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Crítica e virtude como autoformação do sujeito: Judith Butler como leitora de Michel Foucault 1 2 3

Resumo

Judith Butler explora produtivamente a ampliação do espectro do conceito de “crítica” em Foucault. O nexo entre crítica e formação e entre autocrítica e autoformação permeia a argumentação dos dois autores, mas Butler indica o quanto a própria crítica como virtude, tematizada por Foucault, precisa da dimensão formativa para poder esclarecer a si mesma num contexto teórico pós-fundacionalista e de normatividade não prescritiva. Pretende-se mostrar que, com esse passo, a reconstrução do problema feita por Butler alcança novo patamar, tanto clareando o significado de autoformação do sujeito quanto indicando, com maior precisão, o novo sentido assumido pela noção foucaultiana de “crítica” como virtude.

Palavras-chave
Crítica; Virtude; Autoformação; Normatividade

Abstract

Judith Butler productively explores the broadening of the spectrum of Foucault’s concept of “critique”. The nexus between critique and formation and between self-critique and self-education permeates the arguments of the two authors. Still, Butler indicates how much critique itself as virtue, discussed by Foucault, needs the formative dimension to be able to clarify in a post-foundationalist theoretical context of non-prescriptive normativity. This article intends to show that, with this step, Butler’s reconstruction of the problem reaches a new level, both clarifying the meaning of self-formation of the subject and more accurately indicating the new meaning assumed by the Foucauldian notion of “critique” as virtue.

Keywords
critique; Virtue; Self-formation; Normativity

Quem sou eu, então, que pertenço a esta humanidade, talvez a margem dela, a este momento, a este instante de humanidade que está sujeitado ao poder da verdade em geral e das verdades em particular?

(Foucault, 2007Foucault, M. (2007). Sobre a ilustración. Tecnos.).

Porém, se essa formação de si é feita em desobediência aos princípios pelos quais o “eu” se forma, então a virtude será a prática pela qual o sujeito se forma pelo seu desassujeitamento

(Butler, 2013Butler, J. (2013). O que é a crítica?: Um ensaio sobre a virtude de Foucault. Cadernos de Ética e Filosofia Política, 22, 159-179.).

Saber o que é crítica e em que consiste uma atitude crítica em relação a si e ao mundo tem sido preocupação constante do diálogo entre filosofia e educação, marcando, desde sua origem, a longa tradição filosófico-pedagógica ocidental. Por isso, a atitude crítica, em seu sentido originário, relaciona-se com a capacidade humana do espanto ante a realidade, buscando torná-la diferente do que é ou aparenta ser. As conexões entre indivíduo e sociedade, sujeito e mundo e o modo como sociedade e mundo interferem na constituição do próprio sujeito representam tema basilar da reflexão sobre os processos ético-formativos humanos. Nesse contexto, tornou-se nuclear à filosofia educadora, em suas versões clássicas mais conhecidas, como Paideia grega, Humanitas latina e Bildung alemã, o questionamento sobre o lugar do governo de si como condição do governo dos outros e, por conseguinte, a problematização ético-política sobre o que significa governar a si mesmo e em que sentido o sujeito é capaz de alcançar tal condição de poder governar a si mesmo. Ou seja, na cultura ocidental, pelo menos desde Sócrates platônico e seu intenso diálogo ético-formativo com Alcibíades, o problema da ação política na esfera pública lança sua raiz no indispensável exercício de autocrítica do sujeito, caso queira governar bem os outros. Ora, desde este “momento socrático” originário, pensamento crítico tem a ver com autocrítica, ou seja, com o escrutínio crítico do sujeito em relação a si mesmo, para poder bem governar os outros.4 4 Michel Foucault (2004) dedica as primeiras aulas do curso A hermenêutica do sujeito ao problema da investigação ética do sujeito no diálogo entre Sócrates e Alcibíades, argumentando em que sentido o bem governar os outros depende do governo ético de si mesmo. Concomitantemente a isso, Foucault trata desta complexa relação ético-formativa entre Sócrates e Alcibíades na perspectiva de uma erótica formativa no segundo volume de sua História da Sexualidade (O uso dos prazeres), especificamente no quinto capítulo intitulado de “O verdadeiro amor” (Foucault, 1985). Para uma interpretação do sentido formativo do diálogo platônico O Banquete com inspiração foucaultiana, ver Dalbosco e Pagotto-Euzebio (2021).

Contudo, no desenvolvimento das democracias ocidentais e, principalmente, pela expansão nas últimas décadas do conservadorismo autoritário de extrema direita, a atitude crítica, tanto em sentido socrático quanto na acepção da Aufklärung moderna, foi progressivamente enfraquecida, perdendo cada vez mais sua importância para pensar a cultura humana em suas mais diferentes expressões. A força exercida atualmente pelo conservadorismo autoritário e pela lógica socioeconômica do desempenho e da concorrência impõe a naturalização dos processos de assujeitamento humano e social, fazendo emergir a necessidade intelectual de novamente problematizar tanto o sentido quanto o próprio exercício da atitude crítica. Mais precisamente, trata-se de tematizar o que significa a atitude crítica para pensar a formação ética do sujeito sob a perspectiva do autogoverno.

Entre os autores contemporâneos mais atentos a essa temática cabe destacar Michel Foucault e Judith Butler, sobretudo pela maneira provocante com que ambos procuram reatualizar a noção de “crítica” e pelas pistas interessantes que fornecem para o exercício ético da atitude “crítica”. Além disso, encontramos nesses dois autores algumas referências conceituais que nos permitem pensar, sob a perspectiva ético-formativa, o nexo entre o governo de si e o governo dos outros. Por isso, tentaremos, na sequência, reconstruir em detalhes a interpretação que Judith Butler faz da noção foucaultiana de crítica, procurando extrair possíveis desdobramentos éticos para a ideia de formação humana pensada no solo pós-fundacionalista.5 5 Como não podemos entrar agora neste debate amplo e complexo sobre o pós-fundacionalismo, remetemos o(a) leitor(a) para o ensaio recente de Karsten Schubert sobre o tema (Schubert, 2021) e Flügel-Martinsin (2010, p. 139-154). Por uma questão do limite de páginas exigido para o ensaio, vamos concentrar nossa investigação em dois textos: “O que é crítica? Crítica e Aufklärung”, de Michel Foucault (2007)Foucault, M. (2007). Sobre a ilustración. Tecnos., e “O que é crítica?”, de Butler (2013)Butler, J. (2013). O que é a crítica?: Um ensaio sobre a virtude de Foucault. Cadernos de Ética e Filosofia Política, 22, 159-179..6 6 Esta delimitação textual nos desobriga de tratarmos, ao menos momentaneamente, da relação entre crítica e virtude no contexto do amplo desenvolvimento intelectual de Foucault, tanto no que se refere ao período anterior a 1978 como ao posterior. Contudo, consideramos que o tema crítica e virtude está diretamente relacionado principalmente com o projeto genealógico do sujeito do Foucault tardio. Para uma compreensão de tal projeto, ver o próprio Foucault (1989) e, na literatura secundária, os esclarecedores ensaios de Geuss (2003) e Saar (2003). No contexto dessa delimitação textual, procuramos sustentar a hipótese, segundo a qual a crítica só pode ser exercitada adequadamente enquanto autocrítica, pois é precisamente essa exigência de autocrítica, também presente na base da fecunda ideia educacional, que a formação humana é possível enquanto autoformação. Ora, nesse nexo umbilical entre crítica e formação e entre autocrítica e autoformação permeia a argumentação dos dois autores, justificando, especialmente, as conclusões ético-formativas, extraídas por Butler (2013)Butler, J. (2013). O que é a crítica?: Um ensaio sobre a virtude de Foucault. Cadernos de Ética e Filosofia Política, 22, 159-179. a partir de sua interpretação da noção foucaultiana de “crítica”.

I

Iniciemos, então, com Michel Foucault. Ele profere, em 1978, na Sociedade Francesa de Filosofia, a conferência “O que é a crítica?”, resumindo, nessa comunicação, em certo sentido, o núcleo de seu próprio procedimento histórico-filosófico. Foucault procura justificar o que é a crítica se inserindo na tradição filosófico-sociológica alemã, iniciada com Immanuel Kant e, passando por Friedrich Nietzsche e Max Weber, deságua na Teoria crítica da sociedade, cujos expoentes principais são Max Horkheimer e Theodor Adorno. Na sequência, como segundo passo da conferência, Foucault promove a passagem da análise acerca do conhecimento para o poder, procurando justificar seu próprio conceito de “crítica" a partir da relação tensional entre saber e poder (Foucault, 2007Foucault, M. (2007). Sobre a ilustración. Tecnos.).

Há, sem dúvida, muitos aspectos desta conferência de Foucault que mereceriam uma investigação detalhada, confrontando os argumentos por ele oferecidos para justificar seu procedimento histórico-filosófico, enquanto procedimento crítico-reflexivo de interpretação da tradição do pensamento alemão ao qual se refere. Nesse contexto, uma questão interessante seria entender por que ele reduz essa ampla e complexa tradição intelectual à pergunta kantiana sobre as condições transcendentais de uma experiência possível, uma vez que o próprio Kant compreende de maneira mais ampla seu empreendimento filosófico, abarcando três outras perguntas, além daquela referida ao “o que posso conhecer?”. Desse modo, as três perguntas “O que devo fazer?”, “O que posso esperar?” e, a principal, “Quem é o homem?”, se levadas a sério, não remeteriam o problema da crítica para outros caminhos não aventados por Foucault na referida conferência? Ou seja, se o procedimento histórico-filosófico defendido por Foucault tivesse levado em consideração os outros caminhos abertos por essas questões, ele não teria acrescido aspectos indispensáveis para enriquecer seu próprio procedimento? Não teria ele, por exemplo, justificado de maneira mais adequada o vínculo entre crítica e virtude, abordado apenas posteriormente em sua obra, se tivesse interpretado o próprio pensamento de Kant de maneira mais ampla e não apenas num sentido epistemológico restrito?

