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Características e evolução dos pacientes tratados com drotrecogina alfa e outras intervenções da campanha "Sobrevivendo à Sepse" na prática clínica

Resumos

JUSTIFICATIVA E OBJETIVOS: Para reduzir a mortalidade da sepse foram sugeridas intervenções agrupadas na campanha "Sobrevivendo à Sepse". O objetivo do estudo foi descrever a aplicação destas intervenções: controle glicêmico, corticóide no choque séptico, inotrópicos e drotrecogina-alfa na sepse. MÉTODO: Foram estudados 110 pacientes com sepse de sete hospitais do Recife/Brasil, que receberam drotrecogina alfa entre 2003/2006. Foram obtidos dados no manuseio da sepse conforme a campanha "Sobrevivendo a Sepse", uso da drotrecogina alfa, mortalidade aos 28 dias e sangramentos intensos. RESULTADOS: O APACHE II médio foi 25,6 e o SOFA médio foi 9,2; 95% dos pacientes apresentaram duas ou mais disfunções orgânicas e 98% apresentavam choque séptico; 56% tinham menos de 65 anos. O foco de infecção mais comum foi abdominal (48%) e respiratório (28%). Utilizou-se hidrocortisona em 61% dos pacientes, e 29(48,3%) morreram. Dos 38 pacientes com choque séptico prolongado que não o receberam, 28(73,7%) faleceram. Cerca de 97 pacientes apresentaram glicemia não controlada, destes, 65% atingiram controle glicêmico estrito e a mortalidade foi 51,6%. O ganho de fluídos variou de 600 ml a 9.400ml nas primeiras 24h. Disfunção miocárdica foi detectada em 30 pacientes. A infusão da drotrecogina-alfa foi iniciada em 24h em 45%, entre 24 e 48h em 35% e após 48h em 20%. Morte ocorreu em 57% e sangramento intenso em 9%. CONCLUSÕES: Observaram-se divergências entre as recomendações da campanha "Sobrevivendo à Sepse" e a prática clínica. A mortalidade foi 57%, similar à encontrada na literatura para pacientes com choque séptico, independente do uso da drotrecogina-alfa.

Choque séptico; drotrecogina alfa; sepse; tratamento


BACKGROUND AND OBJECTIVES: To face the high mortality of sepsis, interventions grouped as "Surviving Sepsis Campaign" have been suggested. The aim of the study was to describe the application of glycemic control, corticoid use in septic shock, inotropics and drotrecogin-alpha in sepsis. METHODS: We studied 110 patients with sepsis from Recife/Brazil, who received drotrecogin-alpha between 2003/2006. Data on management of sepsis considering Surviving Sepsis Campaign, drotrecogin-alpha, mortality at 28 days and severe bleeding were recorded. RESULTS: Mean APACHE II was 25.6 and mean SOFA was 9.2. Around 95% of the patients presented two or more organ dysfunctions and 98% presented septic shock. The majority (56%) were under 65 years. Abdominal (48%) and respiratory (28%) focus of infection were the most prevalent. Hydrocortisone was used in 61% of the patients, and 29 (48.3%) died. Of the 38 patients with prolonged shock that did not receive it, 28 (73.7%) died. Of the 97 patients who presented uncontrolled glycemia only 65% achieved strict glycemic control and the mortality was 51.6%. Fluid gain ranged from 600 ml to 9,400 ml in the first 24h. In only 30 patients was myocardial dysfunction detected. The infusion of drotrecogin alpha started within 24h in 45%, between 24 and 48h in 35% and after 48h in 20%. Death occurred in 57% and severe bleeding in 9%. CONCLUSIONS: Discrepancy between the recommendations of Surviving Sepsis Campaign and clinical practice was observed. Death rate was 57%, similar to that found in the literature for septic shock irrespective of the use of drotrecogin-alpha.

drotrecogin alpha; sepsis; septic shock; treatment


ARTIGO ORIGINAL

Características e evolução dos pacientes tratados com drotrecogina alfa e outras intervenções da campanha "Sobrevivendo à Sepse" na prática clínica* * Recebido da Pós-Graduação em Medicina Tropical da Universidade Federal de Pernambuco, Recife, PE, Brasil

Cristiano Augusto HecksherI, III; Heloisa Ramos LacerdaI, II; Maria Amélia MacielI, II

