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O processo de significação da política de integração curricular em Niterói, RJ

The curriculum policy in Niterói, Rio de Janeiro: integration and interdisciplinarity

Resumos

Com base na abordagem do ciclo de políticas de Ball e na teoria do discurso de Laclau, analisamos a política curricular da rede municipal de Niterói (RJ) no triênio 2005 - 2008, focando o processo de significação da proposta de integração curricular e as articulações e as disputas travadas entre o contexto de produção de textos e o contexto da prática. Analisando os sentidos em jogo, destacamos duas concepções particulares de currículo integrado: uma que visa a fomentar o diálogo entre as disciplinas escolares e outra que se constitui como forma de superação da disciplinarização. Integração curricular e interdisciplinaridade são significantes flutuantes que, apesar de defendidos em ambos os contextos, assumem sentidos distintos e em consonância com as demandas apresentadas pelos grupos que, diante das articulações políticas, buscam hegemonizar o que vem sendo significado como integração curricular.

política de currículo; integração curricular; interdisciplinaridade


Based on the perspective of Ball's policies cycle and on Laclau's discourse theory, we analyzed the curriculum policy of the municipal school system of Niterói (RJ) in the three-year period 2005 - 2008, focusing on the meaning of the curricular integration proposal and the articulations and disputes between the context of text production and the context of practice. We noted two particular meanings of integrated curriculum in dispute: one that aims to foster dialogue among school subjects and another that is trying to prevail over the school subjects. In both, the senses of curricular integration and interdisciplinarity are fluctuating, according to the demands in play and in view of the political articulations. Accordingly, the social groups are trying to hegemonize a given meaning of curricular integration.

curriculum policy; curricular integration; interdisciplinarity


ARTIGO

O processo de significação da política de integração curricular em Niterói, RJ

The curriculum policy in Niterói, Rio de Janeiro: integration and interdisciplinarity

Danielle dos Santos MatheusI; Alice Casimiro LopesII

IProfessora no Ensino Fundamental do Colégio Pedro II, no Rio de Janeiro, RJ e doutoranda em Educação no Proped – Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), Brasil. E-mail: danismatheus@yahoo.com.br

IIProfessora do Programa de Pós-Graduação em Educação da UERJ e coordenadora do grupo de pesquisa Políticas de Currículo e Cultura. Bolsista de produtividade do CNPq. E-mail: alice@curriculouerj.pro.br

RESUMO

Com base na abordagem do ciclo de políticas de Ball e na teoria do discurso de Laclau, analisamos a política curricular da rede municipal de Niterói (RJ) no triênio 2005 – 2008, focando o processo de significação da proposta de integração curricular e as articulações e as disputas travadas entre o contexto de produção de textos e o contexto da prática. Analisando os sentidos em jogo, destacamos duas concepções particulares de currículo integrado: uma que visa a fomentar o diálogo entre as disciplinas escolares e outra que se constitui como forma de superação da disciplinarização. Integração curricular e interdisciplinaridade são significantes flutuantes que, apesar de defendidos em ambos os contextos, assumem sentidos distintos e em consonância com as demandas apresentadas pelos grupos que, diante das articulações políticas, buscam hegemonizar o que vem sendo significado como integração curricular.

Palavras-chave: política de currículo; integração curricular; interdisciplinaridade.

ABSTRACT

Based on the perspective of Ball's policies cycle and on Laclau's discourse theory, we analyzed the curriculum policy of the municipal school system of Niterói (RJ) in the three-year period 2005 – 2008, focusing on the meaning of the curricular integration proposal and the articulations and disputes between the context of text production and the context of practice. We noted two particular meanings of integrated curriculum in dispute: one that aims to foster dialogue among school subjects and another that is trying to prevail over the school subjects. In both, the senses of curricular integration and interdisciplinarity are fluctuating, according to the demands in play and in view of the political articulations. Accordingly, the social groups are trying to hegemonize a given meaning of curricular integration.

Key words: curriculum policy; curricular integration; interdisciplinarity.

Introdução

Um dos discursos privilegiados nas políticas de currículo que vêm se desenvolvendo no Brasil nos anos 1990 e 2000 é o da integração curricular. A inovação e a mudança, particularmente associadas aos discursos de reformas curriculares, vêm se estabelecendo por meio da afirmação de limites do currículo disciplinar e da produtividade de propostas integradas, sejam elas via temas transversais, currículo interdisciplinar, currículo por competências ou currículo por áreas. Não foi diferente no caso da reforma curricular da rede municipal de Niterói no triênio 2005-2008, no governo liderado pelo Partido dos Trabalhadores. Buscamos, assim, em uma pesquisa sobre essa política de currículo, compreender o processo de significação da integração curricular e as articulações e as disputas intrínsecas a esse processo.

Defendemos que políticas de currículo são processos culturais nos quais estão imbricados textos e discursos, como resultado da articulação entre propostas e práticas curriculares, produzidas para a escola, por meio de ações externas a ela e, simultaneamente, pela própria escola, no seu cotidiano. Embora não tenham o poder de ditar o que deve ser feito, os textos das políticas circulam no contexto da prática, inseridos em uma esfera discursiva a partir da qual decisões são tomadas.