Este parece ser o procedimento adotado por ele nos anos seguintes, sobretudo, no curso proferido no Collège de France, em 1982, intitulado O Governo de si e dos outros, ao interpretar o pensamento de Immanuel Kant como um dos alicerces de sua ontologia do presente.7 7 A ontologia do presente, compreendida no contexto da arquitetônica investigativa de Foucault, perpassa seus três grandes domínios, do saber, do poder e do sujeito. Para os propósitos deste ensaio interessa destacar o entrelaçamento entre a dupla pergunta, a saber, pela atualidade e pelo próprio sujeito que pergunta pela atualidade. Tal entrelaçamento Foucault justifica, de maneira clara e detalhada, nas duas primeiras aulas do curso O Governo de si e dos outros (Foucault, 2013). É neste sentido que, segundo Rabinow e Dreyfus (1990, p. 55-69), ontologia do presente e ontologia de nós mesmos formam duas dimensões da ontologia crítica de Foucault, pressupondo ambas, simultaneamente, o trabalhar sobre si mesmo e o responder ao seu próprio tempo. Por conseguinte, enquanto a ontologia do presente conduz necessariamente para uma diagnose de época - e é isto que caracteriza a filosofia como pensamento da atualidade -, a ontologia de nós mesmos exige o trabalho do sujeito sobre si mesmo, ou seja, o governo ético de si. Ao se distanciar do problema da justificação transcendental do conhecimento e, com isso, ao se livrar do peso da arquitetônica epistemológica kantiana, Foucault descobre pistas mais interessantes e mais apropriadas para investigar o nexo entre a atualidade e o sujeito que se pergunta pela própria atualidade, estabelecendo o vínculo entre crítica e Aufklärung numa dimensão reflexiva bem diferente daquela desenvolvida na sua conferência de 1978 (Foucault, 2013Foucault, M. (2013). O governo de si e dos outros. Martins Fontes.). Percorrendo reconstrutivamente a trajetória adotada por Foucault (2013)Foucault, M. (2013). O governo de si e dos outros. Martins Fontes. nas duas primeiras aulas do referido curso de 1982, podemos perceber o quanto a questão da Aufklärung kantiana, ela mesma posta muito além do “paradigma” do conhecimento transcendental, torna-se decisiva para pensar a tensão constitutiva da condição humana entre processos de assujeitamento e de desassujeitamento. Em outros termos, no contexto desse seminário de Foucault, Kant figura como o inspirador de práticas de liberdade decisivas para a formação crítica de processos de subjetivação que visam à “servidão involuntária” e à “indocilidade reflexiva”. Não é só o teórico transcendental, mas principalmente o pensador das singularidades puras que, ao confrontar a maioridade com a condição de menoridade, aloca a coragem de pensar por conta própria no centro da relação entre crítica e Aufklärung. Desse modo, no curso O governo de si e dos outros o problema da relação entre crítica e virtude ganha singularidade própria porque Foucault, extrapolando o campo especificamente epistemológico - centrado na pergunta transcendental pelas condições de possibilidade do conhecimento a priori -, interpreta, de maneira original, o modo como a Aufklärung kantiana concebe exemplarmente a modernidade filosófica como atitude crítica. Kant só pôde fazê-lo, segundo Foucault (1990)Foucault, M. (1990). Was ist Aufklärung? In E. Erdmann, R. Forst, & A. Honneth (Hrgs.), Ethos der moderne: Foucaults Kritik der Aufklärung (pp. 35-54). Verlag., porque se deixou inspirar profundamente pela tradição greco-latina da parresía-libertas. Isto é, a coragem de pensar por si mesmo que caracteriza o trabalho de formação ético-política do intelectual público (Gehlerter) lança raízes no duplo perfil do mestre antigo: no seu falar franco e na sua busca constante pela coerência entre dizer e fazer, ou seja, entre discurso e ação (Dalbosco et al., 2022Dalbosco, C. A., Rossetto, M. da S., Dutra, D. J. V., & Bertotto, C. (2022). Aufklärung parresiástica como governo democrático de si mesmo. Educação & Realidade, 47, e118193.).8 8 Para uma interpretação deste mesmo curso O governo de si e dos outros, no sentido de apresentar Foucault como “defensor” da modernidade filosófica enquanto atitude crítica, vertendo-a para pensar a problemática educacional, especificamente, aspectos relacionados à educação escolar, ver Pagni e Almeida (2021).

Mesmo que Foucault, em 1978, tenha se deixado orientar excessivamente pelo paradigma do conhecimento e pensado o vínculo entre crítica e Aufklärung num registro marcadamente epistemológico foi, todavia, capaz de requerer um outro tipo de vínculo que apenas anuncia, mas sem tratá-lo detidamente, a saber, a relação entre crítica e virtude. O que ele teria, supostamente, em mente ao defender a crítica como virtude? De qual virtude se trata e em que sentido ela permitiria alargar sua própria noção de crítica e esclarecer melhor seu procedimento histórico-filosófico? Quais pistas conceituais seriam abertas para problematizar a formação ética do sujeito, contrapondo-a aos processos de assujeitamento?

Judith Butler (2013)Butler, J. (2013). O que é a crítica?: Um ensaio sobre a virtude de Foucault. Cadernos de Ética e Filosofia Política, 22, 159-179. realiza uma das mais criativas e consistentes leituras do pensamento de Foucault, oferecendo, inclusive, uma interpretação atualizada da conferência “O que é a crítica?”. Nessa interpretação, a autora também se debruça sobre o vínculo entre crítica e virtude, analisando-o retroativamente, com base em alguns escritos posteriores de Foucault, sobretudo, o da Introdução da História da Sexualidade II: O uso dos prazeres. Em função disso, vamos tomá-la como referência principal, neste ensaio, para investigar a noção de “crítica” como virtude e buscar ver em que medida a “crítica” como virtude auxilia a pensar a formação humana em sentido ético-político. Nesse contexto, Butler (2013)Butler, J. (2013). O que é a crítica?: Um ensaio sobre a virtude de Foucault. Cadernos de Ética e Filosofia Política, 22, 159-179. oferece pistas importantes sobre a autoformação do sujeito que mostram o quanto a própria “crítica”, enquanto virtude, precisa da dimensão formativa para se esclarecer a si mesma, pois a atitude crítica justifica melhor sua virtuosidade quando consegue compreender adequadamente a tensão entre o ser formado e o formar-se a si mesmo.

II

Na parte introdutória de seu ensaio “O que é a crítica? Um ensaio sobre a virtude de Foucault”, Butler (2013)Butler, J. (2013). O que é a crítica?: Um ensaio sobre a virtude de Foucault. Cadernos de Ética e Filosofia Política, 22, 159-179. se refere brevemente às posições de Raymond Willians, Theodor Adorno e Jürgen Habermas sobre a noção da “crítica” para, em comparação com Foucault, evidenciar sua filosofia política progressista. Dessa comparação, cabe reter sua breve referência a Habermas, visto ser instrutiva para compreender o próprio foco de análise desenvolvido por Butler e a especificidade da noção de “crítica” que ela pretende encontrar em Foucault.9 9 O modo como Jürgen Habermas e Michel Foucault interpretam a modernidade e as noções de “esclarecimento” e “crítica” dela derivadas se tornou -se um capítulo importante do pensamento filosófico contemporâneo. Da perspectiva de Habermas, tornou-se clássico seu livro intitulado O discurso filosófico da modernidade, especialmente os capítulos nono e décimo (Habermas, 1988, p. 279-343). Da perspectiva de Foucault, vale referir sua conferência “O que é esclarecimento?” (Foucault, 1990). Neste mesmo contexto, a coletânea organizada por Erdmann et al. (1990), contém ensaios que tratam da crítica foucaultiana ao esclarecimento moderno, sendo que alguns destes ensaios se referem, como não poderia ser diferente, a própria crítica habermasiana à interpretação que Foucault faz do “ethos moderno”. Nesse contexto, o esforço habermasiano de atualização da noção de “crítica” tornou-se, aos olhos de Butler, bastante problemático na medida em que, ao procurar dar um passo além da teoria crítica anterior, restringiu a noção de “crítica” ao condicionamento de juízos avaliadores sobre condições e metas sociais às normas existentes. Segundo Butler (2013, p. 161): “Na visão dele [Habermas], a perspectiva crítica é capaz de colocar fundamentos em questão, de desnaturalizar hierarquias sociais e políticas e, inclusive, de estabelecer perspectivas a partir das quais uma certa distância com o mundo naturalizado pode ser tomada”. Essa definição geral de “crítica” talvez não traga em si maiores dificuldades, podendo ser assumida por distintas concepções filosóficas, uma vez que contém um aspecto nuclear do sentido originário da atitude crítica, a saber, o esforço de distanciamento, carregado de espanto, em relação ao mundo naturalizado da doxa, ou seja, das crenças naturais não justificadas.10 10 Esta postura de espanto originário Foucault vincula, na primeira hora da aula de janeiro de 1982 do curso A hermenêutica do sujeito, ao cuidado de si, concebendo-o como princípio de inquietação permanente (Foucault, 2004). Ora, é precisamente essa “inquietação permanente” que marca a postura ética indispensável que o sujeito precisa ter consigo mesmo para poder governar os outros. Tal esforço precisa ser feito para se poder pensar o mundo de outra maneira, o que não seria possível caso o ser humano estivesse completamente absorvido pelo próprio mundo em que vive, ou seja, se permanecesse tão somente no mundo naturalizado de sua doxa. Crítica significa, então, expressando seu sentido metaforicamente, o movimento de saída para fora da bolha, de rompimento da bolha, para vê-la de outra maneira, que só é possível estando fora dela. Mostrar ao sujeito a saída da bolha parece ser a árdua tarefa formativa da filosofia, a qual não pode se isentar de fazer um escrutínio crítico dos possíveis limites inerentes à realização dessa tarefa. Por essa razão, a “crítica”, nesse sentido normativo requerido, se relaciona-se sempre com autocrítica, ou seja, com a disposição de colocar em questão seus próprios juízos.11 11 A noção de crítica como autocrítica depende, obviamente, de uma noção apropriada de razão que possibilite o exercício autocrítico pretendido. Sobre este ponto, ver a problematização oferecida por Schnädelbach (2007).

