Open-access Perfil de coagulação em pacientes com COVID-19 grave: o que sabemos até aqui?

Pacientes com casos graves da doença por coronavírus 2019 (COVID-19) podem apresentar comprometimento de um único órgão, porém alguns deles progridem para outras disfunções sistêmicas ou falência de múltiplos órgãos. Um dos mais importantes marcadores de mau prognóstico em tais pacientes é o desenvolvimento de coagulopatias. Esses pacientes críticos podem ter parâmetros de coagulação anormais, o que, por sua vez, pode levar a uma hipercoagulabilidade e aumentar o risco de eventos tromboembólicos. Igualmente, pacientes com COVID-19 grave têm sido associados com a ocorrência de coagulação intravascular disseminada (CIVD) e maior risco de óbito.(1)

Em publicação recente, Tang et al.(2) avaliaram retrospectivamente o perfil de coagulação em 183 pacientes com pneumonia pelo novo coronavírus (tanto sobreviventes quanto não sobreviventes). Quando da admissão, os não sobreviventes tinham níveis mais elevados de dímero D, produtos da degradação de fibrina e tempo de protrombina do que os pacientes sobreviventes. Mais ainda, os autores identificaram que 71,4% dos não sobreviventes tinham critérios para diagnóstico de CIVD. Adicionalmente, os não sobreviventes tinham níveis mais baixos de fibrinogênio e antitrombina (AT) durante o período final de sua hospitalização.

Em outro estudo retrospectivo, Llitjos et al.(3) triaram 26 pacientes com COVID-19 grave quanto à presença de tromboembolismo venoso em duas unidades de terapia intensiva (UTIs) pela utilização de ultrassonografia desde a coxa até o tornozelo. Apesar de todos os pacientes estarem em uso de anticoagulação, seja profilática ou terapêutica, a incidência de trombose venosa profunda foi de 53,8%, tendo sido identificada embolia pulmonar em 23% dos casos. Além disso, os autores encontraram tromboembolismo venoso em 56% e embolia pulmonar em 33% dos pacientes submetidos à anticoagulação terapêutica por ocasião da admissão à UTI. Embora nesses pacientes tenham se avaliado os níveis de fibrinogênio, dímero D e contagens de plaquetas, os níveis de AT não foram avaliados.

Um estudo observacional prospectivo analisou o perfil de coagulação em pacientes com COVID-19 grave e avaliou a melhora de estados de hipercoagulabilidade após a implantação de um protocolo de tromboprofilaxia. Nesse estudo, Ranucci et al.(4) relataram o perfil de coagulação de 16 pacientes. Quando da admissão à UTI, todos estavam em uso profilático de heparina de baixo peso molecular (HBPM). Com base no protocolo, a dose de HBPM poderia ser aumentada, e os níveis de AT seriam corrigidos se abaixo de 70%. Além disso, seria possível acrescentar clopidogrel, caso a contagem de plaqueta estivesse acima de 400.000/µL. É digno de nota que 25% desses pacientes tinham níveis baixos de AT. Após o ajuste da dose de anticoagulantes baseado nos exames convencionais de coagulação e nos testes viscoelásticos que sugeriram hipercoagulabilidade, os autores concluíram que o perfil de coagulação tendeu à normalização.

Mais ainda, Panigada et al.(5) avaliaram 24 pacientes com COVID-19 entubados na UTI e avaliaram seus perfis de coagulação e de tromboelastografia. Os autores observaram que os valores K e R eram, respectivamente, 50% e 83% menores nos pacientes com COVID-19. Igualmente, o ângulo K e os valores de amplitude máxima foram, respectivamente, 72% e 83% maiores nesses pacientes, o que sugere um estado hipercoagulável. Além disso, os níveis de fibrinogênio, dímero D, fator VIII e antígeno do fator de Von Willebrand estavam aumentados. Por outro lado, os níveis de AT estavam diminuídos.

A CIVD na sepse é uma resposta inflamatória aguda, que leva à lesão endotelial e tissular e, finalmente, à falência de múltiplos órgãos. Dessa maneira, a identificação de pacientes com coagulopatia é de grande importância para definir quanto ao início ou à não terapia anticoagulante. A eficácia da anticoagulação para a CIVD associada à sepse ainda é controvertida. Segundo as orientações da International Society of Thrombosis and Haemostasis (ISTH), as HBPM são consideradas superiores à heparina não fracionada para o tratamento de trombose e a profilaxia de trombose venosa, embora não suportado por evidência de alta qualidade.(6)

Em um estudo retrospectivo, Tang et al.(7) avaliaram os perfis de coagulação e os desfechos de 449 pacientes com COVID-19 grave. Analisou-se, também, a mortalidade aos 28 dias entre pacientes que usaram e os que não utilizaram heparina. Receberam heparina por pelo menos 7 dias 99 pacientes (22%) e, destes, 97 (21,6%) cumpriram os critérios para coagulopatia induzida por sepse (CIS). Os autores avaliaram a associação entre a terapia com heparina e os desfechos, segundo o escore de CIS, e observaram que o tratamento com heparina se associou com taxas mais baixas de mortalidade em pacientes com escores de CIS ≥ 4, o que não foi observado para pacientes com escore de CIS < 4. Mais ainda, os autores observaram redução de 20% na mortalidade entre os que utilizaram heparina nos casos em que a dosagem de dímero D foi superior a 3µg/mL.

