Open-access Família e mulheres no povoamento do antigo planalto paulista

RESENHAS

Família e mulheres no povoamento do antigo planalto paulista

Maria Lucília Viveiros Araújo

Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da USP

Famílias, mulheres e povoamento: São Paulo, século XVII.

SAMARA, Eni de Mesquita.

Bauru, São Paulo: EDUSC, 2003.

Eni de Mesquita Samara é professora titular do Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, atual diretora do Museu Paulista da USP e presidente da ANPUH.

Desde sua tese de doutorado, A família na sociedade paulista do século XIX,1 ela tem investigado a família paulista e brasileira em seus diferentes momentos. Nessa publicação volta sua atenção para os primeiros anos da colonização paulista o século XVII , a mesma época da obra de José de Alcântara Machado de Oliveira Vida e morte do bandeirante.2

O livro de Samara aborda temas consagrados pela Nova História:3 a família e as mulheres. A primeira parte da obra trata da família e a segunda, do papel das mulheres no povoamento paulista. O conteúdo é apresentado em oito capítulos sintéticos e parágrafos curtos. Contém, ainda, duas gravuras do século XIX, de Jean-Baptiste Debret, uma indicativa de passeio em família e a outra sobre a vestimenta feminina, assim como quatro gravuras idealizadas apresentando as vestimentas da época, extraídas do trabalho de Belmonte No tempo dos bandeirantes.4

Ele se dirige tanto ao especialista da História Cultural quanto ao professor de nível médio ou superior do curso de História.

De início, é reapresentada a discussão sobre a família colonial brasileira, tendo por baliza o clássico de Gilberto Freyre Casa-grande & senzala5 que consagrou o conceito de família extensiva e patriarcal. A seguir, a autora analisa os autores da primeira fase de revisão da temática nos anos 1950 e 1960, culminando, nos anos 1970, com Eni M. Samara, 6 Iraci del Nero da Costa, 7 Elizabeth Kuznesof,8 Maria Odila Dias 9 e outros que indicaram diferentes situações de famílias particularmente no Sul e no Sudeste do país. Nos núcleos urbanos, por exemplo, a família extensa era minoria, enquanto as famílias chefiadas por mulheres representavam um número considerável. Essa revisão historiográfica não é exaustiva em vista da ausência da tese de Maria Luiza Marcílio,10 pioneira na apresentação de dados demográficos da população paulista na passagem do século XVIII para o XIX, que demonstrou coexistir vários tipos de família em São Paulo.

A historiadora destaca ainda que a produção historiográfica mais recente tem se preocupado em estabelecer paralelos com as organizações familiares de outras regiões. Por exemplo, Alida Metcalf11 localizou em Santana de Parnaíba arranjos familiares das regiões de fronteira semelhantes aos arranjos das áreas de colonização na América do Norte e da América Latina.

A maioria das obras utilizadas na reflexão do modelo de família patriarcal brasileira refere-se ao século XVIII e, principalmente, ao XIX, haja vista a carência de pesquisas sobre a história brasileira dos primeiros anos.

O capítulo três "Família, riqueza e poder na São Paulo colonial" caracteriza a família da elite paulista do Seiscentos. Tanto nas áreas exportadoras quanto naquelas ocupadas com o abastecimento interno, a terra era privilégio; portanto, estava concentrada em poucas famílias que representavam a "nobreza colonial". A posse da terra e de escravos significava prestígio e poder, de forma que as alianças matrimoniais entre a elite garantiam a continuidade desse modelo.

Nos prágrafos seguintes, passamos a sentir falta das informações sobre as famílias mais humildes. Entretanto, esse subtema é deixado para ser desenvolvido em futuras monografias, pois o trabalho concentra-se na análise historiográfica.

Por fim, a autora esclarece ser impossível conceber um padrão de família colonial brasileira, pois ocorreram diferenças ao longo do tempo, além das diferenças regionais, de raça e de classe que dificultam a construção de um conceito único de família.

Disserta, a seguir, sobre as mulheres dos primeiros séculos. A história das mulheres teria se firmado como um desdobramento dos estudos da família. A caracterização do papel social das mulheres começou com as análises das mulheres chefes de grupos familiares. O folclore e a história oral também descreviam mulheres fortes que eram protetoras do lar na época dos bandeirantes. Acrescida do fato de que a população masculina dessa época vivia em constante movimento, essa situação teria delegado às mulheres viúvas ou de maridos ausentes a direção e o provimento da casa.

Credita à falta das fontes históricas o ineditismo do tema. E contra-argumenta que, já que a família e as mulheres estão quase ausentes na documentação dos primeiros séculos da colônia, os testamentos e os inventários post-mortem podem se transformar em fontes privilegiadas para essa inclusão e análise.

Por essa razão, Alida Metcalf12 e Muriel Nazzari13 selecionaram as partilhas dos inventários post-mortem a fim de compreender a participação das mulheres da colônia na vida social. Na partilha constavam as informações sobre os dotes e adiantamentos recebidos pelos filhos, assim como a distribuição da terça estipulada no testamento. A análise dessa documentação revelou, para Nazzari, o privilegiamento das filhas através dos dotes e das terças legadas pelos pais de Santana de Parnaíba. Acrescenta, ainda, que Charles Boxer14 localizou algumas mulheres mais poderosas do que os homens nas colônias ibéricas.