Mas, onde repousa, então, o aspecto problemático da noção habermasiana de crítica? Segundo Butler, ele consiste na “postulação de juízos normativos fortes”, feita por Habermas para justificar seu procedimento crítico; e ele o faz de tal forma que torna acrítico seu próprio sentido de normatividade. Todo o questionamento sobre o sentido da ação singular, expresso pela pergunta geral “o que devo fazer?”, insere-se no contexto de um “nós” já constituído, com seus valores e costumes que descortinam o horizonte da ação possível e delimita o próprio campo de atuação do sujeito.12 12 É preciso considerar que a interpretação de Butler sobre Habermas é, neste ensaio, muito esquemática e rápida, não se atendo ao problema nos moldes como Habermas o trata em suas obras ético-filosóficas fundamentais. Certamente, a leitura cuidadosa de tais obras ofereceria contra-argumentos importantes à objeção levantada por Butler.

Portanto, Butler (2013)Butler, J. (2013). O que é a crítica?: Um ensaio sobre a virtude de Foucault. Cadernos de Ética e Filosofia Política, 22, 159-179. critica em Habermas a postulação de juízos normativos fortes que tornam, segundo ela, acrítico seu próprio sentido de normatividade. Cabe perguntar se essa crítica a esse sentido “forte” de normatividade significa a recusa de qualquer normatividade ou se Butler continua ainda postulando algum tipo desta e, caso afirmativo, de que normatividade se trataria. Desconcertante, aqui, é a reivindicação que a autora faz, não só para si própria, mas também para Foucault, de um sentido de normatividade, inclusive também “forte”, mas em direção oposta àquela postulada por Habermas. Justamente nesse contexto de discussão, ela formula a hipótese que pretende defender no referido ensaio. Em suas próprias palavras: “Com efeito, neste ensaio, espero mostrar não somente que Foucault realiza uma importante contribuição para a teoria normativa, como também que a sua estética e sua noção de sujeito estão inteiramente relacionadas tanto com a sua ética, quanto com a sua política” (Butler, 2013Butler, J. (2013). O que é a crítica?: Um ensaio sobre a virtude de Foucault. Cadernos de Ética e Filosofia Política, 22, 159-179., p. 162, grifo nosso). Dessa breve passagem, é preciso reter duas ideias importantes para o ponto em discussão: primeiro, Foucault contribui decisivamente para a teoria normativa e, segundo, a relação estreita entre estética e sujeito com a ética e a política. Considerando as inúmeras dificuldades que o problema reúne, somos levados a formular as duas seguintes questões: onde repousaria a contribuição de Foucault? De que modo estética e sujeito se vinculam intrinsecamente com ética e política? A investigação dessas duas perguntas no contexto da resposta oferecida por Butler nos conduz ao próprio sentido crítico atribuído por Foucault à normatividade ao conceber, embora sem justificar satisfatoriamente, a crítica como virtude.

Jogando inteiramente no campo teórico-filosófico posto por Foucault e procurando compreender sua definição de crítica, Butler (2013)Butler, J. (2013). O que é a crítica?: Um ensaio sobre a virtude de Foucault. Cadernos de Ética e Filosofia Política, 22, 159-179. localiza seu sentido no esforço intelectual feito para indicar os limites do conhecimento humano, iniciado na Modernidade por Kant e, posteriormente, secundado de perto por Foucault. Aqui, no primeiro movimento reconstrutivo pontual do ensaio “O que é a crítica?”, de Foucault (1990)Foucault, M. (1990). Was ist Aufklärung? In E. Erdmann, R. Forst, & A. Honneth (Hrgs.), Ethos der moderne: Foucaults Kritik der Aufklärung (pp. 35-54). Verlag., a própria crítica brota de solo eminentemente epistemológico com a finalidade de evidenciar os limites do regime de verdade que assujeita os seres humanos a um determinado contexto sócio/histórico. No contexto desse vínculo inicial entre crítica e conhecimento, Butler (2013, p. 162)Butler, J. (2013). O que é a crítica?: Um ensaio sobre a virtude de Foucault. Cadernos de Ética e Filosofia Política, 22, 159-179. formula a seguinte questão: “Que relação entre conhecimento e poder faz que as nossas certezas epistemológicas acabem servindo de suporte a um modo de estruturar o mundo que oblitera possibilidades de ordenação alternativas?”. Quando seguimos de perto a argumentação de Foucault (1990)Foucault, M. (1990). Was ist Aufklärung? In E. Erdmann, R. Forst, & A. Honneth (Hrgs.), Ethos der moderne: Foucaults Kritik der Aufklärung (pp. 35-54). Verlag. no referido ensaio, torna-se possível observar, considerando a própria formulação de Butler (2013)Butler, J. (2013). O que é a crítica?: Um ensaio sobre a virtude de Foucault. Cadernos de Ética e Filosofia Política, 22, 159-179., que a discussão não permanece mais restrita somente ao solo kantiano, uma vez que a reflexão exige agora o nexo entre conhecimento e poder para conseguir denunciar o bloqueio a novas alternativas que nossas certezas epistemológicas representam. Compreender reflexivamente a origem e os motivos de tal bloqueio, bem como vislumbrar alternativas possíveis, torna-se, então, uma tarefa central da atitude crítica baseada no vínculo entre crítica e virtude, tal como é postulado por Foucault (1990)Foucault, M. (1990). Was ist Aufklärung? In E. Erdmann, R. Forst, & A. Honneth (Hrgs.), Ethos der moderne: Foucaults Kritik der Aufklärung (pp. 35-54). Verlag. e perseguido à sua própria maneira por Butler (2013)Butler, J. (2013). O que é a crítica?: Um ensaio sobre a virtude de Foucault. Cadernos de Ética e Filosofia Política, 22, 159-179..

Sob esse aspecto, poderíamos dizer que a normatividade da crítica repousa sobre sua própria capacidade de romper com tais certezas que sustentam de tal forma a estruturação de mundo a ponto de impedir o surgimento de outras estruturações possíveis. Então, é precisamente dos limites de nossas certezas que emerge a prática da crítica, como afirma claramente Butler (2013, p. 164)Butler, J. (2013). O que é a crítica?: Um ensaio sobre a virtude de Foucault. Cadernos de Ética e Filosofia Política, 22, 159-179.: “E é a partir de então, a partir do esgarçamento do tecido de nossa rede epistemológica, que a prática da crítica emerge, juntamente com a consciência de que nenhum discurso aqui é adequado e de que um impasse foi produzido por nossos discursos dominantes”. Vamos reter, por ora, apenas um aspecto decisivo da questão: a normatividade da crítica repousa no nexo entre conhecimento e poder, ou seja, na capacidade de ruptura das certezas epistemológicas, para provocar a emergência de outras leituras possíveis de mundo. Por isso, a crítica sempre é, quando definida nos termos do paradigma epistemológico kantiano, a indicação dos limites do conhecimento humano. E, quando associada à analítica do poder foucaultiano, ela investiga e denuncia o “furor do poder”, ou seja, seus efeitos destrutivos sobre a formação livre de processos de subjetivação.

É sobre esse solo epistemológico da crítica que Butler (2013)Butler, J. (2013). O que é a crítica?: Um ensaio sobre a virtude de Foucault. Cadernos de Ética e Filosofia Política, 22, 159-179. busca investigar o vínculo mais profundo entre crítica e virtude. Este novo vínculo, já antes postulado pelo próprio Foucault sem, no entanto, ter sido justificado explicitamente, significa tão somente o aprofundamento do sentido normativo inerente ao vínculo entre crítica e conhecimento ou aponta para outro sentido, mais amplo e, ao mesmo tempo, mais específico de normatividade? Em outros termos, é possível compreender a virtude para além de um registro epistemológico, permitindo encontrar com isso um sentido inteiramente novo de normatividade crítica que apenas começava a se esboçar na conferência foucaultiana de 1978? Ora, é esta precisamente a hipótese que procuramos sustentar aqui, com apoio inicial na própria interpretação de Butler (2013)Butler, J. (2013). O que é a crítica?: Um ensaio sobre a virtude de Foucault. Cadernos de Ética e Filosofia Política, 22, 159-179. quando a crítica é pensada a partir de seu vínculo com a virtude e, por isso, não se deixando restringir somente ao registro epistemológico, no sentido da investigação transcendental das condições de possibilidade do conhecimento, então, ela faz emergir um sentido inteiramente novo de normatividade, de modo que se torna nuclear para Foucault investigar os processos de subjetivação que nascem da tensão entre assujeitamento e desassujeitamento e que estão na base da formação do sujeito. Essa nova concepção de normatividade permite estabelecer, de modo mais aprofundado, o entrelaçamento entre tecnologias de dominação e tecnologias do si, objetos de investigação, sobretudo, nos últimos cursos ministrados no Collège de France e nas conferências proferidas, nos anos 1980, em universidades de vários países (Foucault, 2004Foucault, M. (2004). A hermenêutica do sujeito. Martins Fontes., 2008Foucault, M. (2008). Tecnologías del yo y otros textos afines. Paidós., 2011, 2013Foucault, M. (2013). O governo de si e dos outros. Martins Fontes.).

III

Para Butler, há diferentes maneiras procedimentais básicas a serem consideradas para compreendermos melhor a justificação foucaultiana da crítica como “virtude”. Nesse contexto, é importante reter a consideração geral feita por Butler da noção de virtude como atributo ou prática do sujeito ou a qualidade que tanto caracteriza quanto condiciona sua ação. Portanto, a virtude está diretamente vinculada à ação do sujeito, caracterizando-a e condicionando-a. Na sequência, a autora oferece a seguinte definição de virtude:

Ela pertence a uma ética que se cumpre não meramente pela obediência objetiva às leis e às regras formuladas. E a virtude não é apenas um modo de consentir ou de se conformar com as normas preestabelecidas. Ela é, mais radicalmente, uma relação crítica com essas normas que se delineia, segundo Foucault, como uma estilização específica da moralidade

(Butler, 2013Butler, J. (2013). O que é a crítica?: Um ensaio sobre a virtude de Foucault. Cadernos de Ética e Filosofia Política, 22, 159-179., p. 164, grifo nosso).