Tais textos circulam nas escolas e conectam-se aos contextos nos quais foram produzidos, sendo produto de compromissos que, contingencialmente, são reconhecidos como legítimos (Ball, 1992). Nesse processo, algumas vozes são mais ouvidas que outras, em função das relações de poder constituídas. Algumas demandas são legitimadas em detrimento de outras, em razão de sua capacidade de serem articuladas em um discurso que disputa a significação das políticas.

Os textos da política não são tão claros e fechados que não permitam uma infinidade de leituras diante da pluralidade de leitores. Por mais que se tenha a intenção de cercear a interpretação dos textos, isso não é possível, pois "autores não podem controlar os sentidos dos seus textos" (Ball, 1994, p. 16), nem tampouco os leitores são ingênuos receptores.

Os textos são, assim, representações da política curricular, mas não sua expressão plena. A política extrapola os sentidos fixados no contexto de produção dos textos, pois é construída de forma ampla num ciclo de políticas do qual também fazem parte o contexto de influência e o contexto da prática (Ball, 1992)1 1 . Posteriormente, Ball (1994) amplia a abordagem do ciclo de políticas, acrescentando a ela o contexto dos resultados e o contexto da estratégia política. Esses dois outros contextos são uma forma de o autor salientar a necessidade de os investigadores também se preocuparem com efeitos das políticas, sejam eles vinculados a aspectos instrucionais, sejam eles vinculados à capacidade de a política produzir maior justiça social e finalidades democráticas. . Os sentidos produzidos no contexto de influência circulam no contexto da produção dos textos e no contexto da prática, contribuindo para a significação da política. Da mesma forma, o contexto da prática, para o qual os textos são endereçados, contribui para a ressignificação e a definição da política, reinterpretando os diferentes textos. Esse contínuo processo de reinterpretação que textos e discursos sofrem ao longo dos três contextos é analisado por Ball como uma recontextualização por hibridismo (Ball, 1998; Lopes, 2005).

A abordagem do ciclo de políticas vem sendo considerada significativa para a análise das políticas de currículo (Lopes; Macedo, 2010; Mainardes, 2006; Power, 2006), pois permite compreender a produção de políticas numa circularidade marcada pela articulação entre os contextos e como resultado de um processo de negociação de sentidos entre esferas micro e macrossocial. A política curricular é analisada de forma multifacetada, e não como uma produção construída no vácuo e imune às influências locais e globais.

Para entendimento de como essa negociação de sentidos se desenvolve, associamos a teorização de Laclau à abordagem de Ball. Por meio dessa associação, é possível entender a produção das políticas curriculares como uma prática articulatória por meio da qual os atores lutam pela constituição da hegemonia (Laclau, 2006) de certos sentidos no currículo. É em defesa de uma visão particular de currículo que sujeitos se unem e aglutinam interesses, valores e ideias antes dispersos, constituindo suas identidades.

A equivalência capaz de unificar sujeitos com demandas diferentes é garantida pelo antagonismo a um inimigo comum que, dessa forma, atua como um exterior constitutivo das identidades articuladas. Assim, as identidades são constituídas na luta política a partir da defesa de determinadas propostas curriculares e da consequente oposição ao que é entendido como capaz de impedir a realização destas. Na acepção de Laclau (2006), a compreensão de como se constitui o grupo como ator coletivo na luta política se dá por meio do entendimento de três elementos: a relação equivalencial, a disputa hegemônica e o significante vazio. Na prática articulatória, demandas comuns que unem pessoas diferentes criam uma cadeia de equivalência. Num momento específico da luta política, identidades particulares criam equivalências entre as suas demandas, fazendo surgir uma identidade de grupo provisória. Uma determinada demanda pode, numa luta política específica, inspirar grupos sociais que não possuem afinidades a priori a articular-se e defender uma mesma visão de currículo. Os atores sociais e suas demandas são heterogêneos entre si, mas o que os une é, ao mesmo tempo, o que está no interior e no exterior da cadeia de equivalência.

Na negociação dos sentidos curriculares e em tantas outras lutas políticas, o processo articulatório é uma luta por hegemonia; grupos lutam para que visões particulares de currículo sejam hegemônicas, lutam para dar-lhes um status de universal. Nas palavras de Laclau (2006, p. 24), "a hegemonia é isso: uma particularidade que assume uma certa função universal." Nessa perspectiva, o universal não é algo fixo e dado a priori, pois, como os particulares disputam a sua atualização, está em constante processo de atualização por meio da disputa hegemônica.

A tensão entre universalismo e particularismo é a pré-condição para que o processo político seja democrático. É a contingência do universal que garante a luta política democrática, pois, se um corpo particular fosse a expressão fixa do universal, não haveria o que motivasse a luta pela atualização desse universal. Nas palavras de Laclau (2001, p. 249), "se a democracia é possível é porque o universal não tem nem um corpo nem um conteúdo necessário; grupos diferentes, ao invés, competem entre si para dar temporariamente a seus particularismos uma função de representação universal".

Na relação entre o particular e o universal, este tem relação com um significante vazio que, para assumir uma representação universal, teve que despojar-se de conteúdos precisos. É um significante cujo significado pode ser preenchido segundo as demandas projetadas por múltiplas identidades, "um significante que perde sua referência direta a um determinado significado" (Laclau, 2006, p. 25).

