Resumos
Este artigo tem por objetivo analisar a evolução recente da estrutura do setor bancário brasileiro e o ciclo recente do crédito no Brasil, focalizando em especial no desempenho e no papel dos bancos públicos, em particular os grandes bancos federais - BN-DES, Banco do Brasil e CEF. Em particular, destaca-se o papel contracíclico dos bancos públicos no mercado de crédito, além de sua importância no desenvolvimento de algumas linhas de financiamento de mais longo prazo, como financiamento do investimento, crédito agrícola e crédito habitacional. A ênfase do estudo se dá no período pós-real e no boom recente do crédito, ou seja, o período 2003-2009.
intermediação financeira; bancos públicos; economia brasileira
This paper aims at analyzing the development of the Brazilian banking sector and the recent credit cycle in Brazil, focusing on the role and performance of state-owned- banks, particularly the large federal banks, BNDES, Banco do Brasil and the CEF. This paper stresses mainly the contra-cyclical role of such banks in the credit market in Brazil, as well as their crucial role in the development of long-term financing in the Brazilian economy (investment financing , rural credit and real estate credit). The emphasis of the study is on the post-Real and the recent credit boom, i.e. during the 2003-2009 period.
financial intermediation; stateowned banks; brazilian economy
Estrutura do setor bancário e o ciclo recente de expansão do crédito: o papel dos bancos públicos federais
Luiz Fernando de PaulaI; José Luis OreiroII; Flavio A. C. BasilioIII
IProfessor titular da Faculdade de Ciências Econômicas da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (FCE/UERJ), pesquisador Nível I do CNPq
IIProfessor adjunto do Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IE/UFRJ)), pesquisador Nível I do CNPq
IIIDoutor em Economia pela Universidade de Brasília (UnB)
RESUMO
Este artigo tem por objetivo analisar a evolução recente da estrutura do setor bancário brasileiro e o ciclo recente do crédito no Brasil, focalizando em especial no desempenho e no papel dos bancos públicos, em particular os grandes bancos federais - BN-DES, Banco do Brasil e CEF. Em particular, destaca-se o papel contracíclico dos bancos públicos no mercado de crédito, além de sua importância no desenvolvimento de algumas linhas de financiamento de mais longo prazo, como financiamento do investimento, crédito agrícola e crédito habitacional. A ênfase do estudo se dá no período pós-real e no boom recente do crédito, ou seja, o período 2003-2009.
Palavras-chave: intermediação financeira, bancos públicos, economia brasileira.
Classificação JEL E44, G21, H21.
ABSTRACT
This paper aims at analyzing the development of the Brazilian banking sector and the recent credit cycle in Brazil, focusing on the role and performance of state-owned- banks, particularly the large federal banks, BNDES, Banco do Brasil and the CEF. This paper stresses mainly the contra-cyclical role of such banks in the credit market in Brazil, as well as their crucial role in the development of long-term financing in the Brazilian economy (investment financing , rural credit and real estate credit). The emphasis of the study is on the post-Real and the recent credit boom, i.e. during the 2003-2009 period.
Key words: financial intermediation, stateowned banks, brazilian economy
JEL Classification E44, G21, H21.
1_Introdução
O setor bancário brasileiro passou por profundas transformações ao longo dos últimos 15 anos. Com o fim da alta inflação, após a bem-sucedida implantação do Plano Real, o setor vivenciou um processo de consolidação, no qual, por intermédio de fusões e aquisições, se evidenciou não só aumento do grau de concentração, como também redução da importância dos bancos públicos tanto em termos de número de instituições como em termos de market share. Um elemento importante na mudança estrutural do setor bancário brasileiro foi a entrada de bancos estrangeiros a partir de 1997, o que gerou expectativa de aumento da eficiência do setor em conjunto com a redução dos elevados spreads cobrados pelos bancos brasileiros em suas operações de crédito, os quais se encontravam (e ainda se encontram) entre os maiores do mundo (Silva et al., 2007, p. 201).
Apesar das expectativas otimistas quanto aos supostos efeitos benéficos da redução da presença do Estado no setor bancário e da entrada de bancos estrangeiros, o processo de consolidação bancária no Brasil teve resultados aquém do esperado sobre a relação crédito/PIB e o custo da intermediação financeira. No que se refere aos spreads bancários, após forte queda do patamar de 120% a.a., em junho de 1994, para cerca de 60% a.a., em março de 1999, verifica-se notável estabilidade desses no patamar de 40% a.a., a partir de janeiro de 2000. A relação crédito/PIB3, por sua vez, reduziu-se de 35% em junho de 1994 para cerca de 22% em outubro de 2002.1 1 Os dados deste e do próximo parágrafo foram extraídos do sítio do Banco Central do Brasil. Em outras palavras, observou-se no período supracitado uma involução do desenvolvimento financeiro da economia brasileira, em parte associada também à instabilidade macroeconômica do período.
A partir de 2003, contudo, verifica-se importante mudança na estrutura e no desempenho do setor bancário brasileiro. A relação crédito/PIB, que vinha apresentando significativa redução até o ano de 2002, começa um movimento ascendente, alcançando a marca de 45% em julho de 2009. No que se refere à estrutura do setor, o processo de redução da participação do Estado no setor financeiro é revertido com o aumento da participação dos bancos públicos no total de crédito concedido pelo sistema bancário brasileiro. Com efeito, entre janeiro de 2003 e fevereiro de 2010, as operações totais de crédito do sistema financeiro público subiram 415,5% contra um aumento de 348,1% do sistema financeiro privado; quanto ao crédito ao setor industrial, houve elevação de 297,3% do crédito público contra 240,5% do privado; o volume de crédito público ao setor rural é 35% superior ao concedido pelo privado; somente no que se refere às operações às pessoas físicas e rurais, a expansão do crédito do setor privado supera a performance de crescimento do crédito público.
Este último período interessa em particular na análise realizada neste artigo. Deste modo, o presente artigo tem por objetivo analisar a evolução recente da estrutura do setor bancário brasileiro e o ciclo recente do crédito no Brasil, focalizando em especial no desempenho e no papel dos bancos públicos- em particular os grandes bancos federais, BNDES, Banco do Brasil e CEF. A ênfase do estudo é no período pós-real e em especial no boom recente do crédito pós-2003.
Para tanto, este artigo se encontra estruturado em cinco seções, incluindo esta introdução. A seção 2 analisa brevemente a evolução do setor bancário brasileiro pós-real, com ênfase nas medidas de reestruturação bancária adotadas pelo governo. A terceira seção apresenta a atual estrutura do setor bancário brasileiro em termos da composição do capital, além de analisar questões relacionadas a economias de escala e concentração bancária. A seção 4 objetiva analisar os condicionantes e as características da evolução do crédito recente no Brasil, destacando em particular os grandes bancos públicos federais (BNDES, Banco do Brasil e CEF) no recente ciclo do crédito. A quinta seção faz uma síntese das conclusões obtidas neste artigo.
2_Setor bancário brasileiro pós-Plano Real
O setor bancário brasileiro é o maior e mais complexo da América Latina. Uma das razões para essa complexidade decorre do desenvolvimento do Sistema Brasileiro de Pagamentos motivado pela elevada inflação. A evolução do sistema financeiro brasileiro após 1994 pode ser dividida, grosso modo, em quatro etapas.
A primeira fase, iniciada após a constituição do Plano Real, foi marcada pelo uso discricionário do Banco Central do Brasil (BCB) na intervenção do sistema financeiro e através de liquidações de instituições, acarretando como resultado a queda do número de instituições financeiras e a subsequente concentração bancária. Os arranjos institucionais que possibilitaram tal expediente foram estabelecidos pelos chamados regimes especiais, RAET e liquidações extrajudiciais.2 2 A liquidação extrajudicial foi instituída pela MP 1.182, convertida, posteriormente, na Lei nº 9.447, de 15.03.1997. Segundo esse expediente, no caso de aplicação desses regimes especiais, ficava estabelecida a responsabilidade solidária dos controladores, bem como a indisponibilidade dos seus bens. Essa mesma lei conferiu à autoridade monetária poderes para determinar os controladores das instituições financeiras, independentemente da aplicação de regimes especiais, além da imposição de diversas medidas relacionadas à capitalização, à transferência de controle acionário e mesmo à reorganização societária. O primeiro caso de um grande banco a ter reconhecida a sua insolvência foi o Banco Econômico, cuja intervenção foi decretada em agosto de 1995. Como resultado da intervenção, os agentes aumentaram sensivelmente a sua preferência pela liquidez, acarretando o "empoçamento de liquidez" no mercado interbancário e aumentando o custo dos empréstimos de curto prazo. Destaca-se ainda a instituição do RAET no Banespa e no Banerj, em dezembro de 1994, e nos bancos Produban, Bemat e Beron, estes de menor porte, em janeiro e fevereiro de 1995. Para aumentar a capacidade dos bancos em gerar moeda, todas as instituições sob o RAET foram dispensadas de recolhimento de compulsório sobre depósitos à vista e a prazo. Segundo Loyola (1993), "desde fevereiro de 1987, 60 instituições financeiras públicas estaduais foram submetidas ao RAET ou ao processo de liquidação extrajudicial, ou seja, quase 70% do universo de instituições financeiras estaduais foi submetido ao regime de exceção". Para garantir maior segurança aos depositantes, criou-se, em novembro de 1995, o Fundo Garantidor de Crédito (FGC).
A segunda fase foi caracterizada pela modernização e adequação dos bancos brasileiros aos preceitos internacionais estabelecidos pelos Acordos de Basileia. Com a publicação da Resolução nº 2.099, de 1994, o sistema bancário brasileiro se viu obrigado a alocar capital para fazer frente aos riscos de crédito, passando-se a exigir requisitos mínimos de patrimônio líquido para operações bancárias, de acordo com o perfil e a natureza desses procedimentos. Além das regras de monitoramento e controle dos riscos das instituições financeiras, criou-se a central de risco de crédito, cujo objetivo era determinar o potencial de risco de cada instituição.
