PSICANÁLISE E UNIVERSIDADE: PERSPECTIVAS1
Luís Claudio Figueiredo2
Instituto de Psicologia USP
De início, um agradecimento pelo convite para falar e também pela oportunidade de ouvir. Eu estou aqui desde o início, pela manhã, e me interessei bastante pelas falas que me precederam. Eu queria também parabenizar as organizadoras deste evento pela oportunidade do encontro e pela qualidade do material que nós estamos podendo apreciar.
Foram programadas quatro mesas redondas. Esta, para a qual eu fui convidado, intitula-se "Psicanálise e Universidade: perspectivas." Em todas as anteriores, contudo, misturavam-se várias questões. Na primeira, o tema oficial era "integração," na segunda, era "ensino," na terceira, "pesquisa," mas, na verdade, ninguém ficou estritamente dentro do seu tema específico, da sua rubrica. Isto é bom, é necessário e, de uma certa maneira, mostra a dificuldade de equacionar um assunto como esse, fazendo segmentações. As coisas estão profundamente implicadas e é preciso que nós, de alguma maneira, possamos pensá-las nesta complexidade.
Porém, atravessando todas essas diversas questões, alinhavando esses diversos âmbitos e esses diversos aspectos da relação entre Psicanálise e Universidade, é claro, subjazia uma inquietude, uma sensação de que as relações entre Psicanálise e Universidade constituem um campo problemático. Aí eu me coloco a questão: qual é o problema, onde é que está o problema, será que existe mesmo problema? E, havendo, terá ele alguma especificidade digna de nota?
Quando colocamos a questão da integração da Psicanálise à Universidade, tendemos a nos esquecer de que talvez não haja nenhum lugar institucional no qual a Psicanálise possa existir e ser exercida totalmente à vontade, onde o seu exercício esteja plenamente garantido. Eu me refiro, por exemplo, às Sociedades de Psicanálise, aos Institutos de formação em Psicanálise mantidos por estas Sociedades. Não há dúvida de que são necessários. Longe de mim pensar em qualquer anarquismo e destruição destas instâncias. Elas são indispensáveis e cumprem funções importantes. Contudo, seria um erro supor que sejam suficientes para a garantia da vitalidade da Psicanálise e para a formação de analistas. Como já foi dito por alguns que me antecederam, estas instituições, de maneira nenhuma, dão a segurança indiscutível de que dentro delas a Psicanálise seja uma Psicanálise mais eficaz, mais verdadeira do que a que pode ser exercida em outros lugares e em outras condições.
Isso advém do fato de que a Psicanálise, tal como eu a vejo, é um saber e uma prática que diz respeito à experiência do inconsciente e que, nesta medida, ela é, por sua natureza própria, subversiva, perturbadora, desconstrutiva. Ela põe em questão todos os enquadres institucionais e as próprias identidades institucionais, tanto daqueles que se submetem à terapia psicanalítica, como dos que a praticam ou que a exercitam nas diversas maneiras da Psicanálise estar presente no campo da vida social, seja dando interpretações importantes sobre processos e fenômenos da cultura, seja quando ela é chamada para, de alguma maneira, intervir nas escolas, nas prisões, nos hospitais (e não só nos hospitais psiquiátricos, mas no Hospital Geral).
É impensável para mim imaginar a psicanálise totalmente integrada, aceita e funcionando sem produzir resistência. Há algumas formas de resistência que são mais fáceis de serem identificadas, como, por exemplo, nos casos em que testemunhamos a resistência à vida psíquica, a resistência ao psiquismo inconsciente, tanto nos pacientes como nos que nem chegam a se expor a esta proximidade. A partir daí ocorrem ataques muitas vezes virulentos à psicanálise.
Mas eu fico pensando, às vezes, se a própria difusão da psicanálise não tem uma dimensão resistencial. Pode-se pensar que, porque todo mundo aceita em certos ambientes o discurso psicanalítico, ali ele esteja mais vivo, esteja de fato mais vigoroso. Mas pode ser o contrário.
Quando eu encontro nos cursos de formação de psicólogos uma grande aceitação, uma grande valorização e prestígio da psicanálise, isto absolutamente não me convence de que aí também não deva ser reconhecido um fenômeno resistencial. Acolher este grande inimigo das certezas para transformá-lo, digamos assim, em um fetiche, não tem nada a ver com Psicanálise, seja como pensamento, seja como prática.
