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Palhaceando pelo Brasil: um panorama sobre o ensino de palhaças e palhaços brasileiros 1 1 Editor responsável: Carmen Lúcia Soares. https://orcid.org/0000-0002-4347-1924 2 2 Normalização, preparação e revisão textual: Piero Kanaan (Tikinet) revisao@tikinet.com.br 3 3 Apoio: Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior, (Grant / Award Number: ‘23-P-3506/2019’). 4 4 English version: Henrique Akira (Tikinet) traducao@tikinet.com.br

Resumo

Sedimentada na cultura moderna e fortemente atrelada ao circo, a arte do palhaço e da palhaça revela-se como um profícuo espaço para a reflexão da formação artística. Este artigo pretende oferecer um olhar crítico para os processos que os formadores e as formadoras de palhaços e palhaças receberam em suas formações artísticas. A partir dos dados resultantes de um questionário online realizado em 2019 e divulgado em redes sociais, encontramos 110 profissionais do ensino da palhaçada espalhados pelas cinco regiões do Brasil. Ao analisar as respostas obtidas, podemos delinear um primeiro entendimento dos diversos processos de formação de palhaços e palhaças que estão acontecendo no país. Um olhar crítico para o que foi e está sendo feito possibilita um aperfeiçoamento do que poderá ser aprimorado no futuro.

Palavras-chave
Palhaço; Ensino; Brasil; Arte Cênicas

Abstract

Rooted in modern culture and strongly linked to the circus, the art of the clown and of clowning reveals itself as a fruitful space for the reflection on artistic training. This article aims to provide a critical look at the processes that trainers of clowns had received in their artistic training. From the data resulting from an online questionnaire carried out in 2019 and disseminated on social networks, we found 110 professionals in the teaching of clowning spread across the five regions of Brazil. By analyzing the obtained responses, we can have a first understanding of the various processes of clown formation currently taking place in the country. A critical look at what has been and is being done allows improving what can be done in the future.

Keywords
Clown; Teaching; Brazil; Performing Arts

Introdução

Quando falamos sobre palhaço; uma figura tão múltipla e que se faz amplamente presente em muitas sociedades desde a antiguidade até os dias atuais (Castro, 2005Castro, A. V. de. (2005). Elogio da bobagem – Palhaços no Brasil e no mundo. Família Bastos.; Silva, 2019Silva, R. R. M. da. (2019). Développement d’une pédagogie du jeu clownesque: um parcours entre Brésil et Europe [Tese de Doutorado]. Université Paul-Valéry Montpellier 3.; Soares, 2019Soares, M. R. (2019). Palhaço/a como ser do contrário e provocador/a do riso: uma trajetória em formação [Tese de Doutorado]. Universidade Estadual de Campinas.), não podemos acreditar que a sua recorrência seja apenas uma coincidência. A relevância dos palhaços e das palhaças, bem como os processos de ensino e de aprendizagem que engendram gerações de artistas nessa linguagem particular, revelam-se múltiplas e, ainda, merecedoras do olhar atento daqueles que, como nós, desejam compreender as distintas possibilidades de difusão da palhaçada.

Para que isso aconteça, precisamos perceber que, da mesma forma em que as sociedades se transformam com o tempo, dando destaque às últimas décadas com a aceleração resultante do grande desenvolvimento tecnológico em um curto período (Rosa, 2020Rosa, H. (2020). Aceleração: a transformação das estruturas temporais na modernidade. Editora Unesp.), a arte também se transforma. Um exemplo é como o circo vem se estruturando ao longo das décadas, mantendo-se sempre contemporâneo à época em que atua (Silva, 2011Silva, E. (2011). O novo está em outro lugar. In Palco Giratório, Rede Sesc de Difusão e Intercâmbio das Artes Cênicas (pp. 12-21). SESC.), fato que também se torna verdadeiro para a figura do palhaço.

Essas transformações não se limitam aos aspectos estéticos, mas também se refletem na função que a arte, incluindo palhaços e palhaças, assume na sociedade, interferindo nos espaços que ocupam, como também nos processos de ensino e criação. Considerando as vigentes transformações do aprendizado da arte da palhaçada, notamos que os caminhos escolhidos por esses artistas se diversificam com o tempo, criando uma rede formativa complexa, e que vem penetrando “pelas brechas” (Bortoleto; Silva, 2017Bortoleto, M. A. C., Silva. E. (2017). Circo: Educando entre as gretas. Revista Rascunhos, 4(2), 104-117. Recuperado de https://seer.ufu.br/index.php/rascunhos/article/view/38646/20691
https://seer.ufu.br/index.php/rascunhos/...
) da cultura e da educação artística em âmbito nacional.

Com efeito, parece que estamos diante de um processo rizomático (Souza, 2012Souza, R. M. de. (2012). Rizoma deleuze-guattariano: representação, conceito e algumas aproximações com a educação. Revista Sul-Americana de Filosofia e Educação, 18, 234-259.) que não pode ser ponderado de uma forma linear e única, mas sim como um conjunto de possibilidades que se entrelaçam constantemente, encontrando novos caminhos em distintas direções, criando soluções sempre que uma barreira é encontrada. Tudo isso simultânea, arbitrária ou, ainda, risonhamente. Se temos uma figura tão controversa tal qual o palhaço, que transgride as normas sociais como ponto de partida da sua crítica e do seu riso, não estranharíamos observar a formação deste para além de um caminho único. Aliás, a multiplicidade artística parece indicar uma rede de itinerários formativos. Foi em busca deles que empreendemos este estudo.

