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Pescadoras: subordinação de gênero e empoderamento

Fisherwomen: gender subordination and empowerment

Resumos

Cresce o número de estudos abordando o setor pesqueiro sob uma perspectiva de gênero, indicando que esse é fundamental para se entender como mulheres e homens participam da pesca e vivenciam os riscos ligados às recentes mudanças do setor. Contudo, políticas setoriais ainda têm dificuldade em incorporar a dimensão de gênero. Este texto evidencia dois argumentos principais. Primeiro, o silêncio sobre a questão feminina articula-se à situação de vulnerabilidade, característica de grande parte das comunidades pesqueiras, em países no "norte" e no "sul". Segundo, movimentos de mulheres pescadoras têm contribuído para questionar o status quo e inscrevê-las em políticas de empoderamento, sobretudo no que toca a espaços e direitos sociais. Ao mesmo tempo, esses movimentos buscam recuperar a capacidade que sistemas locais comunitários de gestão de recursos naturais têm demonstrado de adaptação à complexidade socioambiental e de respeito ao protagonismo feminino. O processo de empoderamento não é linear, mas complexo e marcado por contradições.

pescadoras; gênero; trabalho; reconhecimento; empoderamento


Since the last decade, studies on the fishing sector from a gender perspective have been growing, perceiving the ways gender constructions influence on how women and men work and face the risks linked to the recent changes that have been affecting the fishing activity. However, the related policies remain gender blind. This article discusses two main arguments. First, the silence about the women roles and places in fishing correlates to the vulnerability of many coastal communities in northern and southern countries. Second, fisherwomen movements have contributed to disrupt the status quo and to provide them access to empowerment policies, notably in relation to spaces and social rights. At the same time, their social movements aim to foster the local communities' capacities to manage their common resources, to adapt to social and environmental complexities and to promote gender equity. Empowerment process is complex and contradictory.

Fisherwomen; Gender; Work; Recognition; Empowerment


ARTIGOS

Pescadoras: subordinação de gênero e empoderamento

Fisherwomen: gender subordination and empowerment

Maria Cristina ManeschyI; Deis SiqueiraII; Maria Luzia Miranda ÁlvaresIII

IUniversidade Federal do Pará

IIUniversidade Federal do Pará

IIIUniversidade Federal do Pará

RESUMO

Cresce o número de estudos abordando o setor pesqueiro sob uma perspectiva de gênero, indicando que esse é fundamental para se entender como mulheres e homens participam da pesca e vivenciam os riscos ligados às recentes mudanças do setor. Contudo, políticas setoriais ainda têm dificuldade em incorporar a dimensão de gênero. Este texto evidencia dois argumentos principais. Primeiro, o silêncio sobre a questão feminina articula-se à situação de vulnerabilidade, característica de grande parte das comunidades pesqueiras, em países no "norte" e no "sul". Segundo, movimentos de mulheres pescadoras têm contribuído para questionar o status quo e inscrevê-las em políticas de empoderamento, sobretudo no que toca a espaços e direitos sociais. Ao mesmo tempo, esses movimentos buscam recuperar a capacidade que sistemas locais comunitários de gestão de recursos naturais têm demonstrado de adaptação à complexidade socioambiental e de respeito ao protagonismo feminino. O processo de empoderamento não é linear, mas complexo e marcado por contradições.

Palavras-chave: pescadoras; gênero; trabalho; reconhecimento; empoderamento.

ABSTRACT

Since the last decade, studies on the fishing sector from a gender perspective have been growing, perceiving the ways gender constructions influence on how women and men work and face the risks linked to the recent changes that have been affecting the fishing activity. However, the related policies remain gender blind. This article discusses two main arguments. First, the silence about the women roles and places in fishing correlates to the vulnerability of many coastal communities in northern and southern countries. Second, fisherwomen movements have contributed to disrupt the status quo and to provide them access to empowerment policies, notably in relation to spaces and social rights. At the same time, their social movements aim to foster the local communities' capacities to manage their common resources, to adapt to social and environmental complexities and to promote gender equity. Empowerment process is complex and contradictory.

Key Words: Fisherwomen; Gender; Work; Recognition; Empowerment.

Introdução

Desde a última década do século passado, em meio aos problemas sociais e ambientais que se seguem às pressões acentuadas sobre os estoques pesqueiros de interesse comercial no mundo, um conjunto crescente de estudos passou a abordar o setor pesqueiro sob a ótica de gênero. Esses estudos têm evidenciado múltiplas responsabilidades de mulheres em comunidades ou empreendimentos pesqueiros, direta e indiretamente ligadas às lides de pesca, além daquelas referidas aos cuidados com a reprodução imediata dos grupos domésticos. E, tal como em outros setores, tem-se destacado que as construções sociais de gênero repercutem nos modos pelos quais mulheres e homens participam nas atividades produtivas, vivenciam os riscos decorrentes de padrões históricos e hegemônicos de desenvolvimento, assim como as repercussões das políticas de enfrentamento dos riscos. A esse respeito, Elizabeth Bennet é elucidativa: "Entender como o gênero influencia nos modos como o setor pesqueiro é administrado, é olhar sobre como homens e mulheres interagem com o recurso".1 1 Elizabeth BENNET, 2005, p. 452. Ou seja, não se pode pensar o ambiental senão em termos de socioambiental. E o social, pelo menos no Ocidente na contemporaneidade, tem como marca uma situação pela qual as mulheres, em nome de seu gênero, são colocadas e se colocam em uma hierarquia de valores, submetidas ao poder e à violência física e simbólica. Trata-se de desigualdade de relações de gênero como relações de poder, que se dão no contexto das relações usuais entre os gêneros, conforme argumenta Lia Zanotta Machado.2 2 Lia Zanotta MACHADO, 2010.