Uma terceira fase teve início com o Programa de Estímulo à Reestruturação e ao Fortalecimento do Sistema Financeiro Nacional (PROER),3 3 O PROER foi criado em 1995 por meio da Resolução CMN 2.208 e das Medidas Provisórias 1.179, de 03.11.95, e 1.182, de 17.11.95, posteriormente transformadas em leis (Lei nº. 9.710, de 19.11.98, e Lei nº. 9.447, de 14.03.97). Para mais detalhes sobre tais programas, ver Puga (1999). em novembro de 1995, e com o Programa de Incentivo à Redução da Presença do Estado na Atividade Bancária (PROES). Esses programas tinham como objetivo conferir maior proteção aos interesses dos detentores de depósitos em instituições financeiras e permitiam a transferência do controle acionário dos bancos problemáticos. A proposta do PROES, como o próprio nome sugere, era reduzir a presença das instituições financeiras controladas pelo Estado nas atividades do sistema financeiro. Com efeito, a União induzia os Estados a reduzir suas ações por meio dos bancos controlados, arcando, para tanto, com 100% do custo de ajuste em todos os casos. Em se tratando de privatização, as receitas obtidas deveriam ser utilizadas para amortização do financiamento federal. Na condição de simples saneamento, por sua vez, esse valor ficava limitado a 50% das necessidades de recursos. O PROER, por seu turno, surgiu como necessidade de gerar liquidez ao sistema bancário em decorrência do surgimento simultâneo de problemas de liquidez em diversos bancos e da possibilidade de crise sistêmica com consequências desastrosas na atividade econômica. Ou seja, as operações do PROER foram soluções encontradas para evitar a quebra dos grandes bancos brasileiros, que, simplesmente, eram "grandes demais para quebrar". A partir desse conjunto de intervenções, o BCB assegurou o correto funcionamento do sistema de pagamentos brasileiro e preservou a segurança do sistema bancário. Segundo dados do Banco Central, o volume financeiro das operações do PROER somou R$ 20,4 bilhões, ou aproximadamente, 2,7% do PIB médio do triênio 1995-97. Como resultado, oito fusões e aquisições foram realizadas no âmbito do programa, cujo resultado final alterou a configuração do setor bancário brasileiro.
A quarta fase envolveu a entrada de instituições financeiras estrangeiras no sistema, provocando significativas alterações no sistema bancário, forçando maior busca pela eficiência e estimulando a competição bancária. Em agosto de 1995, a Exposição de Motivos 311, encaminhada pela Fazenda e aprovada pelo presidente da República, estabelecia ser do interesse do país a entrada e/ou o aumento da participação das instituições financeiras estrangeiras no sistema financeiro nacional. Para tanto, destacava que a entrada de capital estrangeiro constituía um importante vetor de estímulo à eficiência operacional em decorrência da maior capacidade financeira dos bancos estrangeiros, com reflexos positivos sobre os custos dos serviços oferecidos ao público. Em novembro desse mesmo ano, a Resolução nº 2.212 eliminou a exigência de que o capital mínimo de um banco estrangeiro fosse o dobro do exigido de um banco nacional, igualando a exigibilidade de capital e o montante de patrimônio líquido ajustado ao grau de risco da estrutura dos ativos.
3_A estrutura do setor bancário brasileiro
3.1_Características gerais
Como consequência do processo de reestruturação bancária no Brasil desde a implantação do Plano Real, em julho de 1994, e graças à onda de fusões e aquisições (F&As), que seguiu a "quase" crise bancária de 1995, o setor bancário experimentou, ao longo dos últimos 15 anos, várias alterações que resultaram em profundas mudanças no setor: o número de bancos diminuiu, a participação de bancos estrangeiros aumentou, o grau de concentração se elevou,4 4 Este último aspecto é tratado na seção seguinte. etc. Nesse contexto, o número de bancos reduziu de 203 em 1998 para menos de 161 desde 2005 (Tabela 1). Em particular, os bancos estaduais reduziram substancialmente, de 17 em 1998 para 6 em 2001, a partir da implementação do PROES. Tal declínio teve basicamente dois momentos:
(i) o fim de alta inflação em 1994/95 e a consequente eliminação das receitas inflacionárias, que resultou na eliminação de instituições financeiras cujas rendas dependiam crucialmente do ambiente inflacionário;
(ii) implementação dos programas de reestruturação bancária (PROER e PROES), e a consequente onda de F&As que, então, se seguiu desde 1997.
O aumento e o declínio no número de bancos federais em 1998-2008 é consequência do fato de que alguns bancos estaduais foram transferidos para o controle do governo federal e depois de algum tempo foram vendidos. O número de bancos estrangeiros aumentou de 58 em 1998 para 72 em 2001, quando alguns deles entraram no mercado doméstico brasileiro, mas declinou depois de 2002, ocasião em que alguns bancos estrangeiros foram adquiridos por bancos domésticos ou simplesmente fecharam suas subsidiárias. Cabe destacar que o número de bancos com participação estrangeira reduziu em 1998-2002, provavelmente porque uns aumentaram sua participação acionária até terem depois controle majoritário. Finalmente, o número de bancos privados nacionais teve forte declínio em 1998-2002, de 105 para 76 bancos, por causa principalmente da venda de bancos de médio porte, e manteve o número mais ou menos estável desde então.
A Tabela 2 mostra o market share no setor bancário brasileiro de 1995 a 2009, pelo critério de total de ativos. Enquanto a participação dos bancos federais, que inclui os dois "gigantes" (Banco do Brasil e CEF), além de alguns bancos regionais (BNB e BASA), tem oscilado no período, alcançando 30% em 2009, os bancos estaduais reduziram fortemente e rapidamente seu market share, de 21,3% em 1995 para 5,6% em 1999, em consequência da privatização de tais bancos. Já a redução do market share em 2007-09 foi em razão principalmente da venda do banco Nossa Caixa (banco estadual paulista) para o Banco do Brasil. Os bancos privados nacionais aumentaram significativamente sua participação, de 25,2% em 1999 para 42,1% em 2008, em que pese tenha diminuído o número de bancos, uma evidência do fato de que os grandes bancos domésticos - em particular o Bradesco e o Itaú - foram os principais protagonistas da onda de F&As no Brasil. Bancos estrangeiros aumentaram substancialmente seu market share, de 7,2% em 1995 para 27,2% em 2002, graças principalmente à aquisição do Bamerindus pelo britânico HSB, do Real pelo holandês ABN AR-MO e do Banespa pelo espanhol Santander, mas declinou entre 2001 e 2003, período de aversão ao risco dos bancos estrangeiros, que aumentou em função das crises externas que afetaram Argentina e Brasil; alguns bancos venderam suas subsidiárias, como os casos da venda do BBV (espanhol) e do Boavista (português) para o Bradesco. Na primeira metade dos anos 2000, houve alguma tendência para parcial reversão do processo de desnacionalização do setor bancário brasileiro.5 5 Para mais detalhes, ver Paula (2011).
3.2_A questão da concentração bancária no Brasil e o papel dos bancos públicos
Uma importante característica do setor bancário em todo o mundo é o fato de que a atividade bancária é concentrada. Esse resultado decorre da presença de economias de escala e de escopo, que permitem aos bancos diminuírem seus custos por unidade de produto (Baumol et al., 1982). A presença de economias de escala significa que os grandes bancos possuem custos de produção marginais (e médios) mais baixos dos que os bancos pequenos. Economia de escopo, por sua vez, implica que bancos múltiplos com diversos produtos são mais eficientes do que "boutiques financeiras".6 6 Algumas evidências internacionais podem ser vistas em Berger e Humphrey, (1991), Berger et al. (1987); Em especial, considerando o mercado bancário brasileiro, Silva e Jorge Neto (2002), partindo de uma amostra de 59 grandes bancos, analisaram a ocorrência de retornos de escala no período 19951999. As estimativas encontradas mostram a ocorrência de economias de escala independentemente do tamanho do banco.
Mesmo com a ressalva dos autores de que o setor bancário brasileiro possui espaço para redução de custos e ampliação da produção, a presença de economias de escala constitui importante variável para explicar a concentração bancária, bem como fornece boas explicações sobre o atual processo de fusão e aquisição no setor bancário brasileiro. Se por um lado fusões e aquisições tornam os bancos menos vulneráveis a choques isolados, ou permitem ao sistema bancário tornarem mais protegidos contra choques idiossincráticos, uma vez que grandes conglomerados bancários são, em geral, mais diversificados, por outro lado aumentam o risco de crises sistêmicas.
Ao se analisar as transformações ocorridas no Brasil após o Plano Real em termos de atividade econômica, sem dúvida as modificações do setor financeiro merecem destaque. Além da própria mudança da moeda e do fim da alta inflação, inúmeras foram as modificações na legislação e nos normativos do setor, entre as quais merecem destaque: os normativos do Acordo de Basileia, em especial a exigência de capital mínimo dos bancos compatível com os riscos de suas atividades de modo que o chamado patrimônio de referência (PR), nos termos da Resolução do CMN nº 3.444, de 02/2007, seja superior à soma dos seguintes termos:
Onde: PRE é o patrimônio de referência exigido; PEPR é a parcela referente às exposições de crédito ponderadas pelo fator de risco a elas atribuído; PCAM é a parcela referente à exposição em ouro, moeda estrangeira e operações sujeitas à variação cambial; é a parcela referente ao risco das operações sujeitas à variação de taxa de juros e classificadas na carteira de negociação, e N diz respeito às N diferentes operações; PCOMé a parcela referente ao risco das operações sujeitas às variações nos preços das commodities; PACS é a parcela referente ao risco de variação nos preços das ações classificadas na carteira de negociação; e POPRé a parcela referente ao risco operacional.
Como o capital constitui a forma mais dispendiosa de financiamento das atividades bancárias, os requisitos de capital impostos impactam a rentabilidade das instituições financeiras e, consequentemente, acarretam desdobramentos sobre a própria competição bancária. Se por um lado os preceitos de Basileia buscam maior solidez do sistema bancário fortalecendo as estruturas de risco das instituições financeiras, bem como fornecem incentivos em termos de capital para as melhores práticas de gestão e monitoramente de riscos, por outro impõem custo elevado de ajustamento por parte das instituições.
Em teoria, as seguintes razões sugerem uma relação entre concentração bancária e os normativos de Basileia:
(i) alguns bancos, em especial aqueles com estrutura de riscos mais especializada, podem se beneficiar dos incentivos estabelecidos pela implementação de modelos internos de alocação de capital, poupando, dessa forma, capital;
(ii) os elevados custos de ajustamento das instituições, em sua maioria custos fixos associados à implementação e à readequação da estrutura de risco dos bancos, de construção de bases internas de dados para mensuração dos riscos e de tecnologia da informação, podem deslocar a chamada "dimensão máxima de eficiência operacional", a qual, por sua vez, associada aos retornos de escala, pode favorecer o processo de concentração bancária;
(iii) os bancos mais eficientes e com melhores práticas de gestão conseguem implementar mais rapidamente os modelos de alocação de capital baseados na chamada "abordagem avançada", poupando, dessa maneira, capital. Com efeito, esse resultado permite maior alavancagem dessas instituições e maiores taxas de retorno.
