Resumo:
O objetivo deste artigo é apresentar, a partir da leitura de textos da teoria psicanalítica de Sigmund Freud, uma compreensão sobre os processos psíquicos do sujeito em uma situação de violência. Pensamos que a pulsão é a condição para o estabelecimento do laço entre sujeito e cultura. Quando uma situação de violência se apresenta ao sujeito, ela rompe com essa condição, anulando a possibilidade de ele se representar em um tempo e um espaço. Como forma de reestabelecer o sujeito nesse circuito pulsional que o coloca em relação com o outro, a transmissão dessa experiência de violência se apresenta como um dever. Essa transmissão, porém, não se faz sem a inscrição de perdas.
Palavras-chave: transmissão; violência; pulsão; tempo
Résumé:
L'objectif de cet article est de présenter, à partir des textes de la théorie psychanalytique de Sigmund Freud, une compréhension des processus psychiques du sujet dans une situation de violence. Nous pensons que la pulsion est la condition pour établir le lien entre le sujet et la culture. Quand une situation de violence se présente au sujet, cette condition est rompue, niant sa possibilité de se représenter dans le temps et l'espace. Afin de rétablir le sujet dans ce circuit pulsionnel qui le met en relation avec l'autre, la transmission de l'expérience de la violence se présente comme un devoir. Cette transmission, cependant, ne s'inscrit pas sans pertes.
Mots-clés: transmission; violence; pulsion; temps
Resumen:
Este artículo tiene el objetivo de presentar la comprensión de los procesos mentales del sujeto en una situación de violencia, a partir de la lectura de textos de la teoría psicoanalítica de Sigmund Freud. Creemos que la pulsión es la condición para establecer el vínculo entre el sujeto y la cultura. Cuando se presenta una situación de violencia al sujeto, se rompe con esta condición, negando la posibilidad de que él puede representarse en un tiempo y espacio. Con el fin de restablecerle en este circuito pulsional que le pone en relación con los demás, la transmisión de la experiencia de la violencia se presenta como un deber. Sin embargo, no se la inscribe sin pérdidas.
Palabras clave: transmisión; violencia; pulsión; tiempo
Abstract:
The objective of this paper is to present, based on the reading of essays on psychoanalytic theory by Sigmund Freud, an understanding of the psychic processes of the subject in a situation of violence. We believe that the drive is the condition for the establishment of the link between subject and culture. When a situation of violence presents itself to the subject, it breaks with this condition, annulling the subject's possibility of representing himself in a time and space. As a way to re-establish the subject in the drive circuit that places him in a relation with the other, the transmission of this experience of violence presents itself as a duty. This transmission, however, does not occur without the inscription of loss.
Keywords: transmission; violence; drive; time
Este trabalho parte da ideia de que o processo de transmissão de uma experiência, através do registro da memória e do testemunho, é uma forma de reestabelecer a relação entre sujeito e cultura quando uma situação de violência se voltou contra as condições de o sujeito se representar em um determinado tempo e espaço. A transmissão é um operador que suspende o retesamento dos tempos, articulando passado, presente e futuro, do mesmo modo que restitui um lugar para aquele que foi violentamente deslocado de si mesmo.
Propomos pensar sobre os fundamentos de uma teoria psicanalítica da transmissão de experiências de violência, através da investigação de textos de Sigmund Freud que nos orientem neste percurso. Como efeito, esta fundamentação nos leva a questionar a própria relação que se estabelece entre os termos "sujeito" e "cultura". Trata-se de termos que não podem ser tomados com igual valor - como termos idênticos - nem podem ser representados em oposição um ao outro - como termos excludentes -, como se o sujeito pudesse ser separado da cultura, deixando-o independente das condições históricas e sociais nas quais ele se encontra. Marcar que sujeito e cultura estão imbricados como estruturas diferentes e indissociáveis insiste na ideia que os processos subjetivos não podem ser isolados dos acontecimentos sociais, nem estes podem ser afastados da esfera dos atos singulares de cada sujeito.
Dessa forma, entendemos que tempo e espaço são mais do que formas a priori de conhecimento sensível do mundo, assim como também não são estruturas cognitivas que permanecem estáveis ao longo da vida - conforme afirma a tradição da filosofia kantiana, que segue o que propõe Imanuel Kant (1781/2001) na obra Crítica da Razão Pura, em sua Estética transcendental. Ao contrário, pensamos que as dimensões de tempo e espaço são condições para o sujeito se representar desenvolvidas através dos laços sociais. E, nesse sentido, o conceito de pulsão se coloca como fundamento desse enlaçamento do sujeito ao outro. Ademais, a violência a qual nos referimos é decorrente da tentativa de aniquilação das referências espaço-temporais de um sujeito, tais como pode acontecer no apagamento de sua memória e de sua história, no aprisionamento e no encarceramento em prisões, hospícios e casas de detenção, na desterritorialização forçada através do exílio e de processos migratórios. A transmissão dessas experiências se faz como uma resistência necessária do sujeito, que o recoloca em um mundo onde ele pode se representar a si mesmo diante dos outros. Diante disso, veremos, a partir de conceitos da teoria psicanalítica freudiana, que o sujeito se organiza através de representações singulares de espaço e tempo que narram sua história e o identificam em um lugar.
Buscamos articular nossa ideia por textos psicanalíticos também como uma forma de fazer esta teoria avançar em suas aplicações - que por vezes se limita a pensar o sujeito apenas em sua individualidade, sem se lançar também a pensar em situações nas quais o sujeito é apagado por violências provindas daqueles que deveriam lhe dar reconhecimento. Assim, evitando os erros e perigos de pensar o sujeito apartado da coletividade, contribuímos com conceitos psicanalíticos para fundamentar o entendimento dos processos psíquicos que ocorrem em sujeitos que sofreram algum tipo de violência.
De um modo geral, pensamos a transmissão como uma operação de inscrição de uma perda. Essa perda incide tanto naquele que transmite a experiência, seja ela um trauma ou não, quanto naquele que recebe o transmitido, devendo se responsabilizar pelo que é feito dele. Essa responsabilização implica a apropriação desse endereçamento, marcando nela algo que é próprio de quem a recebe. Dessa forma, aquele que transmite deve abdicar da propriedade sobre a experiência. Mas o trabalho de perda que se inscreve na transmissão produz efeitos em ambos: naquele que transmite, ao legar uma produção ao outro, e naquele que recebe, que deve poder operar uma torção sobre o que lhe foi transmitido.
Ressalta-se que a transmissão, no lançamento a um tempo futuro de uma experiência passada, leva ao efeito de perda através de uma torção sobre aquilo que está sendo transmitido. Isso quer dizer que alguma coisa se transforma no ato de transmitir, de modo que, se houve transmissão, o transmitido é encontrado revirado. Como veremos adiante, pensamos que a operação de transmissão segue a estrutura do circuito pulsional, na medida em que a pulsão enlaça o sujeito ao outro no endereçamento da perda de um objeto. Desse modo, quem transmite deve abdicar da intimidade com sua experiência e quem a recebe deve ser capaz de fazê-lo reconhecendo socialmente essa herança transmitida.