A política curricular aqui analisada foi produzida nas articulações entre a Fundação Municipal de Educação de Niterói (FME) e as escolas municipais por meio de discursos e textos sujeitos a múltiplas influências e a inter-relações entre políticas locais e globais. Como resultado desse processo e sob influência da LDB 9.394/96 e da política de currículo nacional fomentada pelo Governo Federal2 2 . Política iniciada no governo do Presidente Fernando Henrique Cardoso, a partir de 1996. , quatro foram os documentos curriculares produzidos: a Proposta Pedagógica Escola de Cidadania, iniciada em 2005 e finalizada em 2007 (Niterói, 2007a), o Documento Preliminar de Diretrizes Curriculares (Niterói, 2007b), a Portaria FME nº 125/2008 (Niterói, 2008a) e a Portaria FME nº 132/2008 (Niterói, 2008b). O contexto de produção desses textos foi ocupado hegemonicamente pelos profissionais que trabalham no órgão central, e às escolas coube a participação por meio da formulação e do envio de propostas.

Nesta pesquisa, o contexto da prática foi acessado por meio de entrevistas semiestruturadas com quatorze professores das disciplinas do 3º e do 4º ciclos da escola, ficticiamente denominada Niterói. O contexto de produção de textos foi acessado por meio de análise documental, confrontada com as interpretações dos professores. Tal opção metodológica se configurou como ampla possibilidade de investigação do processo de produção da política, pois favoreceu o acesso às vozes dos atores que exerceram o poder político sobre os textos, bem como dos que os interpretaram no contexto da prática.

Currículo e disciplinas escolares

O processo de significação do currículo foi permeado por deslizamentos de sentidos. Alguns significantes circularam nas distintas concepções de currículo, associados a significados que oscilam de acordo com as diferentes demandas que os sujeitos colocam em jogo. Múltiplos foram os significados assumidos tanto no currículo defendido pela FME quanto no defendido pelos professores da Escola Niterói, principalmente no tocante à integração curricular, à interdisciplinaridade e à disciplinarização. Podemos dizer, nos termos de Laclau (2006), que os significados flutuam nos significantes e vão sendo provisoriamente fixados em função das articulações desenvolvidas nas lutas políticas. Procuramos, assim, identificar esses significantes flutuantes, visando a entender as possíveis articulações na constituição da política de currículo na rede municipal niteroiense e, particularmente, na Escola Niterói.

Expressando uma tendência atual das políticas, que encontra expressões globais e locais, a política curricular investigada tem como marca de seu caráter inovador a defesa do currículo integrado. Segundo Lopes (2008), há diferentes concepções de currículo integrado, constituídas nas políticas por meio de diferentes modalidades que deflagram sentidos variados e representam finalidades consoantes com o projeto de educação defendido.

A configuração do currículo integrado é também expressão das recontextualizações que os atores fazem desse discurso, sempre polissêmico, desenvolvido na produção da política. É por meio de transferências de textos e discursos de um contexto a outro e de sua consequente modificação por processos de simplificação, condensação e reelaboração que as propostas de integração curricular são recontextualizadas (Lopes, 2008). O hibridismo torna-se a marca desses discursos, produzido nessa tradução do global no local e do local no global.

A defesa da integração curricular, muitas das vezes, é construída em contraposição à organização disciplinar do currículo, mas sua efetivação tende a realizar-se com referência à matriz disciplinar. Frequentemente, sua defesa é feita com base no argumento de que a integração curricular é capaz de estabelecer relações menos assimétricas entre os saberes e os sujeitos no currículo, sendo associada a perspectivas progressistas de educação.

A opção pelo currículo integrado, por si só, entretanto, não garante que o currículo efetive um projeto democrático de educação, pois questões mais amplas estão imbricadas nesse intento. Como discute Lopes (2008), as mudanças na organização curricular implicam mudanças nas relações de poder; portanto, não dependem apenas de disposições e vontades individuais. É importante questionar a compartimentação do conhecimento e valorizar sua associação às questões sociais; no entanto, isso não garante finalidades sociais emancipatórias e/ou democráticas. Ambas as organizações curriculares (disciplinar e integrada) podem servir a diferentes fins.

A tensão entre currículo disciplinar e currículo integrado pode ser percebida no processo de significação do currículo niteroiense. A FME parte em defesa de um currículo integrado, tentando enfraquecer o poder das disciplinas. Esse enfraquecimento é desenvolvido pelo silenciamento das disciplinas nos documentos curriculares. Percebe-se um esforço para não apresentar o nome das disciplinas escolares, bem como para não utilizar a palavra disciplina, que é substituída pela expressão "componente curricular". A referência às disciplinas parece ser um risco à instituição de um currículo integrado.

O texto, no entanto, não proclama o fim das disciplinas; apenas busca significálas como o ícone da fragmentação do conhecimento imposto pela Ciência Moderna. As disciplinas são vistas como o espelho das Ciências na escola.