Para avaliar a evolução da concentração bancária no Brasil, utilizou-se como metodologia o índice de concentração espacial de Hirschman-Herfindal (IHH).
Para tanto, considerando-se uma série x ={x1, x2 ... xn} indicadora do nível de atividade econômica em um conjunto com n observações distintas, sabe-se que o IHH é descrito por:
Onde: n é o número de bancos considerados na análise, xi é a participação absoluta do banco i, e x representa o volume total do mercado bancário analisado.
O menor indicador para o IHH ocorre quando a série x é constante. Nesse caso, a participação relativa de cada termo é exatamente igual a 1/n, sendo que o vetor representa o ponto mínimo da função objetivo. Por outro lado, quando o indicador bancário está concentrado em um único banco, então o IHH será igual a um, evidenciando concentração máxima. Ao se tomar a soma dos quadrados da participação relativa de cada banco, considera-se que, quanto maior a instituição, maior o seu poder de mercado. Observa-se, portanto, que: 1< Hx<1. Como salienta Resende (1994), à medida que o número de indivíduos analisados aumenta, o limite inferior do índice tende a zero. Por essa razão, uma importante limitação do índice é que, à medida que n aumenta, o limite inferior 1/n se modifica, de modo que comparações intertemporais ficam prejudicadas.
De toda sorte, a interpretação correta dos indicadores de concentração bancária são compreendidas de forma mais adequada por meio do dual do índice de Hirschman-Herfindal, uma vez que o IHH não leva em consideração de forma direta o número de bancos considerado na análise. Com efeito, seja y ={y1 ,y2,..., yn} a série dual do IHH. O modelo dual, nesse caso, considera um mercado teórico com o mesmo número de bancos do mercado real. A diferença nessa abordagem é que o mercado teórico está estratificado em dois grupos. O primeiro grupo possui σ bancos, e esse grupo domina totalmente o mercado; tal grupo divide o mercado igualmente entre si, de modo que cada banco possui participação absoluta no mercado teórico igual a ρmt . O segundo grupo, por sua vez, possui n -σ banco e possui participação nula no mercado. Dessa forma, tem-se que:
Onde: ρmri é a participação absoluta do banco i no mercado real. Observa-se pela equação (3) que o volume no mercado teórico é exatamente igual ao volume do mercado real. Além disso, o IHH nos dois mercados, tanto no real como no dual, é exatamente igual, IHHmr =IHHmt. O dual é definido como a fração dos bancos que não possuem participação no mercado. Por esse expediente, a concentração de uma indústria bancária medida pelo IHH é equivalente a uma concentração, também medida pelo IHH, em uma indústria na qual uma fração dos bancos se apropria de todo o mercado.
Em outras palavras, a análise dual é feita com base em duas séries de dados, digamos série A e B. A primeira representa o mercado em si, enquanto a segunda é relacionada ao IHH propriamente. Dessa forma, a série B representa a estrutura original dos dados, mas com a vantagem de vir estratificada em dois grupos. O primeiro, chamado "grupo dominante", detém toda a participação do mercado, com distribuição uniforme entre todos os integrantes, ao passo que no segundo grupo os membros não participam do mercado. Fica evidente, portanto, que o complementar do dual (1-d) passa a ser a medida de análise relevante, a qual nos fornece o percentual dos bancos que dominam o mercado. Sendo assim, como IHH mr =IHH mt , segue-se, pois, que o dual do mercado real é descrito por:
Pela equação (4), observa-se que o dual é uma função crescente em IHHmr , uma vez que o índice de Hirschman-Herfindal varia de 1/n a 1. Em concorrência perfeita, d assumirá valor zero, ao passo que, em situação de monopólio, d assume o seu valor máximo 1 1/n, sendo que, quando o número de bancos é grande, o dual se aproxima da unidade. Cabe destacar que o dual é também um índice limitado, visto que 0 <d(Hx)<1-1/n . A vantagem em se utilizar o dual, em vez do primal, está no poder da interpretação do índice, já que este não depende do número de bancos no mercado, facultando, portanto, a comparação entre mercados com grande variabilidade de bancos; isso corrige o problema do limite inferior evidenciado no IHH.
Segundo o Federal Trade Comission e o Department of Justice, dos EUA, um mercado específico é classificado em termos de concentração da seguinte forma:7 7 Ver U.S. Department of Justice e Federal Trade Commission (2010).
Considerando-se os dados do "Consolidado Bancário I"8 8 Consolidado Bancário I: somatório das posições contábeis das instituições bancárias do tipo Conglomerado Bancário I (composto de pelo menos uma instituição do tipo banco comercial ou banco múltiplo com carteira comercial) e Instituições Bancárias Independentes I (instituições financeiras do tipo banco comercial, banco múltiplo com carteira comercial ou caixa econômica que não integrem conglomerado). É importante destacar que, no Consolidado Bancário I, não está incluído o BNDES, por não ser esse um banco depositário. do relatório do CO-SIF - 50 maiores para ativo total, volume de depósito, número de funcionários, número de agências, volume em operações de crédito e arrendamento mercantil e TVM e instrumentos financeiros com derivativos, obtêm-se os seguintes índices de IHH, bem como os respectivos dual e dual complementar, cuja evolução é mostrada nos Gráficos 1 e 2. Considerando-se os dados apresentados, constata-se que o setor bancário brasileiro pode ser classificado como uma indústria de concentração média para todos os dados em análise, exceto operações de crédito e arrendamento mercantil, a qual apresenta forte concentração após junho de 2008.
Quando se analisam esses mesmos dados do ponto de vista do dual, é possível verificar qual o grau dessa concentração de forma mais acurada para uma análise de uma série temporal. O Gráfico 2 mostra os dados do complementar do dual, tal como definido acima. Com efeito, pode-se afirmar que os ativos do setor bancário estão concentrados em 10,0% das instituições, em média. Para o volume de depósitos, esse número é de 7,5%; para número de funcionários, 7,8%; para número de agências, 8,2%; para operações de crédito e arrendamento mercantil, 8,2%; e para TVM e instrumentos financeiros e derivativos, 9,3%. Ou seja, se o índice de IHH mostra que o setor bancário brasileiro é de concentração média, por meio do dual, pode-se inferir que o mercado bancário está concentrado em apenas oito bancos, quais sejam: Banco do Brasil, Itaú Unibanco, Bradesco, Santander, Caixa Econômica Federal, HSBC, Votorantim e Safra. Levando-se em consideração que o Banco do Brasil adquiriu 50% do capital do Banco Votorantim, no final de 2008, pode-se dizer que o mercado bancário varejista brasileiro está concentrado em apenas sete bancos, sendo dois bancos públicos federais (BB e CEF), três bancos privados nacionais (Itaú, Bradesco e Safra) e dois bancos estrangeiros (Santander e HSBC).
No caso particular do volume de crédito e de operações de arrendamento mercantil, observa-se que o crédito bancário está concentrado em apenas cinco bancos. Levando-se em consideração que, desses cinco bancos, dois estão sob controle estatal, fica evidente a importância das políticas públicas de crédito para determinar a dinâmica desse mercado. Em especial, os dados apresentados no Gráfico 2 mostram que a crise de 2008 aprofundou a concentração bancária no Brasil, e, por essa razão, o papel dos bancos públicos ganha relevância estratégia na gestão de política econômica, uma vez que atuam como indutor de comportamento ao restante do mercado.9 9 A elevada concentração nas operações de crédito e arrendamento mercantil ocorrida no início de 2099 se deve ao fato de que, com o "empoçamento" da liquidez no mercado interbancário e a elevada preferência liquidez dos grandes bancos (que contam com um funding de recursos mais diversificados do que os pequenos e os médios bancos), houve forte racionamento no mercado de crédito em seu segmento privado, que atingiu em particular os pequenos e os médios bancos. De outro lado, o governo brasileiro permitiu que os grandes bancos usassem recursos dos depósitos compulsórios para comprar carteiras de crédito de bancos médios (ver, a respeito, as MPV 442 e MPV 443, ambas de outubro de 2008). Sendo assim, o grau de competição do setor bancário é relevante na medida em que influencia a quantidade de crédito ofertada, a sua qualidade e o próprio crescimento econômico.
A literatura convencional de economia industrial postula que, quanto menor a competição entre os bancos, maiores serão os benefícios aos tomadores de crédito, uma vez que o preço do capital e a própria disponibilidade de recursos serão maiores em um ambiente competitivo. No entanto, outros estudos10 10 Ver Miller (2003), McIntosh e Wydick (2005). que incorporam problemas de informação assimétrica, moral hazard, problemas de seleção, etc., argumentam que, na presença de retornos de escala, a concentração reduz o custo de informação e de seleção por parte dos bancos, de modo que ambientes mais competitivos geram menos crédito em relação aos mais concentrados. Esse resultado ocorre em mercados nos quais existem mobilidade de clientes (heterogêneos), o mercado é amplo e o custo de troca de informação é relativamente baixo. Essas condições são precisamente as encontradas no setor bancário. A racionalidade econômica desse resultado ocorre porque a informação é um dos fatores que garantem retorno de escala às operações bancárias.
Dessa forma, uma central unificada de informação de crédito constitui um "monopólio natural", de modo que, quando os bancos começam a trocar informações, isso cria um incentivo para que os demais bancos do sistema também façam o mesmo em relação aos seus clientes. Assim, a troca de informações bancárias melhora a qualidade e a quantidade dos empréstimos, reduzindo a taxa de juros. Esse resultado também pode ocorrer em um único banco; para tanto, um relacionamento de longo prazo com o cliente seleciona os empréstimos concedidos e a taxa cobrada. Ou seja, existem dois efeitos ambíguos atuando no sistema. O primeiro é o chamado screening effect (filtragem); o segundo, o incentive effect (incentivo). Nesse sentido, setores mais concentrados são melhores do que aqueles competitivos se o canal informacional superar os efeitos tradicionais da competição.