Assim, este artigo está organizado em quatro momentos, tomando como pontos principais de articulação a relação entre os seguintes significantes: tempo, violência e transmissão. De que forma a relação entre cada um desses termos nos possibilita pensar, a partir da psicanálise, os processos de violência sofridos pelos sujeitos e a transmissão dessa experiência como um efeito necessário para seu reestabelecimento? Para tanto, partimos da elaboração do conceito de cultura em Freud. Em "tempo e transmissão", a partir da apresentação do conceito de pulsão, vemos que a obstrução de seu circuito leva ao achatamento do tempo-espaço e ao rompimento dos laços sociais. Em "tempo e violência" vamos ver que uma experiência de violência pode decorrer da fixação do sujeito em uma determinada posição do circuito pulsional, e, em "violência e transmissão", buscamos pensar que a transmissão se coloca como uma ética do dever de transmitir.
Cultura e transmissão
Sabendo que uma cultura não se funda sem a transmissão de legados, pensamos a instauração da cultura, segundo Freud, a partir de dois tempos, conforme são desenvolvidos no texto Totem e tabu (1913/2003a). Nele, Freud elabora um mito original no qual ele reconhece o assassinato como o ato constitutivo da condição humana. Porém, com essa ficção, ele vai nos lembrar que um ato violento não pode ser considerado como tal em si mesmo, mas apenas no contexto ao qual está inserido. Nesse sentido, a dimensão violenta de um ato ocorre quando ele aniquila as possibilidades de o sujeito representar-se em suas dimensões espaço-temporais. O assassinato do pai pelos irmãos da horda primitiva não é um ato de violência, na medida em que é fundador dos laços sociais. É um ato que instaura a temporalidade do sujeito e estabelece os limites espaciais de circulação, rompendo, assim, com a lógica da pura repetição do mesmo, que predominava antes dele.
Para definir o conceito de cultura, Freud cria um mito original valendo-se da hipótese através da qual a teoria da evolução tenta explicar as condições do estado social primitivo da humanidade. A dedução é que o homem primitivo viveu em pequenas hordas, nas quais as relações sexuais eram proibidas pelo ciúme do macho mais velho que dominava o grupo. Cada membro era expulso para constituir sua própria horda, onde teria garantido o domínio e a proibição das relações sexuais.
A isso, Freud (1913/2003a) acrescenta:
Certo dia, os irmãos que tinham sido expulsos retornaram juntos, mataram e devoraram o pai, colocando assim um fim à horda patriarcal. Unidos, tiveram a coragem de fazê-lo e foram bem sucedidos no que lhes teria sido impossível fazer individualmente. (p. 1838, tradução nossa)
O mito da horda primitiva nos remete a um tempo no qual não havia ainda imbricação entre singular e coletivo, entre sujeito e outro. Para que essa diferenciação aconteça, rompendo com o contínuo da pura repetição, se faz necessária a inscrição de uma perda nesse coletivo totalizado, perda que é instaurada pelo assassinato do pai.
Esse crime resultou do sentimento de hostilidade e vingança contra aquele que lhes impunha uma série de proibições e foi fruto de inveja e admiração por cada um dos irmãos da horda, na medida em que o pai, além de ser uma referência opressora, também era uma figura protetora da tribo. Ao cabo desse ato, seguiram-se o desamparo, a vulnerabilidade e, principalmente, um lugar vazio decorrente da ausência do pai da horda. Aqui vemos colocado o sentimento de ambivalência - amor e ódio - como elemento da condição social que marca a inscrição do sujeito nos laços fraternos.
Se antes do assassinato do pai a presença de uma figura tirânica obrigava a coletividade totalizada a se oprimir diante de seus desejos e imperativos, ainda assim esse poder mantinha uma ordem em comparação ao caos da guerra de todos contra todos que sua ausência poderia ocasionar. Diante da possibilidade real da autodestruição da horda e do medo de retorno ao estado anterior, na ausência do pai, os membros da horda se viram obrigados a se identificar uns com os outros e a formar noções como de justiça e igualdade. Essas insígnias paternas dizem respeito à impossibilidade universal de se alcançar esse lugar que apenas podia ser ocupado pelo próprio pai.
Assim, compreendemos que a definição de cultura, conforme Freud apresenta no mito de Totem e tabu, não se estabelece em apenas um tempo. Além desse primeiro momento, do assassinato do pai, se faz necessário um segundo tempo para sustentar a existência do coletivo e com isso estabelecer os laços que formam a estrutura social. Conforme Freud, após o assassinato do pai, o que se seguiu foi um ritual de canibalismo - o banquete totêmico -, quando todos os membros da horda devoram seu corpo. O canibalismo do pai marcou simbolicamente "a repetição, e a comemoração desse ato memorável e criminoso, que foi o começo de tantas coisas: da organização social, das restrições morais e da religião" (Freud, 1913/2003a, p. 1838, tradução nossa). Dessa forma, entendemos que a formação da cultura para Freud se define através dos efeitos de um ato fundador. Por um lado, a criação dos totens permitiu a todos os membros do grupo estar, desde suas posições singulares, enlaçados entre si. E os tabus ali formados, por sua vez, fizeram a vez de leis primitivas, na medida em que proíbem a repetição desse ato instaurador da cultura.
Os totens dão origem aos ideais, eles abrigam os mesmos sentimentos de ambivalência que eram dirigidos ao pai. Com eles, cria-se a figura do ideal de eu, ao qual todos os filhos se identificam, isto é, toma-se um traço do pai para sustentar um eu. No texto Sobre o narcisismo: uma introdução, de 1914, Freud escreve sobre a idealização como um processo de engrandecimento e exaltação de um objeto que pode ser compartilhado entre muitos. Afirma ele: "O ideal do ego desvenda um importante panorama para a compreensão da psicologia de grupo. Além de seu aspecto individual, esse ideal tem seu aspecto social; constitui também o ideal comum de uma família, uma classe ou uma nação" (Freud, 1914/2003b, p. 2033).
O ideal de eu é a continuação do sentimento de amor que se tem pelo outro, como aquele que representa o que se foi anteriormente, o que se gostaria de ser ou o que se deseja. A morte do pai produz um vazio de uma relação de ambivalência que não existe mais. O ideal de eu vem recuperar essa relação marcada pela ambivalência de amor e ódio, entre querer ser o pai, pois é objeto de admiração, e querer sua morte, pois é objeto de inveja e rivalidade.
