mesmo, Bosi engendra um jogo cognitivo e discursivo variável, oscilante. O próprio fato de o volume não possuir uma introdução teórico-metodológica - a discussão etimológica do primeiro capítulo equivale a um mergulho na matéria tratada - reforça a sugestão de que a injunção de unidade inscrita na indicação objetual e na forma singular do título não implica necessariamente numa unidade metodológica. É somente na abertura do longo comentário a posteriori que de fato fecha o livro que Bosi se permite uma espécie de esboço metodológico, cujo núcleo, porém, não se pretende rígido o bastante para que não se apresente senão como “uma ideia”: a de que a colonização “é um processo ao mesmo tempo material e simbólico”, termos que - um pouco à maneira daquele ‘gênesis’ etimológico - se bifurcam em outros: “práticas econômicas”, “meios de sobrevivência”, “memória”, “modos de representação de si e dos outros”, “desejos e esperanças”. Ainda a derradeira síntese proposta pelo autor guarda algo dessa feição proliferante: “não há condição colonial sem um enlace de trabalhos, de cultos, de ideologias e de culturas” (ibidem, p.377).

Parece justo reconhecer, aí, algo da “precedência do objeto” reivindicada por Adorno (2009) na Dialética negativa, e que por sua vez remete à ideia da alteridade conceitual como algo inalienável, não sacrificável, no processo cognitivo.4 Ao mesmo tempo, a dimensão marcadamente afetivo-vivencial e experiencial dessa maquinaria dialética instaura um trânsito entre a alteridade conceitual e o irredutível da singuaridade humana; e nesse ponto é inevitável sublinhar o sacrificialismo, obviamente afim ao cristão, de que as noções de povo e popular se investem na Dialética da colonização. No entanto, o jogo afetivo-alteritário é efetivo o bastante para não se deixar esgotar nesse esquema implícito e suas várias inscrições textuais. Até porque o campo de uma tal vivencialidade crítica se abre inevitavelmente a demandas e injunções alteritárias, ou melhor, a figuras da alteridade que instauram suas demandas e injunções no âmago e para além da fala que as invoca.

Da voz do povo à voragem do outro: o caso Antonil

Se a Dialética bosiana encontra no “popular” o espaço de uma benignidade ao mesmo tempo encarnada e transcendente, decerto delineia também o espaço de alguma malignidade, menos ou mais metafísica; não, evidentemente, no sentido da metafísica tradicional, mas cujo cerne axiológico certamente se engata ao dela. A “queda-de-braço entre o espírito e a economia” apontada por Schwarz (1993, p.9) é uma formulação possível dessa dualidade, a “empresa econômica” como o contrário nefasto da “humanidade [que] reside nos símbolos, na religião, na memória”. Ou, em viés menos economicista, a “empresa econômica” como lugar igualmente eivado de símbolos, afetos, memórias, etc., porém marcado com o estigma de sua rejeição a tudo isso, ou seja, com o estigma de seu autocentramento egoísta e, mais ainda, de tudo de mau que isso produz no real vivo.

Sem dúvida, é relevante que esse estigma se assemelhe a algo como um mal originário, já inscrito, por exemplo, em colo como “a matriz de colônia enquanto espaço que se está ocupando, terra ou povo que se pode trabalhar e sujeitar” (Bosi, 1996, p.11, grifo dele). No entanto, é sobretudo às empresas econômicas predatórias e exploratórias, das quais a colonial é um exemplo particular e particularmente cruel, que ele se aplica. Em suma, Bosi não parece conceber toda e qualquer empresa econômica ou esse conceito geral - que, a rigor, implica quaisquer relações de produção e troca social - como merecedores desse estigma. Nem, portanto, o mundo do trabalho está excluído do cerne da dialética bosiana, cujo gênesis etimológico, aliás, como que contempla tudo isso. A razão efetiva da crítica de Schwarz, nesse ponto, parece ser o fato de que o valor e o sentido da “disputa material” no livro só se consumam na extrapolação ou semiextrapolação para o campo do simbólico, tanto mais que este se constitui na referência a um corte transcendental.