Essa constância transgressora dos palhaços e palhaças abre a possibilidade de sempre inovar nos caminhos escolhidos para o ensino e a aprendizagem da palhaçada. Como qualquer ofício, a arte palhacesca requer muito preparo e treinamento, uma formação continuada e em constante aperfeiçoamento. Desse modo, nos parece relevante indagar quais são os possíveis processos de formação de palhaços e palhaças em atuação no Brasil.

O objetivo deste texto foi, portanto, desenvolver uma análise reflexiva sobre os processos que os mestres e as mestras de palhaços e palhaças receberam em suas formações artísticas. As informações foram obtidas por meio de um questionário online, o qual foi respondido por profissionais do ensino da palhaçada do Brasil. A partir da análise das respostas, foi possível delinear alguns dos diversos processos de formação que permeiam o contexto nacional.

Ou seja, olhamos para os processos que estão sendo desenvolvidos no presente para mapear as conexões já existentes e tentar inovar nas possibilidades para o ensino, sempre atentos a não generalizar os processos a partir de algumas poucas experiências. Em suma, a ação e, por conseguinte, a formação do palhaço e da palhaça podem ser observadas como um rizoma que conecta, desvia e reconecta uma enorme multiplicidade de formas, experiências, saberes e pessoas. Uma apologia à arbitrariedade, à hiperestruturação que parece ter modulado a formação profissional e artística.

Ao encontro

Considerando a vastidão territorial e outras inúmeras limitações para acessar artistas que ocupam esse país continental, iniciamos essa jornada com um levantamento de formadores e formadoras de palhaços e palhaças pelo Brasil. Sendo importante considerar a relevância que tal figura tem dentro da sociedade e a expansão da mesma na pesquisa acadêmica, como também o fato de inexistir qualquer levantamento similar a esse no país. Sendo assim, em 2019 elaboramos um questionário online com o objetivo de mapear esses profissionais para compreender como o ensino da palhaçada está acontecendo no país.

O questionário exibia uma breve apresentação do estudo, e do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), e foi composto por 15 perguntas abertas e sete fechadas, organizados em cinco tópicos: I – Identificação do participante; II – Informações sobre formação acadêmica, profissional e artística; III – Processo de formação e atuação profissional como palhaço ou palhaça; VI – Processo de ensino da palhaçada que desenvolve; V – Informações complementares e indicação de novos participantes.

Distribuído via plataforma digital Google Forms e amplamente divulgado em redes sociais especializadas, nos fundamentamos nos princípios do método “bola de neve” descrito por Vinuto (2014)Vinuto, J. (2014). A amostragem em bola de neve na pesquisa qualitativa: um debate em aberto. Temáticas, 22(44), 203-220. https://econtents.bc.unicamp.br/inpec/index.php/tematicas/article/view/10977.
https://econtents.bc.unicamp.br/inpec/in...
, buscando mapear com o maior alcance possível os respondentes. A participação no estudo dependia, ademais, da autodenominação como formador ou formadora de palhaços e palhaças e na condição de estar residindo no território brasileiro no momento da participação.

Ao final de três meses de difusão e circulação do questionário, obtivemos 131 respostas, das quais 110 foram consideradas válidas, conforme os critérios acima indicados. Alcançamos respondentes de todas as cinco regiões do país (Tabela 1), reforçando a presença de palhaços e palhaças em todo o território nacional.

Tabela 1
Número de participantes por região do Brasil.

Como não encontramos nenhum levantamento similar anteriormente, consideramos um número expressivo de participantes envolvidos, o que condiz com o aumento da literatura especializada no território brasileiro.

Ao analisarmos as respostas sobre os processos de formação artística dessa grande diversidade de profissionais, foi possível encontrar alguns percursos mais comuns que foram e estão sendo seguidos no Brasil. Ao examinar as formações que esses mestres e mestras vivenciaram como aprendizes e cruzar com os processos que construíram para guiar novos e novas artistas, também podemos traçar um panorama desses possíveis caminhos de ensino/aprendizado da arte de fazer palhaçadas.

No seio da família circense

Não é gratuita a associação simbólica e factual do palhaço com o circo (Avanzi & Tamaoki, 2004Avanzi, R., & Tamaoki, V. T. (2004). Circo Nerino. Pindorama Circus; Códex.; Bolognesi, 2003Bolognesi, M. F. (2003). Palhaços. Editora Unesp.; Castro, 2005Castro, A. V. de. (2005). Elogio da bobagem – Palhaços no Brasil e no mundo. Família Bastos.). De fato, nossos respondentes indicaram que a formação se estruturou em um espaço que o palhaço ganhou grande notoriedade, os circos itinerantes. Como brevemente mencionado sobre o processo de aprendizagem geracional, muitos formadores e formadoras passaram por um processo de transmissão de conhecimento oral no âmbito do circo familiar (Silva, 2015Silva, P. E. (2015). A formação do palhaço circense [Dissertação de Mestrado]. Universidade Estadual Paulista.).

Meu pai foi meu grande mestre e até hoje é o meu mentor, me inspiro muito nas obras de meu pai para alcançar bons resultados. Nasci e cresci no circo tradicional, aprendi de tudo um pouco e hoje repasso com todo cuidado e carinho assim como me foi repassado

(T.S., 2019).

Com a aprendizagem oral encontrada no interior das famílias circenses, vemos o conhecimento sendo transmitido de forma contínua e aprofundada, misturando os saberes artísticos com os saberes da técnica dos bastidores, dos administrativos, da ética construída dentro dessa companhia familiar, como tantos outros aprendizados necessários para a continuidade e manutenção da família. Esse conhecimento é, geralmente, transmitido dos mais experientes para as crianças, uma artesania (Sennett, 2009Sennett, R. (2009). O Artífice. Record.) que é passada por meio de uma grande parcela de observação e associação em pequenas funções para aprender a profissão. Além de uma difusão proposital do conhecimento, a criança nasce em meio a essa lógica de funcionamento, sendo, muitas vezes, inseridas dentro do espetáculo ainda bebês. Uma formação que se prolonga no tempo, uma formação para a vida para que seja possível a manutenção da família.