Por esse motivo, encontrar um traço dessa figura no outro, como um ideal, é reencontrar, de outra forma, um laço perdido. Podemos amar e odiar o ideal da mesma maneira que o pai foi amado e odiado. A psicanalista Ana Costa remete as identificações ao ideal e à proibição ao tema do duplo. Ela nos relembra que a identificação traz agressividade. Os sentimentos ambivalentes da identificação levam à necessidade de, ao mesmo tempo, manter e anular o outro, como espelho (identidade) que sustenta o eu e como apropriação do traço que organiza a unidade (Costa, 1998, p. 69). Por outro lado, a condição de exclusão não pode ser realizada, na medida em que, na duplicação de si em um ideal, afirma a autora, "é o 'tu' que sustenta o 'eu': se um desaparece, o outro se esfuma" (Costa, 2001, p. 95). Através do ideal, se ama o que outrora se foi e não se é mais ou o que possui as qualidades que nunca se teve.
Pensar em totem desarticulado de tabu nos faz representar modelos de organizações sociais levados a seus extremos. A transmissão da cultura se reduz, então, à repetição do mesmo. Totem sem tabu é o retorno à tirania do pai. É a marginalização de todos sob o império da individualidade de um. Isso nos faz pensar nos sistemas totalitários, na medida em que ali ao menos um não está regido pela mesma ordem do coletivo. É o coronel Kurtz do livro O coração das trevas (1902/2008), de Joseph Conrad. No conto, o personagem Marlow faz uma viagem ao interior da selva africana em busca do desaparecido coronel Kurtz, que havia abandonado seu cargo militar e encarnado o lugar de Deus em uma tribo selvagem, controlando-a pela moral do horror. Tabu sem totem é a letra da lei vazia, a lei por si só. É a ausência de traço de sujeito, referente ao qual ela se torna aplicável. São os processos burocráticos, que apagam a singularidade das diferenças na maquinaria do generalizável. Por exemplo, temos o personagem do conto Bartleby, o escriturário (1853/2003), de Herman Melville, que evita ser abduzido por esse sistema de pura repetição do mesmo. Certo dia, Bartleby, auxiliar de um escritório em Wall Street, recusa-se a participar do imperativo que a lógica da burocracia lhe impõe. Ao seu chefe, começa sempre a responder com a mesma frase: "prefiro não fazer".
A transmissão da cultura se consolida, então, na repetição simbólica desse ato real, o assassinato do pai. Ele não é um ato de violência, pois deu origem aos laços sociais e possibilitou aos sujeitos, que antes eram condicionados à repetição do mesmo, a se representarem singularmente em um determinado espaço e tempo. Assim, Freud nos mostra que a transmissão da cultura se faz em dois tempos, fornecendo as condições para o estabelecimento dos laços sociais do sujeito e impossibilitando que ele caia numa condição de isolamento.
Mas devemos pensar que a cultura, enquanto fundamento das relações sociais, é efeito do estabelecimento de um lugar de exceção. Trata-se de um fora da regra que, na realidade, faz a própria regra, quer dizer, um conjunto só pode definir-se como tal na medida em que algo - esse indivíduo que tudo pode, o pai - foi excluído dele, delimitando assim suas fronteiras. Esse fora é a lei interna da organização social. E a transmissão é o princípio que transforma o elemento totalizador em elemento ordenador, processo de reinscrição de um impossível que torna possível as relações sociais.
Tempo e transmissão
Um ato, segundo Freud (1913/2003a), só pode ser considerado violento de acordo com o contexto no qual está inserido. Nesse sentido, o assassinato do pai pelos irmãos da horda primitiva é um ato fundador e não um ato de violência. É um ato fundado no desejo de morte que levou os membros da horda primitiva ao parricídio, na medida em que ele estabelece a dimensão espaço-temporal através da qual poderá se organizar uma fratria. Mas o desejo de morte é uma violência quando tomado em si mesmo, posto que quebra as representações que determinam um onde e um quando para o sujeito.
É o que vemos, por exemplo, no relato do ex-presidente da África do Sul, Nelson Mandela, ao narrar, em sua autobiografia Nelson Mandela: longa caminhada até a liberdade, o período de quase 20 anos em que fica preso na Ilha de Robben, a 7 km da Cidade do Cabo. Escreve Mandela:
Depois de alguns meses, nossa vida se estabeleceu em um padrão. A vida na prisão tem a ver com a rotina: cada dia é como o dia anterior; cada semana é como a semana anterior, de forma que os meses e os anos se fundem. (Mandela, 1990, p. 477)
Assim, Mandela relata que o tempo se torna uma arma contra o prisioneiro: "Perder o sentido do tempo é uma maneira fácil de perder o controle e até mesmo a sanidade" (Mandela, 1990, p. 478).
O achatamento do tempo - além do espaço, dado no encarceramento dos corpos - era uma das principais e mais silenciosas estratégias de violência adotada contra os prisioneiros da Ilha de Robben. Ali, relata Mandela, o tempo se movia "glacialmente", não porque se caía em ociosidade, mas porque propositalmente as coisas mais simples poderiam levar meses ou anos para serem feitas: "um pedido de uma escova de dente nova podia levar seis meses para ser atendido" (Mandela, 1990, p. 478). O desafio para todos os prisioneiros, então, é sobreviver a essa violência das autoridades que exploram as fraquezas, demolem as iniciativas e negam as individualidades, "com o propósito de sufocar aquela centelha que torna cada um de nós humanos e cada um de nós o que somos" (Mandela, 1990, p. 478).
Tudo isso, nos diz Mandela, não pode ser feito sozinho, sem a presença de outro: "Nós nos apoiávamos uns nos outros e ganhávamos força uns dos outros. O que quer que soubéssemos, o que quer que aprendêssemos, nós compartilhávamos e ao compartilharmos, nós multiplicávamos qualquer resquício de coragem que tínhamos individualmente" (Mandela, 1990, p. 479).
Mandela foi um político que nunca se reduziu à posição de indiferença. Como lembramos através de Freud (1915/2003d), é no laço com a alteridade que emerge o sujeito. Nesse sentido, todo e qualquer posicionamento subjetivo decorre de um posicionamento, cujo fundamento é a ambivalência. Na oposição dos sentimentos, entre amor versus ódio e entre desejo de vida versus desejo de morte, encontramos a condição primordial para a formação do sujeito. Mas, se a psicanálise parte do pressuposto de que não há representação de morte no inconsciente, tal como afirma Freud no texto O inconsciente (1915/2003c), deve-se pelo fato de que certas experiências impostas ao sujeito não vão mais deixar ser possível resumir a morte como contrária à vida.
Impõe-se, a partir disso, outro par contraditório, para além da antítese "vida versus morte", que obriga o sujeito a se responsabilizar por uma posição. Trata-se da antítese "amor/morte versus indiferença". A morte se coloca como aquilo que relança a vida a um futuro possível. Vamos ver como essa posição se forma através dos tempos do circuito pulsional, possibilitando que o sujeito se manifeste em diferentes lugares. A pulsão (expressa no par pulsão de vida e pulsão de morte) vai ser o elemento que fornece ao sujeito as possibilidades de representação de si em algum tempo e em algum lugar.