Esta passagem expõe o núcleo da definição de virtude que orienta, de certo modo, a investigação foucaultiana que começa a se desenvolver já na conferência de 1978 e que predomina em seu percurso investigativo posterior. Assim, a virtude, pertencendo a uma ética, não só não se deixa conformar às normas sociais existentes, mas as considera de maneira radical e, por isso, estabelece com elas uma relação crítica nos termos de “uma estilização específica da moralidade”. Compreender o que significa esta estilização parece ser o caminho mais adequado para esclarecer o núcleo da tese foucaultiana da crítica como virtude. Se a empreitada for bem-sucedida nesta direção, o aspecto aparentemente desconcertante da concepção da “crítica como virtude” deixa de existir, de modo a se tornar-se possível conceber Foucault como teórico de uma normatividade crítica alicerçada na noção de virtude. Em síntese, essa interpretação nos permite construir a imagem de um Foucault defensor da normatividade crítica, antifundacionista e não-prescritivista.

Para levar adiante o procedimento acima indicado, Butler investiga a noção de “virtude” na introdução da História da Sexualidade II: o uso dos prazeres, procurando derivar daí um sentido não prescritivo de experiência moral. Dessa sua reconstrução, podemos extrair uma referência importante, visto que a virtude é compreendida como experiência moral normativa, mas de modo algum prescritiva. Então, faz sentido perguntar como Foucault compreende, no referido texto, a virtude como experiência moral normativa de cunho não-prescritivo, que aconteceria nos termos específicos de uma estilização da moralidade. Isso exige compreender, segundo o próprio Foucault, a experiência moral como algo que não se conforma rigidamente nem à lei jurídica e nem à regra ou ao comando que uniformizam mecanicamente o sujeito. Ou seja, a estilização da moralidade tem a ver precisamente com este movimento contrário, não de uniformização mecânica, mas sim de prática de liberdade que abre o espaço para a autoformação do sujeito. Por conseguinte, tal estilização se contrapõe a todo procedimento prescritivo que impõe a observação cega de regras ou normas sem questioná-las. Nas palavras de Butler (2013, p. 165): “A experiência moral tem que ver com a transformação de si instigada por uma forma de conhecimento que é estrangeira àquela com a qual o sujeito se acostumou. E essa forma de experiência moral será diferente da submissão a um comando”.

Nesses termos, a noção de “virtude” aponta claramente para a ruptura com a submissão a um comando; tal ruptura, por sua vez, exige a autotransformação do sujeito, impulsionada por experiências (intelectuais) estranhas ao modo de vida costumeiro do próprio sujeito. Por isso, o ponto nuclear consiste no fato de este tipo de experiência moral exigir uma forma de procedimento que ultrapassa a exclusividade do ato cognoscitivo no sentido meramente epistemológico, pois a experiência moral postulada implica uma experiência formativa singular, anterior e simultaneamente preparatória ao questionamento epistemológico feito pelo sujeito a respeito do regime ou da política de verdade que o assujeita. Assim, a estilização da moralidade pressupõe – e esta é a hipótese que sustentamos - uma dimensão formativa alicerçada em diferentes modelos de exercícios (ou práticas de si) que capacitam o sujeito a romper com seus modos costumeiros de viver e, simultaneamente, a cultivar outras formas alternativas de vida. E isso se relaciona com a noção de “autoformação” do sujeito, reivindicada por Butler (2013)Butler, J. (2013). O que é a crítica?: Um ensaio sobre a virtude de Foucault. Cadernos de Ética e Filosofia Política, 22, 159-179.. Trata-se, pois, da defesa de uma normatividade mais ampla que seu sentido epistemológico na medida em que vincula uma noção de “virtude” associada à necessidade de uma permanente postura crítica ao existente e, pois, de autotransformação. Cabe questionar, então: em que medida a postura de crítica ao existente se associa diretamente à de autoformação? Ora, essa vinculação é possível na medida em que a auto/formação é promovida, mediante exercícios espirituais, tais como a leitura, escrita, escuta, meditação, etc., capacitando e transformando o sujeito pela compreensão não mais ingênua da realidade da qual faz parte.

Por conseguinte, faz-se necessário compreender, no detalhe, o que significa propriamente esta estilização da moralidade e quais efeitos práticos, no sentido da autotransformação do sujeito, ela provoca, visto que tal compreensão auxilia a esclarecer o sentido da crítica como virtude. A estilização da moralidade se traduz aí pela expressão “artes da existência” (arte de viver), significando um âmbito ético-estético de formação do sujeito como autotransformação que obviamente vai muito além do registro meramente epistemológico.13 13 Este problema pode ser rastreado em A hermenêutica do sujeito, curso proferido no Collége de France em 1982, quando Foucault busca reaver a noção de “cuidado de si” que ficou secundarizada pela tradição do “conhece-te a ti mesmo”. Neste sentido, seu esforço de justificar na moral antiga, greco-romana, a passagem do logos ao éthos pode ser vista, de certa forma, como sua busca pela “estilização da moralidade”, ou seja, pela tékhne toû bíou (arte de viver). Foucault esclarece esse ponto em uma passagem lapidar d’A hermenêutica do sujeito: “Fazer da própria vida objeto de uma tékhne, portanto, fazer da própria vida uma obra – obra que (como deve ser tudo o que é produzido por uma boa tékhne, uma tékhne razoável) seja bela e boa – implica necessariamente a liberdade e a escolha daquele que utiliza sua tékhne” (Foucault, 2004, p. 513). Deste modo, e aí reside uma diferença importante em relação ao enfoque especificamente epistemológico, fazer da vida uma obra bela e boa é, como estilização da existência, a maneira mais apropriada de se levar a sério o problema da liberdade da ação humana. Neste sentido, já na conferência de 1978 Foucault concebe a crítica como a dimensão mais apropriada da liberdade humana para dar conta do problema da subjetivação e, por isso, sua insistência em vincular a crítica à virtude. Efetivamente, por meio do cultivo de tais artes o sujeito é levado a transcender as normas e preceitos morais mediante os quais estava plenamente acostumado a viver. Em outros termos, são as artes de existência que capacitam o sujeito a romper com o comando rígido imposto pela uniformização mecânica das normas. Conforme Butler (2013, p. 165), “O que está em jogo, para Foucault, não são os comportamentos, as ideias, as sociedades nem as ‘ideologias’, mas ‘as problematizações pelas quais o ser se deixa, necessariamente, pensar – e as práticas a partir das quais essas problematizações se formam’”.14 14 Foucault investiga, pormenorizadamente, as práticas de si na tradição antiga greco-romana, nos últimos cursos proferidos no Collège de France, especialmente, n’ A hermenêutica do sujeito. Cabe destaque especial entre as práticas, para a escuta, exame de consciência, leitura, escrita e meditação. Vê-se, com isso, o quanto essa noção de “artes da existência” aqui referida, encontra-se profundamente imbricada com a própria ontologia do presente, pressupondo-a, inclusive, visto que se concentra nas problematizações que tornam possível a autorreflexão do sujeito, mediante suas próprias práticas. É a ontologia do presente, enquanto investigação das diferentes práticas de si, que descortina ao sujeito a possibilidade de se compreender a si mesmo.15 15 No curso O governo de si e dos outros a ontologia do presente ganha singularidade própria na medida em que ela é justificada com base na raiz que a Aufklärung kantiana herda da parresía greco-romana. Ou seja, a herança parresiástica antiga da Aufklärung kantiana se torna referência indispensável para justificar o pensamento crítico da atualidade, o qual significa, ao mesmo tempo, a ontologia de nós mesmos. Por isso, o nexo entre parresía e Aufklärung se torna decisivo para pensar a relação umbilical entre ontologia da atualidade e ontologia de nós mesmos (Dalbosco et al., 2022). Em síntese, a exigência ética, posta nos termos de uma virtude crítica, repousa no escrutínio de si por meio de diferentes exercícios (práticas de si), tal escrutínio é o núcleo constitutivo daquilo que se poderia compreender como autoformação do sujeito.

IV

Nesse contexto, cabe destacar o duplo movimento exigido pelas práticas de si e que caracterizam, ao mesmo tempo, a própria ontologia do presente. O primeiro movimento consiste em trazer à tona a trama constituinte do regime de verdade que prescreve ao sujeito determinadas normas e códigos morais que exigem obediência mecânica. O segundo movimento pretende descortinar ao mesmo sujeito alternativas a tal regime, conduzindo-o a práticas de desassujeitamento. Desse modo, torna-se evidente uma das características principais da crítica como virtude: ela consiste não apenas em resistir à uniformidade mecânica dada, mas também em construir alternativas para superá-la. Isso conduz à própria transformação do sujeito em relação às normas morais dadas, principalmente em relação ao que elas exigem de assujeitamento e servidão voluntária.

Resumindo o que foi exposto até aqui, a crítica como virtude conduz à estilização da moralidade, a qual, ganhando a forma de “artes da existência”, exige a transformação de si. Com isso, a reconstrução de Butler (2013)Butler, J. (2013). O que é a crítica?: Um ensaio sobre a virtude de Foucault. Cadernos de Ética e Filosofia Política, 22, 159-179. alcança outro patamar, tendo que esclarecer o que significa autotransformação do sujeito para poder mostrar, em seguida, com maior precisão, o novo significado que assume a crítica como virtude. Nesse contexto, as produções subsequentes de Foucault acentuam o contraste entre uma ética que conduz ao comando do sujeito, subordinando-o de maneira irrestrita às normas vigentes, e outra noção de “ética” que incrementa a autocriação desse mesmo sujeito, conduzindo-o a se liberar progressivamente da ética baseada no automatismo mecânico. Tudo isso é importante para que possamos compreender aquela distinção pressuposta pelo ensaio “O que é a crítica?”, de 1978, entre obediência e virtude. Segundo Butler (2013, p. 167)Butler, J. (2013). O que é a crítica?: Um ensaio sobre a virtude de Foucault. Cadernos de Ética e Filosofia Política, 22, 159-179.: “Nesse texto, Foucault contrasta a maneira como interpreta a virtude com a obediência, mostrando como a possibilidade dessa forma de virtude se estabelece a partir da diferença com a obediência irrefletida à autoridade”. A virtude tem a ver aqui, desse modo, com a atitude ou com o procedimento que se opõe a qualquer tipo de obediência irrefletida à autoridade. Ou seja, a virtude autoriza somente aquele tipo de obediência capaz de resistir ao crivo do esclarecimento.