O processo histórico de construção das ciências modernas edificou-se sobre uma detalhada fragmentação do mundo na intenção de melhor conhecê-lo e dominá-lo. A educação, também permeada por mecanismos de controle, valeu-se dessa mesma disciplinarização para controlar o aprendizado, bem como os alunos. (Niterói, 2007a, p. 64)

A relação entre disciplinas escolares e as ciências modernas, defendida pela FME nos documentos, reforça a ideia de que o currículo disciplinar é distante da realidade social do aluno, assim como as ciências, supostamente, também o são. Esse discurso passa a servir de base para a identificação do currículo disciplinar como conteudista e incapaz de formar o pensamento crítico do aluno.

O currículo disciplinar organiza-se a partir de uma lógica fundada na seleção solitária de determinados tipos de conhecimento, o que leva a uma organização conteudista incomunicável. Isto leva os alunos a praticarem estilos de pensamentos que, mesmo não sendo neutros, legitimam certos mitos, instituições e grupos sociais. Este caráter pode se distanciar em muito quando se propõe o mesmo tipo de reflexão a partir de uma concepção de currículo integrado. (Niterói, 2007a, p. 69)

Com base em Lopes (2008), Lopes; Macedo (2002) e Veiga-Neto (1997), avaliamos como questionável a associação direta e irrestrita entre currículo disciplinar e um ensino incapaz de relacionar conhecimentos entre si e com a realidade social. Essa visão, geralmente, é fundamentada no entendimento que se tem das disciplinas e de sua constituição (Lopes, 2008) e numa visão idealizada e pretensiosa do conhecimento, segundo a qual, por meio da interdisciplinaridade, se alcançará a totalidade epistemológica (Veiga-Neto, 1997).

Uma interpretação associada a esta é a de que as disciplinas escolares são as disciplinas científicas adaptadas para fins de ensino. A transposição da disciplinaridade científica para a disciplinaridade escolar traz à tona uma série de críticas relativas à natureza do conhecimento puramente científico. É com base nessa transposição que inúmeros críticos do currículo disciplinar justificam sua posição e argumentam que tal currículo não valoriza os interesses dos alunos e sua bagagem de conhecimentos, não se baseia em questões práticas e relevantes para a vida social e não permite um diálogo entre os conhecimentos de disciplinas diferentes (Lopes, 2008).

Contrapondo-se a essa interpretação, Lopes e Macedo (Lopes, 2008; Lopes; Macedo, 2002) defendem que ambas as formas de conhecimento, a científica e a escolar, são fruto de produções sócio-históricas específicas e permeadas por questões epistemológicas, teóricas e metodológicas que não se reproduzem da mesma forma nesses campos. Não procede conceber uma transposição direta da lógica das ciências de referência para o contexto escolar, pois o conhecimento científico e o escolar constituem-se a partir de um campo intelectual próprio, possuem um repertório de práticas específicas e estão sujeitos a regras de ingresso e permanência distintas.

Na construção social e política da disciplina escolar, existem pessoas e seus recursos ideológicos e materiais que lutam por status, recursos e território, bem como por alcançar seus objetivos individuais e coletivos (Goodson, 1997). Está em jogo uma gama de elementos sociais que são definidos pelas disciplinas e que as definem, ao mesmo tempo: produção de diplomas, cumprimento de exigências sociais, formação de professores, divisão do trabalho docente, etc. "As disciplinas são organizações de conhecimento capazes de criar vínculos entre atores sociais, mobilizar recursos materiais e simbólicos, envolver relações de poder e delimitar territórios de atuação que atendem a demandas sociais específicas" (Lopes, 2008, p.86).

Se, por um lado, as disciplinas escolares não são a expressão integral do conhecimento científico, por outro, não são algo imune a essa produção. Os saberes científicos, com os quais os professores estão em contato ao longo de sua experiência acadêmica, também influenciam a produção dos conhecimentos disciplinares pela via da formação de professores. Esse fato confere às disciplinas escolares legitimidade, prestígio, apoio social e estabilidade curricular. Os saberes científicos funcionam como uma espécie de lente através da qual os professores enxergam a produção curricular e reinterpretam seus sentidos.

Os saberes para constituição das disciplinas escolares têm também como referência as práticas sociais, pois, ao passo que a didatização vai acontecendo, alguns valores sociais vão sendo incorporados. Os conhecimentos disciplinares são, portanto, híbridos, fruto da inter-relação entre as culturas produzidas nos campos científico, pedagógico e social. As disciplinas escolares são produções culturais específicas, construídas pela escola e para a escola, a partir de recontextualizações operadas pelas comunidades disciplinares.

O conhecimento escolar está sujeito às regras de recontextualização, segundo as quais textos e discursos pedagógicos são reinterpretados, e os conteúdos e as relações a serem transmitidos são constituídos (Lopes, 2008). O caráter dinâmico da recontextualização reforça o caráter contingente e provisório das disciplinas escolares e desmistifica a forma monolítica a partir da qual, geralmente, estas são concebidas. Isso favorece criar, em torno da produção do conhecimento disciplinar, uma esfera de múltiplas possibilidades e debates, na qual a luta pela legitimação de determinados conhecimentos seja a marca do processo.