E tanto o simbólico e o transcendente estão radicalmente implicados na Dialética, que mesmo quando se arriscam a serem expulsos de cena, ou seja, quando o império da economia ameaça se instaurar de forma cabal, eles ainda ditam as regras. Em uma situação algo extrema como essa, no entanto, é quase inevitável que o fundo afetual que informa um tal olhar venha à tona com um pouco mais de sofreguidão. E é sobretudo por isso, e não por delinear - pois não o faz - um terreno efetivamente próprio, que a figura e a obra de, nas palavras de Bosi, “nosso primeiro economista” (ibidem, p.157) resistem, de forma inevitavelmente silenciosa, à apropriação subsunsora, ao mesmo tempo que a voz autoral avulta em suas injunções e contradições.

De fato, nenhum capítulo da Dialética bosiana se estrutura sobre uma oposição ideológica tão marcada e, sobretudo, unilateral como o dedicado ao padre João Antônio Andreoni, vulgo André João Antonil. Bem mais, por exemplo, que o ambíguo e ressentido Gregório de Matos - crítico, afinal, da máquina mercante que o priva ou desloca de seu lugar social -, é o autor de Cultura e opulência no Brasil por suas drogas e minas quem, bem ou mal sucedido em sua empresa,5 encarna a oposição ao humanismo crítico bosiano; inclusive porque é à sombra do padre Vieira - para Schwarz (1993, p.11), “herói talvez do livro” - que ele emerge, para tornar-se, nos termos de Bosi (1996 , p.149), “[q]uase um traidor” do antigo protetor. Coube a Bosi, aliás, o mérito de descobrir, em suas pesquisas no Arquivo Romano da Companhia de Jesus, uma carta em italiano de Andreoni, dirigida ao admonitor geral da Companhia, repleta de acusações contra Vieira. Expressões como “extravagantíssimo nas idéias e infeliz na prática” (ibidem, p.155), na tradução do crítico, não as mais ácidas delas.

Em todo caso, a dedicação extremada de Antonil ao projeto colonial, pouco ou nada afeita às posições variavelmente críticas de Vieira e Anchieta, parece indiscutível. E se a sua atuação clerical e administrativa na Companhia de Jesus parece testemunhar isso, sobretudo em sua complacência não raro ativa com a escravidão indígena, seu livro reflete esse empenho de forma algo hiperbólica. Cultura e opulência do Brasil não apenas mapeia e expõe o funcionamento das principais atividades econômicas da colônia como o faz com tal “servidão ao objeto” que este se tornaria, segundo Bosi, o próprio “sujeito do texto”. Enquanto isso, os seres humanos apareceriam nesse “universo cerrado de produção e circulação de mercadorias” como “instrumentos propícios à criação de riquezas” (ibidem, p.159-60). Ou seja: “Senhor ou escravo, o homem de Antonil é, em primeiro lugar, um corpo e uma alma útil à mercancia” (ibidem, p.160, grifo do autor). Mas no que tange ao escravo, isso também significa, entre outras coisas, sujeitar-se às “leis de ferro” e aos “riscos de mutilação e de morte” das máquinas dos engenhos de cana. Estas, por sua vez, têm detalhadas, ao longo de “páginas metodicamente obsessivas”, suas cabeças, rodas, eixos e dentes que parecem se multiplicar ao infinito para compor entes não monstruosos, mas fascinantes (ibidem, p.165-6).