Essa ideia de crítica torna ainda mais compreensível o fascínio que o vínculo estabelecido por Kant (1985)Kant, I. (1985). Resposta à pergunta “O que é Esclarecimento?”. Edição Bilíngue. Petrópolis: Vozes. entre crítica e Aufklärung exerce sobre o próprio esforço foucaultiano de atualização da atitude crítica, visto que Kant estabelecera aquele vínculo justamente para romper com a naturalidade da associação entre obediência e ausência de raciocínio. Quem aceita passivamente a obediência sem raciocinar está submerso no estado de menoridade (Unmündigkeit) e, com isso, muito distante de uma posição esclarecida, isto é, de uma atitude crítica, caracterizada como maioridade (Mündigkeit). Embora Foucault (1990)Foucault, M. (1990). Was ist Aufklärung? In E. Erdmann, R. Forst, & A. Honneth (Hrgs.), Ethos der moderne: Foucaults Kritik der Aufklärung (pp. 35-54). Verlag. não aceite na íntegra a postura kantiana e simpatize menos ainda com a aposta iluminista na razão, ele assume a premissa crítica geral, segundo a qual, jamais se deve obedecer sem raciocinar. Esse legado do esclarecimento kantiano baliza, posteriormente, seu próprio regresso à questão moral antiga e o problema ético-político nuclear adscrito por ela à cultura ocidental subsequente, a saber, da relação tensional entre o governo de si e o governo dos outros.16 16 Este é, como sabemos, o núcleo ético-político do curso O governo de si e dos outros, ministrado no Collège de France durante os anos de 1982 e 1983 (Foucault, 2013).

Contudo, no contexto da interpretação de Butler (2013, p. 167)Butler, J. (2013). O que é a crítica?: Um ensaio sobre a virtude de Foucault. Cadernos de Ética e Filosofia Política, 22, 159-179., para Foucault “a crítica começa a partir do momento em que pomos em questão a necessidade de uma obediência absoluta e submetemos todas as obrigações governamentais que nos são impostas a um exame racional e reflexivo”. Por isso, a crítica aliada à virtude implica sempre, como ainda veremos, a coragem para resistir a ser governado simplesmente desta ou daquela maneira. Pois, sem tal coragem o sujeito não é capaz de se insurgir contra os processos de assujeitamento que tolhem sua própria liberdade.

Em síntese, a atitude crítica significa – e aqui reside sua dimensão propriamente política - o exame reflexivo de qualquer forma de obediência e, principalmente, daquelas formas que se originam de obrigações governamentais autoritárias impostas aos cidadãos. Podemos nos perguntar, agora: O que essa dimensão política da crítica tem a ver com a transformação de si? Ou, de outra forma, por que a transformação de si é indispensável para que ocorra a ruptura aparentemente tão natural entre obediência e ausência de reflexão? De imediato, inclinamo-nos a responder que, sem a prática da crítica, embasada na transformação de si, não há uma ruptura do modelo de autoridade que exige obediência irrestrita. Assim, a crítica se torna explicitamente uma virtude, visto que desencadeia no sujeito um conjunto de práticas e exercícios que o conduzem a pensar sobre si mesmo e, mais fundamentalmente, a pôr em questão as diferentes formas de obediência impostas pelo autoritarismo externo, seja ele governamental, religioso ou até mesmo educacional.

A crítica como virtude exige, então, a passagem do estado de obediência absoluta para a obediência com base em razões e isso só se torna possível na medida em que ocorre a transformação de si. O aspecto intrigante do problema repousa no motivo que impulsiona tal passagem, ou seja, sobre o que motiva o sujeito a não querer mais ser governado desta ou daquela maneira, sendo levado, com isso, a romper com o círculo vicioso entre obediência irrestrita e ausência de pensamento. Na conferência “O que é a crítica?”, Foucault concebe o desejo humano de não querer ser governado desta ou daquela maneira como o motivo originário da crítica. Embora não fique claro o vínculo desse motivo com a própria virtude, o fato é que nenhum ser humano está predestinado a qualquer forma de obediência absoluta, pois sempre há possibilidades de as normas e a própria forma de governo serem vistas sob outra perspectiva. Resulta disso uma consequência importante, a saber, que o fato mesmo das normas serem seguidas pode, a qualquer momento, ser posto em questão. Nesse sentido, seguir uma regra não pode ter, do ponto de vista crítico, um valor absoluto e inquestionável. Por isso, ser governado dessa maneira, por um determinado indivíduo, grupo ou governo não é um dado inquestionável, mas sim um acontecimento histórico, cultural e político e, enquanto tal, sempre sujeito ao questionamento. Sem compreender adequadamente essa possibilidade, não se chega à prática da resistência como atitude crítica.

Precisamente aqui se manifesta, segundo Butler (2013, p. 168, grifo nosso)Butler, J. (2013). O que é a crítica?: Um ensaio sobre a virtude de Foucault. Cadernos de Ética e Filosofia Política, 22, 159-179., a dimensão política da crítica como virtude: “A virtude que Foucault aqui nos apresenta, seja ela qual for, terá que ver com a objeção contra a imposição do poder, contra os seus custos, contra o modo como ele é administrado por aqueles que o administram”. Crítica como virtude se torna, então, crítica política ao poder imposto autoritariamente e a todos os efeitos destrutivos por ele gerados. A virtuosidade da crítica consiste na resistência à tal imposição, abrindo o campo para outras possibilidades que possam construir novas teias de relações entre sujeitos e seus respectivos grupos. Em síntese, a arte de resistir é a forma assumida pela crítica como virtude.17 17 O nexo entre crítica e resistência é um tema nuclear da própria concepção da crítica como virtude. Considerando que não podemos enfrentar de maneira detalhada este tema aqui, remetemos o leitor para o ensaio de Duarte e Cesar (2019). A própria Butler (2018) trata de maneira mais sistemática o problema da resistência e sua relação com a sujeição e a ressignificação. Uma outra abordagem muito oportuna e inspirada em Foucault a esse respeito pode ser encontrada em Gros (2018). Mas, para que isso aconteça, o sujeito precisa ser preparado, ou seja, passar por um longo processo de transformação de si, o qual exige o trabalho formativo para que a crítica possa se mostrar como virtude ético-política.

Para refletir com mais profundidade sobre o problema inerente ao ato de ser governado e mostrar o quanto o poder autoritário impede as práticas de liberdade indispensáveis à transformação de si, Butler (2013)Butler, J. (2013). O que é a crítica?: Um ensaio sobre a virtude de Foucault. Cadernos de Ética e Filosofia Política, 22, 159-179. retoma a distinção formulada por Foucault entre governo e governamentalização. Por esta última, Foucault (1990)Foucault, M. (1990). Was ist Aufklärung? In E. Erdmann, R. Forst, & A. Honneth (Hrgs.), Ethos der moderne: Foucaults Kritik der Aufklärung (pp. 35-54). Verlag. entende o movimento de assujeitamento dos indivíduos a uma prática social por meio de relações de poder baseadas em determinado regime ou política de verdade. A governamentalização garante, portanto, um modo específico de ser governado que implica, “além de ter um modelo imposto sob sua existência, receber de antemão os termos dentro dos quais sua existência será ou não possível” (Butler, 2013Butler, J. (2013). O que é a crítica?: Um ensaio sobre a virtude de Foucault. Cadernos de Ética e Filosofia Política, 22, 159-179., p. 170). O aspecto inaceitável da política da verdade que sustenta o mecanismo da governamentalização repousa em seu fechamento, ou seja, em sua determinação prévia e absoluta daquilo que é verdade e que sustenta a fixidez das regras e costumes, fazendo os sujeitos acreditarem que tal fixidez é algo simplesmente natural. Por isso, como esclarece Butler (2013, p. 171)Butler, J. (2013). O que é a crítica?: Um ensaio sobre a virtude de Foucault. Cadernos de Ética e Filosofia Política, 22, 159-179., a “política da verdade pertence às relações de poder que assinalam de antemão o que se qualificará ou não como verdade, o que irá ordenar o mundo conforme modos regulares e reguláveis e o que será ou não aceitável dentro de determinado campo de conhecimento”. Em síntese, a governamentalização caracteriza, na conferência de 1978, o lado autoritário e dominador do poder que, ancorado numa política de verdade, estabelece previamente e de maneira absoluta o que e como os sujeitos devem ser. Por isso, a governamentalização definida nesses termos representa o exemplo perfeito da normatividade prescritiva, bloqueando o que há de mais importante no sujeito, ou seja, sua liberdade de escolha para decidir o que pretende e pode ser.

Se a governamentalização mostra o lado autoritário e destrutivo do poder, como a crítica é definida em oposição a ela? A crítica significa o exercício reflexivo do sujeito, ancorado nas diferentes modalidades de estilização da moralidade, para interrogar a política de verdade que sustenta a própria governamentalização. Mas, não se trata de um exercício reflexivo qualquer e sim daquele compreendido como uma arte e, mais especificamente, segundo afirma Foucault no próprio ensaio, uma “arte da servidão involuntária, da indocilidade reflexiva” (Foucault, 2007Foucault, M. (2007). Sobre a ilustración. Tecnos., p. 11).18 18 É interessante notar que o emprego da expressão “arte” no contexto da conferência de 1978 é um indicativo claro de que Foucault já está na pista certa da tékhne toû bíou (arte de viver) dos últimos cursos ministrados no Collège de France (Foucault, 2004, 2011, 2013), sendo que é tal arte que o permitirá pensar o nexo entre crítica e virtude de maneira mais consistente e abrangente. Ou seja, as diferentes práticas de si possibilitadas pela tékhne toû bíou dão concretude cada vez mais abrangente à “arte inservil e indócil”. Por isso, quando definida como arte inservil e indócil, a crítica não pode ser tomada como ato único e, menos ainda, pertencente só ao domínio subjetivo, pois ela assume a relação estilizada com o regime de verdade do qual emerge e contra o qual se volta. Assim, torna-se decisivo compreender o significado dessa relação estilizada e seu tipo de estilo, pois aí se encontra o núcleo da noção antifundacionista da própria crítica. Butler responde a este questionamento da seguinte forma: “O estilo será crítico na medida em que não for previamente determinado, na medida em que incorporará uma contingência ao longo do tempo, que delimitará o alcance da capacidade ordenadora do poder que o rodeia” (Butler, 2013Butler, J. (2013). O que é a crítica?: Um ensaio sobre a virtude de Foucault. Cadernos de Ética e Filosofia Política, 22, 159-179., p. 171). Ou seja, indeterminação e contingência são as duas características principais tanto da servidão involuntária quanto da indocilidade reflexiva que fortalecem as práticas de liberdade, tornando o sujeito resistente aos assujeitamentos causados por uma determinada política de verdade e suas respectivas pretensões absolutistas e inflexíveis. O aspecto importante dessa indeterminação e contingência é que ela impede a existência previa, absoluta e inflexível, de um telos do sujeito e isso tem repercussões importantes para a formação humana (Dalbosco, 2019Dalbosco, C. A. (2019). Metamorfoses do conceito de formação: da teleologia fixa ao campo de força. In C. A. Dalbosco, E. H. Mühl, & H. G. Flickinger (Orgs.), Formação humana (Bildung): Despedida ou renascimento? (pp. 35-64). Cortez.).