Defendemos, assim, que as disciplinas estão em processo de vir a ser. Entender a micropolítica da sua produção torna-se, então, produtivo para perceber a mudança e a estabilidade curricular, bem como o papel das comunidades disciplinares nesse processo. Essas comunidades são compostas por professores e pesquisadores em ensino das disciplinas escolares, atores estes que inter-relacionam questões do campo científico e do campo pedagógico. A influência dessas comunidades está presente no contexto de produção de textos, por meio da produção de textos didáticos e da formação continuada de professores. Seu trabalho de pesquisa contribui para reafirmar a importância da disciplina escolar no currículo e a defesa de suas finalidades sociais, bem como para formar a identidade profissional do professor (Lopes, 2008).

A legitimidade da disciplina escolar também se dá em relação aos fins sociais do conhecimento e da educação. Tais fins têm relação com a produção de padrões e tipificações sociais estáveis que, segundo Goodson (1997), têm valor como moeda no mercado da identidade social. A certificação por meio de diplomas autoriza a inserção no sistema produtivo, criando categorias estandardizadas de diplomados, que funcionam como moedas-padrão exigidas em tal mercado. Os espaços disciplinares são, portanto, espaços nos quais se busca formação para atender a tais padrões e tipificações.

Cada disciplina tem uma micropolítica própria, na qual ocorrem, de forma isolada e segmentada, debates específicos sobre os objetivos sociais do ensino. Isso tem corroborado a visão da disciplina escolar como um arquétipo da divisão e fragmentação do conhecimento na sociedade moderna (Goodson, 1997). Muitas propostas curriculares são produzidas como resposta a essa suposta divisão e fragmentação. O currículo disciplinar carrega o estigma da compartimentação e da hierarquização de saberes, sendo "identificado como incapaz de integrar saberes, de permitir uma compreensão global dos conhecimentos ou de gerar maiores aproximações com saberes cotidianos dos alunos, dessa forma dificultando a aprendizagem de conhecimentos significativos". (Lopes; Macedo, 2002, p.74)

Estudos recentes do campo do currículo concluem que as disciplinas escolares têm garantido sua posição curricular hegemônica, apesar de uma série de iniciativas que ensaiam a organização de currículos não disciplinares. Na escola, o conhecimento continua a ser veiculado por meio das disciplinas, o que faz com que as críticas aos currículos escolares sejam, automaticamente, críticas ao currículo disciplinar. Segundo Lopes e Macedo (2002), essa hegemonia é sustentada pela divisão disciplinar nos documentos curriculares, nos livros didáticos, na formação de professores e no próprio mercado de identidades sociais sustentado pelas disciplinas.

Dessa forma, é possível interpretar as definições curriculares oficiais como capazes de constituir um discurso em defesa do currículo integrado que não implica, na prática, a superação das disciplinas escolares. As disciplinas continuam sendo um princípio de organização e de controle do currículo que consolida os espaços e os tempos escolares. Elas são o elemento da organização curricular mais reconhecido por professores, alunos e sociedade e continuam legitimando-se como uma instituição social necessária, já que a organização da ação escolar, a produção do conhecimento escolar e a formação dos professores giram em torno das disciplinas (Lopes; Macedo, 2002).

A submissão da integração aos interesses das disciplinas ocorre, segundo Lopes (2008), também em função da participação das comunidades disciplinares não só no contexto da prática, mas também no contexto de produção de textos das políticas curriculares. Romper com a lógica disciplinar requer uma série de mudanças: nos territórios já sedimentados, na identidade e nas práticas dos atores sociais, nas relações de poder na escola e no atendimento a demandas relacionadas às tipificações exigidas no mercado da identiade social (diplomas, concursos, etc.). A mudança requer que se mexa em questões profundas e de grande abrangência, não é apenas uma questão de sensibilidade e de vontade de instituir a integração curricular.

Nos documentos produzidos pela FME (Niterói, 2007a, 2007b, 2008a, 2008b), assim como nas interpretações feitas pela Escola Niterói, evidencia-se um híbrido do currículo centrado nas disciplinas escolares com o currículo por objetivos, associado à preocupação com processos de integração. Em cada um desses contextos, no entanto, a significação dada a esses processos curriculares foi diferente.

No texto da proposta curricular apresentada pela FME (Niterói, 2008b), são indicados três eixos de organização curricular: Linguagem, Identidade e Autonomia; Tempo, Espaço e Cidadania; e Ciências, Tecnologias e Desenvolvimento Sustentável. Para a FME, as disciplinas devem estar a serviço dos objetivos dos eixos propostos, pois elas são um meio para chegar a tais objetivos. As disciplinas não deixam de existir e até permanecem sob as mesmas regras de antes – ou seja, sob a estrutura de hora-aula distribuída de forma desigual e sob a organização dos professores por disciplina. Há, no entanto, uma pretensão de que elas não sejam o centro do currículo. Os professores da Escola Niterói, ao contrário, reafirmaram a importância das disciplinas no currículo e expressaram o desejo de mudança da estrutura que estabelece hierarquia entre elas; eles defendem que as disciplinas devem ocupar o tempo e o espaço no currículo escolar de forma equiparada.

Os saberes disciplinares, na perspectiva da FME, devem estar a serviço de objetivos que estejam em consonância com a perspectiva crítica, com uma educação progressista. Ao mesmo tempo que os documentos não rechaçam os conteúdos, não dão ênfase a eles no currículo; reafirmam a necessidade de serem contextualizados e vinculados à realidade dos alunos. Essa visão também se evidencia no discurso dos professores da Escola Niterói. Os conteúdos são valorizados pelos professores pelo potencial cultural que têm. Eles defendem que os conteúdos sejam definidos pela escola, tomando por base as necessidades dos alunos.