Essa verdadeira imersão no cotidiano do trabalho artístico e técnico da vida circense faz com que as crianças aprendam diariamente, não somente atuando ou participando dos ensaios, mas observando o trabalho de cada um dos envolvidos nos espetáculos e auxiliando em tarefas que envolvem a iluminação, a sonorização ou a contrarregragem

(Bolognesi et al., 2019Bolognesi, M. F., Silva, D. M. da, Duarte, F. J., Nascimento, M. S. do, Silva, P. E. da, & Bastos, S. (2019). Tubinho: O teatro no circo (2001-2016). Paco Editorial., p. 174).

Para muitos esse é o modo que aprendem desde o nascimento, sendo possível observar que as brincadeiras dessas crianças, muitas vezes, são reproduções das performances dos pais e familiares, que podem ser aperfeiçoados durante o tempo se tornando parte de sua apresentação. É conhecimento geracional e contínuo, e todos participam direta ou indiretamente dessa construção.

As habilidades corporais apreendidas e as produções artísticas do circo permeiam as brincadeiras, o dia a dia das crianças, aprimorando com o tempo o desenvolvimento das habilidades corporais. Nesse caso, o ensino integra o cotidiano da criança, construindo assim uma herança cultural (Bourdieu, Nogueira & Catani, 1998Bourdieu, P., Nogueira, M. A., & Catani, A. (1998). Escritos de Educação: Pierre Bourdieu. Vozes.) dos aprendizes, que já estão acostumados com a lógica da criação artística.

Ao mesmo tempo em que o cotidiano naturaliza a realidade artística, essas crianças começam a ser ensinadas desde cedo, passando por técnicas entendidas como básicas pelos circenses para a composição de um corpo preparado para as respostas necessárias e para o aperfeiçoamento de uma habilidade específica.

Junto com essa formação, os aprendizes também precisam se deparar com o impacto da apresentação perante o público. Muitas vezes, a primeira aparição ao público acontece quando ainda bebês. Outras vezes, essas crianças são “jogadas” dentro do picadeiro, sem qualquer aviso prévio, para que a surpresa as coloque em um estado de vulnerabilidade, sendo, assim, possível perceber como o aprendiz reage ao encontro inesperado com o público (Avanzi & Tamaoki, 2004Avanzi, R., & Tamaoki, V. T. (2004). Circo Nerino. Pindorama Circus; Códex.; Seyssel, 1997Seyssel, W. (1997). Arrelia: uma autobriografia. IBRASA.). A partir dessas situações, que se configuram como um rito de passagem, é possível o direcionamento da continuidade do ensino desses artistas mirins.

As crianças se deparam constantemente com os desafios da superação das habilidades corporais, vocais e interpretativas, como também a constante exposição ao público. A partir do ensaio regular de seus números, da observação constante dos mestres em cena, da experiência prática com o público e da vivência com essa lógica de funcionamento social, adquirem as ferramentas necessárias para desenvolver a arte como palhaço.

Os ensinamentos dos palhaços são focados, geralmente, no conhecimento sobre os esquetes que fazem parte do repertório do circo. Os palhaços com maior experiência vão ditando as ações, as falas e os ritmos das cenas. Uma construção não só técnica, como sensível sobre o funcionamento da comicidade (Castro, 2019Castro, L. (2019). Palhaço: multiplicidade, performance e hibridismo. Moura.). Um aprendizado aprimorado durante os anos por diversos palhaços que vieram antes mesmo daquele que está transmitindo o seu conhecimento. Ao dominar os elementos técnicos, o aprendiz dentro dessa estrutura vai desenvolvendo suas peculiaridades. Além da técnica, é necessário que o artista domine um determinado repertório tanto corporal como de piadas e chistes. Assim, quando todos esses elementos estão muito bem interiorizados, o palhaço finalmente domina as ferramentas necessárias para o desenvolvimento das improvisações tão presentes na arte da palhaçada.

Em suma, o ensino que emerge do seio familiar circense se baseia no acompanhamento constante do mestre ou da mestra ao cotidiano do aprendiz. A observação de outros artistas em cena (ou fora dela) é de grande importância, pois é onde se começa a entender o ritmo dessa comicidade (Bolognesi et al., 2019Bolognesi, M. F., Silva, D. M. da, Duarte, F. J., Nascimento, M. S. do, Silva, P. E. da, & Bastos, S. (2019). Tubinho: O teatro no circo (2001-2016). Paco Editorial.). A imersão parece produzir uma experiência profunda, criando, em muitos casos, uma intensa relação entre mestre e aprendiz, não raramente pertencentes à mesma família, estabelecendo processos que se repetem por gerações e, em alguns casos, criam tradição artístico-familiar.

Terras distantes

Outra possibilidade de aprendizagem da arte de ser palhaço e palhaça é o ensino realizado no exterior. Apesar de ter sido citado no questionário alguns países, como Itália, Bélgica, Estados Unidos, Canadá, Espanha e França, percebemos uma presença muito marcante das matrizes francesas relacionada com a escola de Jacques Lecoq (Lecoq, 2010Lecoq, J. (2010). O corpo poético: uma pedagogia da criação teatral. Editora Sesc São Paulo.).