Esse processo pode fazer parte de uma construção de identidades da qual a Psicanálise propriamente dita está muito longe. Na verdade, a Psicanálise está na contramão desse processo identificatório e de estabelecimento de certezas sobre si mesmo.
Eu diria, assim, que a Psicanálise é um saber e uma prática profundamente perturbadoras que produzem inevitavelmente resistências. Por outro lado e paradoxalmente, e isto é o que é interessante, ela também contribui para uma proliferação de demandas de... presença da Psicanálise. São demandas que vêm das mais variadas instâncias, que vêm da mídia, que vêm das escolas, das várias instituições ligadas ao trabalho, do atendimento à saúde, e assim por diante. Essas demandas crescem, elas proliferam no solo fértil da desorientação, da perplexidade, do desamparo, característicos das sociedades contemporâneas.
De tal maneira, quando a gente se lembra daquela famosa frase do Freud, quando se aproximava dos Estados Unidos - "Eles não sabem que nós estamos lhes trazendo a peste" - devemos pensar nesse duplo aspecto. Não apenas trata-se "da peste" porque ela destrói muitas "certezas," muitas convicções, certa ordem sustentada em ilusões, mas trata-se "da peste" porque tende a proliferar de maneira às vezes até descontrolada.
Como eu falei, esse descontrole, essa difusão às vezes abastardante, niveladora, até desqualificadora, faz parte do processo de resistência. Não dá para separar uma coisa da outra. A Psicanálise age na sua mais própria eficácia gerando resistências porque é necessariamente um saber subversivo, uma experiência do inconsciente e a "verdade" que promove contraria a ordem estabelecida. Mas uma das formas de resistir a ela é através de um certo tipo de adesão e das tentativas de institucionalização e enquadramento. As instituições, mesmo as psicanalíticas, funcionam quase que inevitavelmente como uma proteção contra o saber e a prática de transformação que a própria Psicanálise é capaz de promover.
Assim, pode-se dizer que não se trata apenas de problematizar a ligação da Psicanálise com a Universidade, como se o problema fosse com a Universidade em sua oposição à Psicanálise. Convém problematizar as relações da Psicanálise com todas as instituições, com o Instituído em geral.
O que não significa apostar na crença ingênua e romântica de que a Psicanálise possa prescindir de alguma institucionalização e que possa vicejar à margem das instituições. O que nós temos que saber é que este "problema" faz parte da dinâmica em que a Psicanálise existe e atua, não é uma coisa, portanto, que possa ser evitada, ela tem que ser enfrentada até com as armas que a própria Psicanálise pode nos fornecer. Os paradoxos na existência da Psicanálise não podem ser eliminados, supondo-se que possa haver um apaziguamento e uma integração sem conflitos, ou seja, que haja um lugar em que a "Verdadeira Psicanálise" possa funcionar sem entraves e com o máximo de pureza e garantias.
Tratemos agora do outro lado, a Universidade.
Eu diria que a Universidade, pelo menos a Universidade que está viva, é exatamente aquela Universidade que está sempre às voltas com a tensão entre, de um lado, a integração de saberes e práticas e, por outro lado, uma certa clivagem e dissociação entre áreas, tal como, por exemplo, aparece na constituição de Departamentos, de Institutos, de Núcleos de Pesquisa, de Centros de Pesquisas etc. Ou seja, o que é próprio da vida universitária, me parece, é, por um lado, uma exigência universalista - no sentido de que é preciso que aprendamos a dialogar, a fazer conexões, a nos tornar compreensíveis para outros profissionais e para outras áreas de saber - e, ao mesmo tempo, consigamos conservar a nossa especificidade.
Isso nem sempre se mantém em bom equilíbrio. Às vezes, a balança tende demasiado para um lado, em geral para o lado das especializações e segmentações, mas o que é próprio da vida universitária é a instalação e sustentação dos espaços intermediários, dos fóruns interdisciplinares.
Muitas vezes se fala contra a departamentalização como se essa segmentação fosse apenas um mal. Mas ela também é condição para que a singularidade dos saberes e das práticas possa ser garantida. Na verdade, mais importante até que o Departamento, pode ser o laboratório, o grupo de pesquisa. A Universidade deve ser capaz de instalar e defender estes espaços de trabalho e pesquisa ultra singularizados. Ou seja, é preciso reconhecer a diferença, respeitar as diferenças e cultivar as singularidades que habitam o meio universitário para que tenha algum sentido a própria idéia da intermediação e da interdisciplinaridade.