Assim, a crítica como virtude possibilita ao sujeito um profundo questionamento de sua própria identidade, ou seja, daquilo que os outros pretendem lhe impor autoritariamente num determinado regime de verdade e, mais importante ainda, o que ele próprio pode fazer para encontrar sua própria identidade em contraposição ao que lhe é imposto autoritariamente. Segundo Butler (2013)Butler, J. (2013). O que é a crítica?: Um ensaio sobre a virtude de Foucault. Cadernos de Ética e Filosofia Política, 22, 159-179., o que está em jogo é o sentido ético-político de liberdade humana, visto que o nexo entre crítica e virtude abre a possibilidade, para o sujeito, de se questionar sobre o que, afinal de contas, ele pretende ser e quais são os alcances e limites impostos no caminho de tal pretensão. Esse questionamento sobre a condição humana, proporcionado pela crítica como virtude é anunciado lapidarmente pelo próprio Foucault nos seguintes termos: “Quem sou eu, então, que pertenço a esta humanidade, talvez a esta margem, a este momento, a este instante de humanidade que está sujeitado ao poder da verdade em geral e das verdades em particular?” (Foucault, 2007Foucault, M. (2007). Sobre a ilustración. Tecnos., p. 22). Tomar a si mesmo como fonte de reflexão, pensar sobre sua própria existência exatamente no momento em que se vive é uma exigência que só pode ser cumprida no âmbito do exercício de si sobre si mesmo e que conduz à transformação de si. Ora, a força motriz disso é a crítica como virtude, sobretudo, quando ela assume a forma, como vimos, de moralidade estilizada e, mais especificamente, no contexto do Foucault tardio, quando a crítica como virtude se deixa inspirar diretamente na tradição antiga da tékhne toû bíou.

Nesse âmbito, segundo Butler (2013)Butler, J. (2013). O que é a crítica?: Um ensaio sobre a virtude de Foucault. Cadernos de Ética e Filosofia Política, 22, 159-179., a estilização do sujeito enquanto forma de resistência ganha maior evidência ainda, quando Foucault, inserindo-se na tradição crítica de esquerda pós-kantiana, desvenda o aspecto destrutivo inerente à relação entre racionalidade e poder. Contudo, procurando ir além tanto de Max Weber quanto da Escola de Frankfurt, ele denuncia o “furor do poder” que brota da própria racionalização. Nos termos de Butler (2013, p. 172)Butler, J. (2013). O que é a crítica?: Um ensaio sobre a virtude de Foucault. Cadernos de Ética e Filosofia Política, 22, 159-179.: “A racionalização obtém seu ‘furor’ e seus limites na medida em que captura e depaupera o sujeito que assujeita. O poder delimita o que é lícito ao sujeito ‘ser’; para além desses limites, não se ‘é’, ou ainda, habita-se um domínio de ontologia precária”.19 19 Embora Butler (2013) não esclareça em detalhes no ensaio em análise, o que significa “precarização ontológica”, deixa a entender que tal expressão se refere -se à ausência de liberdade provocada pelo nexo estreito entre poder e racionalidade (técnico-instrumental). Por isso é que se torna importante, neste contexto, recorrer ao sentido mais amplo de razão, que brota da dimensão ético-estética da condição humana, para “devolver” ao próprio sujeito a liberdade como sua genuína possibilidade ontológica. Ora, é tendo em vista precisamente este problema filosófico fundamental que Foucault compreende a tékhne toû bio como núcleo constitutivo das práticas de si entendidas propriamente enquanto exercícios de liberdade. Como podemos ver, o laço estreito entre racionalização e poder provoca a precarização ontológica, sobretudo, porque retira do sujeito sua própria liberdade de escolha, levando-o a acreditar que a única possibilidade de ser é aquela imposta por tal laço, uma vez que além dele só haveria o não-ser, ou seja, aniquilação e morte. Contudo, é precisamente das forças estilizadoras do sujeito (como artes da existência) que brota sua própria resistência, abrindo-lhe os olhos para o enclausuramento e pauperização provocados pelo laço destrutivo entre racionalização e poder. Isso significa dizer, de outro modo, que a racionalização encontra seus limites no processo de desassujeitamento provocado pela crítica como virtude, a qual mostra o autoritarismo e a falsidade da precarização ontológica20 20 De outra parte, em seu livro Vida Precária Butler toma a noção de “precariedade” no sentido político, para compreender nossa sociabilidade mediante as dimensões frágeis e necessárias de nossa própria interdependência (Butler, 2022). causada pela própria racionalização que sustenta determinada política de verdade.

Nesse contexto, há outro aspecto importante da reconstrução de Butler que sustenta a reflexão da crítica como virtude, referente à liberdade originária, apenas pressuposta por Foucault (1990)Foucault, M. (1990). Was ist Aufklärung? In E. Erdmann, R. Forst, & A. Honneth (Hrgs.), Ethos der moderne: Foucaults Kritik der Aufklärung (pp. 35-54). Verlag., na conferência de 1978, sem maior aprofundamento posterior. Por mais obscura que seja a noção de “liberdade originária”, Butler (2013)Butler, J. (2013). O que é a crítica?: Um ensaio sobre a virtude de Foucault. Cadernos de Ética e Filosofia Política, 22, 159-179. julga ser possível esclarecer outra dimensão da crítica, justificada por Foucault. A crítica não se esgota no propósito de evidenciar os limites do conhecimento e os efeitos destrutivos de seu respectivo regime de verdade, uma vez que possui, principalmente, o objetivo de “pôr em risco nossa própria formação enquanto sujeitos” (Butler, 2013Butler, J. (2013). O que é a crítica?: Um ensaio sobre a virtude de Foucault. Cadernos de Ética e Filosofia Política, 22, 159-179., p. 177). Isso sinaliza, claramente, para o fato de que não basta apenas que o sujeito se coloque de fora e que analise o regime de verdade e os efeitos destrutivos do poder a tal regime vinculado, lamentando a clausura e pauperização sofridas. Na verdade, o que interessa é o seu ato de coragem de se colocar na situação e, além de analisar os impactos que os efeitos de determinado poder provocam nele, dispor-se a pôr em risco sua própria formação, para romper com a ontologia precária imposta pela política de verdade à qual está submetido. Ou seja, se um dos sentidos da crítica como virtude capacita o sujeito a se distanciar reflexivamente da autoridade estabelecida, o outro e, certamente, o mais importante, consiste no “ato de coragem, de um agir sem garantias, que arisca o sujeito contra os limites da ordenação” (Butler, 2013Butler, J. (2013). O que é a crítica?: Um ensaio sobre a virtude de Foucault. Cadernos de Ética e Filosofia Política, 22, 159-179., p. 176). Nessa formulação de Butler, encontra-se outra dimensão do vínculo entre crítica e virtude que encoraja o sujeito a se arriscar, sem ter segurança, contra o “furor do poder”. Ora, este arriscar-se sem garantia constitui o aspecto eminentemente ético-formativo da estilização da moralidade, uma vez que exige do sujeito um exercício intenso de subjetivação, de modo a se contrapor, efetivamente, ao assujeitamento imposto pelo poder autoritário. Essa outra dimensão conduz, então, para o aspecto propriamente formativo da crítica como virtude que deságua na própria autoformação do sujeito.

Como Butler justifica esse aspecto da autoformação do sujeito? Ela se refere ao trabalho ascético, ou seja, às práticas de si que o sujeito faz visando a seu desassujeitamento e, por isso, diz respeito diretamente ao problema das “artes de existência” ou à téhkne toû bíou propriamente dita. Para esclarecê-lo, Butler (2013)Butler, J. (2013). O que é a crítica?: Um ensaio sobre a virtude de Foucault. Cadernos de Ética e Filosofia Política, 22, 159-179. retoma a “Introdução” ao Uso dos prazeres, texto ao qual ela já havia se referido anteriormente, concentrando-se aí na tensão entre “modos de assujeitamento e subjetivação”. Na introdução dessa obra, Foucault (2006)Foucault, M. (2006). História da sexualidade 2: O uso dos prazeres. Rio de Janeiro, Graal. deixa claro que as práticas ou tecnologias de si, objeto de sua investigação, dizem respeito ao “cuidado de si”. Nesse contexto, Butler defende, contrariamente à objeção usual dirigida a Foucault, segundo a qual, ele teria provocado a estetização da existência em detrimento da ética, a ideia que tanto a ética quanto a política dependem do sentido singular de poiesis. Ora, para mostrar essa singularidade, a autora alcança o âmago da problemática referente à formação humana, a saber, a tensão entre o ser formado e o formar a si mesmo (autoformação).

