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Quem pode resistir a Lara Croft? Você?

Who can resist Lara Croft? You?

Resumos

Este artigo discute como o jogo eletrônico Tomb Raiderconstrói processos de subjetivação em relação a gênero e sexualidade. Para desenvolver essa discussão, duas questões foram centrais: quem esse jogo imagina que 'você' seja? Quem esse jogo propõe que 'você' seja? Ambas foram construídas com base em teorizações foucaultianas sobre os processos de subjetivação, conjuntamente com a noção de "modo de endereçamento" desenvolvido por Elizabeth Ellsworth e algumas discussões sobre gênero e sexualidade. Pautando-se nisso, buscou-se mostrar como marcas de gênero e sexualidade, culturalmente construídas, são empregadas nas elaborações da personagem central do jogo: Lara Croft. Contudo, conclui-se que tais marcas não configuram escolhas entre possíveis, mas são criações e invenções, tanto por parte dos elaboradores quanto pelos jogadores.

gênero; modo de endereçamento; processos de subjetivação; relações de poder; sexualidade


This article discusses how the electronic game Tomb Raider constructs processes of subjectivation in relation to gender and sexuality. To develop this argument, two main questions were taken: Who does this game imagine 'you' are? Who does this game suggest 'you' to be? Both were built based on the Foucaultian Theory about processes of subjectivation, together with the concept of 'mode of address', developed by Elizabeth Ellsworth and some discussions about gender and sexuality. Based on this, this investigation wants to show how culturally built marks of gender and sexuality are used on elaborations of the main character of the game: Lara Croft. However, in conclusion, those marks cannot set the possible choices up, but are creations and inventions made by the game designers and the players.

Gender; Mode of Address; Processes of Subjectivation; Power Relations; Sexuality


ARTIGOS

Quem pode resistir a Lara Croft? Você?

Who can resist Lara Croft? You?

Cláudio Lúcio Mendes

Universidade de Itaúna e Centro Universitário UNA

RESUMO

Este artigo discute como o jogo eletrônico Tomb Raiderconstrói processos de subjetivação em relação a gênero e sexualidade. Para desenvolver essa discussão, duas questões foram centrais: quem esse jogo imagina que 'você' seja? Quem esse jogo propõe que 'você' seja? Ambas foram construídas com base em teorizações foucaultianas sobre os processos de subjetivação, conjuntamente com a noção de "modo de endereçamento" desenvolvido por Elizabeth Ellsworth e algumas discussões sobre gênero e sexualidade. Pautando-se nisso, buscou-se mostrar como marcas de gênero e sexualidade, culturalmente construídas, são empregadas nas elaborações da personagem central do jogo: Lara Croft. Contudo, conclui-se que tais marcas não configuram escolhas entre possíveis, mas são criações e invenções, tanto por parte dos elaboradores quanto pelos jogadores.

Palavras-chave: gênero; modo de endereçamento; processos de subjetivação; relações de poder; sexualidade.

ABSTRACT

This article discusses how the electronic game Tomb Raider constructs processes of subjectivation in relation to gender and sexuality. To develop this argument, two main questions were taken: Who does this game imagine 'you' are? Who does this game suggest 'you' to be? Both were built based on the Foucaultian Theory about processes of subjectivation, together with the concept of 'mode of address', developed by Elizabeth Ellsworth and some discussions about gender and sexuality. Based on this, this investigation wants to show how culturally built marks of gender and sexuality are used on elaborations of the main character of the game: Lara Croft. However, in conclusion, those marks cannot set the possible choices up, but are creations and inventions made by the game designers and the players.

Key Words: Gender; Mode of Address; Processes of Subjectivation; Power Relations; Sexuality.

Na série Tomb Raider que "causou uma enorme revolução nos games quando surgiu em 1996, ao provar que mulheres também tinham vez como heroínas em jogos de ação"1 1 Revista INFO GAMES, 2003, p. 22. , investiu-se na montagem da personagem digital Lara Croft, que "conseguiu de imediato agradar tanto ao público masculino, que a considerava atraente, quanto ao feminino, capaz de identificar-se com ela".2 2 Revista INFO GAMES, 2003, p. 22. Partindo do princípio de que ela "conquistou muitos corações pelo mundo inteiro"3 3 Muitos corações de diferentes idades e lugares. Atualmente sujeitos de todas as faixas etárias jogam jogos eletrônicos, em especial aqueles/as com menos de trinta anos. Informações disponíveis em: www.games-in.com.br/dicas/tomb1.htm. Acesso em: 15 mar. 2004. por sua inteligência, ousadia e sensualidade, neste artigo pergunto: Quais são as marcas de construção de tal montagem? Qual a importância estratégica dessas marcas para a construção da personagem?

A montagem de Lara como uma personagem heróica e única, em um mundo em que os heróis são, em sua maioria, masculinos é analisada aqui levando-se em conta trabalhos de Michel Foucault (relativos aos modos de subjetivação) e discussões sobre gênero e sexualidade. Mostro como marcas social e culturalmente colocadas para definir "mulher" são amplamente empregadas na estruturação da personagem. Tal estruturação tem como base uma história pessoal, tecida ao longo da série de jogos Tomb Raider (essa série é composta por sete números),4 4 Para desenvolver as análises presentes neste artigo, levei em conta os softwares de cada um dos números, os paratextos dos jogos, comentários encontrados em revistas ( INFOGAMES, INFO GAMES e CD EXPERT), sites e fóruns especializados em jogos eletrônicos. e um corpo literalmente projetado para seduzir, que sempre esteve em constante "aperfeiçoamento" de jogo para jogo. Analiso, da mesma forma, como a personagem em questão é moldada para que tanto jogadores quanto jogadoras sejam capturados/as e constituídos/as por um campo estratégico.