Ser indiferente politicamente é recusar manifestar uma preferência, estar em uma relação "nem... nem", que não é nem a favor, nem contra. A indiferença é, então, o contrário do desejo e, dessa forma, ela se afasta da política, do campo de trocas e das escolhas. E a psicanálise é a teoria do desejo que atesta que o sujeito, em sua condição inconsciente, é tudo menos indiferente. O processo de transmissão da cultura é um esforço de romper com a posição de indiferença imposta ao sujeito por certas situações de violência.
Em Pulsões e destinos da pulsão, Freud (1915/2003d) faz o sujeito se representar através da temporalidade do circuito pulsional. Nesse texto, começa-se a romper com a lógica do princípio do prazer. Ele esboça uma primeira tentativa de situar o lugar primordial do sujeito em relação ao outro não pela atividade, quer dizer, pela busca desenfreada da satisfação pulsional, mas pela posição masoquista, isto é, a posição primária de objetalização. Nesse sentido, determinar o sujeito primariamente na condição de objeto é inscrevê-lo no lugar passivo de um momento de ser marcado pelo outro.
Dentre os quatro destinos da pulsão (Freud, 1915/2003d), a saber, (1) reversão em seu contrário, (2) retorno em direção à própria pessoa, (3) o recalque e (4) a sublimação, tomamos o primeiro para formular os três tempos para o surgimento do sujeito no circuito pulsional. A reversão de uma pulsão em seu oposto se faz em dois movimentos: (a) a mudança da atividade para a passividade e (b) a reversão de seu conteúdo. O primeiro é encontrado na reversão dos pares opostos (sadismo/masoquismo, olhar/ser olhado) e estabelece os tempos da gramática da pulsão. O segundo movimento tem um único caso, a transformação do amor em ódio, e expande a ambivalência "amor versus ódio" para três formas de oposição.
Para compreender o circuito das posições de atividade e passividade, tomemos o exemplo do par pulsional olhar/ser olhado. Freud (1915/2003d) diferencia três fases do circuito da pulsão, que segue a seguinte ordem: (a) o olhar é uma atividade dirigida a um objeto estranho; (b) o objeto é desinvestido e o olhar é dirigido para a própria pessoa; assim, temos a mudança da atividade para a passividade e a posição passa a de ser olhado; (c) como consequência dessa mudança de posição, o objeto estranho passa a ser o sujeito da ação, para quem a pessoa se exibe a fim de ser olhada. É a posição reflexiva da pulsão.
Nesse caso, a finalidade ativa da pulsão é anterior à sua finalidade passiva. O olhar, tal como a produção de dor pelo sádico, é uma atividade anterior a ser olhado e a sofrer dor. Mas, segundo Freud, apenas no caso da pulsão de olhar, há uma fase preliminar, anterior à primeira:
É que a pulsão de olhar é autoerótica no início de sua atividade, ou seja, ainda que tendo um objeto, ela o encontra no próprio corpo. Só mais tarde ela é conduzida (pela via da comparação) a trocar esse objeto por um que seja análogo no corpo alheio (fase a). (Freud, 1915/2003d, p. 2046, tradução nossa)
Assim, a pulsão institui um onde cuja origem é o espaço do corpo e um tempo dado pelo circuito que se volta ao outro. É possível deduzir, a partir desse esquema da pulsão de olhar, que no circuito pulsional o outro é anterior ao surgimento do sujeito. O corpo do sujeito é tomado, primeiramente, como objeto de olhar. Quer dizer, antes de ser ativo, antes de olhar, há uma fase preliminar. Essa outra pessoa, que olha o sujeito como objeto, é a condição para ele se posicionar ativamente em relação ao olhar do outro. Mas para que, no circuito pulsional, o sujeito possa emergir, ele deve passar pela perda dessa posição passiva primordial.
Os tempos do circuito pulsional, então, se estruturam segundo a regra da linguagem que distingue as vozes ativa, passiva e reflexiva. E assim o sujeito se situa nas posições que seguem o tempo pulsional, como "comer", "ser comido" e "se fazer ser comido" no caso da pulsão oral, ou "olhar", "ser olhado" e "se fazer ser olhado" no caso da pulsão de olhar. O sujeito não aparece nos dois primeiros momentos, mas apenas no movimento completo do circuito pulsional, quando se retorna à posição da voz reflexiva. O tempo da subjetividade, então, se mostra para além da polaridade atividade-passividade, mas na possibilidade de o sujeito bascular entre uma e outra posição, segundo seu desejo, sem fixar-se em nenhuma delas. E, dessa forma, a pulsão representa um tempo no movimento dos lugares.
A partir do circuito pulsional é possível pensar as posições do sujeito. O prazer pode vir pela posição passiva de objeto (ser devorado e ser batido), pela posição ativa (devorar e bater) ou pela posição reflexiva em relação ao outro (se fazer ser devorado ou se fazer ser batido). Atividade, passividade e reflexividade designam posições de desejo do sujeito. Mas a passagem da indiferença à ambivalência implica que se tome frente diante das perdas produzidas por uma posição objetalizada.
O sujeito desaparece quando ele se fixa em uma determinada posição do circuito pulsional. A transmissão de uma experiência de violência dá ritmo à temporalidade e solidez ao espaço para um sujeito que teve rompidas as condições de se representar em um quando e um onde. O jogo da transmissão, portanto, lança o sujeito ao tempo pulsional da reflexão, que permite a ele se recolocar em diferentes tempos e lugares. Transmitir é se por em circulação, impossibilitando reduzir-se às posições de quem sofre ou de quem faz, de objeto ou de algoz.
Tempo e violência
Com o texto Totem e tabu, começaram a ser elaborados, em Freud (1913/2003a), os primeiros princípios de uma teoria psicanalítica da transmissão, na medida em que ali ele investigou pela primeira vez, e de forma mais aprofundada, a relação entre sujeito e cultura. É uma relação sustentada em uma perda da satisfação pulsional, cujos efeitos se formam em ambos os lados da equação. Sobre o sujeito, na inscrição de regras e normas sociais, e sobre a sociedade, no acolhimento das faces ambivalentes da pulsão (vida e morte), que é utilizada para sua edificação. A relação entre os significantes "tempo" e "violência" nos mostra como, em situações extremas, o sujeito é colocado numa posição de destruição de si e dos laços sociais. Foi preciso que Freud passasse pela guerra para inscrever a radicalidade dessa experiência na formação do sujeito. Com a análise do texto Uma criança é espancada (1919/2003f), vamos ver que, quando o sujeito se reduz a uma determinada posição do circuito pulsional, ele não apenas anula as condições de representação espaço-temporais, mas sofre a violência da realização do desejo de morte.