Uma questão adicional a esse debate merece atenção: qual o papel dos bancos públicos em um ambiente com notada presença de retornos crescentes à escala e com informação assimétrica, moral hazard, etc.? Adicionando elementos a esse cenário, considere ainda que esse banco público em questão seja eficiente, lucrativo e com amplo market share. Por fim, considere que todos esses problemas estejam postos em um ambiente de forte incerteza. Ou seja, independentemente de questões relacionadas a concorrências e a problemas de seleção, em decorrência do próprio ambiente econômico, os bancos simplesmente decidem empoçar liquidez e reduzem prontamente o volume de credito concedido. Esse foi precisamente o cenário vivido pela economia brasileira no fim de 2008. A crise atingiu o Brasil pelo lado da oferta decorrente da forte contração do crédito bancário derivado do aumento da preferência pela liquidez - desejo pela posse de ativos facilmente conversíveis em meios de pagamento - dos bancos em virtude das incertezas presentes na economia (Oreiro; Basilio, 2009).
Os bancos públicos - como BN-DES, CEF e Banco do Brasil - são fundamentais na realização de políticas creditícias anticíclicas na medida em que sua atuação interfere na estrutura de mercado do setor e, portanto, na própria dinâmica de crescimento da lucratividade no longo prazo. Isso porque, quando esses bancos adotam uma política de expansão do crédito em um cenário de notada elevação da preferência pela liquidez dos bancos e elevação do pessimismo, a atuação estatal, além de reaquecer a economia por meio do canal keynesiano tradicional, força uma reação dos demais bancos em decorrência da perda de market share que eles estarão sujeitos, caso não acompanhem o movimento de expansão realizado pelos bancos públicos.
Nesse sentido, além de possuírem tradicional função social de agente do governo nas políticas públicas e na instalação de agências e postos de atendimento em áreas remotas e pouco lucrativas, os bancos públicos atuam no sentido de forçar a ampliação de liquidez por meio do canal concorrência de mercado. Assim, em momentos de crise com elevada incerteza, não apenas a autoridade monetária possui função estratégica de reaquecer a economia, como também os bancos públicos. Esse resultado é reforçado no Brasil em razão da atuação ativa do BNDES, do Banco do Brasil e da CEF. Esse ponto será aprofundado na próxima seção.
4_Bancos públicos e a evolução do mercado de crédito no período recente
4.1_Breve contextualização macroeconômica
Os dados sobre o crescimento do PIB na Tabela 4 mostram o comportamento a la "stop and go", que tem caracterizado a economia brasileira nos últimos anos: curtos ciclos de crescimento são seguidos de uma desaceleração econômica. Entre 1981 e 2008, a média do crescimento do PIB foi de 2,6%, contrastando com o crescimento médio de 7,1% entre 1947 e 1980. Os períodos de maior crescimento do crédito bancário, como 1994-1995 e 2004-2008, coincidem, grosso modo, com períodos de maior crescimento econômico, uma vez que é de se esperar que as firmas busquem novas fontes de financiamento para expansão de suas atividades, assim como as famílias busquem expandir seus gastos com bens de consumo com crédito, durante as fases de crescimento da renda e do nível de atividade econômica.
Destaca-se, assim, a importância que um ambiente de crescimento econômico mais duradouro e de maior estabilidade macroeconômica tem tido sobre o desenvolvimento do mercado de crédito no Brasil. Uma diferença importante entre o período 1994-1995 e o período 20042008 é que, no primeiro, no contexto de um processo de estabilização de preços com um câmbio semifixo, as taxas reais de juros eram extremamente elevadas, enquanto, no segundo, houve redução nessas taxas, mas que ainda se mantiveram em patamares elevados, considerando que a política econômica passou a ser operada com um regime de câmbio flutuante a partir de 1999.
Após a crise cambial de janeiro de 1999, resultante, entre outros fatores, da elevada vulnerabilidade externa do país (déficit em conta corrente de 4,0% do PIB em 1998), o Brasil adotou um novo modelo de política econômica, baseado nas seguintes características: regime de câmbio flutuante, sistema de metas de inflação e geração de constantes superávits primários, que resultaram em taxas de juros menores que no período anterior (1995-1998), mas ainda elevadas. Ademais, o modus operandi do sistema de metas de inflação, somado ao regime de câmbio flutuante e operando sob condições de abertura (quase) total da conta de capital, resultou em maior instabilidade da taxa de câmbio nominal. A volatilidade da taxa de câmbio evidentemente é maior em momentos de saída de capitais do país, como ocorreu em 2002-2003 e em 2008, como pode ser visto no Gráfico 3.
Por outro lado, no período de maior estabilidade e crescimento econômico, como em 2004-2008 (até o 3º trimestre), a volatilidade do câmbio e da taxa de juros, grosso modo, reduz. Nota-se, contudo, que a taxa DI - taxa definida no mercado interbancário e que guarda forte vinculação com a taxa básica de juros Selic - é também bastante volátil. A taxa DI é importante no mercado de crédito bancário por ser a que baliza as operações interbancárias, sendo, consequentemente, crucial na definição do custo do dinheiro para os bancos..
O ambiente macroeconômico, portanto, tem papel fundamental na determinação da oferta e das condições do crédito bancário. Por exemplo, uma volatilidade maior na taxa de juros e na taxa de câmbio pode ter impacto negativo sobre o funding doméstico ou externo dos bancos, já que esses, em sua essência, são transformadores de maturidades, ou seja, captam curto e emprestam mais longo. Assim, os bancos enfrentam o problema de descasamento de maturidades: no momento de refinanciamento de suas posições ativas, eles podem se defrontar com uma taxa de juros mais elevada. No caso de uma desvalorização cambial, essa pode ter impacto direto sobre as captações feitas no mercado externo. Logo, o movimento da taxa de juros e da taxa de câmbio tem papel crucial sobre as operações financeiras feitas pelos bancos.
Por outro lado, o menor crescimento do produto e da renda resulta em menor demanda por crédito, dado o nível mais baixo dos gastos dos agentes (firmas e famílias), além de aumentar a inadimplência por parte dos tomadores de crédito. Alternativamente, o maior crescimento do produto e de renda aumenta a demanda por crédito e diminui o nível de inadimplência, impactando positivamente sobre a avaliação de risco do crédito por parte dos bancos. Deste modo, a melhoria do estado geral de expectativas dos agentes faz com que os bancos diminuam sua preferência pela liquidez e passem a sancionar em larga medida a demanda por crédito dos agentes - firmas e indivíduos (Paula, 1999).
Portanto, em momentos de maior instabilidade econômica, os bancos procuram reduzir os riscos, encurtando a maturidade média de suas operações ativas (empréstimos e títulos) e diminuindo a oferta de crédito mais longo e de maior risco. Privilegiam, assim, o turn over de seu ativo. Assim, o crédito torna-se mais escasso, caro e curto (em termos de maturidade) em momentos de maior instabilidade e desaceleração econômica. No caso do Brasil, esse ajuste dos bancos, que em condições normais levaria a uma perda nas receitas totais e rentabilidade, em função da diminuição no volume de empréstimos e piora na qualidade da carteira de crédito, tem sido facilitado pela existência de títulos públicos indexados à Selic e à taxa de câmbio, que fornecem aos bancos um hedge contra aumento na taxa de juros e contra a desvalorização no câmbio. Isso permite que os bancos, que normalmente se defrontam com o trade-off clássico liquidez ou com a rentabilidade na composição de seu portfólio de aplicações, possam conjugar liquidez e rentabilidade (Paula; Alves Jr, 2003).
A Tabela 4 mostra a predominância de títulos indexados à Selic e à taxa de câmbio em 2000-2003, período marcado por forte instabilidade externa (crise argentina, efeitos de 11 de setembro de 2001, etc.) e pela própria crise brasileira de confiança de 2003 em face da iminência da eleição de Lula para presidente. A partir de 2004, observa-se melhoria na composição da dívida pública, com aumento dos títulos prefixados e indexados à inflação e diminuição nos títulos indexados ao câmbio, em maior grau, e à taxa Selic.
Por outro lado, o maior crescimento e a estabilidade macroeconômica a partir de 2004, favorecidos pelo ambiente externo benigno, junto com certa mudança no perfil de dívida pública, parecem ter sido fatores macroeconômicos determinantes no boom de crédito que ocorreu a partir de meados de 2003. O recente boom do crédito, como será visto a seguir, foi liderado pelos bancos privados e com predominância de operações de crédito livre voltadas para o setor privado. Já o contágio da crise financeira mundial a partir da quebra do Lehman Brothers, em setembro de 2008, teve impactos negativos sobre o mercado de crédito bancário brasileiro, e esse foi um dos canais de contágio da crise no Brasil. Contudo, os bancos públicos, em particular os grandes federais (BNDES, Banco do Brasil e CEF), tiveram papel anticíclico importante, que evitou uma desaceleração maior na taxa de crescimento do crédito.
4.2_Características da evolução recente do mercado de crédito no Brasil
A característica de uma economia de baixo crescimento e marcada por um comportamento a la "stop and go" e por várias crises externas (crise mexicana, crise asiática, crise russa, crise brasileira, crise argentina, etc.), como visto na seção anterior, fez com que a oferta de crédito, após um breve boom pós-sucesso da estabilização de preços a partir da implantação da nova moeda - o real - em julho de 1994, declinasse quase que gradualmente no período 1995-2003, ocasião em que período 1995-2003, ocasião em que a relação crédito total sobre o PIB caiu de 35,1% em maio de 1995 para 21,8% em março de 2003 (Gráfico 4). Como já assinalado, o ajuste dos bancos a esse contexto foi facilitado por um contexto macroinstitucional favorável, em particular por uma forma de gestão da política macroeconômica (política de juros elevados como mecanismo de defesa à volatilidade dos fluxos de capitais) e da dívida pública (com emissão de títulos pós-fixados e/ou de curto prazo), durante os contágios das crises externas, o que permitiu que não só os bancos brasileiros não tivessem sua saúde afetada pelas crises, como também esses pudessem ter rentabilidade elevada11 11 A exceção foi o contágio da crise mexicana no início de 1995, quando os bancos vinham compensando as perdas com o floating (imposto inflacionário ganho sobre os depósitos à vista) com o crescimento de sua oferta de crédito. A adoção de uma política monetária restritiva em tal contexto teve forte impacto negativo sobre a carteira dos bancos, em função do expressivo aumento da inadimplência e diminuição da demanda por crédito. (Paula; Alves Jr, 2003).