Essa escola é focada no ensino de processos de interpretação e atuação para atores e atrizes. Para o desenvolvimento artístico, trabalham com diversas técnicas teatrais, como: máscara neutra, mimese corporal, máscaras da commedia dell’arte, bufão e a máscara do palhaço. O processo desenvolvido por Lecoq para o aprendizado de palhaços e palhaças (Miranda, 2016Miranda, A. C. M. (2016). A Educação Física na constituição do corpo poético em Jacques Lecoq [Tese de Doutorado]. Universidade Estadual de Maringá.) toma um caminho distinto ao ensino dessa arte que era feito, até então, no ambiente circense.

Se por um lado o ensino familiar é um processo prolongado e constante, por outro lado, no contexto da escola de Lecoq, a construção do conhecimento do artista no trabalho com a palhaçaria é condensada e imersiva. Os e as aprendizes nessa situação mergulham no universo cômico de palhaços e palhaças em um dos módulos da formação em interpretação e atuação. Com isso, vemos que o foco do aprendizado, inicialmente, não está ligado, necessariamente, em formar novas palhaças e palhaços, mas em ensinar novos caminhos para aperfeiçoar as habilidades interpretativas dos alunos e das alunas.

Outro ponto interessante para se discutir o desenvolvimento dessa figura cômica dentro da escola de Lecoq é uma mudança na dramaturgia de cena. Os esquetes clássicos do circo já não se tornam os enredos que serão encenados por esses novos palhaços e palhaças. Essa nova temática surge das inquietações dos e das artistas, ampliando as possibilidades para questões subjetivas e intimistas.

Parece ser, inclusive, que foi com base nessa formação escolarizada, próxima ao teatro e à sua reputação, que começa a emergir uma distinção entre o palhaço de circo e o palhaço que ocupa os teatros. Isso se consolida ainda mais quando Lecoq decide usar o termo em inglês “Clown” para definir essas figuras que estão sendo construídas em sua escola. Essa diferenciação já foi pauta de discussão em diversos festivais, seminários e até mesmo em dissertações (Sacchet, 2009Sacchet, P. de O. F. (2009). Da discussão “Clown ou Palhaço” às permeabilidades de clownear-palhaçar [Dissertação de Mestrado]. Universidade Federal do Rio Grande do Sul.), mas o que nos interessa nesta pesquisa é observar esse outro caminho para a formação de palhaços e palhaças, ganhando visibilidade para a propagação dessa arte.

O conhecimento que ganha potência na escola de Lecoq é disseminado tanto por ele, como também por seus aprendizes, que começam a ministrar seus próprios cursos transmitindo esses saberes pelas cidades e países por onde passam. Um exemplo de artista formado na escola de Lecoq é o Philippe Gaulier, que primeiro se tornou professor nessa mesma escola; e, logo em seguida, decidiu abrir a própria escola, com matrizes muito fortes nos ensinos de Lecoq, mas também com um processo pedagógico diferenciado (Gaulier, 2016Gaulier, P. (2016). O atormentador: minhas ideias sobre teatro. Edições Sesc São Paulo.).

As respostas ao questionário mostraram uma maior influência de Gaulier (14,5%) entre os formadores de palhaças e palhaços brasileiros do que do próprio Lecoq (7,5%), sendo o curso de formação no exterior mais procurado entre os que tiveram essa oportunidade. Outros tantos formadores internacionais que foram também citados foram alunos ou de Lecoq ou de Gaulier, reforçando assim o destaque para as matrizes francesas do ensino de novos palhaços e palhaças.

Por outro lado, o curso Clown through Masks, ministrado pela canadense Sue Morrison (Coburn & Morrison, 2013Coburn, V., & Morrison, S. (2013). Clown Through Mask: the pioneering work of Richard Pochinko as practised by Sue Morrison. Intellect.), também foi frequente entre as respostas recebidas no questionário (10%). O curso tem como base os ensinamentos de Richard Pochinko após seu falecimento. Pochinko buscou na cultura xamânica dos indígenas norte-americanos um caminho frutífero para o desenvolvimento de seu palhaço. O curso é estruturado em dois estados por máscara, sendo o total de seis máscaras trabalhadas, ou seja, nem todos os que participaram desse curso passaram pelos 12 estados trabalhados.

Podemos entender os caminhos guiados por Richard e Sue como a construção de 12 qualidades de máscaras. Essas energias diversas são a matéria bruta para o desenvolvimento da máscara do palhaço. A figura, para eles, transita entre as diferentes máscaras continuamente, trazendo da mistura dos estados a vivacidade da presença cênica dos artistas.

Ao todo, 52 (47,3%) respostas indicaram a realização de cursos ou oficinas de palhaços e palhaças em escolas internacionais ou com profissionais de fora do Brasil, consolidando como um modo relevante de formação.

A academia abre as portas

Outro espaço citado com uma relevante visibilidade no desenvolvimento da palhaçada são as universidades brasileiras, não só pela quantidade de participantes (Tabela 2) do questionário que destacaram a importância da formação acadêmica na decisão de seguir a carreira artística, mas também pela crescente dedicação de artistas, professores e pesquisadores em produzir pesquisa relacionada a esse universo.

Tabela 2
Influência do ensino superior em seguir a carreira de palhaço ou palhaça.