Além das teorizações foucaultianas, baseio-me também nas problematizações de Elizabeth Ellsworth sobre os "modos de endereçamento". Levo em conta que os jogos, como os filmes, "são feitos para alguém. Eles visam e imaginam determinados públicos".5 5 ELLSWORTH, 2001, p. 13. Esses públicos podem ser aqueles apontados por pesquisas e entrevistas. Mas, além das pesquisas e entrevistas, podem, da mesma forma, ser construídos por técnicas de poder presentes nos jogos. Na organização dos modos de endereçamento como mecanismos de subjetivação é igualmente válido perguntar: Quem esse jogo imagina que 'você' seja? Quem esse jogo propõe que 'você' seja?

Pautado em teorizações foucaultianas e nos empregos que Ellsworth faz de sua noção de poder, não estou interessado em analisar como os jogos emitem – por meio de suas imagens, seus sons e suas narrativas discursos, ideologias e interesses. Também não intenciono investigar como os sujeitos-jogadores fazem a recepção dos jogos – pois existem tantas recepções quanto o número de jogadores.

Neste trabalho, tendo como eixo analítico as perguntas de inspiração foucaultianas (Quais são as marcas de construção de tal montagem? Qual a importância estratégica dessas marcas para a construção da personagem?) e aquelas inspiradas no trabalho de Ellsworth (Quem esse jogo imagina que 'você' seja? Quem esse jogo propõe que 'você' seja?), compreendo que os jogos eletrônicos são constituídos em uma relação complexa entre os elaboradores, os jogadores e os empregos que ambos fazem dos jogos.

Partindo dessas perguntas, considero que o jogador jamais é somente e completamente aquele que está imaginado ou proposto nos jogos (daí a emissão, neste trabalho, não ter uso metodológico). Não perco de vista, com isso, que nenhum discurso poderia abordar a todos da mesma forma e ao mesmo tempo (daí a recepção, neste trabalho, não ter uso metodológico). Ou mesmo que os sujeitos poderiam ser capturados e subjetivados de maneira uniforme: "Não existe, nunca, um único e unificado modo de endereçamento"6 6 ELLSWORTH, 2001, p. 21. em um mesmo jogo, ou um que servisse indistintamente para todos os jogos.

Por um lado, promover diversas formas de endereçamento para o jogador ser capturado "por meio de uma multiplicidade de lugares" acaba sendo "uma necessidade comercial".7 7 ELLSWORTH, 2001, p. 22. Com isso, "podem estar ocorrendo, de forma simultânea, múltiplos modos de endereçamento"8 8 ELLSWORTH, 2001, p. 23. concorrentes ou harmoniosos entre si. Por outro lado, o ser humano vai muito além do que qualquer teorização e do que poderia estar proposto na constituição de qualquer artefato para subjetivá-lo.9 9 Cf. Nikolas ROSE, 2001. Nenhuma teorização e nenhum artefato são onipotentes e onipresentes para englobar todos os sujeitos que se interessam por jogos, e nem identificar os possíveis deslocamentos de subjetividade promovida por jogos. Aqui também, tais deslocamentos são tantos quanto o número de jogadores e jogadoras, sendo literalmente impossível identificá-los fidedignamente.

Proveniências e endereçamentos

A proveniência de Lara foi sendo montada com base em marcas biológicas: mulher, com inteligência e habilidade que 'naturalmente' tinha desde que nasceu. Além dessas proveniências 'naturais', outras de origens familiares e pessoais a levaram a ser o que ela é. Nos diferentes jogos da série, são apresentadas facetas de cada história e de Lara. Em Tomb Raider I, é apenas uma arqueóloga famosa. No segundo número, é descrita como uma eterna aventureira. No terceiro game, é colocada como a "maior estrela do mundo dos jogos".10 10 Caixa de Tomb Raider III. Em Tomb Raider IV, é apresentada uma versão de sua infância. Nos três números seguintes, nenhuma mudança muito radical além de uma 'siliconada' nos seios.

Apoiada em supostas marcas que estruturam a vida de um ser humano, a história pessoal de Lara foi sendo construída e reconstruída em concatenação com a história de cada número da série. Não é por acaso que, "desde sua tenra idade, a exploradora de tumbas já se revela", em Tomb Raider IV, "uma menina de muita personalidade e não se intimida com a voz mórbida e atitude estranha [de seu] professor"11 11 Revista INFOGAMES, s.d., p. 12-13. que a acompanhou em suas primeiras aventuras, ensinando-lhe os primeiros passos para ela se tornar uma arqueóloga.

Essa humanização da personagem digital Lara Croft faz parte da construção de uma proveniência (procedência, fonte, origem) com base em marcas que a caracterizariam como um ser humano, construindo complexos modos de endereçamento. Mas o que significa tal proveniência? "É um tronco de uma raça [...]; é o antigo pertencimento a um grupo – do sangue, da tradição, de ligação entre aqueles da mesma altura ou da mesma baixeza".12 12 FOUCAULT, 1996a, p. 20. Segundo Foucault, apoiado em Nietzsche, essas ligações culturais e sociais são impressas no sujeito e em seu corpo. De um lado, no corpo de Lara Croft; de outro, na forma como a olhamos.

Uma personagem como Lara tem sua história pessoal constituída de forma nada linear, reconstruída por atitudes e posturas da própria personagem. Fazem parte de tal constituição as lutas, os desvios e as articulações que vão compondo e recompondo tal história. Sendo assim, as origens "belas", "superiores" e bem determinadas pela história e pelo sangue, em algumas situações, são reafirmadas. Em outras, negadas. A proveniência é aquilo que nos marca, marca nossos corpos de determinadas formas. A proveniência está em nossos corpos e, de certa maneira, está na subjetividade e no corpo de Lara. Está, em um sentido muito específico, nas visões atualizadas construídas pelos projetistas e por nós mesmos para olhá-la.

Aprendemos com os processos de subjetivação de Foucault que o sujeito é uma invenção dos discursos e de relações de poder-saber historicamente localizados. Que não há nada de universalizante no sujeito: ele não se constitui apenas um sujeito da razão; não se baseia em estruturas totalizantes que o explicariam em qualquer sociedade e em qualquer tempo. Em suma, ele consiste em invenções momentâneas que, em muitos casos, podem ser entendidas por suas proveniências.13 13 Cf. FOUCAULT, 1996a.