IPós-Graduação em Medicina Tropical da UFPE

IIUnidade de Terapia Intensiva Geral do Hospital Esperança, Recife, PE

IIIUnidade de Terapia Intensiva do Hospital Português, Recife, PE

Endereço para correspondência Endereço para correspondência: Dr. Cristiano Augusto Hecksher R. Estrela, nº 100/2301, Parnamirim 52060-160 Recife PE, Brasil Fone: +55 81 34413655 Fax: +55 81 21268527 E-mail: cristianohecksher@hotmail.com; helramos@terra.com.br

RESUMO

JUSTIFICATIVA E OBJETIVOS: Para reduzir a mortalidade da sepse foram sugeridas intervenções agrupadas na campanha "Sobrevivendo à Sepse". O objetivo do estudo foi descrever a aplicação destas intervenções: controle glicêmico, corticóide no choque séptico, inotrópicos e drotrecogina-alfa na sepse.

MÉTODO: Foram estudados 110 pacientes com sepse de sete hospitais do Recife/Brasil, que receberam drotrecogina alfa entre 2003/2006. Foram obtidos dados no manuseio da sepse conforme a campanha "Sobrevivendo a Sepse", uso da drotrecogina alfa, mortalidade aos 28 dias e sangramentos intensos.

RESULTADOS: O APACHE II médio foi 25,6 e o SOFA médio foi 9,2; 95% dos pacientes apresentaram duas ou mais disfunções orgânicas e 98% apresentavam choque séptico; 56% tinham menos de 65 anos. O foco de infecção mais comum foi abdominal (48%) e respiratório (28%). Utilizou-se hidrocortisona em 61% dos pacientes, e 29(48,3%) morreram. Dos 38 pacientes com choque séptico prolongado que não o receberam, 28(73,7%) faleceram. Cerca de 97 pacientes apresentaram glicemia não controlada, destes, 65% atingiram controle glicêmico estrito e a mortalidade foi 51,6%. O ganho de fluídos variou de 600 ml a 9.400ml nas primeiras 24h. Disfunção miocárdica foi detectada em 30 pacientes. A infusão da drotrecogina-alfa foi iniciada em 24h em 45%, entre 24 e 48h em 35% e após 48h em 20%. Morte ocorreu em 57% e sangramento intenso em 9%.

CONCLUSÕES: Observaram-se divergências entre as recomendações da campanha "Sobrevivendo à Sepse" e a prática clínica. A mortalidade foi 57%, similar à encontrada na literatura para pacientes com choque séptico, independente do uso da drotrecogina-alfa.

Unitermos: Choque séptico, drotrecogina alfa, sepse, tratamento

INTRODUÇÃO

A sepse grave é uma síndrome clínica deflagrada pela presença de agentes infecciosos em tecidos estéreis, caracterizada por intensa atividade inflamatória, especialmente em sua fase mais precoce, e ativação do sistema de coagulação1-4. Neste contexto, estudos clínicos testaram a hipótese de que a utilização de anticoagulantes endógenos, com propriedades anti-inflamatórias, poderiam ser efetivos no tratamento da sepse, equilibrando a resposta inflamatória e recuperando a homeostase5. A partir de então, três fatores foram estudados: antitrombina III, inibidor da via do fator tecidual e proteína C2,5. As duas primeiras opções obtiveram resultados frustrantes em estudos de fase III6,7 e apenas proteína-C (ativada) se mostrou eficaz ao reduzir o risco relativo de óbito em 20%8.

O uso da drotrecogina alfa ativada foi aprovado para a prática clínica em 2001 pela agência fiscalizadora americana, a Food and Drug Administration (FDA) e a européia, European Agency for the Evaluation of Medicinal Products (EMEA). Em 2004, Campanha Sobrevivendo à Sepse9 incluiu o uso de proteína-C ativada entre suas recomendações. Esta campanha objetiva normatizar as condutas na sepse grave e no choque séptico com o objetivo de diminuir a mortalidade. No entanto, mais recentemente, críticas ao uso da drotrecogina alfa (ativada) e à própria "Campanha Sobrevivendo à Sepse", foram publicadas em prestigiosas revistas médicas, questionando a real eficácia da proteína-C ativada10-12. Como a realização de novo estudo clínico, comparando proteína-C ativa ao placebo, pode não ser factível por questões éticas, uma forma de obter dados sobre a drotrecogina alfa (ativada) são os trabalhos que utilizam informações provenientes da prática clínica diária. Há também a importância de se conhecer dados regionais, que permitam comparação crítica com as práticas mundiais e de outras regiões com situação sócio-econômica, cultural e genética diversa.