Se observarmos esse cenário há quatro décadas atrás, a produção acadêmica relacionada ao fazer artístico de palhaços e palhaças era muito escassa no panorama nacional. Naquele período, a pesquisa sobre a palhaçada ainda não se constituía como um campo de produção de conhecimento, o que dificultava o acesso a esses saberes. Essa realidade está em constante transformação e contemporaneamente conseguimos encontrar vários textos sobre o universo da palhaçada. A pesquisa sobre palhaçaria, palhaçadas, palhaços, palhaças, brincantes e afins tem aumentado, não se limitando às artes, mas, também, incluindo pesquisas de outras áreas de conhecimento, como: educação (Flórez, 2019Flórez, L. V. C. (2019). A alegria de ser quem é: uma formação palhaça de professores para a diversidade [Tese de Doutorado]. Universidade Federal da Bahia.), educação física (Miranda, 2016Miranda, A. C. M. (2016). A Educação Física na constituição do corpo poético em Jacques Lecoq [Tese de Doutorado]. Universidade Estadual de Maringá.), psicologia (Azevedo, 2017Azevedo, R. T. (2017). Redução de danos e vínculos com usuários de drogas: a escuta do olhar de um palhaço [Dissertação de Mestrado]. Universidade Federal de Uberlândia.), saúde coletiva (Marinho, 2015Marinho, A. D. M. (2015). O espírito do doutor palhaço: palhaçoterapia e produção de saber em espiritualidade e humanização em saúde [Dissertação de Mestrado]. Universidade Federal do Ceará.), antropologia (Fernandes, 2012Fernandes, F. M. (2012). Levando a sério a palhaçada: um estudo da natureza ambivalente do riso [Dissertação de Mestrado]. Universidade Federal de Minas Gerais.), entre tantos outros.

A palhaçada é tema para diversas pesquisas, que dá visibilidade a diversos mestres dessa arte. Essas informações se tornam cada vez mais acessíveis por meio de livros, teses, dissertações, artigos, seminários, palestras e outras possibilidades a partir das pesquisas científicas.

Não só a pesquisa ampliou espaço para o palhaço dentro da universidade, mas também os próprios cursos de graduação. O levantamento apontou mais de 27 cursos de graduação diferentes entre os participantes, destacando os cursos de artes cênicas (18) e teatro (15), como esperado, seguido dos cursos de educação artística (5), filosofia (5), letras (5), educação física (4) e pedagogia (4). Obviamente, nem todos os participantes graduados da pesquisa iniciaram sua formação na palhaçada a partir da universidade, mas os cursos ofertados dentro das graduações, como também as extensões universitárias (Braccialli & Bortoleto, 2020Braccialli, F., & Bortoleto, M. A. C. (2020). A Multiplicidade dos ensinos de palhaças e palhaços na extensão universitária. In A. A. Soares, Sociedade, Cultura, Educação e Extensões na Amazônia. Alexa Cultural.) apareceram como uma porta de entrada para a pesquisa e atuação de palhaças e palhaços. Vale ressaltar que seis (4,5%) participantes indicaram que a busca por uma formação superior surge do desejo em aprofundar o trabalho já realizado na palhaçada, mostrando que a universidade pode tornar-se um meio de continuidade e aprofundamento.

São diversos os projetos de formação de palhaços e palhaças desenvolvidos nas universidade, alguns exemplos que foram citados no questionário são: Palhaços Visitadores dentro do curso de Teatro da Universidade Federal de Uberlândia (UFU), coordenado pela Prof.ª Dr.ª Ana Wuo5 5 https://www.instagram.com/palhacosvisitadores/ (Acesso em: 11 de janeiro de 2022). , Enfermaria do Riso na Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio), coordenada pela Prof.ª Dr.ª Ana Achcar6 6 https://www.instagram.com/enfermariadoriso/ (Acesso em: 11de janeiro de 2022). , Grupo de Pesquisa e Experimentação cotidiana utilizando como paradigma a figura do clown na Universidade Estadual de Maringá (UEM) coordenado pelo Prof. Dr. Marcelo Colavitto7 7 https://www.instagram.com/grupomeuclown/ (Acesso em: 11 de janeiro de 2022). , entre outros. Além daqueles que não apareceram durante as respostas, mas que continuam possibilitando que novos artistas experimentem o estado do palhaço e da palhaça.

Para o cuidado hospitalar

O envolvimento de artistas em espaços de vulnerabilidade social não é novidade, mas no Brasil, desde a década de 1990, tem ocorrido um movimento intenso de palhaços dentro de hospitais, podemos destacar tanto o trabalho dos Doutores da Alegria (Nogueira, 2005Nogueira, W. (2005). Doutores da Alegria: o lado invisível da vida. CSN.), como também o de Ana Wuo (Wuo, 2011Wuo, A. E. (2011). O Clown visitador: comicidade, arte e lazer para crianças hospitalizadas. EDUFU.). São duas vertentes da participação de palhaços em espaços hospitalares que até hoje reverberam pelo Brasil.

O impacto dessas iniciativas foi tão grande que novos projetos começaram a surgir8 8 Foram contabilizados 1300 grupos de palhaços e palhaças de hospital vinculados ao programa Palhaços em Rede dos Doutores da Alegria em 2018. Disponível em: https://doutoresdaalegria.org.br/blog/como-foi-o-5o-encontro-nacional-de-palhacos-que-atuam-em-hospital/ Acesso em: 20 de janeiro de 2022. . Grande parte dos projetos partem do trabalho voluntário dos palhaços e palhaças envolvidos, e, com isso, surge uma outra vertente de formação com ensino focado diretamente para a atuação em hospitais. Esse dado vem ao encontro dos resultados obtidos nos questionários, que indicam a realização de trabalho voluntário como o quarto (65,4%) motivo mais citado para a procura de cursos de formação de palhaços e palhaças (Tabela 3). Torna-se assim um novo caminho para o aprendizado da arte da palhaçada.

Tabela 3
Frequência em relação aos objetivos dos alunos ao buscar formação de palhaço (a)

Nesses projetos, os mais diversos procedimentos são aplicados para a escolha de novos voluntários. Alguns projetos oferecem formações aprofundadas dos e das aspirantes a palhaças e palhaços, como também o acompanhamento e a observação dos participantes mais antigos do projeto. Um modo particular de formação que opera em cada um deles.