Se analisarmos a constituição de Lara por essa perspectiva, é possível observarmos um movimento em dupla direção. Ela foi projetada como um sujeito com história pessoal e familiar desde a infância, tendo casa, dinheiro e domínio de campos de saber diversos, supostamente coisas que qualquer sujeito poderia ter. Contudo – e aí está a outra direção –, a sua história pessoal e aventureira é única e multifacetada. Ela foi projetada para ser "uma musa perfeita!"14 14 Disponível em: www.devir.com.br/rpg/padrao_rpg.php?id_texto=1684. Acesso em: 23 abr. 2004. com habilidades que dificilmente seriam encontradas em um ser não digitalizado. Lara corre, atira, pula, etc., tudo com muita desenvoltura e inteligência. Esteticamente, seu corpo dificilmente encontrará outro à altura para competir.

Essa projeção, em dupla direção, mostra que Lara foi projetada com base em marcas que a identificariam como um ser humano. Entretanto, não é um ser humano qualquer. Lara, como aventureira e arqueóloga, tem uma vida surpreendente, "uma vida de histórias, conhecimentos e habilidades adquiridas com o tempo, que traçam um perfil extremamente real de quem vem a ser considerada a mais perfeita personagem virtual já criada no mundo dos games".15 15 Disponível em: www.garotatombraider.com.br/quem_lara.asp. Acesso em: 23 abr. 2004. Perfeita pelas suas qualidades cognitivas, intelectuais, físicas e corporais, Lara é construída como 'a mulher'.

Contudo, ao longo da série de jogos, "Lara não quis abrir mão de algumas de suas antigas manias". Afinal, ela precisava ser apenas "turbinada", mas não deveria perder as bases unitárias de sua proveniência "humana". Ela continua a "vestir roupas curtas até durante o inverno para mostrar sua silhueta sexy, usar óculos escuros mesmo à noite e exibir-se disparando um par de pistolas semi-automáticas enquanto realiza incríveis movimentos acrobáticos".16 16 Revista INFO GAMES, 2003, p. 23. A construção de nossa personagem leva em conta que somos educados para precisar "de algo que dê fundamento para nossas ações e, então", possamos construir "nossas 'narrativas pessoais', nossas biografias, de uma forma que lhes garanta coerência",17 17 Guacira LOURO, 1999, p. 13-14. para nós mesmos, mas, igualmente, para outros. Ao manter várias marcas subjetivas e corporais de Lara, as estratégias empregadas na sua elaboração são pautadas em modos de subjetivação que fazem seres humanos se entenderem como determinados tipos de sujeitos.

Em outro sentido, porém, várias outras relações de poder estão envolvidas na subjetivação do sujeito para que ele possa ser inovado e inovar-se. Lara (humanizada) não escapa disso. Mesmo com uma base que a torna um tipo de sujeito unificado, ela está sempre em transformação. Em certo momento, sua proveniência tem base nuclear. Em outro, multifacetada. É também nessa tensão que a relação entre a série Tomb Raider e os sujeitos-jogadores vai sendo fabricada.

A relação entre Lara e 'você' (sujeito do endereçamento) vai da constituição da personagem como unificada aos conflitos diversos que a compuseram (como se esses conflitos fizessem parte da composição de qualquer ser humano), passando por várias outras estratégias de captura dos sujeitos-jogadores. Uma dessas estratégias baseia-se em processos em que os sujeitos se transformam em personagens.

Para o jogador transformar-se em sujeito-personagem e atualizar-se18 18 As relações de poder só "existe[m] em ato" (FOUCAULT, 1995, p. 242), que se expressam e se baseiam em formas técnicas e materializadas, fazendo com que o saber possa ser empregado de diversas formas, criando diferentes problemáticas e experiências. Assim, em um sentido, as relações de poder-saber tornam-se fruto de problemáticas e experiências. Em outro sentido, tais relações resultam em técnicas que apresentam diversas possibilidades de experiências e problemáticas, criando processos constantes de virtualização e atualização. Inspirado em Pierre LÉVY, 1998, considero que as relações de poder-saber funcionam como dínamos para os processos de atualização e virtualização que ocorrem por conta da conexão jogador–jogo, fazendo com que ambos estejam sempre em transformações e criações. como jogador, atualizando suas próprias narrativas, é necessário que ele se identifique com a personagem, além de entender as histórias de cada jogo. Ao construir suas narrativas, um quadro de afinidades e empatias precisa ser montado. Tal quadro de endereçamento é fabricado em torno das histórias dos jogos, das filiações à comunidade de sujeitos-jogadores de Tomb Raider, das narrativas que eles constroem. Tudo isso coloca os jogadores em "uma 'posição' no interior das relações e dos interesses de poder, no interior das construções de gênero [...], no interior do saber, para a qual a história"19 19 ELLSWORTH, 2001, p. 15. e uma estética visual do jogo foram elaboradas com o objetivo de capturá-los e subjetivá-los.

Nesse cenário, a resposta construída por uma atualização (em torno da personagem) está pautada em modos de endereçamento dos jogos com o objetivo de continuar a capturar os jogadores. Tal resposta não é uma simples escolha entre possíveis. É criação e invenção, tanto por parte dos elaboradores (que refazem Lara de jogo para jogo) como por parte dos jogadores (que recriam Lara das mais diversas maneiras). Em suma, a relação entre o jogo e 'você' configura-se como efeito de várias relações de poder-saber relativas às elaborações dos jogos e que os jogadores atualizam, para si mesmos e para outros, em constante processo de atualização e virtualização – se entendermos que "virtual [é] aquilo que existe apenas em potência e não em ato, o campo de forças e de problemas que tende a resolver-se em uma atualização".20 20 LÉVY, 1999, p. 47, grifos no texto.