Integração curricular por meio da interdisciplinaridade

Tanto para a FME quanto para os professores da Escola Niterói, o currículo integrado visa a fomentar a interdisciplinaridade. O currículo integrado é entendido

como aquele no qual as disciplinas trabalham de forma interdisciplinar; integração curricular e interdisciplinaridade são uma consequência da outra. Apesar disso, no âmbito da significação do currículo, interdisciplinaridade e integração curricular são significantes flutuantes. A unânime defesa da integração curricular e da interdisciplinaridade é permeada por diferentes sentidos que essas temáticas assumem nos grupos em disputa.

Nessa flutuação de sentidos, a interdisciplinaridade, na acepção da FME, representa a busca por um currículo que não tenha na (suposta) fragmentação disciplinar a sua tônica. Embute-se nisso a ideia de chegar à totalidade do conhecimento, para a qual as disciplinas representam um obstáculo.

Art. 11º: Os processos de mediação pedagógica e avaliação a serem desenvolvidos no cotidiano das Unidades de Educação deverão priorizar: [...] 2-A superação da fragmentação disciplinar e a articulação dos conhecimentos a partir de Eixos de Estudo e Pesquisa, Projetos de Trabalho, Complexos Temáticos, Temas Geradores, entre outras formas de organização curricular [...] (Niterói, 2008b).

Em dissonância com essa perspectiva, a Escola Niterói defende a interdisciplinaridade não como o apagamento das disciplinas, mas como a possibilidade de inter-relacioná-las e articulá-las. As disciplinas são a expressão das diversas formas de entender o objeto de estudo, e a interação dessas formas significa maiores benefícios à aprendizagem dos alunos.

Eu acho que ela [a proposta curricular] tem potencial pra poder fazer aquela tão sonhada interdisciplinaridade. É que as disciplinas estão sempre em contato umas com as outras, então, isso é mais uma deixa pros professores trabalharem em conjunto.

(Fernando, professor de História, entrevistado em 2008)

O significado atribuído à forma como o currículo interdisciplinar deve ser instituído também flutuou de um contexto ao outro. Para a FME, o sucesso da integração curricular está associado à sensibilidade do professor para a causa, como se a mudança de atitude e o engajamento docente garantisse a mudança curricular pretendida. Já, para os professores da Escola Niterói, muitos dos quais demonstraram estar sensibilizados para um trabalho interdisciplinar, o sucesso da integração curricular depende de condições favoráveis ao planejamento coletivo do trabalho pedagógico; eles reivindicaram o aumento da carga horária para o planejamento.

O grande problema é quando eles falam e citam a questão da interdisciplinaridade. Aí, assim, mais uma vez a gente requer tempo pra fazer isso, pra poder sentar coletivamente, discutir projetos. [...] O que acontece de interdisciplinar efetivamente é quando um professor, na sala de professor, conversa com outro professor. E aí, assim, naquela duplinha ou naquele grupinho, que não é um grupo abrangente, definem alguma coisa, elaboram e partem pra ação.

(Vinícius, professor de Matemática, entrevistado em 2008)

É possível identificar aproximações entre a significação de currículo integrado defendida pela FME (Niterói, 2007b) e o movimento brasileiro pela interdisciplinaridade. Segundo Veiga-Neto (1997), esse movimento, que teve início nos anos 19703 3 . No Brasil, o movimento pela interdisciplinaridade teve suas bases epistemológicas em Hilton Japiassu e suas bases pedagógicas em Ivani Fazenda. e até hoje tem força no discurso pedagógico, tem caráter prescritivo e almeja a integração dos saberes por meio de novos arranjos curriculares para que, num outro momento, se alcance a unidade do saber e, consequentemente, o desaparecimento da disciplinaridade. Por meio da interdisciplinaridade, busca-se "recuperar uma totalidade de pensamento, a qual teria sido perdida pelo fracionamento que a ciência moderna trouxe à nossa "maneira de pensar" quanto ao próprio mundo." (Veiga-Neto, 1997, p. 67).

A perspectiva epistemológica do movimento pela interdisciplinaridade, baseada em Gusdorf, entende que os males da Ciência se devam à forma fragmentada como se concebe o objeto a conhecer. As disciplinas científicas, nessa abordagem, são a expressão da fragmentação da totalidade do conhecimento. A ideia de que, pela via da interdisciplinaridade, pode-se chegar à compreensão da totalidade do mundo real, supostamente dissipada pelo conhecimento disciplinar, foi o que mobilizou os que se engajaram no movimento (Veiga-Neto, 1997).

Para Veiga-Neto, a categoria totalidade traz o entendimento do conhecimento como um saber unitário e universal, denominado "unitarismo epistemológico". O saber suposto como total refuta a disciplinaridade, uma vez que esta é a expressão das múltiplas disciplinas, e não de um saber único. Nessa perspectiva, "removidas as fronteiras disciplinares, ou seja, superado o fracionamento dos saberes, chegar-se-ia a um ponto ômega e lá encontraríamos uma 'entidade' que não seria uma disciplina." (Ibid., p.91).