O objetivo deste estudo foi descrever as características clínicas dos pacientes que receberam drotrecogina alfa, incluindo indicações, tempo entre disfunção orgânica e início da medicação, mortalidade aos 28 dias e as complicações associadas ao medicamento. Um objetivo secundário foi descrever a aplicação prática de condutas terapêuticas como controle da glicemia, uso de corticóide em pacientes com choque séptico, uso de inotrópicos positivos na disfunção miocárdica da sepse e reposição hídrica vigorosa em pacientes com sepse grave submetidos ao uso de drotrecogina alfa.

MÉTODO

O presente estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa Médica do Hospital Agamenon Magalhães da Secretaria de Saúde do Estado de Pernambuco e registrado na Comissão Nacional de Ética em Pesquisa do Conselho Nacional de Saúde do Ministério da Saúde sob o número FR 93597.

Trata-se de um estudo do tipo série de casos. As informações foram obtidas pelo preenchimento de um formulário com dados extraídos dos prontuários médicos de pacientes internados em hospitais da região metropolitana da cidade do Recife que receberam drotrecogina alfa (ativada), no período de janeiro de 2003 a outubro de 2006.

Segundo informações do fabricante, na região metropolitana da cidade do Recife foram adquiridos 119 tratamentos da drotrecogina alfa (ativada) neste período. Foram analisados os prontuários de 110 destes pacientes. Destes, três pacientes não iniciaram a infusão da drotrecogina alfa (ativada), três prontuários não apresentavam condições de se obter as informações minimamente necessárias, dois pacientes tiveram infusão do fármaco suspenso por ordem do médico assistente e dois pacientes estavam recebendo o fármaco pela segunda vez na mesma internação, sendo então considerada apenas a primeira utilização. Desta forma, dados de 100 pacientes foram utilizados para a análise. Os pacientes foram oriundos de sete hospitais da região metropolitana do Recife, sendo 99 pacientes originários de seis hospitais privados terciários e um paciente proveniente de hospital público terciário.

Todos os pacientes utilizaram drotrecogina alfa (ativada) na dose de 24 g/kg/h com intenção de completar 96h de infusão em unidade de terapia intensiva (UTI). O tratamento foi indicado pela equipe médica da unidade e/ou do médico assistente.

Dados demográficos, clínicos, diagnóstico de admissão, co-morbidades (diabete melito, cardiopatia, obesidade, neoplasia maligna, insuficiência renal crônica, doença hepática crônica, doença pulmonar obstrutiva crônica, síndrome da imunodeficiência adquirida, trombofilia) foram coletados. Além destes dados, os pacientes foram classificados como clínico ou cirúrgico (submetido a qualquer procedimento cirúrgico no período). Foco da infecção (pulmonar, urinário, abdominal, pele e subcutâneo, corrente sanguínea), agente etiológico, se infecção nosocomial (iniciada com mais de 48h de internação hospitalar), presença de choque séptico (com uso de fármacos vasoativos), disfunção miocárdica aguda (documentada por ecocardiograma ou cateter em artéria pulmonar), dosagem de lactato (mmol/L) no início e término do fármaco, e distúrbio de coagulação (plaquetopenia < 100.000/µL, elevação de duas vezes o basal do INR na ausência de fármaco que justifique, TTPA duas vezes maior que o basal, na ausência de uso concomitante de medida que justifique a alteração) também foram coletados.

Os escores APACHE II13 e SOFA14 foram mensurados, tendo por base as 24h que precederam o início da infusão. No cálculo do APACHE II e do SOFA para variáveis não medidas no dia específico foram considerados os valores das 24h anteriores e todos os dados laboratoriais e clínicos não informados foram registrados como normais. Para avaliação do estado neurológico pela escala de Glasgow nos pacientes sedados foi definido o estado anterior à sedação.

Dados relacionados à terapêutica como tempo decorrido entre a documentação da primeira falência orgânica (pelo SOFA) e início do fármaco, uso de insulina contínua quando de descontrole glicêmico (quando mais de duas dosagens de glicemia resultaram maiores do que 150mg% nas 24h) com o objetivo de manter os níveis de glicemia entre 80 e 150 mg%, uso de hidrocortisona por via venosa (100 mg de 8/8h ou 50 mg de 6/6h) para tratamento do choque, diferença entre ganhos e perdas de fluidos nas primeiras 24h de choque séptico, se a drotrecogina alfa (ativada) foi interrompida temporariamente e se completou 96h de infusão foram capturados.