Então, parece que também para a Universidade, assim como para a Psicanálise, a questão da integração não é uma questão resolvida de uma vez por todas. Ela é uma questão que se impõe e uma questão vital. Para a Universidade, enfim, a integração e diferenciação dos saberes universitários não é nunca jamais uma questão pacífica, mas é uma questão que se impõe pela exigência universalista de capacidade de diálogo, de circulação dos saberes e, ao mesmo tempo, de respeito à diferença e conservação das singularidades.
Existe, infelizmente - vários aqui já mencionaram e já foi suscitado diversas vezes esse tema - um discurso a respeito de uma suposta incompatibilidade entre, digamos, o chamado "discurso universitário" e o "discurso psicanalítico" ou a "prática psicanalítica." O que se afirma, então, é que haveria uma incompatibilidade epistemológica, metodológica, institucional enter a Psicanálise e a Universidade.
Eu quero já de antemão dizer que não acredito nisso. O que não significa que não haja uma incisiva singularidade em uma prática que tem a ver exatamente com a experiência do inconsciente.
Assim, para início de conversa, eu assinalo essa diferença. Mas essa diferença, do meu ponto de vista, não implica em uma separação efetiva, em uma exclusão. Nem creio que seja impossível, como, inclusive pelo efeito de contraste, julgo absolutamente vantajoso, tanto para a Psicanálise quanto para a Universidade, estabelecer esses canais de comunicação.
Na verdade, quando se fala muito a favor de uma suposta incompatibilidade, epistemológica por exemplo, entre a Psicanálise e os saberes universitários, esta fala se sustenta em várias ficções. A primeira ficção é a da homogeneidade dos saberes universitários. Eles não são homogêneos. Nesta universidade ensina-se Medicina e Direito; os prédios da Matemática e da ECA, onde se ensinam artes cênicas, estão próximos; a fantasiosa Arquitetura está na frente da exatíssima Poli e seus aguerridos engenheiros; temos Enfermagem, Teoria literária, e assim por diante. Não há absolutamente a suposta homogeneidade universitária diante da qual ou no seio da qual a Psicanálise seria "o estranho." Estranhos somos todos. Estranho é o sujeito que está em Direito para quem está fazendo Medicina, e assim por diante. Isto para não falar nas outras estranhezas. Mas, pelo menos em termos epistemológicos e institucionais, não existe esta suposta homogeneidade e a Psicanálise na Universidade não vai, portanto, destoar. Ela vai ser mais um estranho entre estranhos, mas forçada, e isto é que é bom, a uma certa capacidade de intervir, comunicar-se e existir neste complexo.
A outra ficção é a de que fora da Universidade a Psicanálise goza de melhor acolhida, mais espaço, maiores garantias etc. Já vimos que isso não é verdade. Nem a Psicanálise prescinde de vida institucional, nem há uma instituição dentro da qual a Psicanálise possa existir plenamente e à vontade. As Sociedades de Psicanálise podem muito bem ser túmulos do pensamento psicanalítico, muito mais hermeticamente fechados que um Departamento universitário, onde o pensamento pode ser livre e é sempre obrigado a justificar-se racionalmente. Mas na Universidade e fora dela, a Psicanálise estará sempre na contramão das resistências diversas e tão dissimuladas que ela mesma suscita.
Assim, a pretensa "incompatibilidade" revela sua origem: uma concepção idealizada, simplificadora e estereotipada tanto da Psicanálise como da Universidade. Nem a Universidade está dominada pelo "discurso universitário," uniforme e uniformizador, nem a Psicanálise pode, paradoxalmente, existir e ser eficaz no seio de uma Instituição idealmente disposta a acolhê-la. Se isso parece ocorrer, às vezes, cuidado: há algum logro operando e a Psicanálise como experiência do inconsciente anda a léguas de distância destes supostos oásis psicanalíticos.
Mas eu gostaria também de retomar a questão da diversidade universitária, focalizando a enorme diversidade das vinculações interdisciplinares da Psicanálise que, sem perder a sua singularidade, precisa manter o contato com muitas "áreas afins."