Ora, o tema da morte nunca foi muito distante das proposições freudianas, mas ganhou destaque a partir da Primeira Guerra Mundial (1914-1918). Vale lembrar que Freud teve três filhos encaminhados para lutar na Primeira Guerra: Martin e Ernst lutaram no front, enquanto Oliver trabalhou como engenheiro. Assim, a morte vai sendo considerada pouco a pouco, até se estabelecer em 1920, com elaboração da pulsão de morte, como um dos principais conceitos da psicanálise.
Em Reflexões para os tempos de guerra e morte (1915/2003e), Freud recoloca questões sobre a morte dando o testemunho de uma época de desilusão diante da possibilidade de rompimento dos laços sociais. As guerras, durante séculos, serviam como oportunidade de mostrar o poder e o desenvolvimento de cada povo. Entretanto, afirma Freud, "a guerra, a qual nos recusávamos a acreditar irrompeu, e trouxe desilusão" (Freud, 1915/2003e, p. 2103, tradução nossa). A primeira guerra mundial, até o momento, era a mais sanguinária, mais destrutiva e a mais cruel de todas elas. Seguimos seu desabafo desolado:
Esmaga com fúria cega tudo que surge em seu caminho, como se, após seu término, não fosse haver nem futuro nem paz entre os homens. Corta todos os laços comuns entre os povos contendores, e ameaça deixar um legado de exacerbação que tornará impossível, durante muito tempo, qualquer renovação desses laços. (Freud, 1915/2003e, p. 2103, tradução nossa)
As ilusões são criações de fantasias, formas de ficção do encontro com o outro. Elas nos poupam sentimentos desagradáveis, nos permitem gozar de satisfações. Mas o reconhecimento da capacidade dos homens "civilizados" de se comportar naturalmente com brutalidade, crueldade e barbárie, assim como o rebaixamento moral dos povos e Estados - que deveriam ser os guardiões da civilização - produziram um período de desilusões. Nessa perspectiva, a desilusão dessa época de guerra dá indícios de que essa condição primordial do sujeito em construir laços com o outro pudesse de alguma forma ser rompida.
Em Totem e tabu, Freud (1913/2003a) nos mostrou que um ato só é violento no contexto em que está inserido, a partir do qual ele recebe a significação de ser moralmente bom ou mal. Foi o crime contra o pai da horda primitiva que possibilitou a instauração dos laços sociais. Mas, para que seja suspenso e não volte a ser repetido no real, esse crime deve ser internalizado pelos irmãos da horda e se tornar desejo - desejo de morte. Assim, morte só consegue se inscrever psiquicamente como desejo e, enquanto tal, ele sofre as ações de proibições culturais que o impedem de ser realizado. Quando ela se realiza, ela aniquila o seu objeto e, por consequência, paradoxalmente também a sua própria condição.
Por isso, conforme Freud, o desejo de morte se realiza inconscientemente, por vezes, através dos impulsos altruístas e sociais. O neurótico que teme a morte do objeto amado se defende através da formação de sintomas obsessivos por estar próximo de realizar seu desejo de aniquilá-lo. Nesse sentido, os sentimentos altruístas são compensações de uma verdadeira atitude egoísta.
A violência do crime contra o pai rompeu com a indiferença primordial em relação ao outro. E a passagem da indiferença à ambivalência resultou na produção de um sujeito, que não pode se resumir a uma única posição do circuito da pulsão, mas deve poder circular por todas. Quando ele se fixa, põe em ato seu desejo inconsciente e, com isso, torna impossível a sustentação dos laços sociais. Com a ideia de masoquismo primário, rompeu-se não apenas com a noção de individualismo, ao indicar a anterioridade do outro como condição de surgimento do sujeito, mas principalmente marca a inscrição social do sujeito na posição de objeto.
No texto Uma criança é espancada, de 1919, Freud (2003f) busca construir a gênese do quadro fantasmático através das posições de sadismo e masoquismo. A organização do sujeito vai ser estruturada pela identificação entre "ser amado" e "ser batido", do prazer erógeno com a morte. Nesse texto, Freud retoma as vozes do circuito pulsional (ativo, passivo e reflexivo), fazendo-as corresponder à temporalidade da instauração do fantasma, essa estrutura que situa os laços sociais do sujeito. Seguir a formação dos termos de constituição do fantasma nos permite compreender o lugar do sujeito em relação à cultura e ao que se transmite dela. Na estagnação em qualquer uma dessas posições, a tendência é de imobilização dos laços sociais, de fenecimento do sujeito e, por consequência, da produção de violência.
Em Uma criança é espancada, Freud (1919/2003f) parte da análise de uma fantasia inconsciente que tem em seu desfecho um enunciado impessoal: bate-se em uma criança. Não deixa de ser interessante observar que Freud nomeia o texto com o enunciado da fantasia expresso por seus pacientes: "uma criança é batida" (p. 2469, tradução nossa). Esse é o enunciado da primeira etapa da fantasia sadomasoquista. A criança que está sendo espancada, nessa primeira cena, nunca é o próprio sujeito, mas normalmente um irmão ou uma irmã. E o autor da agressão, por sua vez, é um adulto. Decorre disso, então, a seguinte conclusão para aquele que assiste à cena: meu pai está batendo em uma criança que eu odeio.
Essa cena não tem caráter masoquista, afirma Freud, já que o sujeito encontra-se fora dela. Também não se poderia afirmar que se trata de uma cena propriamente sádica, pois é o pai quem pratica a ação. Entretanto, a presença dessa outra criança figura para o sujeito da fantasia como uma rival, na medida em que ameaça sua relação amorosa com o pai. E a partir dessa condição, a cena se define como sádica, porque "a ideia de o pai batendo nessa odiosa criança é, portanto, agradável" (Freud, 1919/2003f, p. 2470, tradução nossa). O gozo sádico surge pela posição do sujeito de espectador da cena. E, na equivalência entre ser batido e ser amado, o sentimento associado é que "o meu pai não ama essa criança, ama apenas a mim" (Freud, 1919/2003e, p. 2470, tradução nossa, itálicos no original).
Nessa primeira etapa já temos uma relação ternária, própria da relação edípica, na qual figuram como personagens o autor da fantasia, outra criança e o pai. A segunda etapa dessa fantasia sofre a mesma torção da gramática pulsional. É a passagem da voz ativa para a voz passiva, da posição do sadismo para a do masoquismo. A pessoa que está batendo continua sendo a mesma, mas a que sofre a agressão passa a ser o próprio sujeito da fantasia. Ele sai da posição de espectadora para entrar na cena. E assim, o sujeito se sustenta no seguinte enunciado: "estou sendo espancada pelo meu pai" (Freud, 1919/2003f, p. 2469, tradução nossa). Essa etapa é formada por dois personagens. Na medida em que é espancada, a criança transforma o que era ódio em amor: se o pai lhe bate é porque ele a ama. Como consequência disso, vem o sentimento de culpa, uma das formas de masoquismo, juntamente com as posições feminina e infantil. Também o menino encontra esse gozo feminino de ser batido pelo pai.