Como resultado dessa forma de ajuste macroeconômico, se por um lado as crises externas não resultaram em crises bancárias no Brasil, por outro os custos de tal ajuste recaíram sobre o Estado, que teve crescimento célere na sua dívida.12 12 A relação dívida pública/PIB passou de 31,8% em 1997 para 44,5% em 1999 e para 52,4% em 2003. Outra característica do período 1995-2003 é que as operações de crédito para o setor público caíram de cerca de 5,0%-6,0% em 1994-1997 para menos de 1,0% do PIB a partir de 2002.
Mudanças estruturais importantes, em termos de controle de capital, operaram no setor bancário brasileiro, a partir de 1995.13 13 Para um aprofundamento, ver Paula (2011), em especial o capítulo 9. Posteriormente à "quase" crise bancária ocorrida em 1995 e que foi de forma bem-sucedida enfrentada com a implementação do PROER e de outras medidas adotadas pelo governo, o setor bancário brasileiro passou por mudanças importantes, expressas na redução dos bancos públicos nesse setor e no crescimento da participação dos bancos estrangeiros. De fato, o governo brasileiro começou a estimular a entrada de bancos estrangeiros para a compra de bancos "problemáticos", de modo a fortalecer o setor bancário doméstico; ao mesmo tempo, instituiu um programa de privatização dos bancos públicos estaduais (PROES), dentro de um contexto mais amplo de "forçar" um ajuste fiscal dos Estados e de reestruturação de suas dívidas.
Neste sentido, vários bancos estaduais - inclusive os de porte relativamente grandes como Banerj, Bemge, Banestado e Banespa - foram vendidos para bancos privados nacionais (em particular, o Banco Itaú) e bancos estrangeiros (Santander e ABN-Amro). Por outro lado, grandes bancos varejistas privados, como Bamerindus e Real, foram adquiridos por bancos estrangeiros (HSBC e ABN-Amro). Contudo, uma característica distintiva da entrada de bancos estrangeiros no Brasil, nos anos 1990, em relação a outras experiências de países emergentes, foi a reação dos grandes bancos privados, que não só participaram da onda de fusão e aquisição bancária (F&As), como também passaram até mesmo a liderá-la. Os grandes públicos federais varejistas - Banco do Brasil e CEF -, líderes do setor bancário, não puderam participar do processo de F&As bancárias e assim perderam market share no setor bancário. Esses bancos passaram por uma reestruturação patrimonial e gerencial importante no início dos anos 2000. Somente recentemente, o Banco do Brasil foi autorizado a adquirir outros bancos, sobretudo estaduais, sendo a mais importante aquisição o banco estadual paulista Nossa Caixa, em 2008. Esses movimentos evidentemente impactaram na evolução do crédito, como pode ser visto no Gráfico 5, em que se observa queda maior dos bancos públicos (federais e estaduais) - de 20,9% do PIB em janeiro de 1995 para 8,2% em janeiro de 2003 -, enquanto os bancos estrangeiros cresceram de 3,% em setembro de 1996 para 6,9% em outubro de 2001.
Já a partir de meados de 2003, inicia-se um aumento gradual e sustentado do crédito bancário no Brasil - cuja participação no PIB cresce de 22,0% em abril de 2003 para mais de 30% em 2007, mais de 40% em 2009, atingindo 45,0% do PIB em dezembro de 2009. Como já assinalado, como condicionantes macroeconômicos mais gerais desse crescimento, pode-se apontar o maior índice da renda e do produto (média de 4,8% em 2004-2008), certa redução na taxa nominal de juros, a estabilidade macroeconômica e a mudança no perfil da dívida pública (que estimula uma mudança na estratégia de aplicações dos bancos, em direção ao crédito). Em particular, na fase de crescimento mais acelerado do crédito (meados de 2003 até setembro de 2008), as características gerais do boom do crédito foram as seguintes: a absorção (quase absoluta) do crédito pelo setor privado, a liderança do segmento de crédito com recursos livres com predominância de um funding doméstico, e, por fim, o dinamismo maior dos bancos privados nacionais em relação aos demais bancos (públicos e estrangeiros).
Todos os três segmentos por controle de capital participaram ativamente do boom recente de crédito: a relação crédito/PIB dos bancos públicos passou de 8,5% em abril de 2003 para 12,8% em setembro de 2008, e a dos bancos estrangeiros, de 5,2% para 8,0%; no caso dos bancos privados nacionais, a relação dobrou de 8,3% para 16,6% no mesmo período. As operações de crédito com recursos livres14 14 As operações com recursos livres incluem principalmente três tipos de operação: (i) operações contratadas com taxas de juros livremente pactuadas entre os mutuários e as instituições financeiras, seja pré-fixadas, seja pós-fixadas ou flutuantes (chamadas de "recursos livres referenciais para taxa de juros"); (ii) cooperativas; e (iii) leasing. cresceram de 13,7% do PIB em abril de 2003 para 26,9% em setembro de 2008, ao passo que as operações com recursos direcionados tiveram uma relação crédito/ PIB relativamente estável no período, ficando entre 8% e 9% em 2003/2005, e crescendo gradualmente até atingir 10% em março de 2008. O Gráfico 6 mostra que o crescimento do crédito com recursos livres a partir de meados de 2003 foi "puxado" fundamentalmente pelas operações para pessoa física, que cresceram celeremente de 5,2% do PIB em abril de 2003 para 10,0% em fevereiro de 2007; em maio de 2007, atingiu níveis semelhantes ao das operações para pessoa jurídica, que cresceram no mesmo período de 8,5% a 10,7% do PIB; de abril de 2003 a julho de 2007, as operações com pessoa física tiveram crescimento de 207,7%, enquanto as operações com pessoa jurídica cresceram 130,6%.
Perante a perspectiva de crescimento da renda e do mercado interno, os bancos reviram sua estratégia de expansão, passando a "apostar" na expansão do crédito, inicialmente no crédito à pessoa física e posteriormente no crédito à pessoa jurídica, estimulados tanto por maior demanda por crédito quanto por spreads ainda bastante elevados, especialmente no caso do spread relativo à pessoa física, que inicialmente era bem maior do que para a pessoa jurídica, o que tornava altamente atraente tais operações (Gráfico 7). Acrescente-se que os empréstimos para pessoas físicas são de mais fácil avaliação por parte dos bancos, inclusive quanto às garantias (tendo como "colaterais" automóveis ou a própria folha de pagamento, no caso do consignado).
Já a partir de meados de 2007, a continuidade do crescimento econômico, agora determinado pelo crescimento do mercado interno, fez com que as decisões de produção e decisões de investimentos das empresas (ampliação de capacidade produtiva) se acelerassem, aumentando consequentemente a demanda por crédito corporativo, em parte atendida pelo setor bancário varejista (capital de giro) e em parte pelo BNDES (financiamento de longo prazo). Deste modo, observa-se que o crescimento das operações de crédito com recursos livres para pessoas jurídicas cresceu 129,7% de junho de 2007 a setembro de 2009, contra um crescimento de 115,7% das operações com pessoas físicas no mesmo período.
No que se refere às operações de crédito por atividade econômica, observa-se que o destaque, como já assinalado, foram os empréstimos para pessoas físicas, cujo crescimento se acentua a partir de meados de 2004 (Gráfico 8), passando, a partir de meados de 2005, a responder por mais de 30% do total do crédito bancário. No segundo e terceiro lugar, vêm as operações de crédito para indústria e "outros serviços" (inclui as áreas de infraestrutura - transporte, telecomunicações, etc.); esses dois ramos de atividades - indústria e outros serviços - tiveram comportamento similar e passaram a crescer mais significativamente a partir de 2006. O crescimento do volume de crédito para a indústria parece estar associado ao maior crescimento do produto industrial, que passou de um crescimento médio de 2,2% em 2005-2006 para 4,8% em 2007-2008.15 15 Conforme dados do IPEADATA. O volume das operações de crédito para habitação ainda é bem baixo no Brasil, vindo a crescer mais recentemente, e é apontado com um dos ramos com grande potencial de crescimento para os bancos.
Quanto às modalidades de crédito com recursos livres, o Gráfico 9 mostra que as operações de crédito para pessoa física e para pessoa jurídica se concentram em poucas linhas de crédito. Entre as modalidades para pessoa física, destacam-se as operações de crédito pessoal - com forte crescimento ao longo do boom recente de crédito - e as operações para aquisição de veículos. Não é por acaso que os grandes bancos varejistas (Bradesco, Itaú, Unibanco, HSBC, entre outros) procuraram, no período recente, fazer aquisição de instituições financeiras especializadas no crédito ao consumidor e no financiamento de veículos, além de parcerias com grandes redes varejistas de comércio - casos das parcerias do Bradesco com a Casas Bahia e do Itaú com o Pão de Açúcar, de modo a poderem explorar melhor o nicho da modalidade de crédito pessoal.
Uma inovação institucional importante relacionada ao crédito pessoal foi a criação do crédito consignado em 17/9/2003. As operações com crédito consignado, com juros cobrados mais baixos do que nas outras operações de crédito pessoal, dado o seu reduzido risco, cresceram rapidamente, de R$ 9,6 bilhões, em janeiro de 2004, para mais de R$ 50 bilhões, a partir de fevereiro de 2007, quando passou a perfazer mais de 60% do crédito pessoal.16 16 Os bancos públicos, em especial o Banco do Brasil, têm participação importante no segmento de crédito consignado. No que se refere ao crédito para aquisição de veículos, observa-se a predominância dos bancos privados, por meio de suas financeiras, com agentes e quiosques instalados frequentemente em revendedoras de automóveis.
No que tange às taxas de juros cobradas nas principais modalidades de crédito livre, observa-se que as taxas em geral declinam após a crise de confiança no fim de 2002 e início de 2003, sendo tal redução mais acentuada nas operações de crédito onde havia algum tipo de garantia - desconto na folha de pagamento, no caso do empréstimo consignado; o próprio veículo, no caso de empréstimos para aquisição de veículos, e, por vezes, recebíveis, no caso de empréstimos para capital de giro. Por outro lado, embora o volume das operações com conta garantida para pessoas jurídicas e cheque especial para pessoas físicas seja menor do que outras modalidades de crédito, como crédito pessoal e capital de giro, tais operações são bastante lucrativas, em função das elevadíssimas taxas de empréstimos - mais de 150%, no caso do cheque especial, e mais de 70%, em se tratando da conta garantida (média do ano de 2007) - e com um turnover rápido em função da maturidade curta dessas operações.