Informações sobre sangramento grave, definido como hemorragia intracraniana, necessidade de três ou mais concentrados de hemácias ao dia por dois dias consecutivos, ou sangramento que acarrete risco de morte definido como tal pelo médico assistente ou equipe da UTI foram registradas. O período observado para sangramento incluiu o início da infusão da drotrecogina alfa (ativada) até 24h após sua suspensão definitiva. Por fim, a mortalidade aos 28 dias após a infusão do fármaco foi registrada.

As definições de infecção foram baseadas nos critérios do National Nosocomial Infection Surveillance System (NNISS) e no diagnóstico dos médicos assistentes. Foi considerada sepse grave a presença de sepse associada à disfunção orgânica, hipoperfusão ou hipotensão. Os principais sinais de hipoperfusão foram a acidose láctica, a oligúria e as alterações agudas do estado mental. Definiu-se choque séptico como a presença de sepse induzindo hipotensão não responsiva a reanimação hídrica adequada com sinais de hipoperfusão ou o uso de fármacos vasopressores15.

Para as análises estatísticas, tomando por base o desfecho, óbito ou vivo aos 28 dias, os pacientes foram divididos em dois grupos, com o objetivo de identificar potenciais fatores prognósticos. As variáveis contínuas tiveram suas médias avaliadas para sua relação com o desfecho pelo teste t de student e as variáveis categóricas foram comparadas através do teste de Qui-quadrado de Pearson ou Exato de Fisher. A identificação de possíveis fatores de risco para o desfecho foi realizada através de três etapas. Na primeira, foi avaliada a possível associação entre cada fator isolado e o desfecho, antes as variáveis contínuas foram categorizadas. Na segunda etapa foi escolhido o modelo inicial de regressão logística, composta por todos os fatores que, na primeira etapa, apresentaram um nível de significância observado (valor de p) menor que 0,20, conforme recomendação de Hosmer e Lemeshow. Na terceira etapa, utilizou-se o método stepwise, para identificar o modelo final de regressão, ou seja, identificar os fatores de risco que apresentaram associação conjunta e individual com o desfecho. Na análise dos dados foi utilizado o software Stata 9.2 SE.

RESULTADOS

Cinqüenta e três por cento dos pacientes eram do sexo feminino e 56% tinham idade menor do que 65 anos. O foco abdominal foi o mais freqüente com 48%, seguido do respiratório com 28%, urinário com 11% e pele e subcutâneo com 9%. Trinta e três por cento das infecções foram de origem nosocomial. Cinqüenta e dois por cento dos pacientes eram cirúrgicos. Entre as co-morbidades destacaram-se cardiopatias (27%), diabete melito (24%), obesidade (13%), neoplasia maligna (9%), neoplasia maligna "não controlada" (6%), e insuficiência renal crônica (6%) (Tabela 1).

O escore APACHE II médio foi de 25,6 ± 4,7 e o escore SOFA médio foi de 9,2 ± 2,5. Cerca de 95% dos pacientes apresentou duas ou mais disfunções orgânicas quando do início da infusão. Choque séptico com uso de fármacos vasoativos ocorreu em 98% dos pacientes e insuficiência respiratória com uso de ventilação mecânica em 97%. Distúrbio de coagulação ocorreu em 56% dos pacientes (Tabela 2).

Em 38 pacientes o agente causador da sepse foi identificado, sendo 52,6% bactérias gram- negativas, 36,8% bactérias gram-positivas, e 10,5% fungos.

Dos trinta pacientes que tiveram disfunção miocárdica aguda atribuída à sepse, todos fizeram uso de dobutamina como fármaco inotrópico positivo. Dos 98 pacientes com choque séptico em uso de fármacos vasoativos apenas 60 (61%) utilizaram hidrocortisona nas doses de 200 ou 300 mg ao dia, dividido em quatro ou três doses. Destes, 29 (48,3%) morreram. Dos 38 pacientes com indicação, mas que não receberam hidrocortisona, 28 (73.7%) foram a óbito.