Eni Samara ilustra os diversos capítulos com casos de mulheres gerenciadoras dos seus bens: por exemplo, a rebelde Maria da Anunciação, casada com Antonio Francisco Baruel, que deixou com o irmão a administração dos seus bens; ou as viúvas Lucrécia Leme e Catharina Paes, incumbidas pelos falecidos da total responsabilidade pelo espólio.

E conclui que

[...] essa História não pode ser considerada marginal, um adendo ou mesmo um suplemento à parte, mas sim uma História mais próxima da realidade em que vivemos no passado e que hoje é analisada na sua complexidade de variáveis e especialmente com uma visão inovadora e multidisciplinar (p. 90).

O livro cumpre seus objetivos, pois nos apresenta, em linguagem clara e concisa, o debate atual sobre o papel da família e das mulheres nos primeiros séculos das capitanias paulistas. As referências bibliográficas coincidem com as obras necessárias para um curso de graduação ou pós-graduação sobre o tema. Isso porque as abordagens nos diversos capítulos foram "problemáticas instigantes e foram tratadas originalmente como aulas nos concursos de Livre-Docência e titulatura que realizei no Departamento de História" da Universidade de São Paulo (p. 8).

Notas

Referências bibliográficas

ARIÈS, Philippe. L'Enfant et la vie familiale sous l'Ancien Régime. Paris: Seuil, 1973.

BELMONTE. No tempo dos bandeirantes. São Paulo: Gráfica da Prefeitura, 1939. 310 p.

BOXER, Charles R. Mary and Misogyny: Women in Iberian Expansion Overseas, 14151815, Some Facts, Fancies, and Personalities. London: Duckworth, 1975. 142 p.

CARDOSO, Ciro Flamarion; VAINFAS, Ronaldo (Orgs.). Domínios da história: ensaios de teoria e metodologia. Rio de Janeiro: Campus, 1997. 508 p.

COSTA, Iraci del Nero da. "A estrutura familiar e domiciliária em Vila Rica no alvorecer do século XIX". Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, USP, São Paulo, v. 19, p. 17-34, 1977.

DEBRET, Jean Baptiste (1768-1848). Viagem pitoresca e histórica ao Brasil. Paris: R. de Castro Maya, 1954. 23 p. 100 plates.

DIAS, Maria Odila da Silva. Anna Gertrudes de Jesus, mulher da terra. 1982. Tese (Livre Docência em História) Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo.

FREYRE, Gilberto. Casa-grande & senzala: formação da familia brasleira sob o regimen de economia patriarchal. Rio de Janeiro: Maia & Schmidt, 1933. 517 p.

KUZNESOF, Elizabeth Anne. Household Economy and Urban Development: São Paulo, 1765 to 1836. Boulder: Westview Press, 1986. 216 p.

LE GOFF, Jacques; NORA, Pierre (Orgs.). História: novos problemas. 4. ed. Tradução: Theo Santiago. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1995. 193 p.

MARCÍLIO, Maria Luiza. A cidade de São Paulo: povoamento e população, 1750-1850, com base nos registros paroquiais e nos resenceamentos antigos. Tradução da autora da tese de 1968. São Paulo: Pioneira/EDUSP, 1974. 220 p.

METCALF, Alida. Family and Frontier in Colonial Brazil Santana de Paranaíba 15801822. Berkeley: University of California Press, 1992. 280 p.

NAZZARI, Muriel. Disappearance of the Dowry: Women, Families and Social Change in São Paulo, Brazil (16001990). Stanford: Stanford University Press, 1991. 245 p.

OLIVEIRA, José de Alcântara Machado de. Vida e morte do bandeirante. São Paulo: Martins, 1943. 236 p.

SAMARA, Eni de Mesquita. A família na sociedade paulista do século XIX (18001860). 1980. Tese (Doutorado em História) Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo.

  • 1
    SAMARA, 1980.
  • 2
    Oliveira, 1943.
  • 3
    Eni M. Samara ressaltou na sua tese de doutorado que a obra de Philippe Ariès
    L'Enfant et la vie familiale sous l'Ancien Régime (ARIÈS, 1973) serviu-lhe de apoio metodológico e conceitual para aquela pesquisa. Sobre os novos temas tratados pela História, ver Jacques Le Goff e Pierre Nora, 1995. Para as novas abordagens desenvolvidas pela historiografia brasileira, ver Ciro Cardoso e Ronaldo Vainfas, 1997
  • 4
    Samara, 1980, p. 66, 67 e 69. As gravuras de Debret, 1954, são representações da época em que o artista visitou o Brasil, no início do século XIX, sendo editadas entre 1834 e 1839; por outro lado, as gravuras de Belmonte, 1939, foram criadas no século XX para ilustrar os livros sobre o passado.
  • 5
    Freyre, 1933.
  • 6
    Samara, 1980.
  • 7
    Costa, 1977.
  • 8
    Kuznesof, 1986.
  • 9
    Dias, 1982.
  • 10
    Marcílio, 1974.
  • 11
    Metcalf, 1992.
  • 12
    Metcalf, 1992.
  • 13
    Nazzari, 1991.
  • 14
    Boxer, 1975.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      04 Maio 2006
    • Data do Fascículo
      Dez 2005
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