Mais surpreendente é o fato de essas taxas não terem acompanhado a queda na taxa básica de juros e nas demais taxas de empréstimos em 2006-2007 e de terem se elevado mais significativamente em 2008, no quadro da crise financeira internacional e de adoção de uma política monetária mais apertada pelo Banco Central, a partir de setembro de 2008. Tal comportamento é explicado pela presença de assimetria de informações nessas modalidades de crédito: um banco tem mais informação sobre as características de seus clientes do que seus concorrentes, e, em razão de problemas de seleção adversa, torna-se muito difícil atrair clientes de boa qualidade (bons pagadores) sem que os benefícios e as ofertas concedidos também atraiam clientes de baixa qualidade. Deste modo, as modalidades de crédito relacionadas à manutenção de contas bancárias, tais como cheque especial para pessoas físicas e conta garantida para pessoas jurídicas, têm taxas de juros bem mais elevadas do que os substitutos próximos, como crédito pessoal e financiamento de capital de giro, pela dificuldade de transferir a bancos competidores seu histórico cadastral e reputação, resultando em situações em que os clientes estão presos (locked in) às suas instituições bancárias, o que permite a adoção de práticas monopolistas por parte dos bancos.
Em que pese a redução da taxa de juros dos empréstimos (na realidade para níveis pré-crise de 2002-2003), as taxas de juros foram mantidas em níveis bastante elevados - 43,7% a.a., nas operações com taxas prefixadas; 51,0% a.a., no crédito pessoal; 29,8%, na aquisição de veículos, e 29,4%, no capital de giro (média do ano de 2007) - para justificar um crescimento tão acelerado na demanda por crédito. Uma possível explicação, além do próprio crescimento do produto e da renda, como assinalado, e a existência de uma demanda reprimida por crédito (para aquisição de bens), é o significativo alongamento nos prazos das operações de crédito: em apenas três anos (de janeiro de 2005 a janeiro de 2008), o prazo médio do crédito para pessoa física aumentou de 195 dias para 308 dias, enquanto para pessoa jurídica passou de 300 dias para 445 dias. No que se refere às principais modalidades de crédito, considerando o mesmo período, o prazo médio do crédito ao capital de giro elevou-se de 296 dias para 487 dias; do crédito pessoal, de 299 dias para 475 dias, e de aquisição de veículos, de 472 dias para 594 dias (Gráfico 11).
Um dos principais canais de contágio da crise financeira internacional sobre a economia brasileira, além dos efeitos diretos sobre os capitais de portfólio que afetaram diretamente o comportamento da Bolsa de Valores (BOVESPA), em função da participação importante de investidores institucionais estrangeiros nesse mercado, foi o mercado doméstico de crédito. O mais imediato efeito da crise diz respeito à redução nas operações de crédito que utilizam funding externo, como no caso do financiamento às exportações (ACC) e os repasses externos, impactando, assim, particularmente o crédito corporativo. Outro mecanismo de contágio foi a redução das operações de crédito entre fronteiras graças à realocação de portfólio dos bancos internacionais, em função de prejuízos em sua matriz e em filiais.
Por outro lado, a deterioração geral das expectativas em relação ao futuro (da economia mundial e seus impactos sobre a economia brasileira), em função do alastramento e da profundidade da crise internacional, combinada com as incertezas relacionadas ao volume de perdas das firmas envolvidas em "derivativos tóxicos", como ficaram conhecidas as operações com derivativos feitos por empresas exportadoras que apostavam na continuidade da apreciação cambial e assim estavam com uma posição vendida em moeda estrangeira, aumentou a preferência pela liquidez dos bancos. A menor aversão ao risco dos bancos contribuiu para um forte represamento na liquidez no mercado interbancário (que afetou principalmente os bancos médios que têm um funding menos diversificado de recursos) e para uma contração no crédito doméstico, em particular no crédito corporativo.17 17 Para um aprofundamento do efeito contágio da crise financeira internacional, ver IEDI (2009).
O governo respondeu prontamente com uma série de medidas anticíclicas, embora o BCB tenha mantido uma política monetária austera até o fim de 2008, o que provavelmente contribuiu para a desaceleração na taxa de crescimento do crédito doméstico em um momento que o contágio da crise alcançava celeremente a economia brasileira. Entre as medidas adotadas pelo governo relacionadas ao mercado de crédito bancário doméstico, destacam-se várias delas para aliviar a restrição de liquidez, entre as quais redução nos requerimentos compulsórios sobre depósitos dos bancos e criação de incentivos para os bancos comprarem carteiras de créditos de bancos menores, que foram os mais afetados pela crise.18 18 Foram permitidos que os bancos deduzissem de seu compulsório sobre depósitos a prazo (70% contra 40% originalmente) os recursos usados para comprar carteiras de créditos de outros bancos.
Ademais, houve uma decisão política de encorajar os grandes bancos públicos federais - BNDES, Banco do Brasil e CEF - de expandirem suas operações de crédito, atuando de forma contracíclica no mercado de crédito doméstico, e, no caso do Banco do Brasil e da CEF, de comprarem carteiras de créditos de bancos menores com problemas de liquidez.19 19 Esses bancos lideraram esse tipo de operação. Outras medidas anticíclicas foram adotadas pelo governo para estimular a demanda agregada da economia, como a redução do imposto sobre produtos industrializados (IPI) sobre veículos, vários bens duráveis e itens de construção, bem como o aumento do período de duração do seguro-desemprego, que, embora não estejam diretamente relacionados ao mercado de crédito, o afetaram indiretamente, particularmente no que se refere aos seus efeitos sobre o crédito das famílias.
Uma inspeção nos dados nos permite aferir o contágio e a reação à crise financeira internacional sobre o mercado doméstico bancário. Como pode ser visto no Gráfico 7, a desaceleração no crescimento do crédito atingiu mais fortemente o crédito corporativo, que, como demonstrado, vinha de uma tendência de forte aceleração: a relação crédito para pessoas jurídicas sobre o PIB cresceu apenas de 14,7% em outubro de 2008 para 15,3% em setembro de 2009, enquanto o crédito para pessoas físicas cresceu de 12,6% para 14,6% no mesmo período. A contração no crédito corporativo não foi maior em razão da existência de uma inércia no mercado de crédito (existência de linhas de crédito pré-aprovadas, manutenção de relação cliente banco, etc.) e o fato de a contração do volume do crédito com recursos externos não aparecer nos dados em função dos efeitos da desvalorização cambial inflando seus saldos.
O setor de atividade econômica mais atingido pela contração do crédito foi a indústria (Gráfico 8), justamente o setor que mais desacelerou durante o contágio da crise: a contração do produto industrial foi de -2,5% no 4º trimestre de 2008; de -9,7% no 1º trimestre de 2009, e de -8,5% no 3º trimestre de 2009. Além da desaceleração no crescimento do crédito livre, observa-se clara deterioração nas condições de oferta do crédito, tanto no que se refere às taxas de juros cobradas - a média das taxas prefixadas subiu de 48,6% em setembro de 2008 para 52,9% em dezembro de 2008 - quanto ao prazo médio das operações de crédito livre nas modalidades de crédito à pessoa física, que passou de 310 dias em setembro de 2008 para 270 dias em maio de 2009. Já a partir de março de 2009, quando começou a haver sinais de que o pior da crise havia passado e que a economia iria de alguma forma reagir à crise com as medidas anticíclicas adotadas e com a implementação de uma política monetária mais frouxa pelo BCB, as taxas de juros prefixadas começaram a declinar, ainda que, conforme assinalado, com uma desaceleração bem mais lenta no caso do cheque especial e da conta garantida em relação às demais modalidades.
Um fator contracíclico fundamental que evitou uma desaceleração maior no crédito foi o comportamento do crédito direcionado - operações com base em recursos compulsórios e nos fundos parafiscais e regionais, cujas taxas ativas são fixadas pelo Conselho Monetário Nacional20 20 O crédito direcionado pode ser dividido em três categorias, de acordo com a natureza de seu funding: (i) depósitos bancários: 20% dos depósitos à vista e 40% da caderneta de poupança rural, destinados ao crédito rural; 65% dos depósitos da caderneta de poupança destinados ao financiamento habitacional; 2% dos depósitos à vista destinados ao microcrédito; (ii) fundos de natureza parafiscal: FGTS, destinado ao financiamento imobiliário e saneamento urbano; Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT), destinado ao custeio do Programa de Seguro-Desemprego, do Abono Salarial e ao financiamento de Programa de Desenvolvimento Econômico (BNDES); (iii) Fundos de desenvolvimento regional - Fundo Constitucional do Nordeste (administrado pelo Banco do Nordeste), Fundo Constitucional da Amazônia (administrado pelo Banco da Amazônia) e Fundo Constitucional do Centro-Oeste (administrado pelo Banco do Brasil), destinados a programas de desenvolvimento das respectivas regiões; e Fundo Nacional de Desenvolvimento (FND), administrado pelo BNDES, com recursos do Orçamento Geral da União, com recursos destinados a empréstimos a FINEP e pequenas e médias empresas (Banco do Brasil e BNDES) e empresas dos setores de insumos básicos e bens de consumo (BNDES). - e o já mencionado papel dos grandes bancos públicos federais, em função do seu peso no mercado bancário. Como pode ser visto no Gráfico 6, enquanto o crédito com recursos livres à pessoa jurídica estagnou a partir de outubro de 2008, o crédito com recursos direcionados cresceu fortemente sua participação no crédito total - passando de 10,5% em setembro de 2008 para 14,0% em setembro de 2009, em função principalmente do aumento nas operações de crédito do BNDES.
Em termos de participação relativa média no período 2002-2009, os empréstimos do BNDES responderam por 60,1% do total do crédito direcionado, ao passo que os empréstimos rurais e para habitação, respectivamente, responderam por 21,7% e 15,5%. Como será visto na seção seguinte, Banco do Brasil e CEF tem papel preponderante no financiamento rural e no financiamento habitacional, respectivamente.21 21 Portanto, há uma sobreposição entre crédito direcionado e empréstimos dos bancos públicos (BNDES, Banco do Brasil e CEF), embora, como será visto a seguir, o crescimento dos empréstimos dos bancos públicos tenha sido maior do que do crédito direcionado, o que sugere que tal crescimento se deu também no crédito livre desses bancos (Banco do Brasil e CEF). É interessante notar que, embora o crédito direcionado tivesse tendência de crescimento a partir de 2007 - em função em especial do crescimento das operações de crédito do BNDES para financiamento do investimento que se acelerava a partir de então - ele tem crescimento bem mais modesto em relação ao crédito livre no boom recente do crédito, vindo a se acelerar no período pós-crise, o que parece caracterizar, ao menos no período analisado, um papel contracíclico e não concorrente com o crédito livre. O papel contracíclico do crédito direcionado é mais evidente no caso dos empréstimos do BNDES e nos empréstimos habitacionais (Gráfico 12).