Freud afirma que essa segunda etapa é a única de caráter inconsciente. Seus pacientes não se lembravam dela e por isso só pôde ser identificada através de construções em análise. É uma etapa marcada pela ambivalência, pois, como afirma Lacan, "encontramos aí este ou..., ou..., que é fundamental na relação dual" (1956-57/1995, p. 119). A passividade associada à função erótica leva ao masoquismo como posição fundamental. Esse tempo marca o gozo que surge na posição de objeto de desejo do outro. Ele é a expressão da condição de alienação do sujeito.
A terceira etapa encerra a torção da fantasia de espancamento e se assemelha à primeira. O sujeito da fantasia é reduzido à posição terceira, a de observador. Para Lacan, é a forma derradeira da fantasia, onde alguma coisa é mantida, memorizada, que permanece no sujeito:
A figura do pai é ultrapassada, transposta, remetida à forma geral de um personagem na posição de bater, onipotente e despótico, enquanto o próprio sujeito é apresentado sob a forma das crianças multiplicadas, que já nem sequer são de um sexo preciso, mas formam uma espécie de série neutra. (Lacan, 1957-58/1999, p. 247)
Novamente o sujeito está na posição de espectador; ele apenas "está olhando". Mas agora, diferentemente da primeira etapa, uma forte excitação sexual é provocada. O sujeito, que está fora da cena, goza com a violência do desejo de morte. A posição sádica da primeira etapa retorna, encerrando uma estrutura impessoalizada: bate-se em uma criança.
A indeterminação do sujeito da frase é expressa na partícula "-se" e mostra a dessubjetivação desse enunciado para todas as estruturas. O sujeito fica no "estado de espectador, ou simplesmente de olho, isto é, daquilo que sempre caracteriza no limite, no ponto da última redução, toda espécie de objeto" (Lacan, 1956-57/1995, p. 120). O que se produz é algo que vai na direção oposta à inflação do eu.
Ora, das três posições enunciadas na estrutura que organiza o fantasma por significantes que situam posições de relação, o sujeito - tal como no circuito pulsional - surge apenas no terceiro tempo, na medida em que ali ele não está fixado em nenhuma posição, mas pode gozar em qualquer lugar na relação que ele estabelece com o outro. O fato de ele já ter circulado pelas outras posições permite transformar o prazer em saber. Assim, aquele que se faz ser batido sabe tanto sobre o gozo ativo quanto sobre o gozo passivo. O prazer do sádico se desdobra no saber que ele tem sobre o prazer do masoquista. Aquele que olha também goza através daquele que é olhado.
Quando há uma fixação do sujeito em alguma dessas posições, o fantasma (isto é, sua relação com o outro) busca sua realização através da lógica própria de sua sentença. Assim, estabelecendo uma relação entre as vozes (ativa, passiva e reflexiva) do circuito pulsional e a estrutura do quadro fantasmático, segue-se a correspondência: (1) sadismo/voz ativa = meu pai bate no meu rival (eu o odeio), (2) masoquismo/voz passiva = estou sendo batido por meu pai (ele me ama), (3) sadomasoquismo/voz reflexiva = bate-se numa criança.
Na identidade do sujeito com um dos enunciados, ele vai se dirigir à cultura com ódio e agressividade ou como aquele que deve se sacrificar pelo amor do outro. A violência, nas duas situações, se apresenta como anulação do sujeito. Como aquele que destrói os laços sociais através do ódio à diferença ou como aquele que se apaga em uma posição sacrificial diante da necessidade de amor. Por conseguinte, a transmissão da cultura é apagada quando uma dessas situações de violência reduz a pluralidade dos tempos do sujeito a uma única posição.
O encerramento do sujeito em certo tempo pulsional produz uma condição de violência em sua relação com a cultura. No artigo Sociedade e Indivíduo (1993), o psicanalista Contardo Calligaris parte da inquietação sobre um atentado terrorista que colocou em risco de desaparecimento importantes patrimônios culturais em Florença, Itália. Para o autor, esses atentados foram formas de destruição da herança simbólica de uma cultura, equivalentes ao que Lacan atribui, para o homem, como sua segunda morte, ou seja, a morte simbólica que sucede à morte real do corpo.
Segundo Calligaris, a oposição entre indivíduo e sociedade é sintoma de nossa cultura, pois segue o princípio do individualismo, isto é, o indivíduo como valor supremo. O individualismo, nesse sentido, é o rompimento dos laços sociais, a estagnação do sujeito em uma determinada posição do circuito pulsional. Como efeito, temos um desejo de morte que vem a se realizar como violência ao outro, de uma cultura fundada sobre o ódio. Nesse sentido, torna-se válida toda e qualquer expressão de rivalidade, de agressividade, de destruição da diferença, marcando a alteridade como aquilo que deve ser apagado.
O que encontramos, nessas situações, é uma forte tentativa de ruptura contra os valores culturais e populares que são transmitidos. De certo modo, é como se a estrutura simbólica que foi construída ao longo das décadas precisasse ser destruída, buscando na irrupção da violência a única forma de manifestação. Esse ódio que encontramos nos atentados terroristas, na comum pichação de prédios e monumentos históricos ou no apagamento das memórias de pessoas que ajudaram a construir nosso tempo presente.
Por outro lado, nessa fixação no circuito pulsional, o sujeito também é compelido a se manifestar de forma sacrificial. A violência do sacrifício vem infligir à pulsão contornos, limites e constrangimentos por uma relação - entre sujeito e cultura - que não foi inscrita por uma perda. Dessa forma, na medida em que a pulsão não se completa em um circuito, é o corpo que passa a ser objeto de sacrifício. São situações nas quais se oferece o corpo ao poder do outro, uma violência na qual a objetalização do corpo determina o sujeito como propriedade alheia.
Violência e transmissão
Ações terroristas que destruíram importantes patrimônios culturais, como as que o Estado Islâmico realizou em cidades e museus milenares do norte do Iraque. O sequestro, a tortura e o desaparecimento de opositores políticos, como aconteceu nas ditaduras dos Estados da América Latina. O apagamento, por parte da sociedade, da memória de pessoas que ajudaram a construir a cultura de nosso tempo. O que se apresenta em comum nesses diferentes episódios é a violência que rompe com as dimensões espaço-temporais nas quais os sujeitos se representam no laço social. O sujeito se apaga nessas situações, na medida em que elas achatam a sucessão temporal e reduzem a zero as dimensões espaciais pelas quais ele consegue representar a si próprio. Pensamos que uma das formas de resposta à reconstrução dos laços sociais do sujeito que passou por tais experiências se dá através de suas transmissões.
A perda é um operador que produz uma torção na relação entre sujeito e cultura, fazendo que as experiências que são transmitidas de um termo ao outro se realizem de modo revirado. Essa torção, por sua vez, marca a transmissão que ocorre não enquanto manutenção do passado ao longo do tempo, mas como reinscrição que projeta ao futuro as possibilidades de criação do novo.