'Você' e Lara Croft

Por meio de várias práticas, o jogador é diretamente chamado a compartilhar das aventuras de Lara: "Venha viver com Lara a maior aventura da série Tomb Raider. Parta em busca de um lendário meteoro com poderes de regenerar a vida". E as surpresas ainda não terminaram! "Desbrave 5 mundos extensos [...]. Acompanhe a intrépida Lara em expedições por selvas tropicais e desertos gelados. [...] Prepare-se para fortes emoções!".21 21 Caixa de Tomb Raider IV. Em suma, viva as mais diversas aventuras!

Essas chamadas dirigidas aos sujeitos-jogadores funcionam como práticas de subjetivação oriundas de técnicas de linguagem, entendidas aqui, também, como estratégias de endereçamento. Para chamar a atenção sobre isso, grifei aqueles verbos das passagens acima que estão conjugados no imperativo afirmativo. Empregar os verbos no imperativo afirmativo é uma técnica para subjetivar o consumidor, muito usada em estratégias de marketing. Todas essas técnicas funcionam como práticas de poder, dirigidas a um jogador participante do jogo que se torna um parceiro de Lara em suas ações.

Muitos discursos em torno de Tomb Raider são organizados para alinhar procedimentos técnicos que exaltam as virtudes morais, éticas, físicas e motoras da personagem. Por meio de técnicas de linguagem, essas virtudes deixam de ser apenas de Lara e passam a ser também de quem joga com ela ('você'). O sujeito-jogador é convencido e convence-se de quanto Lara é especial e quanto ele pode ser especial participando de suas aventuras. Contudo, a relação entre Lara e 'você' não pára por aí, tanto para com os jogadores como para com as jogadoras.

Primeiramente, Lara é um ícone a romper com certo tipo de criação das personagens femininas: frágeis, com poucas habilidades físicas e que sempre precisavam de um herói para salvá-las. Além dessa ruptura, Lara foi elaborada para capturar públicos formados por homens e mulheres. Para um 'você' enquadrado em uma proveniência masculina, estavam endereçadas táticas com base em traços sensuais e, ao mesmo tempo, heróicos. Caberia aos jogadores controlar tão completo ser.

Quando olhamos Lara 'olhos nos olhos', seu ar misterioso sugere que, além de jogarmos, ela quer mais de nós. Ao 'implorar por nossos toques', seu corpo é colocado como irresistível a sujeitos supostamente heterossexuais. Gênero e sexualidade se misturam e se confundem. Tais construções estão orientadas para um sujeito de gênero masculino, que se pressupõe ser heterossexual. Não se leva em conta que "sujeitos masculinos ou femininos podem ser heterossexuais, homossexuais, bissexuais"22 22 LOURO, 1997, p. 27. ou mesmo inventar outras sexualidades.

O exercício de relações de poder se dá por marcas que moldariam uma personagem 'irresistível' aos interesses masculinos e heterossexuais. Com isso, por um lado, o exercício de poder dar-se-ia pelos jogadores que vão controlá-la. Por outro lado, e ao mesmo tempo, o exercício das relações de poder baseia-se em marcas heterossexuais consagradas culturalmente para capturar o 'sexo oposto'. Parece-me que essas marcas dão base para modos de endereçamento orientados a sujeitos-jogadores identificáveis com uma cultura masculina e heterossexual.

Quando, porém, o jogador de gênero masculino transforma-se em personagem, em sentido muito específico, ele estaria assumindo outro gênero que não o seu. Nesse cenário, ver o gênero como um conceito que se remete à construção de "papéis masculinos e femininos",23 23 LOURO, 1997, p. 23-24, grifo no texto. como se determinados padrões fossem, a priori, definidores de como mulheres e homens devem se portar, limitaria muito as análises aqui desenvolvidas. Essa maneira de interpretar a constituição dos gêneros deixaria de fora, em uma investigação, "as múltiplas formas que podem assumir as masculinidades e as feminilidades, como também as complexas redes de poder que [...] constituem hierarquias entre os gêneros".24 24 LOURO, 1997, p. 24.

Aparentemente, enfocar esse tipo de transformação mostra, pelo menos ao se jogar Tomb Raider, que os jogadores estão corporificados em Lara. Eles, em certo sentido, são a personagem. Isso nos mostra que a constituição dicotômica de papéis definidores do que sejam seres masculinos e femininos, por suas próprias lógicas limitantes, está implodindo. Artefatos de entretenimento, mecanismos culturais e várias relações sociais vêm evidenciando que "não existe a mulher [ou o homem], mas várias e diferentes mulheres [e homens] que não são idênticas[os] entre si, que podem ou não ser solidárias[os], cúmplices ou opositoras[es]".25 25 LOURO, 1997, p. 32, grifo no texto. Com isso, desloca-se a definição de ser mulher e de ser homem de algum lugar natural, fazendo com que os papéis fixos sejam cada vez mais criticados como referência para se analisar como mulheres e homens são construídos ou se constroem. Nessa direção, a noção de gênero "enfatiza todo um sistema de relações que pode incluir o sexo, mas não é diretamente determinado pelo sexo".26 26 Joan SCOTT, 1995, p. 76.

Para um 'você' de uma cultura feminina, as mesmas marcas foram usadas para capturar as jogadoras. O uso estratégico, porém, é distinto. Os modos de endereçamento se apoiaram mais em táticas orientadas em fazer com que as mulheres se tornassem Lara. Elas não devem apenas querer jogar com Lara. Elas devem querer ser Lara.

Lara é um modelo de mulher a ser imitado. Ela é colocada como a norma a ser alcançada ou, no mínimo, representada da maneira mais fidedigna possível. Tal desempenho só poderá ser alcançado por 'outra' mulher. Para isso, ao se elaborar Lara como um modelo a ser seguido, buscou-se "erradicar as diferenças entre as mulheres"27 27 Linda NICHOLSON, 2000, p. 33. pela utilidade econômica e política que isso acarreta. A tentativa de apagar as enormes diferenças entre as mulheres está envolvida diretamente com relações de poder (especialmente aquelas relacionadas ao consumo), por meio de mecanismos culturais, em comunidades específicas, com estratégias, de uma forma ou de outra, articuladas. Portanto, não existe 'a' mulher e 'o' corpo feminino, mas sim produções em torno de ambos, que "passam a significar algo específico no interior de culturas específicas".28 28 Dagmar MEYER, 2000, p. 120.