Quanto à mercancia em si, Antonil lhe reserva o fecho da parte do livro dedicada à “lavra do açúcar”. Nesse capítulo, intitulado “Do que padece o açúcar desde o seu nascimento na cana, até sair do Brasil”, a mercadoria se torna, nas palavras de Bosi (1996, p.167), nada menos que um “sujeito sofredor, cujo calvário reitera o sacrifício por excelência, o paradigma da paixão de Cristo”. O intertexto, porém, não se dá apenas com os Evangelhos, mas também com o Sermão do Rosário no qual Vieira expusera “a semelhança do escravo de engenho com o Cristo crucificado” (ibidem, p.172) e descrevera as cenas hediondas - o emblemático “doce inferno” - da labuta nas fornalhas ardentes. Mas Vieira, adverte Bosi, “nos pinta homens válidos, robustos ‘etíopes’, ciclopes banhados em suor exercendo vigorosamente a força dos seus músculos e a habilidade das suas mãos”. Já seu desafeto “amontoa junto às fornalhas pretos sifilíticos, ‘os escravos boubentos e os que têm corrimentos, obrigados a esta penosa existência para purgarem com suor violento os humores gálicos de que têm cheios os seus corpos’”, ou que cumprem “pena de trabalhos forçados pela sua ‘extraordinária maldade, com pouca ou nenhuma esperança de emenda’” (ibidem, p.174). É às agruras da mercadoria, ou melhor, da matéria-prima lentamente transmutada em mercadoria, que se dirige toda a empatia de Antonil:

Mas, ao contemplar o caldo de cana fervido, com que lástima o vê borrifado com decoada pelos negros! Como deplora que a sua escuma sirva à diversão de escravos pinguços! Na hora da purga, “até as escravas lhe botam, sobre o barro sujo, as lavagens”, e não só uma, muitas vezes, as pretas lhe batem afrontosamente na cara. Quando o açúcar sai, já branco, das formas, “tão alvo como inocente”, outras mulheres com requintes de crueldade lhe cortam os pés com facas. Nos balcões escravos ferozes e vingativos, “gente sentida e enfadada do muito que trabalhou”, partem-no, espedaçando-o, arrastando-o e pisando-o sob “os pés dos negros sem compaixão”. (Bosi, 1996, p.174)

É a essa inversão, digamos, existencial - acintosa já à consciência ética dos Seiscentos, como a própria confrontação com Vieira deixa claro - que se refere o título do ensaio de Bosi, “Antonil e as lágrimas da mercadoria”, e só frente a ela se sente a incisão de seu aguilhão crítico. E diante não só do que se viu, mas de muito mais que se poderia se levar em conta em Cultura e opulência do Brasil, é de se perguntar se lhe caberia outro julgamento ético, em face da consciência de nosso século, senão o expresso nessa acusação de desumanidade. Não obstante, tanto o livro de Antonil quanto o capítulo da Dialética oferecem matéria para outras considerações, de ordem até certo ponto inversa.

É ainda Bosi quem nota, por exemplo, que, em meio a uma enxurrada de conselhos práticos dados aos colonos, o “jesuíta Antonil”, à maneira de “um mentor da psicologia industrial do seu tempo”, recomenda que os senhores apliquem “bons tratos” aos escravos com vistas ao “melhor relacionamento entre ambos no engenho” (ibidem, p.163). A observação, naturalmente, tem tintas de ironia trágica. E é difícil refutar o pragmatismo sublinhado por Bosi nesse conselho ‘jesuítico’, até porque os indícios de preocupação com os escravos por parte de seu autor se revelam quase insignificantes diante das omissões gritantes. No parágrafo que trata dos perigos da moenda de cana, por exemplo, a expressão “por desgraça” não atenua o fato de Antonil (2011, p.138) creditar o sono e o cansaço da escrava “que mete a cana entre os eixos” (e que, em caso de acidente, “arrisca-se a passar moída entre os eixos, se lhe não cortarem logo a mão ou o braço apanhado”) a um “descuido” dessa. Como não deixa de chamar atenção o fato de alguém - sim, um religioso - tão proficiente na descrição da engenharia de um maquinário sequer cogitar a possibilidade de fabricação e instalação de grades protetoras (que, se viáveis, certamente reduziriam a produtividade). No entanto, quando se fala em “relacionamento” para designar as relações entre senhor e escravo no texto de Antonil, talvez se entreveja algo fundamental na economia não só discursiva como afetual desse “nosso primeiro economista”.