Noventa e sete pacientes apresentaram descontrole glicêmico, destes apenas 62 (63.9%) tiveram controle rígido da glicemia com uso de insulina por via venosa. Neste grupo 32 (51.6%) faleceram. Dos 35 pacientes que tinham indicação, mas não foram submetidos ao controle rígido da glicemia, 22 (62.9%) faleceram.

A diferença entre ganhos e perdas de fluidos (delta H) nas primeiras 24h de choque séptico foi positiva em 4320 ± 2035 mL, tendo variado de 600 a 9400 mL em 24h. Não houve diferença estatística entre as médias de delta H entre sobreviventes e não sobreviventes (Tabela 4).

O tempo decorrido entre a primeira falência e o início da drotrecogina alfa (ativada) foi menor ou igual a 24h em 45% dos casos, maior do que 24h e menor ou igual a 48h em 35% e maior do que 48h em 20%. A média de tempo entre a primeira falência orgânica e o início da terapia com drotrecogina alfa (ativada) foi maior no grupo dos que evoluíram para óbito (Tabela 4).

Apenas 62% dos pacientes completaram as 96h preconizadas de infusão total da drotrecogina alfa (ativada) (Tabela 4), sendo que dos 38 pacientes que não completaram, a grande maioria (34 pacientes) foi por terem falecido durante a infusão e apenas quatro pacientes tiveram a suspensão do fármaco relacionado a outras causas (dois por distúrbio de coagulação e dois por sangramento).

Houve sangramento classificado como grave em nove pacientes (9%). Cinco destes pacientes eram cirúrgicos. Ocorreram dois óbitos relacionados a sangramento, ambos no grupo cirúrgico (Tabela 5).

Desfecho para óbito ocorreu em 57% dos pacientes. Ao serem retirados os 20 pacientes que iniciaram a drotrecogin alfa (ativada) com mais de 48h da primeira falência orgânica, a taxa de mortalidade atingiu 52.5%. Dos 57 óbitos, 55 foram diretamente relacionados à sepse. Dois pacientes morreram em decorrência de sangramento.

A análise estatística das variáveis isoladas com relação ao risco de morte mostrou diferença significativa em: a média e o quarto quartil do APACHE II, segundo, terceiro e quarto quartiles do SOFA, o maior número de falências orgânicas, níveis maiores do que 2,5 mmol/L de lactato inicial e final, a não utilização do corticóide para tratamento do choque séptico e a presença de distúrbio de coagulação (Tabela 4).

Na análise multivariada foi observado que o lactato final (ao final da infusão da drotrecogina alfa ativada) maior do que 2,5 mmol/L, está relacionado ao desfecho desfavorável com OR ajustado de 11,5 (IC 95% de 2,6 a 51,6) e p = 0,001. Também foi observado maior risco de morte nos pacientes clínicos com OR ajustado de 4,8 (IC 95% de 1,1 a 21,3) e p = 0,04. Todas as outras variáveis não apresentaram diferença estatística significativa.

DISCUSSÃO

A primeira constatação do presente estudo é a dissociação entre as recomendações da Campanha Sobrevivendo à Sepse e a sua utilização na prática médica como por exemplo, a constatação de que condutas simples e que sabidamente reduzem a mortalidade, como a reposição precoce de fluídos, não são implementadas. A segunda constatação é a de que a mortalidade dos pacientes com sepse grave submetidos à drotrecogina alfa ativada nas condições habituais da prática médica é elevada, pois a mortalidade dos pacientes tratados atingiu níveis de 57%. A mortalidade identificada no presente estudo foi semelhante à detectada por choque séptico no Brasil por Silva e col. (52,2%)16 e por Sales Jr. e col. (65,3%)17, nos Estados Unidos por Alberti e col. 2003 (60%)18 e na Europa por Vincent e col. 200619, independentemente da utilização da drotrecogina alfa ativada.