Como venho tentando mostrar ao longo deste artigo, qualquer estratégia articulada em uniformizar como o 'outro' deve ser subjetivado ou subjetivar-se nem sempre tem aceitação tranqüila e harmoniosa. Vários fóruns apresentam 'Laras' que falam de sua vida pessoal, contando sobre suas vivências sexuais,29 29 Disponível em: www.dicasdesexo.com.br/forum/topic.asp?TOPIC_ID=3469. Acesso em: 8 maio 2004. de estudo na pós-graduação30 30 Disponível em: www.livrodevisitas.com.br/ler.cfm?id=82248. Acesso em: 8 maio 2004. e como ela (uma Lara de carne e osso) se veste inspirada na personagem digitalizada.31 31 Disponível em: www.bugigangue.com.br/bugigangue/html/materiais/no_estilo/tombraider_moda/. Acesso em: 8 maio 2004. Na Internet é possível encontrar uma Lara que, ao ser entrevistada, demonstra toda a sua insatisfação com o desempenho da atriz Angelina Jolie nos filmes Tomb Raider:

– " Oi, Lara. O que achou do filme?

– " Engraçado.

– " Como assim? Não gostou?

– " Aquela não sou eu. Eu nem fui consultada sobre isso. Meus pais cuidaram das negociações sobre o filme. Estou chateada.

– " No filme você parece estar sempre num conflito com os personagens masculinos. Você parece não gostar de homens...

– " Eu já disse. Não sou eu. Aquela atriz praticamente me anulou. Não sou eu. Como é o nome dela, mesmo?

– " Angelina Jolie. Você não gostou da atuação dela?

– " Não.

– " Preferia quem no seu papel?

– " Ninguém.

– " Diga um nome.

– " Madonna. Pelo menos é divertida.32 32 Disponível em: www.she.com.br/secoes/ver.asp?id_mat=34&id_mat=22 -1&id=22. Acesso em: 8 maio 2004, grifos no texto.

No mundo da Internet, encontramos várias Laras (que podem ser mulheres ou homens) inspiradas em Lara Croft de Tomb Raider. Essas Laras, de uma forma ou de outra, estão envolvidas em um grande arranjo de estratégias mais ou menos articulado em torno de nossa personagem. Ao olharmos para esse arranjo sob um outro ângulo, observamos outras facetas. Como nas narrativas de filmes, nas histórias em quadrinhos, nos romances, com suas respectivas personagens, a personagem de um jogo "revela-se, não raro, [como um] eixo em torno do qual gira a ação e em função do qual se organiza a economia narrativa".33 33 Carlos REIS e Ana C. M. LOPES, 1988, p. 215. Essa economia estratégica é utilizada por elaboradores dos jogos, mas também pode ser encontrada em sites especializados e de empresas interessadas em vender os produtos Tomb Raider. Ao mesmo tempo e por tudo isso, essa economia estratégica é incorporada ou transgredida pelos/as jogadores/as.

Uma enquete promovida pela Greenleaf, distribuidora da série Tomb Raider no Brasil, tem a seguinte pergunta: "Quem 'você' escolheria para participar do próximo 'Reality Show da Televisão?'". "A musa Lara Croft" ganhou disparada, com 57% do total dos votos. O segundo colocado foi o Vampiro Raziel (sempre em busca de vingança por causa das mutilações que sofreu quando era um ser humano), da série de jogos Legacy Cain, com 20%. O terceiro, o assassino impiedoso Hitman (outro também em busca de vingança pela morte da família e de amigos), da série com o mesmo nome, ficou com 13%. Por último, o musculoso Duke Nukem (uma personagem que nos protege da invasão de alienígenas que viajam pelo tempo, sempre atirando primeiro e perguntando depois), da série Duke Nukem, com 10%.34 34 Disponível em: www.greenleaf.com.br/resenquete.asp. Acesso em: 26 abr. 2004.

Essa enquete (e muitas outras) mostra como Lara é uma personagem que já foi além do mundo dos games. Para muitos jogadores e jogadoras, gamemaníacos em geral e jornalistas especializados, ela tem status de estrela internacional. É tratada como uma personagem de um mundo não apenas silícico, mesmo tendo sua existência intrinsecamente elaborada em um universo digital. Ela extrapolou em muito os softwares, com as ações, situações e aventuras ali encontradas.

Durante toda a trajetória da personagem, insistentemente foram-se criando identificações da figura de Lara tanto com um público masculino como com um feminino. O sucesso com esses públicos fez com que Lara aparecesse em: revistas, vestindo roupas íntimas; comerciais de automóveis, dirigindo um Seat como só ela sabe; shows de rock, dançando com a Banda U2; Hollywood, na pele de Angelina Jolie.

A indústria de automóveis Jeep promoveu o lançamento do Wrangler Sport TR2, um veículo construído para o filme Tomb Raider: the movie. Parece que o objetivo dos executivos da Jeep foi aproveitar que um carro único, produzido para uma 'pessoa especial', pudesse ser consumido por outras 'pessoas especiais', pois fabricaram apenas 75 unidades. A Jeep explora a racionalidade corrente em várias sociedades ocidentais que identificam uma pessoa às "coisas que [...] usa".35 35 Hathyn WOODWARD, 2000, p. 9. Esse mecanismo é um potente modo de endereçamento que se apóia na tática de que 'você é o que consome'.