Temos exemplos como o de Freud, cuja formação enquanto neurologista, enquanto médico, enquanto alguém ligado ao campo da biologia, não teria sido suficiente, mas, sem dúvida, também não teria sido dispensável para as suas formulações teóricas. É claro, por outro lado, que se ele não tivesse a formação "holística," se não tivesse um conhecimento de literatura, de filosofia, de artes, se não estivesse interessado nos grandes problemas sociais, na guerra, nas diferentes expressões da cultura, a Psicanálise não existiria. Ou seja, eu diria que a Psicanálise, por natureza e nascimento, tem um caráter transdisciplinar. Isto não quer dizer que ela seja um amálgama, uma mistura das várias coisas Ela tem a sua singularidade, mas é uma singularidade que se construiu exatamente nesse lugar às vezes muito difícil, muito problemático em termos epistemológicos, e muito denso, que é o de uma acentuada transdisciplinaridade.
É nesta medida que eu penso que uma das coisas que, às vezes, os Institutos de formação, as Sociedades Psicanalíticas não conseguem oferecer é ... uma formação em Psicanálise. É lógico que o comum dos psicanalistas não vai ter nem precisa ter a cultura de Freud, ou de outros grandes nomes da Psicanálise, como, por exemplo, Bion, que ia da matemática para a filosofia oriental, para a literatura e assim por diante. Estes, contudo, são os grandes criadores, indispensáveis aos desenvolvimentos científicos e técnicos da disciplina. Mas que efetivamente se tome consciência que a formação de psicanalistas, de uma certa maneira, exige esse trânsito e que o pensamento psicanalítico só pode existir, só pode viver, só pode se vitalizar, na medida em que a gente se entregue a essa dimensão transdisciplinar.
Aqui, na percepção dessa possibilidade e, mais que isso, dessa necessidade de diálogo, de confronto com as ciências humanas, com as ciências sociais e com as ciências biológicas, eu tenho um grande apreço pelos espaços que a Universidade pode abrir para a Psicanálise. São espaços para o desenvolvimento de estudos psicanalíticos, ou até filo ou para-psicanalíticos, em que as questões da Biologia, da Fisiologia, da Neurofisiologia e das Neurociências, bem como as das Ciências da Linguagem e da Cultura podem ser tratadas. Alguns trabalhos, por exemplo, sobre o desenvolvimento emocional com base em observação, em experimentação, e em articulações conceituais da Psicanálise com as Neurociências e com a Etologia mostram como o ambiente universitário é insubstituível.
É a Universidade o único lugar onde, por obrigação, a gente tem como colegas pessoas tão diversas quanto médicos, biólogos, lingüistas, cientistas sociais , historiadores e assim por diante.
Pena que o César Ades não esteja mais presente, mas eu diria que aquela idéia que ele trouxe de uma unidade no conhecimento é perfeitamente válida enquanto uma idéia reguladora. Ela seria péssima enquanto uma camisa de força. Supor uma unidade de saberes, uma unidade epistemológica e metodológica - o velho ideal positivista da "Ciência Unificada" - e impor essa unidade "na marra" seria de uma arbitrariedade absurda porque estaríamos exatamente tentando reduzir, por decreto, essa diversidade teórica, epistemológica e metodológica dos saberes. Agora, a idéia reguladora da universalidade é útil exatamente por que ela sustenta essa promessa, essa expectativa de uma possibilidade de comunicação entre áreas tão diversas. Essa comunicação, por mais difícil que seja, é vantajosa para todos. Eu diria que os espaços universitários são uma arena privilegiada para essas aproximações, para estes confrontos entre tantas áreas diferentes.
Ligado a isso, queria tocar ainda em um assunto que acabou sendo falado por vários dos que me precederam. Quando falamos em "Psicanálise e Universidade" estamos talvez criando uma abstração que, às vezes, é um impedimento para a reflexão e mesmo para qualquer pensamento. Uma coisa é a Psicanálise e a Psiquiatria nos cursos de Medicina, na formação do médico; coisa muito diferente é a Psicanálise na Psicologia; coisa diferente é a Psicanálise que está hoje nos cursos de Fonoaudiologia; coisa diferente é a Psicanálise que hoje está nos cursos de Lingüística, diferente daquela que está nos departamentos de Teoria da Literatura (e existem pessoas aqui na USP que trabalham nisso), ou em Ciências Sociais, ou na História.