O que tal tensão significa, mais precisamente? Ela aponta para a dupla dimensão constitutiva da poiesis, uma vez que sua força autocriadora só pode ocorrer dentro de uma determinada política de normas. Nos termos de Butler (2013, p. 178)Butler, J. (2013). O que é a crítica?: Um ensaio sobre a virtude de Foucault. Cadernos de Ética e Filosofia Política, 22, 159-179., “Foucault deixa claro que não há nenhuma formação do ‘eu’ fora de um modo de subjetivação, o que implica dizer que não há formação do ‘eu’ fora das normas que arquitetam as condições de formação do sujeito”. Estaríamos aqui, com base nisso, diante de uma espécie de resignação da crítica, uma vez que o sujeito está sempre submetido a normas? De maneira alguma, pois a crítica como virtude, neste momento derradeiro da reconstrução de Butler (2013)Butler, J. (2013). O que é a crítica?: Um ensaio sobre a virtude de Foucault. Cadernos de Ética e Filosofia Política, 22, 159-179., acentua as forças de desassujeitamento proporcionadas pela estilização da existência. O que é preciso ter em mente, em primeiro lugar, é que a autoformação não surge do nada, uma vez que sempre está vinculada a um contexto sociocultural de normas; em segundo lugar, que as próprias forças de desassujeitamento não dispõem de um poder ilimitado, definitivo e absoluto e, por isso, precisam ser constantemente examinadas e recriadas. De qualquer sorte, o ponto nuclear é que a crítica, como virtude, conduz à ideia de autoformação, a qual representa apenas “a prática pela qual o sujeito se forma pelo seu desassujeitamento” (Butler, 2013Butler, J. (2013). O que é a crítica?: Um ensaio sobre a virtude de Foucault. Cadernos de Ética e Filosofia Política, 22, 159-179., p. 178) e isso ocorre sempre no diálogo tensional com a educação na qual está inserido. Em síntese, são as práticas de si exercitadas pelo sujeito – como núcleo de sua própria autoformação - que instituem as condições do desassujeitamento frente a todas as formas de servidão e de ausência de pensamento. Tais práticas propiciam a compreensão da tensão que constitui a própria autoformação do sujeito entre ser formado e formar-se a si mesmo sob um prisma constitutivamente intersubjetivista.21 21 Ao conceber a formação como autoformação e colocá-la na base da crítica como virtude, Butler retoma um tema clássico da Bildung alemã. Para uma interpretação atual deste problema, deixando-se mover pela provocação “O que significa ser um sujeito bem formado?”, ver o ensaio de Bieri (2012).

V

Parece ficar mais claro, após termos seguido passo a passo a reconstrução de Butler, porque, em 1978, Foucault tinha condições apenas de anunciar o vínculo entre crítica e virtude, embora já tenha empregado aí a expressão “arte” como um indício da rica experiência formativa humana da tékhne toû bíou. Também se torna mais claro, agora, porque a crítica como virtude só poderia receber justificação mais adequada, quando o próprio Foucault percebeu, no decorrer dos anos seguintes, o alcance da estilização da moralidade para a transformação de si, ou seja, para a própria autoformação crítica do sujeito. Na conferência de 1978, a crítica como virtude se insere no registro marcante da analítica do poder, adiantando, apenas na forma de alguns lampejos, a guinada para a analítica do sujeito que viria a ocorrer nos anos seguintes.

Por isso, o nexo entre saber e poder que orienta a noção de “crítica” ainda é guiado predominantemente pelo paradigma do conhecimento e, ao insistir na necessidade de ruptura de nossas certezas epistemológicas, conduz ao esgarçamento do tecido que as constitui. Nesse sentido, a virtuosidade da crítica repousa – e isso não é pouco, embora ainda insuficiente para dar conta da formação integral de subjetividades livres - sobre os limites do conhecimento que sustentam o regime de verdade do qual se originam as regras e normas aceitas como válidas. A crítica como virtude pensada em termos epistemológicos também assume o papel de evidenciar os efeitos destrutivos do poder sustentado por um determinado regime de verdade.

Contudo, o que apenas aparece como lampejos em 1978, ganha contornos mais definidos nos anos seguintes da produção intelectual de Foucault. A guinada para a estilização da moralidade permite que a crítica como virtude ganhe alcance maior. Ela sinaliza, então, uma experiência estético-moral mais ampla, de cunho espiritual não restrito ao procedimento cognitivo no sentido epistemológico, mas conectada à transformação do próprio sujeito por meio de diferentes práticas de liberdade. Nesse âmbito, a crítica como virtude, passível de ser entendida também como a virtuosidade de um modelo de crítica que vai além de seus contornos epistemológicos, permite pôr em risco nossa própria formação como sujeitos.

Por essa razão, ela consiste no ato de coragem de se colocar na própria situação, dispondo-se a pôr em risco a si próprio para buscar novas possibilidades de ser. Ou seja, trata-se de um agir sem garantias, que ameaça e tensiona o sujeito frente aos limites da ordenação da qual faz parte e, para fazê-lo, precisa arriscar-se a si mesmo. Ora, é somente uma normatividade não prescritiva, ou seja, aberta e inconclusa, que é capaz de compreender o risco como condição de possibilidade da própria autoformação do sujeito. Longe de uma postura solipsista, a virtuosidade da crítica sempre abre espaço para outras novas possibilidades de abertura de si mesmo e de outros sujeitos, o que demanda a atitude crítica vinculada a um longo processo de transformação de si junto aos outros sujeitos, no sentido ético-político de uma normatividade permanentemente crítica, também em relação ao existente.

O alcance da leitura de Butler (2013)Butler, J. (2013). O que é a crítica?: Um ensaio sobre a virtude de Foucault. Cadernos de Ética e Filosofia Política, 22, 159-179. reside, principalmente, em debruçar-se sobre a ampliação do espectro da crítica levada adiante por Foucault (1990)Foucault, M. (1990). Was ist Aufklärung? In E. Erdmann, R. Forst, & A. Honneth (Hrgs.), Ethos der moderne: Foucaults Kritik der Aufklärung (pp. 35-54). Verlag. e em extrair dela consequências importantes, de modo a mostrar o quanto a própria crítica como virtude precisa da dimensão formativa para poder se autoesclarecer em um contexto teórico pós-fundacionalista e de normatividade não prescritiva. Se o nexo umbilical entre crítica e formação e entre autocrítica e autoformação permeia a argumentação dos dois autores, o mérito maior de Butler reside nas conclusões ético-formativas que extrai de sua interpretação de Foucault. Com esse passo, a reconstrução do problema feita por Butler alcança outro patamar, problematizando o que significa autoformação do sujeito para indicar, com maior precisão, o novo significado que assume a noção foucaultiana de “crítica” como virtude.

Em síntese, ao empregar a expressão “estilização da moralidade” para interpretar o problema da relação entre crítica e virtude posto por Foucault na conferência de 1978, Butler dá um passo adiante, já pressupondo com isso todo o movimento intelectual posterior de Foucault, que o levará a colocar a tékhne toû bío como dimensão prática do logos humano, concebendo-o como fonte da liberdade ontológica resistente a qualquer forma de assujeitamento. Assim, são os diferentes modos práticos de tomar a vida como uma obra bela e boa que garantem à formação a possibilidade de se transformar em autoformação, pois a condição de formação do sujeito depende de sua decisão de cultivar-se intensamente, com o mesmo cuidado estético experienciado pelo artista para criar sua própria obra de arte.