Convém mencionar que o exame de dímero D tem seu uso restrito a afastar a presença de trombose, já que tem baixa especificidade e elevada sensibilidade, sendo, portanto, propenso a fornecer resultados falsos-positivos.(8) Mais ainda, um teste negativo de dímero D pode ser utilizado no processo decisório para descontinuação da terapia anticoagulante em pacientes com tromboembolismo venoso; esta abordagem, contudo, ainda é discutível, sendo necessário que se realizem outros estudos para validar essa proposta.(9)

A CIVD é uma síndrome adquirida, que se caracteriza pela ativação intravascular da coagulação, a qual pode decorrer de diferentes causas. Pode causar dano à microvasculatura que, se suficientemente grave, pode provocar disfunção de órgãos. Embora a causa possa ser variável, a ativação da coagulação sistêmica é um fenômeno frequentemente observado na CIVD.(10)

O diagnóstico de CIVD em pacientes críticos é realizado com utilização de testes convenionais de coagulação, os quais podem determinar apenas 5% da geração de trombina e não são apropriados para discriminar entre pacientes com estados protrombóticos e os com maior risco de sangramento. Por outro lado, os testes viscoelásticos avaliam toda a formação do coágulo e sua degradação, sendo capazes de caracterizar se o paciente tem um estado hipo ou hipercoagulável, o que os torna uma boa ferramenta para manejo da CIVD.(11)

O perfil de coagulação em casos graves de COVID-19 é complexo e pode ter diferentes quadros. Muitos desses pacientes podem ter um estado hipercoagulável em razão da resposta inflamatória, comorbidades, imobilização, uso de ventilação mecânica e/ou oxigenação por membrana extracorpórea. Um ponto-chave nesses pacientes é definir as melhores estratégias de exames, para avaliar o risco de um evento troboembólico.

Embora os estudos clínicos possam sugerir a ocorrência de um estado protrombótico em pacientes com COVID-19 grave, até aqui os dados são insuficientes para dar suporte ao uso sistemático de anticoagulação terapêutica nesses pacientes. Neste momento, sugerimos que se realizem mais estudos com foco nos testes de coagulação para promover melhor compreensão do perfil de coagulação em pacientes com COVID-19 grave, melhor avaliação dos riscos relacionados a coagulopatia e adequado suporte com relação a anticoagulação terapêutica.

REFERÊNCIAS

  • 1 Thachil J, Tang N, Gando S, Falanga A, Cattaneo M, Levi M, et al. ISTH interim guidance on recognition and management of coagulopathy in COVID-19. J Thromb Haemost. 2020;18(5):1023-6.
  • 2 Tang N, Li D, Wang X, Sun Z. Abnormal coagulation parameters are associated with poor prognosis in patients with novel coronavirus pneumonia. J Thromb Haemost. 2020;18(4):844-7.
  • 3 Llitjos JF, Leclerc M, Chochois C, Monsallier JM, Ramakers M, Auvray M, et al. High incidence of venous thromboembolic events in anticoagulated severe COVID-19 patients. J Thromb Haemost. 2020 Apr 22. [Epub ahead of print].
  • 4 Ranucci M, Ballotta A, Di Dedda U, Bayshnikova E, Dei Poli M, Resta M, et al. The procoagulant pattern of patients with COVID-19 acute respiratory distress syndrome. J Thromb Haemost. 2020 Apr 17. [Epub ahead of print].
  • 5 Panigada M, Bottino N, Tagliabue P, Grasselli G, Novembrino C, Chantarangkul V, et al. Hypercoagulability of COVID-19 patients in Intensive Care Unit. A Report of Thromboelastography Findings and other Parameters of Hemostasis. J Thromb Haemost. 2020 Apr 17. [Epub ahead of print].
  • 6 Iba T, Levy JH, Warkentin TE, Thachil J, van der Poll T, Levi M; Scientific and Standardization Committee on DIC, and the Scientific and Standardization Committee on Perioperative and Critical Care of the International Society on Thrombosis and Haemostasis. Diagnosis and management of sepsis-induced coagulopathy and disseminated intravascular coagulation. J Thromb Haemost. 2019;17(11):1989-94.
  • 7 Tang N, Bai H, Chen X, Gong J, Li D, Sun Z. Anticoagulant treatment is associated with decreased mortality in severe coronavirus disease 2019 patients with coagulopathy. J Thromb Haemost. 2020;18(5):1094-9.
  • 8 Longstaff C. Measuring fibrinolysis: from research to routine diagnostic assays. J Thromb Haemost. 2018;16(4):652-62.
  • 9 Tritschler T, Kraaijpoel N, Le Gal G, Wells PS. Venous Thromboembolism: Advances in Diagnosis and Treatment. JAMA. 2018;320(15):1583-94. Erratum in JAMA. 2018;320(23):2486.
  • 10 Iba T, Levi M, Levy JH. Sepsis-Induced Coagulopathy and Disseminated Intravascular Coagulation. Semin Thromb Hemost. 2020;46(1):89-95.
  • 11 Müller MC, Meijers JC, van Meenen DM, Thachil J, Juffermans NP. Thromboelastometry in critically ill patients with disseminated intravascular coagulation. Blood Coagul Fibrinolysis. 2019;30(5):181-7.

Editado por

  • Editor responsável: Felipe Dal-Pizzol

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    24 Jun 2020
  • Data do Fascículo
    Apr-Jun 2020

Histórico

  • Recebido
    08 Maio 2020
  • Aceito
    16 Maio 2020
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