Isso que, bem ou mal, podemos chamar de uma política relacional em Cultura e opulência do Brasil também se revela em situações mais amenas, ou pelo menos nas quais a violência das relações ganha um verniz de amenidade. O próprio Bosi (1996, p.160) cita os curiosos conselhos gerais com que Antonil pretendia brindar seus leitores, e que, nas palavras do crítico, “vão do graúdo ao miúdo não poupando sequer a intimidade doméstica”. De fato, os arrazoados incluem desde precauções aparentemente pueris com documentos à mercê do desleixo das senhoras, criadas e crianças, até abertas advertências a propósito de práticas de sociabilidade em espaços diversos, e complexas a seu modo. “Que o senhor de engenho nunca se mostre arrogante e soberbo com seus lavradores, pois a insolência gera a revolta e o desejo de revidar”, exemplifica Bosi (1996, p.159-60), parafraseando e citando Antonil:

Que a todos contemple com trato afável, conselho que estende às senhoras de engenho “as quais, posto que mereçam maior respeito das outras, não hão de presumir que devem ser tratadas como rainhas, nem que as mulheres dos lavradores hão de ser suas criadas e aparecer entre elas como a Lua entre as estrelas menores”.

Pueris ou não, situações como essas transparecem uma dimensão vivencial menos evidente nas páginas mais técnicas do livro, e que se liga a um complexo afetual-axiológico para além do fetichismo da mercadoria. Se formos ao texto de Antonil (2011, p.91-2), veremos, por exemplo, que esse pendor conselheiral se reveste nessas mesmas páginas de escrúpulos ético-religiosos. Como na invocação - a sério - da história de Caim e Abel para que a inveja não renove “semelhantes tragédias ainda hoje entre os parentes, pois há no Brasil muitas paragens em que os senhores de engenho são entre si muito chegados por sangue e pouco unidos por caridade, sendo o interesse a causa de toda a discórdia”. Ou no apelo à “lei de Deus” como limite para o respeito devido àqueles com quem se trata, e que não pode ser tanto a ponto de o senhor “jurar em demandas crimes, ou cíveis contra a verdade, e a pôr-se a mal com os que com razão se defendem”. Nada obsta que se associe esse anseio por estabilidade a um pragmatismo objetivista votado à empresa colonial, mas não parece justo reduzi-lo a isso, purgando a problemática propriamente humana do horizonte axiológico de Antonil.

Na própria via crucis da cana-de-açúcar que culmina na chegada do lucrativo produto à mesa de seus consumidores, uma dimensão vivencial-experiencial está obviamente implícita: a própria experiência do consumo, o testemunho da doçura e, mais que isso, da paradoxal justiça feita a algo que “a terra, obedecendo ao império do Criador”, produz natural e liberalmente “para regalar com a sua doçura aos paladares dos homens [...], desejosos de multiplicar em si deleites e gostos” (Bosi, 1996, p.188). Ou muito nos enganamos ou há aí o esboço de uma antropologia cultural do paladar; algo que, em todo caso, desloca o interesse da mercadoria, do objeto concebido mercadologicamente, para o produto em sua materialidade e, mais que isso, desfrutabilidade consumível. Nessa dimensão do objeto, a passagem da matéria-prima em si mesma apetecível para outras formas tão ou mais desfrutáveis tem, para além do interesse socioeconômico, o fascínio das coisas que se processam e compõem o grande processo da vida - econômica, inclusive e principalmente, mas não apenas. Leia-se as últimas páginas do capítulo, onde Antonil lista os “tormentos” que aguardam o açúcar ainda depois de “pregado e sepultado”, como apreensões fiscais, tributos, degredos, tempestades marítimas e o sequestro pelos mouros; até que, finalmente,

[...] sempre doce e vencedor de amarguras, vai a dar gosto ao paladar dos seus inimigos nos banquetes, saúde nas mesinhas aos enfermos e grandes lucros aos senhores de engenho e aos lavradores que o perseguiram e aos mercadores que o compraram e o levaram degradado nos portos e muito maiores emolumentos à Fazenda Real nas alfândegas. (Bosi, 1996, p.190)