Outro elemento contracíclico já mencionado foi o comportamento dos bancos públicos (principalmente os "gigantes" federais, BNDES, Banco do Brasil e CEF) no mercado de crédito, que vinham aumentando sua taxa de crescimento de empréstimos no boom do crédito (mas com crescimento abaixo dos bancos privados nacionais), mas que cresceram sobremaneira a partir de setembro de 2008, passando seu total de crédito de 12,8% do PIB nesse mês para 18,0% em setembro de 2009, um acréscimo de mais de 5,0% do PIB em apenas 12 meses. Houve uma política deliberada por parte do governo federal brasileiro no sentido de que os bancos públicos federais tivessem um papel contracíclico perante o contágio da crise internacional.22 22 Isso levou até o governo federal a substituir em abril de 2009 o então presidente do Banco do Brasil, Antonio F. de Lima Neto, por Aldemir Bendine, mais afinado com o ministro da Fazenda, Guido Mantega. A análise mais detalhada dos bancos públicos é feita na próxima seção.
4.4_Bancos públicos no ciclo recente do crédito23 23 Uma análise do perfil dos bancos comerciais federais brasileiros é feito por Carvalho e Tepassê (2010).
Como assinalado na seção anterior, o ciclo recente de crédito no Brasil (2003-2008) teve a participação ativa dos três segmentos de controle de capital do setor bancário, sendo, contudo, o segmento mais dinâmico o dos bancos privados nacionais. Este teve aumento na participação relativa no total do crédito do sistema financeiro de 38,9% em junho de 2004 para 44,0% em junho de 2008. Já a participação relativa do sistema financeiro estrangeiro ficou estável no período 2003-2009, ao redor de 20%22%. Esse segmento, que conta com a participação mais importante do Santander, do HSBC e do Citibank, não sofreu grande alteração de controle de capital para fora do próprio segmento. Por sua vez, o sistema financeiro público (incluindo BNDES, Banco do Brasil, CEF e demais bancos púbicos) teve redução na sua participação relativa no total de crédito do sistema financeiro, passando de 39,1% em junho de 2003 para 34,7% em junho de 2008, mas tendo forte crescimento após a crise, passando a 38,7% em junho de 2009 (Gráfico 13).
De modo geral, a onda de fusões e aquisições bancária ocorrida em 2007-2008 se deu no interior de cada segmento por controle de capital. Tais aquisições fortalecem a estratégia de crescimento futuro dos grandes bancos varejistas, como Banco do Brasil, Itaú e Santander. Em 2007, o Santander adquiriu o ABN-Amro Real, então o maior banco estrangeiro no Brasil e 5º maior banco no ranking de ativos. Em 2008, o Banco do Brasil incorporou o Banco do Estado de Santa Catarina (BESC) e o Banco do Piauí (BEP) e adquiriu o Nossa Caixa, todos esses bancos públicos estaduais. Esta última aquisição foi particularmente importante, já que o Nossa Caixa era em 2008 o 9º maior banco brasileiro, com uma fatia de mercado de quase 2,0% do total de ativos do setor bancário e presença forte no Estado mais rico brasileiro, o Estado de São Paulo. Finalmente, ao fim de 2008, o Itaú, então o 2º maior banco brasileiro, efetuou uma fusão com o banco Unibanco, o 6º maior banco do país.
Analisando a carteira de crédito do sistema financeiro por segmento de controle de capital, observam-se diferenças importantes na distribuição do crédito por atividade econômica por parte dos bancos privados e dos bancos públicos (Gráficos 14, 15 e 16). Não há diferenças significativas entre o portfólio do sistema financeiro privado nacional e o do sistema financeiro estrangeiro (Gráficos 14 e 15). Em ambos, há predominância do crédito para pessoa física, secundado pelo crédito para indústria, outros serviços e comércio, ainda que o crédito para "outros serviços" tenha uma importância relativa maior para os bancos estrangeiros. Acompanham, assim, as principais tendências na evolução recente no crédito com recursos livres, tal como mostrado na seção anterior.
Já no caso dos bancos públicos (incluindo o BNDES), predomina o crédito para a indústria, seguido de outros serviços, pessoas físicas e rural; o crédito habitacional tem importância maior do que no segmento dos bancos privados (Gráfico 16). Contudo, tal composição está fortemente influenciada pela presença do BNDES nesse segmento, tendo em vista a forte concentração da carteira do BN-DES no setor industrial e em infraestrutura econômica (que faz parte do setor de atividades "outros serviços").
Daí a importância de se observar separadamente a carteira de crédito de cada um dos grandes bancos públicos federais, em função das particularidades de cade desenvolvimento, que não capta recursos diretamente junto ao público, tendo como funding principal os recursos do FAT, de natureza parafiscal, a transferências do Tesouro Nacional e os retornos de suas operações ativas. Logo, não concorre diretamente com os outros bancos varejistas. O Banco do Brasil e a CEF, por seu turno, são bancos varejistas, uma vez que captam recursos sob a forma de depósitos (à vista, poupança e a prazo), e realizam empréstimos para pessoas físicas e pessoas jurídicas e, assim, concorrem diretamente com os demais bancos. Mas, como será visto a seguir, há diferenças na composição da carteira de empréstimos desses bancos em relação aos demais, em função da importância que eles têm em determinados segmentos do crédito direcionado.
Quando se trata do Banco do Brasil (BB), observa-se uma carteira diversificada de crédito, ainda que o crédito habitacional tenha presença quase nula. Predomina em seu portfólio o crédito rural, modalidade no qual o banco tem tradicionalmente forte presença no financiamento do custeio, comercialização e investimento, com participação de mais de 50% no total da concessão do crédito rural, aproveitando a capilaridade de sua rede de agências no país e o uso de recursos direcionados (fiscais e parafiscais).24 24 Segundo Carneiro et al. (2009a, p. 154), predominam no crédito rural, como fonte de recursos, os recursos direcionados (entre 96% e 97%). Além dos recursos obrigatórios, da poupança rural e dos recursos livres, o crédito rural conta com recursos do Tesouro, dos fundos constitucionais (FCO, FNDE e FNO), do FAT, dos recursos do BNDES, dos governos estaduais, dos recursos externos e do Fundo de Defesa da Economia Cafeeira (Fucafé).
De fato, predominam no sistema de crédito rural os bancos públicos, já que são eles que operam os repasses dos Fundos Constitucionais, que contam com a equalização de juros. Essa modalidade, com participação de mais de 35% na composição do crédito do BB até 2005, teve significativa redução relativa em 2006-2008, o que parece evidenciar que o banco tem procurado privilegiar outras modalidades mais lucrativas de crédito, no contexto de uma lógica privada de rentabilidade que vem ganhando espaço dentro da estratégia gerencial do BB. A indústria é o segundo setor de atividade mais importante na carteira de crédito do BB, com média de 26,4% em 2003-2008, mas crescendo a participação a partir de 2006, até atingir mais de 30% das operações de crédito em 2008 (Tabela 5). Segundo Carneiro et al. (2009b), o banco é líder como repassador de recursos do BNDES para a indústria, o que talvez indique não somente que tais operações têm peso importante nas concessões para o setor, como também que essa participação é mais elevada do que nos demais bancos. Em particular, o banco tem procurado expandir a sua atuação no crédito corporativo, atuando não somente na faixa de pequenas e médias empresas, como também no segmento de grandes empresas (corporate). Em terceiro lugar, destaca-se o crédito para pessoa física (média de 18,5%), setor de atividade no qual predomina no caso do banco a modalidade de crédito pessoal, com importante participação dessa no crédito consignado, e, em menor grau, o cheque especial. O valor de crédito para aquisição de veículos - tanto em termos absolutos quanto relativos - é pequeno no BB, ainda que recentemente haja esforço de aumentar o seu market share nesse mercado.25 25 Neste sentido, a aquisição de 50% do capital social do Votorantim no início de 2009, banco com forte penetração nessa modalidade de crédito, parece ter papel crucial.
Na carteira de crédito da Caixa Econômica Federal (CEF), por sua vez, predominam, em larga medida, os empréstimos o mais importante captador de recursos sob a forma de cadernetas de poupança no Brasil - em 2008 esses depósitos representavam 55,9% do total de depósitos captados pelo banco (dados do BCB) - que são usados como o principal funding para empréstimos imobiliários. Além disto, a CEF opera com recursos do FGTS para financiamento de programas em habitação. Em segundo lugar, a participação mais importante (22,5%) é do crédito para pessoa física, em que, tal como no Banco Brasil, predomina largamente a modalidade de crédito pessoal e a de cheque especial. A participação relativamente importante de "outros serviços" (13,8% em média) se deve ao fato de que a CEF opera diversos programas de desenvolvimento urbano (como saneamento básico e transporte urbano) voltados para governos estaduais e municipais. A importância da CEF no provimento de crédito ao setor industrial é bem pequena (3,5%), ainda que mais recentemente esse banco tenha procurado fazer um esforço de estruturar operacionalmente a área de crédito corporativo. Em 2008, a importância maior dessa área de atividade se deve tanto ao empréstimo concedido no fim do ano à Petrobras quanto à aquisição de carteiras de créditos de instituições bancárias de médio porte especializadas no chamado middle market.
O BNDES tem tido tradicionalmente papel fundamental no provimento do crédito de longo prazo da economia brasileira, em particular no financiamento do investimento. É importante destacar que o autofinanciamento das empresas (a partir de lucros retidos) é ainda a maior fonte de financiamento das empresas brasileiras - segundo estimativa de Torres Filho et al. (2008, p.3), essa forma de financiamento respondeu em média por cerca de 44% do financiamento de 130 empresas de capital aberto. O financiamento de longo prazo do BNDES, medido pelos desembolsos para indústria e infraestrutura, respondeu em média por 32% do financiamento de longo prazo da economia brasileira, tendo sua participação crescido a partir de 2005, atingindo em 2007 quase 50% do total de financiamento (Gráfico 17). O forte crescimento dos desembolsos do BNDES para indústria e infraestrutura em 2008 e 2009 (Gráfico 18) muito provavelmente resultou numa participação significativamente maior do BNDES no financiamento de longo prazo, sobretudo se considerarmos a forte retração no mercado de títulos corporativos privados (ações e debêntures) em 2008. De modo geral, todas as fontes privadas de financiamento de longo prazo - emissões primárias de ações, debêntures e captações externas - cresceram seus valores em 2004-2006, mas caíram em 2007 em relação ao ano anterior.