Não é o mesmo contexto, não são as mesmas regulações e as mesmas interações e interseções. A rigor, não é a mesma questão. Então, quando se fala em "Psicanálise na Universidade" seria muito interessante que a gente detalhasse e precisasse um pouco o contexto e as regras de convivência para se tentar identificar os vários mecanismos, as várias dinâmicas que são características destes diferentes ambientes, não apenas no emprego das disciplinas, mas na instituição concreta dos espaços universitários que a Psicanálise é chamada a ocupar. Pensar em "Psicanálise e Universidade" no abstrato e em um nível de grande generalidade, como se o objetivo fosse o de integrar a "Psicanálise" à "Universidade" (quem sabe tomar o poder...), apenas nos dificulta nas tarefas sempre muito mais artesanais e cotidianas de ir criando e ocupando de formas muito diversas e variadas os espaços viáveis de convivência entre psicanalistas e outros intelectuais e cientistas.
E ainda tem mais: há ainda essa distinção, que também já foi abordada várias vezes, entre a Psicanálise na Graduação dos cursos de Psicologia, na Graduação dos cursos de Medicina etc. e nas Pós-graduações. São também realidades distintas, todas elas merecedoras de análises particulares, para que a gente não pense a coisa de uma forma tão global que vire um bolo, e um bolo não é digerível de uma única "bocada;" precisamos ir cortando as fatias para torná-lo realmente assimilável.
Enfim, como deve estar ficando claro, meu empenho contínuo é o de retornar às realidades concretas e suas particularidades, ao invés de me perder em grandes abstrações como "Psicanálise e Universidade," "discurso universitário e discurso psicanalítico" etc.
Eu diria que, independentemente de Graduação ou Pós, de Medicina ou Psicologia, ou qualquer outro lugar, onde quer que o psicanalista esteja, talvez o âmago da questão se mantenha como sendo o de propiciar e cultivar uma forma de integração da Psicanálise na Universidade - com todas as vantagens que eu já falei em termos de conexões, de desafios, de convergências e fecundações recíprocas -, mas sabendo, sempre, que esta "integração" (eu insisto em colocar integração entre aspas) não deve de jeito nenhum excluir o pensamento das resistências e dos confrontos. Supor que em algum lugar a Psicanálise esteja em casa, eis o problema. Ela nunca está absolutamente em casa, pois se estiver, já não é Psicanálise.
A Psicanálise não está em casa; é exatamente o saber que nunca está em casa. Aliás, é o que nos lembra permanentemente que nós não estamos em casa em nós mesmos e no mundo. Mas todas as casas se arejam e podem se tornar um pouco mais habitáveis, quando se dispõem a hospedar este curioso hóspede que, se tem algo de sinistro e impertinente, é também uma fonte inesgotável de surpresa e humor. Como seria interessante, ainda mais nestes negros tempos de uma greve interminável, termos um psicanalista na Reitoria e outro na presidência da ADUSP!3
A minha experiência particular no tema "Psicanálise e Universidade" é, principalmente, uma experiência ligada à Pós-graduação; mais especificamente, é uma experiência na Pós-graduação da PUC de São Paulo. Também da PUC-SP já estiveram aqui o Fábio Herrmann e o Gilberto Safra, que é daqui da USP e também de lá.
O que eu acho interessante pensar a respeito dessa nossa experiência na PUC-SP, é que ela permitiu que cada um de nós três, e também o Manoel Berlinck, fôssemos criando nichos de trabalho docente, pesquisa e orientação. Criamos, cada um de nós, um nicho bem pessoal, apesar de fazermos parte de um corpo docente, estarmos integrados a uma Universidade e à rede simbólica e funcional que ela sustenta e mobiliza e, portanto, termos acesso a professores e alunos de outros departamentos, de outros programas, de outras instituições. Quando estes nichos, contando com os recursos da Universidade e de seus órgãos de fomento e apoio (CNPq, FAPESP etc), conseguem estabelecer suas próprias redes inter-institucionais - como é o caso do Laboratório de Psicopatologia Fundamental da PUC-SP (dirigido por Berlinck), conectado a nichos similares na UNICAMP (Mário Eduardo Costa Pereira) e em diversas outras universidades brasileiras -, potencializam-se as condições da pesquisa e da docência em Psicanálise.