Poder-se-ia argumentar que os maus resultados da utilização da drotrecogina alfa ativada decorreu do fato dos pacientes do presente estudo apresentarem elevada gravidade, representada por elevada freqüência de choque séptico e insuficiência ventilatória e pela utilização de critérios de exclusão diferentes dos utilizados nos estudos PROWESS e ENHANCE8,20,21. Além disso, uma parcela considerável dos pacientes iniciou o tratamento após o período recomendado de 48h após o início da sepse. Poder-se-ia também argumentar que muitos pacientes eram cirúrgicos, o que poderia ter retardado a indicação da terapia e, finalmente, que nem todas as recomendações da Campanha Sobrevivendo à Sepse9 foram implementadas. Entretanto, fortes argumentos contra estas críticas incluem a recomendação de que a medicação seria ainda mais benéfica para os pacientes mais graves, a exclusão dos pacientes com início da utilização após 48 horas fez a mortalidade permanecer em níveis elevados (52,5%), a utilização do fármaco nos pacientes cirúrgicos não retardou a sua utilização e a freqüência de sangramentos neste grupo não foi maior do que nos pacientes clínicos. A maior freqüência do foco abdominal identificada no estudo contribuiria para melhor resposta terapêutica, visto que a maior mortalidade é observada nas infecções respiratórias. Avaliando os critérios de exclusão dos estudos PROWESS8 e ENHANCE20 observaram-se que cerca de 14% de pacientes do presente estudo estariam excluídos destes grandes estudos tais como paciente com transplante de fígado, neoplasia maligna "não controlada", gestação, insuficiência renal crônica em tratamento dialítico e paciente com alto risco de sangramento (traumatismo cranioencefálico). A diferença entre as populações das amostras dos grandes trabalhos e da prática diária já foi apontada por alguns autores22. Finalmente, a falta de adoção das medidas recomendadas na Campanha Sobrevivendo à Sepse não é exclusividade do presente estudo, e já foi descrita por outros autores23.

Os resultados da utilização da drotrecogina alfa ativada no presente estudo vão ao encontro de dois estudos que avaliaram a sua eficácia na prática diária na Itália24 e no Canadá25, que mostraram mortalidade de 46,4% e 45% respectivamente. Estes dois estudos também mostraram mortalidade mais elevada do que a descrita nos estudos PROWESS8 e ADRESS21.

O presente estudo demonstrou maior ocorrência de sangramento severo (9%), do que o descrito no estudo PROWESS (3,5%)8, ENHANCE (3,6%)20 e ADRESS (2,4%)21 e muito semelhante aos estudos italiano (10,9%)24 e canadense (10%)25. A causa desta diferença não pareceu decorrer do número proporcionalmente maior de pacientes cirúrgicos no nosso estudo, reconhecidamente mais propensos a sangramentos26, pois a proporção de sangramento entre pacientes cirúrgicos (9,6%) foi semelhante à dos pacientes clínicos (8,3%).

Quanto à implementação das outras condutas preconizadas para o tratamento da sepse, a Campanha Sobrevivendo a Sepse de 20049 preconizava o uso de insulina contínua para manter os níveis de glicemia menores do que 150 mg%, com monitorização freqüente a fim de evitar hipoglicemia. A gravidade dos nossos pacientes aponta para uma permanência maior do que três ou cinco dias de internamento em unidade de cuidados intensivos, estando assim no grupo com maior benefício com uso de esquema para controle rígido da glicemia27. Chama a atenção que apenas 63,9% dos pacientes com indicação estavam sob uso da insulina. A falta de associação entre a utilização da insulina e o desfecho favorável pode estar relacionado ao número reduzido de casos avaliados e/ou a não operacionalização completa do protocolo (uso de doses baixas de insulina levando a maior tempo para o controle glicêmico) ou à ausência de benefício real desta intervenção nos pacientes sépticos. Este questionamento foi trazido à tona pelo estudo VISEP28 que concluiu que o uso da insulina contínua nos pacientes críticos com sepse aumentou o risco de eventos adversos graves relacionados à hipoglicemia.

Vários estudos mostraram que doses baixas de hidrocortisona em pacientes com choque séptico em uso de fármacos vasoativos provocavam melhora significativa na hemodinâmica com efeito benéfico também na sobrevida29-31 baseados no conceito da insuficiência adrenal relativa no choque séptico. Assim a Campanha Sobrevivendo a Sepse de 20049 recomendava o uso de 200 a 300 mg de hidrocortisona ao dia, em pacientes com choque séptico. Os dados conflitantes do estudo CORTICUS32 que não evidenciou benefícios no uso do corticóide no choque séptico resultou em modificações introduzidas na nova edição da Campanha Sobrevivendo à Sepse de 200833, sugerindo considerar (ao invés de indicar claramente) o uso de hidrocortisona intravenosa para adultos com choque séptico quando a hipotensão responder pobremente à reposição hídrica adequada e vasopressores. Dos nossos 98 pacientes com choque séptico em uso de fármacos vasoativos apenas 60 (61%) utilizaram hidrocortisona nas doses preconizadas. Nos que utilizaram o corticóide a mortalidade foi de 48,3%, nos que não utilizaram a mortalidade foi de 70%. Na avaliação da possível associação de cada fator isolado e o desfecho para óbito o não uso de corticóide foi significativamente associado ao óbito, porém na análise multivariada esta diferença não foi confirmada. Este resultado muito provavelmente se deveu ao número reduzido de pacientes em nossa amostra. Outro dado importante foi a freqüência relativamente baixa (61%) da utilização da hidrocortisona no choque séptico em nossa amostra, o que pode ser devido às dúvidas ainda existentes quanto a sua efetividade e riscos.