Nessa perspectiva, o texto de Freud Uma criança é espancada (1919/2003f) nos apresentou a temporalidade da pulsão na construção dos laços sociais do sujeito no quadro fantasmático. A ideia principal é que o sujeito aparece no momento de dessubjetivação, isto é, quando o eu descentra-se de sua posição imaginária e transforma a perda de um prazer em saber sobre ele. Nesse momento de impessoalidade, em que o eu se afasta da posição objetalizada e restitui enquanto sujeito de desejo, a transmissão torna-se possível.
As reviravoltas que a teoria psicanalítica sofre através da tinta freudiana foram operadas fundamentalmente a partir da escuta de certos fenômenos clínicos, dentre os quais a repetição se coloca em destaque. Não podemos dizer que a repetição seja um fenômeno novo para Freud. E Lacan (1985), ao situá-la, em seu seminário de 1964, como um dos quatro conceitos fundamentais da psicanálise, foi perspicaz ao identificar nela o traço característico do funcionamento do inconsciente. A temporalidade da repetição como aquilo que insiste em retornar diz da posição constitutiva do sujeito e faz parte de sua relação com a cultura.
A repetição se mostra fundamental, por exemplo, no texto Totem e tabu (Freud, 1913/2003a). Os filhos que assassinaram o pai precisam repetir a lembrança desse crime simbolicamente para que ele não volte a ser realizado em ato. Essa repetição se dá através de rituais sociais, que rememoram o banquete totêmico. Eis então o paradoxo da repetição. A comemoração do crime primordial é a busca de uma satisfação. Mas, na medida em que é repetido, esse prazer já não é mais o mesmo. A repetição, nesse sentido, é efeito de uma torção na posição do sujeito, inscreve um impossível no reencontro da primeira experiência de satisfação.
Foi a investigação da repetição dos sintomas dos soldados que voltavam do campo de batalha que levou Freud a classificar as neuroses de guerra como uma nova estrutura dentro das neuroses traumáticas. As intensidades dessas experiências bem poderiam ser fator de distinção com as neuroses da vida civil. A primeira seria efeito do real "perigo à morte", de origem externa, enquanto as outras seriam causadas por "frustrações amorosas", em função dos percalços da libido. Freud, porém, começa a se questionar se algo da ordem do traumático não estaria na base de toda reação defensiva, na medida em que todas as formações sintomáticas mostravam uma tendência a repetir as situações que provocaram desprazer.
Desde seus primeiros escritos psicanalíticos, o princípio do prazer foi estipulado como a principal regra do sistema psíquico. Sua lógica é a seguinte: o aumento da tensão gera desprazer, enquanto sua diminuição resulta na sensação de prazer. Nesse sentido, a estabilidade é um estado almejado nesse processo. Porém, Freud reconhece que esse princípio não é hegemônico. O próprio aparelho psíquico, através do princípio de realidade e do recalcamento, pode impor renúncias ou substituições para a satisfação de certos impulsos hedonistas.
A escuta na clínica de certos sintomas contribuiu para pôr em destaque a ideia de compulsão à repetição como outra lógica de funcionamento psíquico, em contradição com o princípio do prazer. O que por vezes se chama destino pode ser uma ilustração desse processo: uma pessoa que é sempre abandonada; um homem que constrói os mesmos tipos de relações amorosas; até mesmo, exemplifica Freud, uma mulher que se casou três vezes e por três vezes foi viúva.
Se levarmos em consideração observações como essas, baseadas no comportamento, na transferência e nas histórias da vida de homens e mulheres, não só encontraremos coragem para supor que existe realmente na mente uma compulsão à repetição que sobrepuja o princípio de prazer, como também ficaremos agora inclinados a relacionar com essa compulsão os sonhos que ocorrem nas neuroses traumáticas e o impulso que leva as crianças a brincar. (Freud, 1920/2003g, p. 2517, tradução nossa)
O real perigo de morte imposto pela situação de guerra reatualizou, na escrita de Freud, o desamparo como condição primordial do sujeito, tema que já havia sido abordado no início de seus trabalhos. Trata-se do que Freud chama de susto, estado que se define como o de ser invadido bruscamente quando se apresenta um perigo que não é esperado e para o qual não se está preparado. Essa condição de assombramento do sujeito nos ajuda a compreender por que certas brincadeiras infantis e certas histórias, que narram fortes cenas de terror com personagens assustadores, provocam tanto fascínio em crianças e adultos.
Foi nessa perspectiva que Freud deu atenção ao jogo que seu neto realizava repetidamente. Essa criança tinha o hábito de agarrar e atirar para longe, para um canto, para embaixo da cama, qualquer objeto que pudesse apanhar. Ao mesmo tempo que realizava esses lançamentos, pronunciava com prazer e satisfação um longo som, o-o-o-o, representando, segundo Freud, a palavra fort, que significa longe.
Certo dia, Freud observa essa criança brincando com um carretel amarrado por uma corda. Seu jogo agora consistia em arremessar o carretel por sob sua cama, fazendo-o desaparecer. Da mesma forma, era emitido o som o-o-o-o. Mas, ao invés de ir buscá-lo, o pequeno puxava o cordão para fora da cama, mostrando, no reaparecimento do objeto em sua vista, uma enorme satisfação através do som da, "aqui". Trata-se do conhecido jogo do fort-da, apresentado no texto Além do princípio do prazer (1920/2003g). Essa observação lança reflexões que vão além da compreensão sobre os jogos infantis, na medida em que coloca em questão a condição de transmissão de uma experiência de violência. Tal como afirma Freud, esse jogo infantil é "a grande realização cultural da criança" (p. 2513, tradução nossa). O interesse de Freud por esse jogo infantil deve-se ao fato de se perguntar o porquê de uma criança repetir uma cena que lhe é desagradável. O que vamos ver é que o ato que leva a criança a brincar com o carretel só não se torna um ato de violência porque a criança consegue transmitir essa experiência de abandono através de uma brincadeira, torcendo seu lugar em relação ao outro.
A interpretação de Freud dessa brincadeira não é complicada. A criança encenava ela mesma, através dos objetos, o desaparecimento de sua mãe, sentido como desagradável. "Quando a criança passa da passividade da experiência para a atividade do jogo, transfere a experiência desagradável para um de seus companheiros de brincadeira e, dessa maneira, vinga-se num substituto" (Freud, 1920/2003g, p. 2513, tradução nossa). A experiência de separação que a criança sofria passivamente, no brincar era repetida ativamente. Acrescenta-se a isso certo impulso destrutivo para jogar longe os objetos, suprimindo-os do campo de visão.