Tendo em vista a natureza categorial das disciplinas, Veiga-Neto considera difícil imaginar um currículo que não seja organizado a partir de categorias, independentemente do nome que ganhem – disciplinas, eixos, temas –, na medida em que é característica da cultura moderna a busca por categorias que organizem a produção de conhecimento. O intento de apagamento das disciplinas significaria, para o autor, o surgimento de outras categorias que, da mesma forma, impossibilitariam o alcance do saber único.

Ao analisarmos os mecanismos de integração curricular propostos pela FME, podemos identificar como essas novas categorias são constituídas. Entendemos, contudo, que tais categorias precisam ser analisadas com referência ao currículo e ao trabalho pedagógico. Elas não se remetem às divisões da ciência e às suas formas de regulação do conhecimento, mas às políticas que buscam constituir uma dada representação de currículo na escola.

Mecanismos de integração no currículo

No intuito de superar a lógica disciplinar e como estratégia de integração do currículo, a FME propôs os três eixos de organização curricular. No texto da proposta, há uma descrição de cada eixo, tratando, principalmente, de seus objetivos e objeto de estudo. O texto não faz qualquer tipo de vinculação explícita entre disciplinas e eixos. A ênfase é conferida à necessidade de as disciplinas organizarem seu trabalho em função dos objetivos dos eixos.

No contexto da Escola Niterói, os eixos foram entendidos pela maioria dos professores não como categorias que visam à superação da lógica disciplinar, mas como possibilidades de articular disciplinas afins. Para alguns professores, os eixos poderiam funcionar como aglutinadores de algumas disciplinas que têm conteúdos e finalidades semelhantes.

A História acontece sempre no espaço, ela não ocorre solta no ar. Então, eu preciso da Geografia pra me localizar e localizar os alunos no que estava acontecendo no passado. Então, é uma boa chance da Geografia apoiar isso. A Geografia tende a falar da atualidade. A História está com a preocupação maior no processo que levou a humanidade a chegar nessa atualidade. Então, são praticamente duas partes da mesma coisa. (Fernando, professor de História, entrevistado em 2008)

Houve o entendimento de que as disciplinas estavam agrupadas em eixos, de forma que cada uma pertenceria a um determinado eixo. Alguns professores, no entanto, discordaram da associação direta entre disciplinas e eixos e esboçaram o entendimento de que cada disciplina deveria perpassar por todos os eixos. Para eles, essa associação significa estabelecer outra forma de fragmentação do conhecimento, pois os eixos passam a ser novas categorias a compartimentar os saberes escolares, reduzindo o repertório de diálogo entre as disciplinas e fixando os pares da integração. "Eu não fiz essa leitura de colocar as disciplinas em eixos. Eu vi que existem eixos, é a minha leitura, e que as disciplinas transpassam esses eixos. Ora eu, Geografia, passo pelo eixo da linguagem, ora eu passo pelo eixo da cidadania." (Adriana, professora de Geografia, entrevistada em 2008).

Apesar de a FME (Niterói, 2007b) transferir o foco da disciplina para os eixos, na tentativa de atenuar o poder disciplinar no currículo, os professores da Escola Niterói leram os textos disciplinarmente e perceberam a presença das disciplinas nos trechos que tratam dos eixos. Para grande parte dos entrevistados, a caracterização dos eixos sugere associar as disciplinas a um determinado eixo, mas isso não é explícito, na medida em que as disciplinas não são nomeadas e não há seções no Documento de Diretrizes Curriculares (2007b) que tratem de cada disciplina em separado. Nenhum dos professores considerou que a pouca referência às disciplinas representava a ausência destas no documento. A relação de pertencimento a um eixo deu-se de forma quase natural, evidenciando a hegemonia do currículo disciplinar. Alguns professores da Escola Niterói, no entanto, avaliaram que a configuração dos eixos é arbitrária, pois não foi amplamente discutida com eles, que são membros de comunidades disciplinares no âmbito das quais as disciplinas teriam a devida fundamentação teórica.

Não vejo Matemática como Ciência e Tecnologia, é uma opinião minha e de outras pessoas. Eu vejo matemática como linguagem. Ainda mais no Ensino Fundamental, a Matemática é uma linguagem de descrição que Física usa, a Química usa, as Ciências usam às vezes. (Laura, professora de Matemática, entrevistada em 2008).

Eu achava que Ciência deveria ser no mesmo eixo de História e Geografia [...] Ficaria a parte física do planeta, a parte da Biologia da vida nesse planeta, e a ação desse homem nesse processo. (Marília, professora de História, entrevistada em 2008).

Alguns professores discordaram da vinculação de suas disciplinas a determinado eixo e julgaram que os pares estabelecidos não propiciam um trabalho interdisciplinar. Um deles pontuou que a integração curricular não obedece unicamente ao critério epistemológico, pois, na constituição das disciplinas, estão sujeitos que se relacionam, criando afinidades que não necessariamente se baseiam nas disciplinas, nem tampouco na organização em eixos.

Os professores demarcaram posição como sujeitos dotados de legitimidade e autoridade para definir as diretrizes para o ensino das suas disciplinas. Alguns deles sugeriram que o papel da FME, no tocante à política de currículo, era o de apenas nutrir a rede das condições materiais e estruturais para o bom andamento do trabalho pedagógico.