O culto à mercadoria, aí, é indissociável do valor afetivo advindo não só de suas propriedades como de sua integração a uma maquinaria exploratória e produtivista que é também um variado e contraditório concerto humano, com seu quê de empolgante e aventuresco. Vale notar que Bosi (1996, p.167) aponta “a analogia com o ser vivo, animado e humanizado” nesses parágrafos, mas não traça qualquer relação desse procedimento com suas próprias reflexões sobre o “materialismo animista”. E, no entanto, as próprias lentes que a Dialética nos empresta, o próprio jogo de instâncias materiais e simbólicas que nela se pratica e cultiva, sugerem que é na cadeia de um tipo de vitalismo, algo mórbido, sem dúvida, que cada etapa do processo produtivo narrado por Antonil se insere. Um vitalismo que, mesmo concernente à imediaticidade do real, comporta uma dimensão transcendental ou, quando menos, extática: se nada permite inferir qualquer aspecto religioso na debochada imolação sacrificial a que a cana é submetida, o elogio à “perfeição” a que ela se destina antecipa o futuro culto hedonista e opiáceo dos paraísos artificiais baudelairianos.

E, não obstante, o maior tributo que se pode pagar a essa alteridade inscrita no texto e no nome de Antonil talvez ainda seja, de fato, acusar seu pior: não é por si mesma que a cana se processa em açúcar, e fazer dos sofridos agentes diretos desse processo seus algozes é um acinte hiperbólico perfeitamente ajustável à sua redução utilitária; assim como, no fim das contas, à complacência ativa do jesuíta com o hedonismo egoísta dos pequenos e grandes senhores. Se o humor explícito - louvado por Taunay em sua Introdução ao livro em 1922 - não deixa de revelar o grotesco do mecanismo inversor daquele acinte, a intencionalidade que move essa espécie de carnavalização elitista, ao invés de subverter, reforça a hierarquia opressiva. Daí, talvez, o espaço, na leitura de Bosi, entre a complexidade demandante de aprofundamento compreensivo e o compromisso ético e político - mas também afetual - pelo qual se opta abertamente. Bosi (1996, p.157 e 172 ) distingue Antonil e Andreoni para, afinal, fazê-los coincidirem novamente na imagem do “Anti-Vieira”, recusando ao disfarce anagramático os poderes de um lugar de fala estético; e, como vimos, o estético não deixa de ter seu lugar aí. De certa forma, a precocidade incisiva desse corte crítico coloca a questão de se é possível se esquivar a um tal gesto adversativo, e eventualmente excludente, ainda no âmbito de um pensamento que busca abraçar a complexidade.

Mas, paradoxalmente, ao ocupar o lugar de uma adversidade unilateral, Bosi eleva Antonil à condição de adversário digno. O fato de não operar, aí, a dialética relativizante que opera nas leituras de um Gregório ou um Alencar inviabiliza de saída a síntese subsunsora ou suprassunsora mas, em todo caso, afeiçoadora em algum grau do outro ao self das injunções autorais. Mais que isso, essa dessemelhança radical, instaurada pelo fato de as posições de Antonil não resistirem ao corte crítico de tais injunções, empurra a fala autoral para um lugar de contradição explícita. Pelo menos é o que nos afigura, na medida em que a condenação moral de Antonil se choca - ou, antes, cruza, e extrai dividendos desse cruzamento - com algo muito próximo a uma desculpabilização de seu grande adversário eclesiástico. Afinal, o mesmo Sermão do Rosário em que Bosi aponta um aproveitamento degradante por parte de Antonil é aquele onde o crítico, no fim do capítulo anterior, dedicado a Vieira, vê o próprio sermonista patinar ao assumir o ponto de vista de uma moral sacrificialista: a “moral da cruz-para-os-outros”, legitimadora da escravidão pela comparação dos escravos com Cristo, “uma arma reacionária que, através dos séculos, tem legitimado a espoliação do trabalho humano em benefício de uma ordem cruenta”. Uma prova, portanto, de que mesmo diante de Vieira a condição colonial ergueria “uma barreira contra a universalização do humano” (Bosi, 1996, p.148). Resgatado no embate com Antonil, onde se torna ele próprio uma peça de imolação, e ao mesmo tempo de acusação, o sermão vieirense ganha também uma espécie de resgate moral, como um epílogo dignificante no curso de um percurso investigativo que é também narrativo.