Comecei fazendo trabalho voluntário em 2002 em um grupo de palhaços da Santa Casa de Limeira. Em 2003 conheci Wellington Nogueira que começou a dar oficina de palhaço para o grupo. Posteriormente participei da primeira turma do Palhaços em Rede tendo oficina com o pessoal dos Doutores da Alegria: Soraya Saide, Raul Figueiredo, Thais Ferrara, Val de Carvalho e Roberta Calza

(E.G, 2019).

Outros ainda cobram uma formação continuada dos palhaços e palhaças, um trabalho constante de participação em oficinas e cursos para desenvolver novas habilidades e aprimorar o trabalho dentro do hospital.

No entanto, nem todos os grupos de palhaços e palhaças de hospitais têm o mesmo cuidado com a formação de seus integrantes, com mencionaram alguns participantes. Muitas vezes colocam o voluntário ou a voluntária em risco dentro de um espaço tão delicado como o hospitalar. Ainda, encontramos grupos de palhaços e palhaças hospitalares que aceitam novos e novas participantes com uma formação mais superficial ou, até mesmo, nenhuma formação artística ou de cuidados para entrar e atuar em hospitais.

É muito comum encontrar na formação de novos voluntários e voluntárias para o trabalho de palhaço e palhaça no hospital, um ensino pouco dedicado ao desenvolvimento artístico dos e das participantes que têm como foco principal apenas a reprodução de esquetes e cenas pré-estruturadas por outros artistas, ou somente a preparação de músicas para entreter as crianças. Isso faz com que o próprio artista aprenda a necessidade de improvisações ao ser jogado no picadeiro, o que pode ser muito traumático se considerarmos a vulnerabilidade que envolve o ambiente hospitalar.

Sem discutir o mérito de projetos bons ou ruins, o importante é entender que esse novo caminho de formação de palhaços e palhaças tem crescido no mapa nacional, abrindo portas para pessoas que nunca imaginaram trabalhar com arte, mudando o rumo de suas vidas para não só estarem nos hospitais, como também seguirem trabalhando em outros espaços de atuação.

De gota em gota

Vivemos em uma época de grandes avanços tecnológicos que possibilitam um alcance global de comunicação e informação em segundos, que, por sua vez, resulta em uma aceleração social muito grande (Rosa, 2020Rosa, H. (2020). Aceleração: a transformação das estruturas temporais na modernidade. Editora Unesp.). Cada vez mais temos menos tempo para que os processos de aprendizagem aconteçam e, ao mesmo tempo, somos cobrados por uma produtividade excessiva e constante. A fragmentação do ensino, a compactação do processo de aprendizagem, a cobrança de múltiplos conhecimentos e a necessidade de um currículo inflado de cursos são alguns sintomas da sociedade que estamos vivendo.

Ao analisar as respostas dos questionários foi possível identificar que o processo mais comum entre os participantes (aproximadamente 70%) foi a formação a partir de diversos cursos de curta duração com vários mestres e mestras. Podemos perceber que se trata de uma realidade brasileira quando observamos os formatos que esses formadores e formadoras de palhaças e palhaços estão trabalhando. Um reflexo disso também é visto na estruturação dos cursos realizado pelos participantes, sendo que 78% dos cursos são de iniciação ao palhaço ou palhaça (Tabela 4). Além disso, 69% das formações indicadas são de até 20 horas (Tabela 5), sendo muito comum acontecerem de forma intensiva em dois ou três dias.

Tabela 4
Tipo de formação ministrada pelos participantes do estudo
Tabela 5
Tempo de duração dos cursos de formação

Essa formação, obviamente, não é o suficiente para o desenvolvimento aprofundado de uma palhaça ou um palhaço. A formação da arte é um processo longo e tortuoso. Dessa forma, cursos de iniciação na arte da palhaçada devem ser considerados como um primeiro contato para navegar na lógica particular desse universo. Um curto tempo de formação não é suficiente para aprofundar técnicas, nem mesmo a pesquisa de corporeidade e vocalidade, ainda que possa ser considerado o primeiro passo para uma trajetória mais extensa.

Como forma de resolver o problema de formação, muitos artistas participam de diversos cursos curtos de iniciação ao palhaço ou à palhaça para que assim consigam ampliar sua experiência nesse universo. Esses palhaços e palhaças estudam com diversos profissionais durante a sua formação, e não permanecem muito tempo com um único mestre ou mestra a ponto de direcionar o aprofundamento do trabalho artístico. Por outro lado, a rotatividade de mestres e mestras possibilita que o ou a aprendiz tenha diversas perspectivas sobre a palhaçada, experimentando os mais distintos caminhos de formação e levando a uma maior autonomia para escolher os processos mais frutíferos para cada um.

Os cursos de curta duração ganham importância, principalmente, quando verificamos o acesso a esse tipo de aprendizado em cidades localizadas fora dos grandes eixos de produção artística. Considerando os dados coletados no questionário, observamos que 40% dos e das participantes estão localizados fora das capitais (Tabela 6); ainda, devemos destacar que 75,6% dos profissionais que não se encontram nas capitais, residem na região sudeste (Tabela 7). Ou seja, temos uma enorme extensão territorial brasileira com maior dificuldade para acessar essas formações.

Tabela 6
Número de participantes nas capitais e interiores.
Tabela 7
Número de participantes do Interior dos estados.

A possibilidade de compartilhamento dos processos de criação de grupos que estão em circulação com espetáculos de palhaço se torna uma opção rentável para a complementação de verbas, principalmente porque muitos desses grupos fazem a produção de suas circulações de forma autônoma, sem incentivo legal ou patrocínios privados. Assim, ministrar cursos de curta duração tornou-se, também, um modo de sustentabilidade para mestres e mestras.