A atualização das marcas e dos endereçamentos

No mundo dos games, argumenta-se que boa parte do sucesso comercial de Tomb Raider baseia-se na escolha de uma figura feminina como personagem central. Logo depois que esse jogo chegou ao mercado, vários outros de ação e aventura foram lançados, tendo mulheres como heroínas, pois Tomb Raider mostrou que havia mercado também para elas. Fica óbvio que o sucesso de Lara acabou influenciando, em muitos sentidos, o aumento do número de personagens femininas no universo dos jogos eletrônicos.

Revistas e sites apresentam a seguinte problemática em torno desse aumento: a criação de personagens centrais femininas vem contribuindo para a transformação de uma certa lógica masculina e machista por parte dos elaboradores dos jogos. Em especial, a revista CD Expert afirma que o deslocamento da centralidade de personagens masculinas para, em alguns casos, personagens femininas expressa uma 'mudança'. Um exemplo disso ocorre na Core Design (responsável por desenvolver graficamente a série Tomb Raider), que "abriu vagas para a contratação de mulheres. A idéia é aumentar a equipe de 'testers' – avaliadores de games – com profissionais do sexo feminino para diversificar a visão lógica sobre as estratégias do jogo". Já no desenvolvimento de Tomb Raider: Angel of Darkness, uma perspectiva feminina para o jogo foi buscada com a contratação dessas novas trabalhadoras. Até aquele momento o grupo envolvido no projeto estava formado "por 85 profissionais", que se dividiam nas áreas "de design, engenharia, gráficos, animação em 3D e redatores". Desse total, "apenas cinco mulheres" compunham a equipe.36 36 Disponível em: http://www.homenews.com.br/article.php?sid=255. Acesso em: 9 maio 2004.

Todavia, levanto outra problematização: por que o maior número de personagens femininas e a contratação de mulheres expressariam 'transformações' e 'mudanças' em certa lógica masculina e machista? Com certeza, há uma mudança de abordagem de marketing ao empregarem personagens femininas, sim. Imagino também que as empresas, com a contratação de profissionais mulheres, busquem enfocar estratégias de poder concatenadas com racionalidades femininas que não eram discutidas em ambientes profissionais essencialmente masculinos. Mas, para além dessas coisas, o que poderia ser considerado transformação ou mudança?

O que discuto, nesta seção, é o discurso da 'transformação ou mudança' em relação a certa lógica. Tal discurso não é entendido, neste trabalho, como sinônimo de ruptura com aquele que simplesmente mantinha a personagem masculina como central. Como veremos, essa é uma suposta ruptura. O que sites, revistas e, às vezes, aqueles que elaboram os jogos chamam de transformação e mudança é interpretado como maneiras de expressar outras formas de exercer as relações de poder por parte dos envolvidos (elaboradores, projetistas, jornalistas e jogadores), além daquelas descritas nas seções anteriores deste artigo. Os exercícios advindos dessas outras formas configuram respostas às virtualizações criadas em torno dos jogos. São passagens 'suaves', inflexões sutis nas estratégias de subjetivação. Em síntese, atualizações em torno das relações de poder para a conduta da conduta; uma certa faceta da microfísica de poder.37 37 Cf. FOUCAULT, 1996c.

Segundo as mídias acima citadas, as empresas projetistas de games começam a ver as personagens femininas sob outros ângulos. Especialmente nos jogos eletrônicos, as personagens de proveniência feminina – por uma necessidade de mercado – estão sendo apresentadas como "igualmente capazes [às masculinas] de salvar o mundo da ameaça inimiga". Além de habilidades como força, agilidade, velocidade (tudo isso com grande domínio de vários tipos de armas), elas têm "a inteligência a seu favor", usufruindo "da intuição própria do sexo" e com estéticas "visualmente mais agradáveis e estimulantes que os heróis musculosos".38 38 Revista CD EXPERT, s.d., p. 50, grifos no texto.

Nesses casos, observamos que as personagens femininas são constituídas em respostas a limitações culturalmente estabelecidas em torno de personagens masculinas. As estratégias para a montagem das personagens femininas articulam marcas de gênero atribuídas aos homens (força, agilidade, velocidade) com aquelas atribuídas às mulheres (intuição, beleza e graça). Um dos enfoques relacionados à atualização está aí: as personagens femininas são fabricadas com base em marcas híbridas (femininas e masculinas) e as masculinas continuam sendo montadas sob apenas marcas masculinizantes e binárias. Em certo sentido, as personagens femininas são respostas às virtualizações e, igualmente, criam virtualizações a serem respondidas por estratégias dos envolvidos. Estas acabam sendo atualizações em resposta.39 39 Cf. LÉVY, 1998.

Esses mecanismos são encontrados em Lara e também em outras personagens. Muitos jogos empregam personagens femininas que, mesmo tendo algumas marcas de Lara, foram elaboradas para dar base a outros endereçamentos e abarcar públicos que Tomb Raider não daria conta de capturar. Algumas dessas personagens, inclusive, são atualizadas não só com marcas hibridizantes, mas também com base em outras marcas dicotômicas de gênero ou de heteronormatividade. Com isso, os modos de endereçamento em torno dessas personagens, especialmente relacionados às marcas de gênero e sexualidade, são, ao mesmo tempo, únicos e diversos.

De um lado, porém, a 'mistura' de marcas masculinas e femininas em um só corpo (feminino) vem mostrando que, pelo menos em um aspecto comercial, essa mistura encontra respaldo entre sujeitos-jogadores mulheres e homens. Por outro lado, o tipo de argumentação acima descrito, que supostamente tem um ar transgressivo, reafirma marcas de gênero e sexuais relacionadas a aspectos culturais, biológicos e 'naturais'. Parece-me que, por aspectos culturais (e talvez econômicos), não são montadas personagens masculinas com marcas híbridas. Nos vários jogos com os quais tive contato, nenhum deles (repito, nenhum) apresentou personagens masculinas montados sob o discurso da sensibilidade, da preocupação estética pessoal ou cuja masculinidade devesse ser reafirmada o tempo todo. No universo dos games, como em vários outros, marcas para identificar o que seja "masculinidades" e "homem" são pouco ou nada problematizadas.