  • 2
    Normalização, preparação e revisão textual: Cia das Traduções Ltda.
  • 3
    Apoio: Universidade de Passo Fundo (UPF/RS) e Conselho Nacional de pesquisa (CNPQ).
  • 4
    Michel Foucault (2004)Foucault, M. (2004). A hermenêutica do sujeito. Martins Fontes. dedica as primeiras aulas do curso A hermenêutica do sujeito ao problema da investigação ética do sujeito no diálogo entre Sócrates e Alcibíades, argumentando em que sentido o bem governar os outros depende do governo ético de si mesmo. Concomitantemente a isso, Foucault trata desta complexa relação ético-formativa entre Sócrates e Alcibíades na perspectiva de uma erótica formativa no segundo volume de sua História da Sexualidade (O uso dos prazeres), especificamente no quinto capítulo intitulado de “O verdadeiro amor” (Foucault, 1985Foucault, M. (1985). História da sexualidade II: o uso dos prazeres. Graal.). Para uma interpretação do sentido formativo do diálogo platônico O Banquete com inspiração foucaultiana, ver Dalbosco e Pagotto-Euzebio (2021)Dalbosco, C. A., & Pagotto-Euzebio, M. S. (2021). Da arte da corte à dialética do amor: complementariedade formativa entre os amantes do saber. Educação em Revista, 37, e20852..
  • 5
    Como não podemos entrar agora neste debate amplo e complexo sobre o pós-fundacionalismo, remetemos o(a) leitor(a) para o ensaio recente de Karsten Schubert sobre o tema (Schubert, 2021Schubert, K. (2021). Der letzte universalismus: Foucaults Freiheitsdenken und die Begründung von radikaler Demokratie im Postfundamentalismus. In O. Flügel-Martinsen, F. Martinsen, & S. Martin (Hrgs.), Das politische (in) der politischen theorie. (pp. 43-58). Nomos.) e Flügel-Martinsin (2010, p. 139-154)Flügel-Martinsen, O. (2010). Die Normativität von Kritik: Ein minimalmodell. Zeitschrift für Politische Theorie, 1(2), 139-154..
  • 6
    Esta delimitação textual nos desobriga de tratarmos, ao menos momentaneamente, da relação entre crítica e virtude no contexto do amplo desenvolvimento intelectual de Foucault, tanto no que se refere ao período anterior a 1978 como ao posterior. Contudo, consideramos que o tema crítica e virtude está diretamente relacionado principalmente com o projeto genealógico do sujeito do Foucault tardio. Para uma compreensão de tal projeto, ver o próprio Foucault (1989)Foucault, M. (1989). Microfísica do poder. Graal. e, na literatura secundária, os esclarecedores ensaios de Geuss (2003)Geuss, R. (2003). Kritik, Aufklärung, Genealogie. In A. Honneth, & M. SAAR (Hrgs.), Michel Foucault Zwischenbilanz einer Rezeption (pp. 255-258). Suhrkamp. e Saar (2003)Saar, M. (2003). Genealogie und subjektivität. In A. Honneth, & M. Saar (Hrgs.), Michel Foucault Zwischenbilanz einer Rezeption (pp. 71-85). Suhrkamp..
  • 7
    A ontologia do presente, compreendida no contexto da arquitetônica investigativa de Foucault, perpassa seus três grandes domínios, do saber, do poder e do sujeito. Para os propósitos deste ensaio interessa destacar o entrelaçamento entre a dupla pergunta, a saber, pela atualidade e pelo próprio sujeito que pergunta pela atualidade. Tal entrelaçamento Foucault justifica, de maneira clara e detalhada, nas duas primeiras aulas do curso O Governo de si e dos outros (Foucault, 2013Foucault, M. (2013). O governo de si e dos outros. Martins Fontes.). É neste sentido que, segundo Rabinow e Dreyfus (1990, p. 55-69), ontologia do presente e ontologia de nós mesmos formam duas dimensões da ontologia crítica de Foucault, pressupondo ambas, simultaneamente, o trabalhar sobre si mesmo e o responder ao seu próprio tempo. Por conseguinte, enquanto a ontologia do presente conduz necessariamente para uma diagnose de época - e é isto que caracteriza a filosofia como pensamento da atualidade -, a ontologia de nós mesmos exige o trabalho do sujeito sobre si mesmo, ou seja, o governo ético de si.
  • 8
    Para uma interpretação deste mesmo curso O governo de si e dos outros, no sentido de apresentar Foucault como “defensor” da modernidade filosófica enquanto atitude crítica, vertendo-a para pensar a problemática educacional, especificamente, aspectos relacionados à educação escolar, ver Pagni e Almeida (2021)Pagni, P. A., & Almeida, J. R. de (2021). Sujeito e educação: da polêmica sobre pós-modernidade à atitude filosófica da modernidade. Revista Dialectus, 10(22), 567-587..
  • 9
    O modo como Jürgen Habermas e Michel Foucault interpretam a modernidade e as noções de “esclarecimento” e “crítica” dela derivadas se tornou -se um capítulo importante do pensamento filosófico contemporâneo. Da perspectiva de Habermas, tornou-se clássico seu livro intitulado O discurso filosófico da modernidade, especialmente os capítulos nono e décimo (Habermas, 1988Habermas, J. (1988). Der philosophische Diskurs der Moderne. Suhrkamp., p. 279-343). Da perspectiva de Foucault, vale referir sua conferência “O que é esclarecimento?” (Foucault, 1990Foucault, M. (1990). Was ist Aufklärung? In E. Erdmann, R. Forst, & A. Honneth (Hrgs.), Ethos der moderne: Foucaults Kritik der Aufklärung (pp. 35-54). Verlag.). Neste mesmo contexto, a coletânea organizada por Erdmann et al. (1990)Erdmann, E., Forst, R., & Honneth, A. (1990). Ethos der moderne: Foucaults Kritik der Aufklärung. Campus Verlag., contém ensaios que tratam da crítica foucaultiana ao esclarecimento moderno, sendo que alguns destes ensaios se referem, como não poderia ser diferente, a própria crítica habermasiana à interpretação que Foucault faz do “ethos moderno”.
  • 10
    Esta postura de espanto originário Foucault vincula, na primeira hora da aula de janeiro de 1982 do curso A hermenêutica do sujeito, ao cuidado de si, concebendo-o como princípio de inquietação permanente (Foucault, 2004Foucault, M. (2004). A hermenêutica do sujeito. Martins Fontes.). Ora, é precisamente essa “inquietação permanente” que marca a postura ética indispensável que o sujeito precisa ter consigo mesmo para poder governar os outros.
  • 11
    A noção de crítica como autocrítica depende, obviamente, de uma noção apropriada de razão que possibilite o exercício autocrítico pretendido. Sobre este ponto, ver a problematização oferecida por Schnädelbach (2007)Schnädelbach, H. (2007). Vernunft. Philip Reclam Jun..
  • 12
    É preciso considerar que a interpretação de Butler sobre Habermas é, neste ensaio, muito esquemática e rápida, não se atendo ao problema nos moldes como Habermas o trata em suas obras ético-filosóficas fundamentais. Certamente, a leitura cuidadosa de tais obras ofereceria contra-argumentos importantes à objeção levantada por Butler.
  • 13
    Este problema pode ser rastreado em A hermenêutica do sujeito, curso proferido no Collége de France em 1982, quando Foucault busca reaver a noção de “cuidado de si” que ficou secundarizada pela tradição do “conhece-te a ti mesmo”. Neste sentido, seu esforço de justificar na moral antiga, greco-romana, a passagem do logos ao éthos pode ser vista, de certa forma, como sua busca pela “estilização da moralidade”, ou seja, pela tékhne toû bíou (arte de viver). Foucault esclarece esse ponto em uma passagem lapidar d’A hermenêutica do sujeito: “Fazer da própria vida objeto de uma tékhne, portanto, fazer da própria vida uma obra – obra que (como deve ser tudo o que é produzido por uma boa tékhne, uma tékhne razoável) seja bela e boa – implica necessariamente a liberdade e a escolha daquele que utiliza sua tékhne” (Foucault, 2004Foucault, M. (2004). A hermenêutica do sujeito. Martins Fontes., p. 513). Deste modo, e aí reside uma diferença importante em relação ao enfoque especificamente epistemológico, fazer da vida uma obra bela e boa é, como estilização da existência, a maneira mais apropriada de se levar a sério o problema da liberdade da ação humana. Neste sentido, já na conferência de 1978 Foucault concebe a crítica como a dimensão mais apropriada da liberdade humana para dar conta do problema da subjetivação e, por isso, sua insistência em vincular a crítica à virtude.
  • 14
    Foucault investiga, pormenorizadamente, as práticas de si na tradição antiga greco-romana, nos últimos cursos proferidos no Collège de France, especialmente, n’ A hermenêutica do sujeito. Cabe destaque especial entre as práticas, para a escuta, exame de consciência, leitura, escrita e meditação.
  • 15
    No curso O governo de si e dos outros a ontologia do presente ganha singularidade própria na medida em que ela é justificada com base na raiz que a Aufklärung kantiana herda da parresía greco-romana. Ou seja, a herança parresiástica antiga da Aufklärung kantiana se torna referência indispensável para justificar o pensamento crítico da atualidade, o qual significa, ao mesmo tempo, a ontologia de nós mesmos. Por isso, o nexo entre parresía e Aufklärung se torna decisivo para pensar a relação umbilical entre ontologia da atualidade e ontologia de nós mesmos (Dalbosco et al., 2022Dalbosco, C. A., Rossetto, M. da S., Dutra, D. J. V., & Bertotto, C. (2022). Aufklärung parresiástica como governo democrático de si mesmo. Educação & Realidade, 47, e118193.).
  • 16
    Este é, como sabemos, o núcleo ético-político do curso O governo de si e dos outros, ministrado no Collège de France durante os anos de 1982 e 1983 (Foucault, 2013Foucault, M. (2013). O governo de si e dos outros. Martins Fontes.).
  • 17
    O nexo entre crítica e resistência é um tema nuclear da própria concepção da crítica como virtude. Considerando que não podemos enfrentar de maneira detalhada este tema aqui, remetemos o leitor para o ensaio de Duarte e Cesar (2019)Duarte, A., & Cesar, M. R. A. (2019). Crítica e coalizão: repensar a resistência com Foucault e Butler. Revista de Filosofia Aurora, 31(52), 32-50.. A própria Butler (2018)Butler, J. (2018). A vida psíquica do poder: Teorias da sujeição. Autêntica. trata de maneira mais sistemática o problema da resistência e sua relação com a sujeição e a ressignificação. Uma outra abordagem muito oportuna e inspirada em Foucault a esse respeito pode ser encontrada em Gros (2018)Gros, F. (2018). Desobedecer. Ubu..
  • 18
    É interessante notar que o emprego da expressão “arte” no contexto da conferência de 1978 é um indicativo claro de que Foucault já está na pista certa da tékhne toû bíou (arte de viver) dos últimos cursos ministrados no Collège de France (Foucault, 2004Foucault, M. (2004). A hermenêutica do sujeito. Martins Fontes., 2011, 2013Butler, J. (2013). O que é a crítica?: Um ensaio sobre a virtude de Foucault. Cadernos de Ética e Filosofia Política, 22, 159-179.), sendo que é tal arte que o permitirá pensar o nexo entre crítica e virtude de maneira mais consistente e abrangente. Ou seja, as diferentes práticas de si possibilitadas pela tékhne toû bíou dão concretude cada vez mais abrangente à “arte inservil e indócil”.
  • 19
    Embora Butler (2013)Butler, J. (2013). O que é a crítica?: Um ensaio sobre a virtude de Foucault. Cadernos de Ética e Filosofia Política, 22, 159-179. não esclareça em detalhes no ensaio em análise, o que significa “precarização ontológica”, deixa a entender que tal expressão se refere -se à ausência de liberdade provocada pelo nexo estreito entre poder e racionalidade (técnico-instrumental). Por isso é que se torna importante, neste contexto, recorrer ao sentido mais amplo de razão, que brota da dimensão ético-estética da condição humana, para “devolver” ao próprio sujeito a liberdade como sua genuína possibilidade ontológica. Ora, é tendo em vista precisamente este problema filosófico fundamental que Foucault compreende a tékhne toû bio como núcleo constitutivo das práticas de si entendidas propriamente enquanto exercícios de liberdade.
  • 20
    De outra parte, em seu livro Vida Precária Butler toma a noção de “precariedade” no sentido político, para compreender nossa sociabilidade mediante as dimensões frágeis e necessárias de nossa própria interdependência (Butler, 2022Butler, J. (2022). Vida precária: Os poderes do luto e da violência. Autêntica.).
  • 21
    Ao conceber a formação como autoformação e colocá-la na base da crítica como virtude, Butler retoma um tema clássico da Bildung alemã. Para uma interpretação atual deste problema, deixando-se mover pela provocação “O que significa ser um sujeito bem formado?”, ver o ensaio de Bieri (2012)Bieri, P. (2012). Wie wäre es, gebildet zu sei? In H. Astedt (Hrsg.), Was ist bildung?: Eine textantologie (pp. 1-7). Reclam..

Referências

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  • Butler, J. (2018). A vida psíquica do poder: Teorias da sujeição Autêntica.
  • Butler, J. (2022). Vida precária: Os poderes do luto e da violência Autêntica.
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Editor responsável: Silvio Gallo https://orcid.org/0000-0003-2221-5160

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    31 Maio 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    12 Dez 2022
  • Revisado
    27 Jul 2023
  • Aceito
    19 Set 2023
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