A Fundação é administração burocrática da escola, financeira. Pra dar conta... O meu dinheiro não saiu esse mês. Eu vou à Fundação. Mas pra questões pedagógicas, quem tem que resolver somos nós, que estamos dentro da escola, que sabemos e conhecemos cada aluno. (Laura, entrevistada em 2008).

Conclusões

A política curricular da rede municipal de Niterói é marcada por disputas por espaço e autoridade pedagógica para formular e gerenciar o currículo, particularmente no que concerne ao entendimento da integração curricular. Essa disputa por autoridade é entendida como legítima, se pensarmos que o processo de produção da política é uma luta por hegemonia. Muitas vezes, a oposição, por parte da escola, a uma proposta que vem do poder público é interpretada em termos de resistência à mudança. Muitas vezes, também, esse pensamento expressa a tentativa de tornar propostas curriculares de uma dada reforma, de forma apriorística, a expressão do universal. A proposta construída pelo poder público, ao passo que é entendida como o universal fixo, engendra sentidos que a legitimam como a única opção curricular válida. Assim, coloca os que se opõem a ela como resistentes ao que busca ser significado como o melhor e como a expressão da inovação.

Nesse caso, não se incorpora a visão de que a oposição expressa a tentativa de hegemonizar outras visões particulares de currículo. Defendemos, diferentemente, que essa oposição seja entendida como constituinte do processo democrático, levando em conta a tensão entre particular e universal, para pensar a posição dos sujeitos no processo de significação do currículo.

No caso da Escola Niterói, entendemos a oposição de um grupo de professores à proposta da FME como a defesa de uma concepção curricular condizente com as demandas que unem esses sujeitos. A posição dos sujeitos no processo de produção da política tem por base demandas comuns e, ao mesmo tempo, a oposição a um inimigo comum, um exterior constitutivo, contra o qual o grupo busca contraporse: o poder constituído. Esse poder é encarnado na instituição FME, significada como desenvolvendo ações que não fornecem as condições de trabalho que os professores da Escola Niterói almejam, mas que atuam de maneira a tentar significar suas práticas curriculares de uma dada maneira. Esse processo de significação, por sua vez, é reivindicado pelos professores como seu espaço exclusivo de ação.

Duas concepções particulares de currículo estão em disputa. Os professores defendem uma proposta de integração curricular na qual as disciplinas, de forma articulada e não hierárquica, sejam a matriz de organização do conhecimento. Defendem o currículo cuja marca seja a diversidade disciplinar, pois a inter-relação entre as diversas disciplinas é entendida como capaz de conduzir ao diálogo entre as diferenças sem que, no final, haja o apagamento de nenhuma das formas de conhecimento. Defendem também que essas disciplinas tenham todas o mesmo grau de valorização no currículo, no que se refere a espaço e prestígio social, e que haja oportunidade para planejamento de ações interdisciplinares.

A concepção que se hegemonizou no período investigado foi a defendida pela FME, que passou a ter um status de universal, consubstanciado nos documentos.

Essa concepção entende que o currículo disciplinar representa a fragmentação do conhecimento e que as disciplinas são a expressão de um ensino conteudista e desconexo da realidade do aluno, que não contribui para a formação de sua criticidade. Como forma de superar a disciplinarização, a FME (Niterói, 2007b, 2008b) defende um currículo integrado que tem como matriz organizadora eixos com objetivos a serem alcançados em cada disciplina.

Partindo do entendimento de que os documentos não encerram a política, inferimos que os professores da Escola Niterói, apesar de não considerarem que suas concepções de currículo integrado e de disciplinas tenham sido incorporadas nos textos, recontextualizam a proposta desenhada inicialmente pela FME (Niterói, 2007a, 2007b). Eixos temáticos são interpretados disciplinarmente e ações nas escolas permanecem situando-se em um terreno disciplinar. Nesse sentido, os docentes atuam no processo de significação do currículo do qual se julgavam excluídos. Inserem seus sentidos em significantes que favorecem esses deslizamentos e, desse modo, disputam a representação da política como o poder instituído contra o qual se contrapõem.

Permanece, assim, a tensão entre particular e universal, em constante processo de atualização, diante das articulações políticas com vista a hegemonizar o que vem sendo significado como currículo.

Recebido em 20 de julho de 2010 e aprovado em 21 de outubro de 2010.

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  • 1
    . Posteriormente, Ball (1994) amplia a abordagem do ciclo de políticas, acrescentando a ela o contexto dos resultados e o contexto da estratégia política. Esses dois outros contextos são uma forma de o autor salientar a necessidade de os investigadores também se preocuparem com efeitos das políticas, sejam eles vinculados a aspectos instrucionais, sejam eles vinculados à capacidade de a política produzir maior justiça social e finalidades democráticas.
  • 2
    . Política iniciada no governo do Presidente Fernando Henrique Cardoso, a partir de 1996.
  • 3
    . No Brasil, o movimento pela interdisciplinaridade teve suas bases epistemológicas em Hilton Japiassu e suas bases pedagógicas em Ivani Fazenda.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      31 Ago 2011
    • Data do Fascículo
      Ago 2011

    Histórico

    • Aceito
      21 Out 2010
    • Recebido
      20 Jul 2010
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