Os elaboradores de Tomb Raider não escapam de tudo isso. Lara, mesmo ocupando um lugar central no jogo, tem marcas de sensualidade, com um misto de 'dotes físicos invejáveis'. A sensualidade de Lara fica evidenciada em duas imagens encontradas no manual de Tomb Raider IV. Na contracapa interna, temos Lara de topless, com um dos braços na frente dos seios, deitada, tranqüila e alegremente tomando sol em uma praia.

Na mesma contracapa, em sua face externa, Lara aparece, da cintura para cima, sem nenhuma roupa. Nessa imagem, seus seios só não são mostrados por um jogo de luz e escuridão, juntamente com a posição dos braços. Os movimentos de construção de outras personagens acabaram por influenciar a reconstrução de Lara, pois, antes do número IV da série, não se encontra em seus manuais ou em outro paratexto alguma imagem explícita da personagem em poses 'sensuais'.

Esse movimento, que se baseia em mecanismos que reproduzem figuras femininas (mas com habilidades físicas culturalmente atribuídas aos homens), não é exclusividade dos elaboradores em geral e nem dos projetistas de Lara. Algumas revistas e sites – ao discutirem a presença de personagens femininas, com suas histórias pessoais praticamente sendo os temas geradores das histórias e das narrativas dos jogos – não deixam de apresentá-las com algum tipo de proveniência unitária que carrega também atualizações relativas às marcas culturalmente identificadas para mulheres e para homens. Revistas e sites especializados simplesmente não promovem problematizações sobre essas marcas empregadas pela indústria dos games.

No entanto, essa posição é questionada em alguns fóruns. Lara, em muitos sites na Internet, tem sua suposta heterossexualidade colocada em dúvida, especialmente quando sua imagem é atrelada à da atriz Angelina Jolie:

– " Lara Croft é lésbica? Lara é bissexual?

– " Lésbica ela não é... [...] é bi!

– " Lara e Angie [Angelina] são bissexuais! Claro, tá na cara. Adoro ver ela... Aquela face maravilhosa e aquele corpo esquenta[m] até defunto!!! (Camila).

– " Tesão puro!!!!

– " Fiquei muito excitada ao ver ela [Angelina] na pele de Lara... Aquela boca carnuda e os lindos olhos azuis... Ahhhhh!!!

– " Ps: sou hetero, mas a Lara enlouquece qualquer um(a) (Patty).

– " Claro!!!!!!!!!!

– " Claro que é. Cara aquela garota é tudo, a Angie [no papel de Lara]. Aquela boca é linda [...]. Ela tem o corpo mais lindo do mundo. Acho que o sonho de todas as garotas é ter ela nos seus braços, todinha (Clara).40 40 Disponível em: http://forum.ubbi.com.br/topic.asp?topic_id=1823&pagina=1&id_partner=1. Acesso em: 9 maio 2004.

Observo, nos fóruns de discussão, que as personagens femininas estão sendo atualizadas por diversos sujeitos (na passagem acima, todos de nomes virtuais femininos). Tais atualizações, mesmo tendo como base marcas e modos de endereçamento construídos pelos jogos, vão além desses e também das discussões de algumas revistas e sites. Nessa direção, como vimos, encontramos na Internet leituras diversas em termos de gênero e sexualidade das personagens de jogos eletrônicos, sintetizando como são amplas, diversas e perigosas as relações entre os jogos e os jogadores.

Neste artigo – apoiado nas análises das relações de poder e das teorizações sobre gênero e sexualidade –, assumo, da mesma forma, que gênero e sexualidade são conceitos distintos, mas altamente relacionados. As maneiras como os diferentes sujeitos praticam suas vivências sexuais (com outros sujeitos masculinos ou femininos; com os dois ao mesmo tempo; com ora um, ora outro; sozinhos), mesmo estando tais vivências relacionadas com as construções de gênero, elas não são determinantes para definir seus gêneros, ou vice-versa.

É possível afirmar que os modos de endereçamento, baseados em uma proveniência de Lara como ser humano, obtêm sucesso entre os sujeitos-jogadores. A montagem de Lara humanizada não mostrou ser problemática. Pelo contrário, especialmente porque parece ser uma estratégia comum na elaboração de diversas personagens. Talvez se observarmos outros artefatos, como revistas em quadrinhos, desenhos animados ou, mesmo, jogos que trabalham com personagens, a humanização delas é comum e muito utilizada em modos de endereçamento.

Outras marcas de gênero e sexualidade, contudo, são muito mais contestadas e atualizadas. Os modos de endereçamento, pautados em questões de gênero e sexualidade, mesmo obtendo sucesso em capturar vários sujeitos-jogadores, são problematizados, questionados e colocados em xeque pelas limitações que carregam para capturar a todos. Mas a luta pela constituição de modos de subjetivação não termina. A indústria dos games absorve algumas das críticas sobre como vem empregando as imagens femininas e a definição de proveniências e marcas de gênero e sexuais, propondo, assim, novas personagens. Essas, porém, podem ser igualmente problematizadas e atualizadas... "E a batalha continua".41 41 FOUCAULT, 1996b, p. 146.