Em suma, o investimento afetual tanto aguça quanto cerceia a complexidade dos conflitos. O que talvez surpreenda, aqui, é o fato dessa dialética reprimida ou, digamos, sacrificada encenar uma espécie de retorno salutar dois capítulos adiante, justamente no ensaio dedicado às contradições do liberalismo; em um campo, portanto, que de certa forma atualiza a adversidade política constituída face a Antonil.

Já em seu título, “A escravidão entre dois liberalismos”, esse texto explicita a dualidade fundamental que indicamos no início, com sua dialética de oposição e diferença geradora de sínteses parciais que se traduzem em cisões e conciliações teóricas e político-pragmáticas. Essa produtividade permite, por exemplo, um contraponto - discreto mas evidente - à visão monolítica de Roberto Schwarz do conceito de liberalismo em seu Ao vencedor as batatas: à contradição fulcral e inelutável que Schwarz aponta entre tal conceito e a realidade escravista no Brasil, Bosi (1996, p.199) opõe diferentes sentidos de “liberal” e “liberalismo” em diferentes contextos, e cujos extremos vão das injunções autocêntricas e desumanizadoras do liberalismo econômico à lenta e árdua abertura do liberalismo político, a princípio na Europa, rumo a um “projeto de cidadania ampliada”.

Ao inscrever esse projeto como um horizonte válido - ainda que restrito - no corpo de seu texto, Bosi não se compromete com ele, mas lhe concede um reconhecimento moral. A contraface dialética desse reconhecimento é um aguilhão mais agudo que o de Schwarz no que tange ao próprio liberalismo europeu. Afinal, na leitura desse crítico, esse liberalismo matricial se esquiva ao menos parcialmente do peso da escravidão, já que se inscreve numa narrativa teleológica onde constitui um momento dialeticamente ‘superior’, marcado não só pela “racionalização produtiva” como pela “modernização continuada” (Schwarz, 1977, p.14).

Não obstante, o que mais atesta a produtividade crítica do quadro composto por Bosi são justamente seus desdobramentos na dialética viva do real contemporâneo, onde, por exemplo, demandas liberais e sociais convivem de formas complexas, mas ainda pouco refletidas, tanto no discurso das esquerdas quanto, pasmem, no dos liberais-conservadores. É verdade que nesse quadro vivo e atual, onde as chamadas energias utópicas e mesmo as ditas revolucionárias se imiscuem e reconfiguram de formas igualmente novas e complexas, os caminhos da “vida popular” brasileira parecem em boa medida incongruentes com o complexo afetual-axiológico que enforma essa noção na Dialética. Mas nem por isso Bosi (1996, p.375) deixa de sondar esses caminhos, como ao anotar, no “Post-scriptum 1992”, a “franca expansão” das “seitas carismáticas e pentecostais”, cujos devotos aliariam “muitas vezes o pensamento mágico e a experiência do transe a condutas orientadas pelas normas econômicas do individualismo concorrencial que a todos condiciona”.

Aprofundar a leitura desse e outros quadros alteritários, investigando as demandas que os constituem para além dos condicionamentos econômicos e ideológicos - e, portanto, dos limites desse determinismo -, é, a nosso ver, um dos herdamentos demandados pela dialética viva e contraditória da Dialética da colonização. O que não implica abrir mão da injunção crítica e, portanto, dos compromissos éticos inscritos nessa herança, mas em decidir-se, ante o movimento oscilante em que ela própria se inscreve,6 por acolhê-la não como um jogo calculado, com um resultado já conhecido a ser alcançado, mas como um jogo discursiva e, quem sabe, existencialmente produtivo. Um jogo cujo campo é constitutivamente aberto ao que se lhe difere ou contrapõe, a qualquer momento, por dentro ou por fora.

É nessa abertura, para arriscarmos uma aproximação sugerida em alguns pontos deste artigo, que essa obra fundamental de Alfredo Bosi nos parece algo afeita a outra não menos: a conferência Espectros de Marx, de Jacques Derrida (1994). Também esse livro, publicado no ano seguinte ao do lançamento de Dialética da colonização, se insere no contexto da pretensa vitória global do liberalismo e da suposta derrocada das ditas ciências humanas e sociais frente à sua redução objetivista em ciência econômica; assim como confronta, agora intencionalmente, o materialismo dialético com a questão da alteridade em suas injunções mais radicais.