Cerca de 40% a 50% dos pacientes com sepse grave têm alguma forma de disfunção aguda do ventrículo esquerdo34-36. Há consenso de que a disfunção miocárdica esta relacionada à pior sobrevida dos pacientes com sepse grave ou choque séptico37, sendo preconizado o uso da dobutamina para melhorar o desempenho ventricular9. No presente estudo cerca de 30% dos pacientes (todos com choque séptico) apresentaram disfunção miocárdica documentada por ecocardiograma ou cateteres em artéria pulmonar e fizeram uso de dobutamina. Pode-se questionar a porcentagem relativamente pequena de disfunção miocárdica quando observada a gravidade do grupo e o alto índice de mortalidade. Acredita-se que possa decorrer do baixo número de cateteres de artéria pulmonar utilizado bem como da não realização de rotina do ecocardiograma para pacientes com choque séptico.

O estudo de Rivers e col.38 demonstrou a importância da reposição hídrica para pacientes com sepse grave, baseada em objetivos (pressão venosa central de 8 a 12 mmHg, pressão arterial média de > 65 mmHg, débito urinário > a 0,5 mL/kg/h e saturação venosa central > 70%) mostrou também a relevância da reposição precoce (primeiras 6h). Este estudo só avaliou o delta hídrico total das primeiras 24h de choque séptico, o que dificulta a comparação com a estratégia de reposição hídrica agressiva e precoce preconizada por Rivers e col. em 2001 e pela campanha Sobrevivendo a Sepse de 20049. O que pode ser observado é a grande variação com ganhos hídricos nas 24h que oscilaram de 600 a 9400 mL. Esta amplitude de valores tanto pode estar relacionada à heterogeneidade dos pacientes da amostra, como também a uma falta de padronização na condução de reposição hídrica.

O desenho de estudo possui intrinsecamente vieses de seleção e de confundimento, por envolver pequenos grupos extremamente selecionados. Devido ao caráter retrospectivo apresenta pouco valor para estudo de prognóstico e relação de causa e efeito. A obtenção de dados de prontuários resulta na utilização das impressões e dados registrados por terceiros em momentos passados sem o compromisso de seguirem protocolos, acarretando risco de perda e vieses de interpretação. A falta do grupo controle para comparação, dificulta conclusões. E, finalmente a ausência de resultados estatisticamente significantes pode decorrer do número reduzido de casos avaliados. Apesar desses vieses o trabalho conseguiu reunir um número considerável de pacientes com sepse grave tratados com a drotrecogina alfa ativada, em condições habituais de tratamento em unidades de terapia intensiva ou seja, da "vida real".

Os resultados do presente estudo, somados às publicações recentes, trazem importantes questionamentos relacionados ao uso da drotrecogina alfa ativada e os riscos da sua utilização na prática médica "diária". Trazem também o questionamento sobre quanto os pacientes estão se beneficiando de estratégias terapêuticas relativamente novas e de baixo custo que apontam para benefícios tais como o tratamento da disfunção miocárdica da sepse e a reposição hídrica vigorosa.

Apresentado 10 de Março de 2008

Aceito para publicação em 13 de junho de 2008.

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  • Endereço para correspondência:
    Dr. Cristiano Augusto Hecksher
    R. Estrela, nº 100/2301, Parnamirim
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    E-mail:
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    Recebido da Pós-Graduação em Medicina Tropical da Universidade Federal de Pernambuco, Recife, PE, Brasil
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      15 Jul 2008
    • Data do Fascículo
      Jun 2008

    Histórico

    • Aceito
      13 Jun 2008
    • Recebido
      10 Mar 2008
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