Os desembolsos do BNDES aumentaram significativamente em 2005-2009, passando de R$ 56,5 bilhões em 2005 para R$ 69,8 bilhões em 2007 (crescimento real médio de 14,6% em 2004-2006), R$ 69,8 bilhões em 2007, R$ 89,6 bilhões em 2008 e R$ 136,4 bilhões em 2009.26 26 Dados deflacionados pelo IGD-DI para dezembro de 2009. Particularmente o crescimento nos desembolsos do BNDES de 2008 para 2009 foi de 52,2%, isto é, em apenas um ano. Como visto, o BNDES teve papel fundamental e determinante no comportamento contracíclico do crédito direcionado em 2008-2009, evitando uma contração maior em decisões de planejamento em curso em função de uma escassez de financiamento.
O Gráfico 18 mostra que o crescimento nos desembolsos do BNDES em 2005 até meados de 2008 resultou tanto de operações diretas (diretamente realizada pelo banco ou através de mandatário) quanto por meio de repasses (operadas via instituições financeiras credenciadas, que se encarregam da análise de viabilidade dos projetos e assumem os riscos da operação), que cresceram mais ou menos em linha no período, ainda que o volume das operações com repasse tenha sido maior no período. A partir de setembro de 2008, entretanto, o financiamento direto passa a crescer mais do que os repasses, atingindo R$ 155,7 bilhões em dezembro de 2009 contra R$ 124,6 bilhões dos repasses. As principais linhas de apoio de financiamento do BNDES são, por ordem de importância de valores, BNDES-exim (financiamentos à exportação de bens e serviços para pré e pós-embarque), FINEM (financiamentos de valor superior a R$ 10 bilhões para realização de projetos de investimento para aquisição de máquinas e equipamentos nacionais ou sem simular nacional) e FINAME (financiamento, através de instituições financeiras credenciadas, para aquisição de máquinas e equipamentos novos).27 27 Tais linhas de financiamento responderam por 77% do total de financiamento do BNDES em 2008. O BNDES-exim predominou entre 2003 e 2006, período no qual a economia foi puxada pelo forte dinamismo das exportações, enquanto as outras modalidades, particularmente o FINEM, cresceram a partir de 2007, período em que a taxa de investimentos se acelerou sobremaneira em função do forte crescimento do mercado doméstico.28 28 Segundo Carneiro et al. (2009, p. 23), o BNDES-exim teve participação de 40,6% em 2000- 2009 (junho), seguido do FINEM (33,5%) e do FINAME (12,2%).
Analisando-se os desembolsos do BNDE por setor de atividade (Gráfico 19), observa-se a forte predominância do setor industrial29 29 No setor industrial, destacamse as seguintes áreas de atividade: petróleo e combustível, outros equipamentos, produtos alimentícios, veículos e carroceria, metalurgia, celulose e papel. e do setor de infraestrutura (principalmente, eletricidade e gás, e telecomunicações), que tiveram participação relativa média de 46,2% e 32,7%, respectivamente, no total dos desembolsos no período 2000-2009, tendo ambos crescidos a partir de 2005 e particularmente em 2008-2009. Os desembolsos no setor industrial e em infraestrutura praticamente duplicaram de 2007 para 2009, passando de R$ 28,4 bilhões e 26,1 bilhões em 2007 para R$ 63,5 bilhões e R$ 44,5 bilhões em 2009, respectivamente. A modalidade "outros serviços" (exclusive infraestrutura e comércio) cresceu em 2008-09, mas mantendo- se bem abaixo do setor industrial e de infraestrutura.
5_Conclusão
A oferta de crédito é causa e consequência do crescimento econômico, já que propicia maior elasticidade no crescimento dos gastos dos agentes, antecipando poder de compra novo, mas, ao mesmo tempo, o próprio crescimento do produto e da renda acaba, pelo lado da demanda, por estimular o crescimento do crédito. Em países emergentes, como o Brasil, com mercados financeiros incompletos e marcado pela instabilidade econômica, o crescimento do crédito privado estimula as decisões dos gastos dos agentes, por meio do aumento do crédito pessoal, do crédito para aquisição de veículos e do crédito para capital de giro das empresas, mas não parece atender a determinadas modalidades específicas do crédito, de maior risco e/ou de horizonte temporal mais dilatado, como é o caso do financiamento do investimento e do financiamento agrícola. No caso do Brasil, tais modalidades - e mais recentemente também o financiamento às exportações - têm participação fundamental dos bancos públicos, em especial dos grandes bancos federais.
Vimos, inicialmente, neste paper, que a reestruturação que ocorreu no setor bancário no período pós-Real, em que os bancos públicos, em razão principalmente da privatização de bancos estaduais, perderam market share para os bancos privados, vindo posteriormente, no quadro do contágio de crise de 2008, a desempenhar importante papel contracíclico na economia. Esse papel se deve ao fato de que os bancos públicos, apesar da perda de market share, têm peso importante na economia brasileira, e ainda ao fato de que, mesmo no período pré-crise, os bancos públicos federais passaram por um processo de reestruturação operacional e já vinham crescendo suas operações de crédito.30 30 Para uma análise sobre o papel recente dos bancos públicos na economia brasileira, em suas diversas dimensões (desenvolvimento econômico, desenvolvimento regional, etc.), ver Jayme Jr e Crocco (2011).
Este artigo analisou em particular as tendências gerais da evolução recente do crédito no Brasil. No período 1995-2003, a instabilidade econômica de uma economia sujeita a choques externos, o comportamento a la "stop and go" da economia brasileira e a tendência à semiestagnação ensejaram um ambiente pouco propício ao desenvolvimento do mercado de crédito. Assim, a oferta de crédito declinou fortemente no período, atingindo em 2003 um patamar de apenas 23% do PIB. O volume de crédito não só reduziu, como também predominou o crédito de curto prazo. A opção por aplicação em títulos públicos indexados proporcionava aos bancos comporem seu portfólio combinando liquidez e rentabilidade. Esse período foi marcado também por mudanças estruturais importantes, como a privatização de bancos estaduais e a entrada de bancos estrangeiros no mercado bancário doméstico.
Já em 2004-2008, o maior crescimento econômico e a estabilidade macroeconômica, ao reduzir os riscos da atividade bancária, estimularam o crescimento da oferta de crédito, passando rapidamente de 23% em abril de 2003 para mais de 30% do PIB em 2007. Ainda que os bancos públicos tenham crescido sua carteira de crédito no período, o boom do crédito foi liderado pelos bancos privados nacionais e pelo crédito com recursos livres. As modalidades que mais cresceram foram crédito pessoal, aquisição de veículos e capital de giro das empresas. O crédito direcionado (BN-DES, rural e habitacional) cresce no período bem abaixo do crescimento do crédito com recursos livres, ainda que, desde 2007, o BNDES viesse aumentando sua oferta de crédito, para atender a maior demanda para financiamento do investimento (indústria e infraestrutura, principalmente), cuja taxa começava a se acelerar, em função do próprio crescimento da economia. No quadro do contágio da crise financeira, a partir de setembro de 2008, tanto o crédito direcionado quanto a oferta de crédito dos bancos públicos cresceram bastante, atenuando a desaceleração no crédito dos bancos privados e no crédito livre (em particular, no crédito corporativo). Banco do Brasil e CEF compraram carteiras de crédito de outros bancos, atenuando os problemas de restrição de liquidez do setor bancário, e o BNDES aumentou significativamente seus desembolsos em 2008 e 2009, caracterizando um papel contracíclico, que foi uma das peças fundamentais na política de combate à crise do governo federal.
Em conclusão, o artigo procurou mostrar que os bancos públicos cumprem um papel diferenciado no atendimento a certas modalidades de crédito (investimento, rural e habitacional, principalmente) e tiveram um papel contracíclico fundamental no contágio da crise financeira recente sobre a economia brasileira. Esse resultado específico mostra a importância de se ter bancos públicos competitivos e inseridos dentro de um contexto estratégico de política econômica, de forma que suas ações são complementares à atuação da autoridade monetária. Isso porque, em um ambiente de forte incerteza no qual o crédito se contrai abruptamente, não apenas uma política monetária expansionista é importante para gerar a liquidez necessária ao sistema, mas também a atuação dos bancos públicos, uma vez que suas ações modificam o market share do setor e, portanto, em última análise, impactam a lucratividade e a performance dinâmica dos demais bancos. Ou seja, quando Banco do Brasil e CEF aumentam suas operações de crédito no auge da crise, a ampliação de market share oriunda de tal expediente, além de constituir importante instrumento contracíclico à disposição do governo, impacta a rentabilidade futura dos demais bancos. Isso se deve ao fato de que, em um setor com notada presença de economias de escala, a participação relativa no mercado é uma importante variável estratégica. Nesse sentido, os bancos públicos podem funcionar como uma locomotiva do setor, puxando e forçando a ampliação de crédito por parte dos demais bancos.
Uma dimensão não explorada neste artigo a respeito do papel dos bancos públicos na economia brasileira é sua importância para diminuir o problema da desigualdade regional do crédito no Brasil entre as regiões menos desenvolvidas do país (em geral localizadas no Norte-Nordeste) e as regiões mais desenvolvidas (principalmente Centro-Sul). Vários estudos atestaram empiricamente tal desigualdade regional (Menezes et al., 2007; Freitas; Paula, 2010), mas pouca atenção foi dada à atribuição dos bancos públicos federais nesse processo. Fica aqui uma sugestão para futuras pesquisas.
Artigo recebido em fevereiro de 2011 e aprovado em novembro de 2011.
E-mail de contato dos autores:luizfpaula@terra.com.br. www.luizfernandodepaula.com.br, joreirocosta@yahoo.com.br, www.joseluisoreiro.ecn.br, flaviobasilio@gmail.com Este artigo é uma versão modificada de um texto preparado originalmente para a CEPAL. Os autores agradecem as sugestões de um parecerista anônimo, isentando-o de erros e omissões remanescentes.
Tabela A1- Clique para ampliar
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
10 Jun 2014 -
Data do Fascículo
Dez 2013
Histórico
-
Recebido
Fev 2011 -
Aceito
Nov 2011