O que não impede que também aí emerja algo que, fazendo sangrar a carne simbólica - o espectro, digamos - da alteridade na desconstrução, se avizinha do que denominamos um corte crítico na dialética bosiana. Pois é em atenção à injunção de justiça da qual Marx e seus herdeiros se fizeram ou se apresentaram como portadores que Derrida encena esse confronto algo tardio com o autor d’O capital. Um confronto, portanto, onde também as figuras da coletividade são fundamentais, tanto em suas contradições quanto no valor de suas demandas e/ou injunções. Ao mesmo tempo, algo na teia discursiva proliferante da Dialética nos parece afim ao que no livro de Derrida se apresenta como uma espetropoética-espectrologia:7 não só o esforço de Bosi por enredar campos cognitivos e objetuais tão díspares quanto demanda a complexidade do real, inclusive em suas extrapolações simbólicas, afetuais e experienciais, mas ainda seu animismo invocatório de formas, forças e alteridades diversas.

Por mais deslocada que se afigure, essa aproximação nos parece útil para sopesar uma ponderação como esta de Schwarz (1993, p.13), que, tomando justamente a “consideração abrangente ou indiferenciada do âmbito popular” na Dialética como “uma abstração comandada pelo ponto de vista nacional em espírito prático”, sugere que o livro “estaria reagindo em 90, quando a modernização se encontra no impasse, a problemas colocados pelos anos 20 e 30, quando ela deslanchava e o problema se propunha em termos diferentes”. É possível que também essa avaliação, que culmina na indicação de “certa dualidade de enfoques”, um ligado aos “anos desenvolvimentistas” e o outro ao “pós-64”, tenha muito de correta. Mas aparentemente lhe escapa a anacronia estrutural e constitutiva do real - nos termos de Derrida (1994, p.12), a “não contemporaneidade a si do presente vivo” - para além dos anacronismos ideológicos e epistemológicos, assim como de qualquer teleologia: vide os insistentes e reincidentes retornos de tantos impasses históricos em nossa dita modernidade, e que eventalmente fazem ansiar por algo além de nossas velhas utopias.

Referências

  • ADORNO, T. W. Dialética negativa. Trad. de M. A. Casanova. Rio de Janeiro: Zahar, 2009.
  • ANTONIL, A. J. Cultura e opulência do Brasil por suas drogas e minas. Brasília: Edições do Senado Federal, 2011.
  • BOSI, A. Dialética da colonização. 3.ed. São Paulo: Cia. das Letras, 1996.
  • CANDIDO, A. Crítica e sociologia. Literatura e sociedade. 9.ed. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2006.
  • DERRIDA, J. Gramatologia. Trad. de M. Schnaiderman e R. J. Ribeiro. São Paulo: Perspectiva, 1973.
  • _______. Espectros de Marx: o Estado da dívida, o trabalho do luto e a nova Internacional. Trad. de A. Skinner. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1994.
  • HEGEL, G. W. F. Fenomenologia do Espírito. 2.ed. Trad. de P. Meneses. Petrópolis: Vozes, 2003.
  • MARX, K. Contribuição à crítica da Economia Política. 2.ed. Trad. de F. Fernandes. São Paulo: Expressão Popular, 2008.
  • NICOLAU, M. F. A. Método e ato filosófico em Hegel. Revista Dialectus, ano 1, n.2, p.8-20, jan./jun. 2013.
  • SCHWARZ, R. Ao vencedor as batatas: forma literária e processo social nos inícios do romance brasileiro. São Paulo: Duas Cidades, 1977.
  • _______. Discutindo com Alfredo Bosi. Revista Novos Estudos, n.36, p.9-22, jul. 1993.