Recebido em fevereiro de 2007 e aceito para publicação em agosto de 2007

  • CD EXPERT, ano 6, n. 54, s.d.
  • ELLSWORTH, Elizabeth. "Modo de endereçamento: uma coisa de cinema; uma coisa de educação também". In: SILVA, Tomaz T. (Org.). Nunca fomos humanos: metamorfoses da subjetividade contemporânea Belo Horizonte: Autêntica, 2001. p. 7-76.
  • FOUCAULT, Michel. "Michel Foucault entrevistado por Hubert L. Dreyfus e Paul Rabinow". In: DREYFUS, H.; RABINOW, P. (Orgs.). Michel Foucault: uma trajetória filosófica Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995. p. 251-278.
  • ______. "Nietzsche, a genealogia e a história". In: MACHADO, Roberto (Org.). Microfísica do poder Rio de Janeiro: Graal, 1996a. p. 15-37.
  • ______. "Poder-corpo". In: MACHADO, Roberto (Org.). Microfísica do poder Rio de Janeiro: Graal, 1996b. p. 145-152.
  • ______. "Soberania e disciplina". In: MACHADO, Roberto (Org.). Microfísica do poder Rio de Janeiro: Graal, 1996c. p. 179-191.
  • INFO GAMES, n. 1, fev. 2003.
  • INFOGAMES, ano 1, n. 1, s.d.
  • LÉVY, Pierre. O que é o virtual São Paulo: Editora 34, 1998.
  • ______. Cibercultura São Paulo: Editora 34, 1999.
  • LOURO, Guacira L. Gênero, sexualidade e educação Petrópolis: Vozes, 1997.
  • ______. "Pedagogias da sexualidade". In: ______. O corpo educado Belo Horizonte: Autêntica, 1999. p. 7-34.
  • MEYER, Dagmar E. "As mamas como constituintes da maternidade: uma história do passado?" Educação & Realidade, v. 25, n. 2, p. 117-133, jan./jul. 2000.
  • NICHOLSON, Linda. "Interpretando o gênero". Revista Estudos Feministas, v. 9, n. 2, p. 9-40, 2000.
  • REIS, Carlos; LOPES, Ana C. M. Dicionário de teoria da narrativa São Paulo: Ática, 1988.
  • ROSE, Nikolas. "Como fazer a história do eu". Educação & Realidade, v. 26, n. 1, p. 33-57, jan./jul. 2001.
  • SCOTT, Joan. "Gênero: uma categoria útil de análise histórica". Educação & Realidade, v. 20, n. 2, p. 71-100, jul./dez. 1995.
  • WOODWARD, Hathyn. "Identidade e diferença: uma introdução teórica e conceitual". In: SILVA, Tomaz T. (Org.). Identidade e diferença Petrópolis: Vozes, 2000. p. 7-72.
  • 1
    Revista
    INFO GAMES, 2003, p. 22.
  • 2
    Revista
    INFO GAMES, 2003, p. 22.
  • 3
    Muitos corações de diferentes idades e lugares. Atualmente sujeitos de todas as faixas etárias jogam jogos eletrônicos, em especial aqueles/as com menos de trinta anos. Informações disponíveis em:
    www.games-in.com.br/dicas/tomb1.htm. Acesso em: 15 mar. 2004.
  • 4
    Para desenvolver as análises presentes neste artigo, levei em conta os softwares de cada um dos números, os paratextos dos jogos, comentários encontrados em revistas (
    INFOGAMES, INFO GAMES e
    CD EXPERT), sites e fóruns especializados em jogos eletrônicos.
  • 5
    ELLSWORTH, 2001, p. 13.
  • 6
    ELLSWORTH, 2001, p. 21.
  • 7
    ELLSWORTH, 2001, p. 22.
  • 8
    ELLSWORTH, 2001, p. 23.
  • 9
    Cf. Nikolas ROSE, 2001.
  • 10
    Caixa de
    Tomb Raider III.
  • 11
    Revista
    INFOGAMES, s.d., p. 12-13.
  • 12
    FOUCAULT, 1996a, p. 20.
  • 13
    Cf. FOUCAULT, 1996a.
  • 14
    Disponível em:
  • 15
    Disponível em:
    www.garotatombraider.com.br/quem_lara.asp. Acesso em: 23 abr. 2004.
  • 16
    Revista
    INFO GAMES, 2003, p. 23.
  • 17
    Guacira LOURO, 1999, p. 13-14.
  • 18
    As relações de poder só "existe[m] em ato" (FOUCAULT, 1995, p. 242), que se expressam e se baseiam em formas técnicas e materializadas, fazendo com que o saber possa ser empregado de diversas formas, criando diferentes problemáticas e experiências. Assim, em um sentido, as relações de poder-saber tornam-se fruto de problemáticas e experiências. Em outro sentido, tais relações resultam em técnicas que apresentam diversas possibilidades de experiências e problemáticas, criando processos constantes de virtualização e atualização. Inspirado em Pierre LÉVY, 1998, considero que as relações de poder-saber funcionam como dínamos para os processos de atualização e virtualização que ocorrem por conta da conexão jogador–jogo, fazendo com que ambos estejam sempre em transformações e criações.
  • 19
    ELLSWORTH, 2001, p. 15.
  • 20
    LÉVY, 1999, p. 47, grifos no texto.
  • 21
    Caixa de
    Tomb Raider IV.
  • 22
    LOURO, 1997, p. 27.
  • 23
    LOURO, 1997, p. 23-24, grifo no texto.
  • 24
    LOURO, 1997, p. 24.
  • 25
    LOURO, 1997, p. 32, grifo no texto.
  • 26
    Joan SCOTT, 1995, p. 76.
  • 27
    Linda NICHOLSON, 2000, p. 33.
  • 28
    Dagmar MEYER, 2000, p. 120.
  • 29
    Disponível em:
  • 30
    Disponível em:
  • 31
    Disponível em:
  • 32
    Disponível em:
    www.she.com.br/secoes/ver.asp?id_mat=34&id_mat=22 -1&id=22. Acesso em: 8 maio 2004, grifos no texto.
  • 33
    Carlos REIS e Ana C. M. LOPES, 1988, p. 215.
  • 34
    Disponível em:
    www.greenleaf.com.br/resenquete.asp. Acesso em: 26 abr. 2004.
  • 35
    Hathyn WOODWARD, 2000, p. 9.
  • 36
    Disponível em:
  • 37
    Cf. FOUCAULT, 1996c.
  • 38
    Revista
    CD EXPERT, s.d., p. 50, grifos no texto.
  • 39
    Cf. LÉVY, 1998.
  • 40
    Disponível em:
  • 41
    FOUCAULT, 1996b, p. 146.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      28 Jul 2008
    • Data do Fascículo
      Abr 2008

    Histórico

    • Aceito
      Ago 2007
    • Recebido
      Fev 2007
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