Além disso, o surgimento de festivais de teatro, circo e palhaços no país se tornou um espaço de formação de novos artistas, pois é comum o pedido para a realização de oficinas de formação aberta para o público em geral na contratação de participação desses grupos artísticos. Essas oficinas também se tornaram frequentes como contrapartidas de projetos com financiamentos públicos ou privados. Assim, tais eventos criam um espaço que pode suprir a dificuldade de acesso à formação na arte da palhaçada.

Ao encontro do público

É notório que são diversos os processos formativos, desde um processo que se configura durante a vivência continuada até cursos de curta duração para voluntários e voluntárias em projetos de hospitais. Cada qual com características particulares. Destacamos que, em todos esses processos, há um momento muito particular, e até mesmo brusco, que é o encontro com o público. Por mais estruturada a formação desses artistas, o encontro com o público é sempre muito difícil de ser planejado. Paralelamente, essa relação com os espectadores pode ser considerada um dos momentos de maior aprendizado, pois o público é o termômetro para o artista entender o quanto o seu trabalho realmente funciona.

No circo familiar, o encontro parte de um grande “empurrão” para dentro do picadeiro, um salto no vazio, ser colocado em um espaço de vulnerabilidade que atiça uma resposta natural do artista aos olhos de terceiros. Nos projetos universitários, encontramos uma tentativa mais prolongada de uma exposição dos aprendizes em um espaço controlado, onde todos os espectadores são outras pessoas que se encontram no mesmo espaço vulnerável. Ainda assim, os e as aprendizes não estão totalmente prontos para esse encontro, pois a relação com o público é um processo necessário para o desenvolvimento dessas palhaças e desses palhaços.

Considerando a grande possibilidade de aprendizagem com o público, encontramos cinco (4,5%) respostas de participantes do questionário que relataram que o aprendizado na palhaçada teria acontecido exatamente por meio da experiência do encontro com o público, antes mesmo de passar por algum dos processos já citados anteriormente. Essa escolha muitas vezes acontece pela necessidade dos aspirantes a palhaços em trabalhar. Muitos, então, começam seu trabalho, construindo um “personagem” para trabalhar nos mais diversos espaços imagináveis e aprendem a fazer e desenvolver sua performance pessoal por meio da resposta do público. Outros 20 (18%) participantes relataram passar por uma formação curta e já ir ao encontro com o espectador. Um caminho muito difícil, pois não há o apoio de um mestre para indicar os pequenos atalhos do processo ou, até mesmo, apontar os eventuais erros que ocorrerão em seu trabalho.

Escolas de palhaços e palhaças

Entre tantas possibilidades, é importante ressaltar o surgimento de escolas especializadas no ensino de palhaços e palhaças, como exemplo: Escola Livre de Palhaço (Rio de Janeiro)9 9 https://eslipa.org/ (Acesso em: 11 de janeiro de 2022). , Escolas de Palhaças (São Paulo)10 10 https://www.instagram.com/escoladepalhacas/ (Acesso em: 11 de janeiro de 2022). , Escola dos Doutores da Alegria (São Paulo)11 11 https://doutoresdaalegria.org.br/escola/ (Acesso em: 11 de janeiro de 2022). , Academia do Riso (Ceará)12 12 https://www.instagram.com/academiadorisoceara/ (Acesso em: 11 de janeiro de 2022). .

Em geral, essas escolas são estruturadas por módulos de atuação, os professores são mestres e mestras com grande experiência de atuação. Durante as formações, os e as aprendizes entram em contato com essa diversidade de profissionais e aprendem formatos diferentes de atuação.

Minha formação em palhaçaria foi em 2014 na Eslipa – RJ. Lá pude estudar com mestres como Fernando Sampaio, Rodrigo Robleño, Esio Magalhães, Lily Curcio, Grupo Off Sina, Mauro Bruzza, Junior Santos, Ricardo Puccetti, Tubinho, Azyz Gual, cada um ministrando um módulo de 30 horas cada

(C.C., 2019).

Similarmente ao que encontramos nos processos vivenciados em cursos de curta duração. A diferença, nesse caso, é que há uma estrutura do caminho que eles e elas seguem, uma sequência entre os profissionais que ensinam e um planejamento na ordem em que os conteúdos são ministrados. Além disso, há uma comunicação interna entre os mestres e mestras para que os ensinamentos de cada um acrescentem ao que já foi ensinado anteriormente.

São projetos importantes para o fortalecimento da arte da palhaçada, mas, apesar disso, ainda não atendem toda a extensão territorial do país e a grande demanda de interessados no aprendizado. Os projetos estão localizados nas grandes capitais, o que impossibilita o acesso de pessoas do interior desses estados, e nem todos os estados contam com escolas de formação de palhaços e palhaças. Além disso, há um processo de seleção de novos alunos e alunas em algumas escolas, ou seja, não há vagas suficiente para todos os candidatos e candidatas que desejam participar dessa formação.

Em rede – o impulso da pandemia

Sem medo de repetição, os processos de aprendizagem e desenvolvimento do trabalho como palhaça ou palhaço são os mais diversos possíveis, o que torna muito difícil esgotar todas as possibilidades em um texto, pois até mesmo esse processo está em constante transformação. Podemos perceber, inclusive, pelas experiências que surgiram durante o isolamento social iniciado em 2020 como estratégia de conter a transmissão da covid-19. O que antes era estranho para palhaças e formadores, começou a ser normalizado, o aprendizado da palhaçada pelo ensino à distância. Foram diversos os cursos divulgados durante mais de um ano e meio de isolamento.