Notas

  • 1
    Como observa Nicolau (2013, p.16), Hegel critica o modelo triádico da dialética kantiana no Prefácio à Fenomenologia do espírito, de modo que “a forma tese-antítese-síntese não deve ser vista sem reservas impostas pelo próprio Hegel”, que por sua vez “não emprega em nenhum lugar essa terminologia para designar sua própria dialética”. Vale notar, porém, que Hegel (2003, p.55, grifos nossos) critica “o uso daquela forma” em Kant, a qual seria “ainda [noch] carente-de-conceito e morta, um esquema sem vida, um verdadeiro fantasma”; sendo que no original o advérbio grifado antecede cada um desses rótulos. Em suma, a dívida de Hegel para com o esquema kantiano parece inegável, embora a superação dialética ou “suprassunção” (Aufhebung) hegeliana, que é o ato de suprimir conservando os termos em conflito em uma síntese superior - de modo que o movimento contraditório não cessa, a não ser na síntese derradeira, o Saber Absoluto -, dê muitas vezes lugar, em seus herdeiros, a subsunções fechadas, mais condizentes com a dialética kantiana.
  • 2
    O que pode ser visto como a explicitação de uma metafísica de origem mas também comporta uma problematização da mesma, já que invocar os poderes da etimologia no contexto de uma concepção social da linguagem, em cujo “corpo” as “relações entre os fenômenos deixam marcas” (Bosi, 1996, p.11), é quase como instaurar um jogo com o arquirrastro ou rastro originário, conceito tão caro à desconstrução quanto “contraditório e inconcebível na lógica da identidade”: pois “se tudo começa pelo rastro”, escreve Derrida (1973, p.75), “acima de tudo não há rastro originário”. Afinal, pouco importa, na economia da exposição de Bosi, se colo é de fato um lugar de origem ou apenas de passagem, até porque seus particípios passado e futuro, cultus e culturus, se dão a conhecer no mesmo passo que ele: é o entrelaçamento semântico entre essas formas lexicais o que realmente interessa, assim como o entrelaçamento, antropologicamente originário ou não, que elas desenham entre as esferas do trabalho, da cultura e do sagrado.
  • 3
    Bosi (1996, grifo nosso) escreve “entre o artista culto e a vida popular”, mas o gesto demandado de fato é do primeiro para com o segundo. Mas isso, aparentemente, porque a recíproca já antecede esse gesto, visto que a “alma amorosa” pertenceria naturalmente à cultura popular. O componente idealizador dessa visão nos parece evidente.
  • 4
    Vorrang des Objects, a precedência ou, na tradução que usamos, o “primado” do objeto “significa o progresso da diferenciação qualitativa daquilo que é mediado em si, um momento na dialética que não se acha para além dela, mas se articula nela”; uma diferenciação, portanto, imanente mas radicalmente alteritária. Mesmo Kant, apesar de nele “o sujeito não ir além de si mesmo”, escreve Adorno (2009, p.159), “não sacrifica [opfert er doch nicht] a ideia de alteridade”, pois sem ela “o conhecimento se degeneraria em tautologia; o conhecido seria o próprio conhecimento”.
  • 5
    Na verdade, Antonil foi tão bem-sucedido em seu trabalho que o Conselho Ultramarino ordenou o recolhimento e a destruição da edição já impressa do livro, por este expor em detalhes assuntos de interesse do reino.
  • 6
    O contraste entre a pulsão proliferante do primeiro capítulo e a sistematizante do último, parcialmente “desconstruída” nos pós-escritos, plasma bem essa oscilação.
  • 7
    Em Espectros de Marx, Derrida (1994) se propõe a invocar a permanência espectral de Marx e do marxismo em um quadro ideológico - o da Europa contemporânea - que supostamente teria se livrado deles, assim como os espectros conceituais que assombrariam os próprios escritos de Marx, expondo suas contradições internas e seus deslizamentos por campos adversários. Trata-se, em suma, de sondar as injunções históricas e coletivas do marxismo no jogo radical de suas disrupções temporais e alteritárias. Mas o que torna essa “espectrologia” propriamente uma “espectropoética” (as duas expressões comparecem no livro) é sobretudo o apelo ao fantasma do rei no Hamlet de Shakespeare como figura dessas disrupções e de uma irredutível, ainda que contraditória, injunção de justiça.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    07 Jul 2023
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2023

Histórico

  • Recebido
    26 Jan 2023
  • Aceito
    04 Maio 2023
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