Nem sei a quantidade de vezes que tivemos na PUC professores convidados da filosofia, da teoria literária, da história e até da física e da biologia. Estas pessoas - por exemplo, muitos filósofos - sabiam perfeitamente que estavam convidadas a abrir um diálogo da filosofia com a Psicanálise. Iam falar para psicanalistas e eles sabiam disso, não iam ensinar filosofia pela filosofia, mas iam atuar e pensar em função de problemas, de questões, de demandas que a formação de psicanalistas colocava.
Trata-se, assim, de nichos, onde cada um pode ir criando seu ambiente de trabalho mais favorável e, ao mesmo tempo, mantendo-se próximo de colegas psicanalistas ou não-psicanalistas. Algo semelhante se verifica hoje no Departamento de Psicologia Experimental da USP, onde Nelson Coelho Júnior está ativamente empenhado em montar seu nicho (no qual eu pretendo tomar carona), com alunos de graduação e de pós, ao lado de colegas aparentemente afastados da psicanálise, mas de cuja companhia ele e seus orientandos só têm a ganhar. São pesquisadores nas áreas da Etologia e das Neurociências com quem um psicanalista pode estabelecer um convívio pessoal e profissional muito ameno e proveitoso. Como se vê, nichos assim podem ser criados nos lugares mais improváveis.
No nicho que pude criar na PUC-SP, tenho tido algumas experiências que são muito importantes para mim. Por exemplo, a experiência de conviver com a diversidade de cabeças. Eu tenho alunos - tanto regulares como alunos ouvintes das mais diversas proveniências, porque lá nós valorizamos muito essa condição de "ouvinte" - que vêm de uma formação lacaniana, de uma formação bioniana, de formação kleiniana, winnicottiana etc., além de pessoas que vêm da terapia ocupacional, da fonoaudiologia, da literatura, das artes, da música. Nós temos a possibilidade e a necessidade de conseguir lidar com todas essas diferenças, o que dificilmente ocorre dentro das Instituições psicanalíticas. Fazemos isso com grande liberdade - porque não há ali nenhuma religião a ser praticada e, não se tratando de uma Sociedade, não há nenhuma questão de poder em jogo.
Há, enfim, uma enorme liberdade de pensamento nos nossos trabalhos de pesquisa, nas nossas discussões, nas aulas, uma liberdade imposta pela própria diversidade que o espaço universitário nos proporciona.
Ao mesmo tempo, há a exigência universitária de rigor. Uma exigência de rigor, mas um rigor que, como disse o Gilberto Safra, passa às vezes por alguns lugares muito diferentes do que seria a mera aplicação sistemática de um determinado método científico consagrado.
Acho que para falar de "alternativas para a Psicanálise na Universidade," mantendo-me fiel à minha ojeriza às abstrações demasiadamente genéricas, não posso fazer propostas que sejam para todos. Na verdade, creio que seria mais frutífero falar das possibilidades de psicanalistas nos espaços universitários do que em "Psicanálise na Universidade." Assim, eu diria que para mim vale a pena estar na Universidade desde que se abra, como perspectiva de trabalho, a formação e o cultivo destes nichos, onde, entre outras coisas, por exemplo, nós estamos há alguns anos tentando praticar e desenvolver um modo de estudo de textos - uma "metodologia" de trabalho com textos psicanalíticos - que tenha relevância para a clínica. Ou seja, não se trata de submeter um texto psicanalítico a uma mera leitura de estudo e sistematização O texto vai ser "tratado" de tal maneira que lhe permita a evocação no leitor da sua experiência clínica e a produção de um saber que é clínico, embora se dê fora da clínica. As "aulas" se convertem, então, em reuniões de leitura rigorosa de textos, baseada em uma "metodologia" que tem sido desenvolvida com o objetivo de fazer com que o lidar com o texto nos sirva para a escuta e como um importante subsídio para a formação de psicanalistas. Trata-se, simultaneamente, de uma forma de articular o estudo à pesquisa, a pesquisa teórica à pesquisa clínica e ambas à atividade profissional. Enfim, uma maneira entre muitas outras de gerar artesanalmente canais de comunicação entre os espaços universitários e as atividades psicanalíticas.
Só tenho a agradecer à Universidade e esperar dela que continue me dando este espaço de existir dentro do meu nicho. Muito obrigado.
Recebido em 23.08.2001
Aceito em 05.10.2001
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
25 Mar 2002 -
Data do Fascículo
2001