Além disso, esse ensino não se restringe unicamente aos cursos práticos, mas, também, a diversas outras possibilidades, como a de assistir as apresentações de palhaças e palhaços, a de escutar grandes mestres falando sobre o seu fazer artístico, leituras sobre a temática, estudos teóricos sobre o riso, a técnica da palhaçada, a história dessa figura, entre tantas outras informações possíveis, o que também se tornou muito mais acessível durante o período de isolamento social.

Foram centenas de lives realizadas por, com e sobre palhaços e palhaças. Foi possível conhecer artistas de todas as regiões do país e do mundo: ouvir como eles falam sobre seus processos criativos, sua forma de aprendizagem, de criação e de ensino. Em menos de dois anos, a quantidade de material sobre o assunto disponível online cresceu de forma nunca vista.

Vários grupos de palhaços e palhaças disponibilizaram as filmagens de seus trabalhos artísticos em suas redes sociais para que, mesmo em momentos de grande incerteza, as pessoas pudessem acessar o riso e a potência transformadora da palhaçada.

Rir é preciso, formar é um lindo desafio

Quando falamos de ensino de palhaças e palhaços é preciso entender que se trata de um processo muito delicado, pois essas figuras cômicas são a representação das inabilidades e da fragilidade humana. Para isso, o artista se coloca em um espaço de grande vulnerabilidade, exposição e insegurança, para que assim seja capaz de potencializar suas incapacidades para o público e construir uma lógica diferenciada de olhar para a sociedade. Esse olhar do perdedor, do excluído, do ingênuo e do experiente é o que transforma dificuldades em força, e faz essa potência chegar ao espectador por meio de situações cômicas que expõem os defeitos da sociedade em que se inserem.

A complexidade existencial de palhaças e palhaços é o que potencializa as múltiplas possibilidades de aprendizagem. Uma figura em constante transformação para que o diálogo com o público continue a acontecer, seria improvável pensar que esse ensino se manteria duro e estável durante milênios de história.

Além disso, estamos lidando com individualidades, já que nenhum palhaço é igual ao outro, mesmo quando o filho herda o nome de palhaço do pai para dar continuidade à tradição, esses palhaços têm lógicas individuais, considerando que essa lógica também é uma construção corporal desse artista. Nessa individualidade, nem todos conseguem o mesmo resultado por um processo específico de ensino. Quanto mais variável as possibilidades de aprendizagem, maiores resultados poderão ser percebidos no todo, assim como as potencialidades artísticas vão influenciando e abrindo espaços para novas possibilidades.

Foram apresentados diversos rumos que esses mestres e mestras tomaram para suas formações artísticas, mas é preciso atentar que todos esses processos aconteceram de forma simultânea e continuam acontecendo em maior ou menor escala. Além disso, devemos olhar o ensino de palhaços e palhaças a partir da ideia de rizoma para entender que todos os caminhos estão interligados e se comunicam constantemente e, assim, aceitar o envolvimento e a influência desses artistas por mais de um processo de formação.

Ao pensar o Brasil, temos diversos desafios em falar sobre formação de palhaços e palhaças, primeiramente pela pequena quantidade de incentivos públicos para as artes, e também porque são poucas as escolas especializadas no ensino da palhaçada, ou seja, são poucas as vagas disponíveis para essa aprendizagem. Além disso, para dificultar o cenário, em sua maioria, as oportunidades de formação estão concentradas nas capitais, o que dificulta o acesso de artistas do interior. Destaca, ainda, que no contexto das universidades, incluindo cursos de artes cênicas e teatro, a arte do palhaço não é uma disciplina regular na maioria dos casos. Em outras palavras, nem todas as universidades disponibilizam processos de ensino de novos palhaços e palhaças.

Em geral, pessoas que não tem acesso a esses espaços de formação, sejam em universidade, ou em escolas especializadas, dependem de projetos pontuais de grupos ou de empresas que incentivam a realização de cursos de curta duração.

Ademais, as diferenças sociais existentes entre as regiões do país representam um fator importante para pensar sobre a formação. O incentivo que cada região dá para a continuidade da arte é diferente. Podemos ver a região Sudeste como o local de maior concentração de formadores, cursos e escolas de palhaços e palhaças, sendo que 59% das respostas vieram dessa região. Fato que deve ser questionado, não como uma forma de distribuir essas formações para outras regiões, mas de valorizar as culturas de cada estado a partir do incentivo do ensino da arte.

São diversos os problemas e questões que precisam ser levantados quando discutimos a formação em arte e, mais especificamente, a palhaçada; mas, o que se torna essencial é olhar para essa multiplicidade e conseguir reconhecer o espaço como palhaços e palhaças de cada um, como também respeitar as diferenças e os percursos individuais.

Considerando a diversidade existente no Brasil, um país com tamanha extensão territorial, uma pluralidade de miscigenação, a mistura de tantos povos e culturas, não seria aceitável minimizar as possibilidades da formação de palhaças e palhaços para uma única vertente. São tantas lógicas dentro de um país, tantos espaços de atuação, tantas possibilidades, tantas histórias, tantos seres. ... Se dentro de cada um, já somos um universo pessoal de possibilidades, o palhaço ou a palhaça nada mais é do que uma expansão desse mesmo universo, que tem a potência de se misturar com novos universos particulares dos espectadores. Uma infinidade de caminhos, processos, corpos e artes.

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Editor responsável: Carmen Lúcia Soares. https://orcid.org/0000-0002-4347-1924

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    31 Maio 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    28 Jan 2022
  • Revisado
    19 Abr 2023
  • Aceito
    20 Jul 2023
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