No seminário "A angústia" (Lacan, 1962-1963/2005), a interpretação do jogo do fort-da é retomada por Lacan de uma maneira bem diferente. Para Lacan, esse jogo é uma resposta para o vazio que resta no desaparecimento da mãe. O fort-da inscreve uma temporalidade e um espaço entre sujeito e outro que permite que ela participe do circuito pulsional ordenado pela linguagem. O carretel é esse objeto que se destaca do corpo da criança, mas ainda está amarrado a ela por um fio. Estamos em um tempo em que o objeto pulsional enlaça a criança e a mãe em um corpo comum, começando a se fazer presente na sua dimensão simbólica.
No seminário "Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise", Lacan (1964/1985) mostra seu afastamento da interpretação freudiana: "Dizer que se trata simplesmente para o sujeito de se instituir numa função de domínio é uma tolice" (p. 226). Pensar o jogo infantil como obstrução da criança ao desaparecimento da mãe, fazendo-se agente da cena, torna-se secundário. A diferença fundamental em relação à sua primeira leitura é que o carretel não é mais visto como a representação da mãe, mas aquilo que se destaca dela, enquanto objeto de satisfação que foi perdido. Afirma Lacan: "Ele se exercita com a ajuda de um carretelzinho, quer dizer, com o objeto a" (1964/1985, p. 226). O objeto a é esse objeto pulsional, que por ser o primeiro a marcar a experiência de satisfação, permanece para sempre perdido nos encontros com objetos subsequentes. Nesse sentido, o carretel é o elemento simbólico que instaura a dimensão temporal do sujeito, marcada por uma alternância de presença e ausência, de atividade e de passividade.
Esse jogo do fort-da mostra a construção do tempo na operação de corte em que o sujeito surge como efeito da perda do objeto pulsional. Como resultado disso, a insistência da repetição vai em busca de uma temporalidade que inscreva a identidade do tempo passado, mas que fracassa ao encontrar a diferença do presente lançado no futuro. A brincadeira do neto de Freud é uma primeira tentativa de transmissão que pretende estabelecer o tempo e o espaço na sua relação com o outro.
A separação da criança com a mãe, tal como o assassinato do pai da horda primitiva, em Totem e tabu (Freud, 1913/2003a), não é um ato de violência, na medida em que ele constrói as representações temporais e espaciais do sujeito. Mas, do mesmo modo que no mito totêmico, a repetição vai colocar o princípio do prazer em questão. A repetição simbólica do ato real produz a transmissão dessa experiência, impedindo-a de se transformar em um ato violento.
No texto Além do princípio do prazer (1920/2003g), Freud subverte um dos axiomas fundamentais da psicanálise, segundo o qual todos os sonhos são realizações de desejo, mesmo os sonhos de angústia e castigo. Nesse sentido, ele se pergunta como os sonhos de pessoas que sofreram violências traumáticas poderiam ao mesmo tempo estar de acordo com a função hedonista do sistema psíquico e recordar situações infantis que causaram desprazer. Freud responde que eles obedecem à compulsão à repetição, a tendência da vida a restaurar um tempo anterior abandonado. Há, portanto, um impulso a se voltar a um passado perdido.
Esse objetivo final, afirma Freud, "deve ser um estado de coisas antigo, um estado inicial de que a entidade viva, numa ou noutra ocasião, se afastou e ao qual se esforça por retornar através dos tortuosos caminhos ao longo dos quais seu desenvolvimento conduz" (1920/2003g, p. 2526, tradução nossa, itálicos no original). A partir desse momento, Freud confirma uma mudança que há muito tempo vinha sendo construída em seu pensamento. Ao enunciar que há uma pulsão que se caracteriza pela tendência a retornar ao seu estado anterior, ele inscreve a morte como meta da vida.
Trata-se de uma pulsão que tem como fim o retorno a uma condição primária, na medida em que ela é marcada pelos efeitos de uma violência que reduz e aniquila o espaço e a memória através dos quais o sujeito pode representar a si mesmo. Conforme Lacan (1964/1985), essa pulsão de morte é o lado da repetição que insiste em ir em direção ao traumático - ao "encontro com o real" -, ou seja, com uma falta que recoloca em operação os condicionantes da subjetividade. A partir dessa nova teoria sobre o trauma, Freud (1920/2003g) pôde explicar a satisfação do masoquismo e como ele - e não o sadismo - ocupa a posição primária pela qual o sujeito vai se constituir. Da oposição entre pulsões do eu e pulsões sexuais, Freud reestabelece o dualismo agora entre pulsão de morte e pulsão de vida.
Até 1920, com o texto Além do princípio do prazer (2003g), um componente sádico era identificado à sexualidade, enquanto o masoquismo era entendido como o retorno do sadismo ao próprio eu. Esse esquema é o da gramática da pulsão, apresentada em 1915, como vimos na diferença entre a voz ativa ("eu bato"), a voz passiva ("eu sou batido") e a voz reflexiva ("eu me faço ser batido"). Mas colocar o masoquismo como primordial é assumir que o sujeito surge em uma posição de perda do objeto pulsional. E o sadismo mostra a atividade do sujeito em ir em direção a esse objeto, agora reduzido à passividade.
No início do circuito pulsional, uma parte da pulsão de morte é orientada para o mundo exterior. Ela é desviada pela função sexual para proteger o eu de sua própria destruição e para apreender nos objetos externos outra forma possível de satisfação. É a condição ativa do sadismo. Mas há outra parte da pulsão de morte que não é transferida para fora do eu, mas se fixa nele, tomando-o como seu objeto sexual. É um resto da pulsão de morte que resiste silenciosamente a ser ligado a alguma representação. Esse resto da pulsão de morte que permanece no sujeito desligado da sexualidade mantém a condição de masoquismo do sujeito no tempo presente.
Essa parte da pulsão de morte ligada à pulsão sexual que foi projetada para fora retorna para o eu num segundo tempo. Tem-se, então, o que se caracteriza como masoquismo secundário, identificado na passividade do segundo tempo do circuito pulsional. O masoquismo primordial, pela silenciosa pulsão de morte, diz de uma condição do corpo nunca abandonada, a de ser objeto. Mas é necessário poder circular entre essa posição e a posição de sujeito para não se fixar em nenhum discurso que venha anular as condições de representação de si mesmo. Nem como objeto, que necessite de um ato de ódio contra o outro, nem como sujeito sacrificial, que se coloque como propriedade do outro, como objeto da satisfação alheia. A destruição dos laços sociais é consequência inevitável em ambos os casos.
Nessas condições, o sujeito é desapossado de sua palavra, obrigado a se silenciar e a se calar, retirado de seu quando e de seu onde. São situações de violência em que ele se vê destituído de suas condições de representação de si, alijado dos laços sociais que dão sua existência. Diante delas, não podemos recuar em uma ética do "dever de transmitir", uma ética da transmissão da experiência que se direciona no esforço de recordá-la simbolicamente para que ela não venha a se repetir no real através de atos de violência.
Referências
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
May-Aug 2016
Histórico
-
Recebido
01 Out 2014 -
Revisado
03 Jun 2015 -
Aceito
29 Jul 2015