Não obstante as investigações, políticas setoriais têm sido incipientes na incorporação da dimensão de gênero. Por sua vez, ao se tratar de comunidades pesqueiras artesanais – também referidas como de "pescadores de pequena escala" –, é preciso considerar que se trata de comunidades onde permanece a articulação das várias dimensões da vida (trabalho, lúdico, religião), enquanto o foco maior das políticas reside nos objetivos de produção em si e de qualidade de vida entendida como geração de renda. Além disso, ainda é baixo o interesse em evidenciar as atividades das mulheres na pesca, o que se reflete na falta de estatísticas. A dinâmica das comunidades costeiras e, portanto, de suas bases de recursos – águas, peixes, florestas adjacentes etc. – depende justamente de uma variedade de atividades, de homens e de mulheres, interligadas de maneira complexa. Seus saberes e fazeres compõem os chamados sistemas locais de apropriação e de gestão dos recursos costeiros. Eles dão sentido, em boa medida, à constituição das comunidades, com suas ligações aos territórios de terra e de mar, e contribuem diante de eventuais necessidades de adaptação às incertezas, às mudanças ecológicas, às oportunidades econômicas, segundo Margaret McKean e Elinor Ostrom.3 3 Margaret McKEAN e Elinor OSTROM, 2001.

Nessa linha, o presente artigo trata das características gerais das atividades de mulheres na pesca em diferentes contextos para então discutir o significado de experiências de organização que elas desenvolveram. As organizações vêm ressaltando suas contribuições ao setor e reivindicam direitos de cidadania para elas e as comunidades onde a maioria se insere. Neste estudo, recorreu-se à literatura de referência, a informações e a análises feitas por entidades de apoio, assim como pelas próprias organizações, em grande parte por consulta on-line. A ênfase maior dos dados é sobre o Brasil, em razão dos estudos das autoras e de suas participações em eventos.

O texto visa, também, apresentar um mapeamento das organizações de mulheres na pesca, de abrangência nacional ou regional, considerando a escassez de dados a respeito. Tal escassez é confirmada no livro Tempos e memória: movimento feminista no Brasil,4 4 Lourdes BANDEIRA e Hildete Pereira de MELO, 010. que traz uma cronologia bem exaustiva de eventos, legislações, normatizações e outros avanços do movimento, de 1822 a 2010. Não indica nenhum evento relativo às pescadoras, ainda que, por exemplo, localize a organização da Rede Feminista Norte e Nordeste de Estudos e Pesquisas sobre a Mulher e Relações de Gênero (Redor) em 1992, o I Encontro Nacional de Mulheres Negras em 1988, o I Congresso Nacional das Trabalhadoras Rurais no ano seguinte. A falta de dados é, ela mesma, indicadora da invisibilidade das pescadoras.

Como um reflexo das mudanças aqui discutidas, foi realizado em setembro de 2010 o IV Simpósio Pernambucano sobre Mulher e Relações de Gênero, com a temática "A participação da mulher na pesca artesanal", que teve a Redor como uma das promotoras.5 5 CARTA DO RECIFE, 2010. Os organizadores foram Fundação Joaquim Nabuco e a organização não governamental Coletivo Internacional de Apoio aos Trabalhadores da Pesca (ICSF).

Gênero, economia e trabalho na pesca

Martha McDonald,6 6 Martha McDONALD, 2005. refletindo em torno de um referencial teórico para análise das relações entre gênero, desenvolvimento e pesca, sintetizou a evolução dos estudos a partir dos anos 1980, indicando que inicialmente esses se preocuparam em dar visibilidade à contribuição das mulheres. Desse esforço inicial resultaram etnografias importantes, primeiramente em países de grande tradição pesqueira no Atlântico Norte. Ressaltam-se a coletânea pioneira de Jane Nadel-Klein e Dona Davis7 7 Jane NADEL-KLEIN e Dona DAVIS, 1988. e, quatro anos depois, um número da revista Anthropologie Maritime, organizado por Aliette Geistoderfer, Isabelle Leblic e Jacqueline Matras-Guin.8 8 Aliette GEISTDOERFER, Isabelle LEBLIC e Jacqueline MATRAS-GUIN, 1992. Os estudos, além de evidenciarem como as mulheres costumam combinar em seu cotidiano diferentes tipos de atividades, atentaram às dimensões culturais e simbólicas que marcam seus espaços e atribuições. Esse é o tema de Dona Davis, Geistdoerfer, Isabelle Leblic e Jacqueline Matras-Guin, Edna Alencar, Maria Angélica Motta-Maués, Lourdes Furtado e Ellen Woortman.9 9 Edna ALENCAR, 1991; DAVIS, 1983; Lourdes G. FURTADO, 1987; GEISTDOERFER, LEBLIC e MATRAS-GUIN, 1992; Maria Angélica MOTTA-MAUÉS, 1994; e Ellen WOORTMAN, 2007. Em sequência, acompanhando a análise de MacDonald, houve a preocupação de investigar e documentar o trabalho não pago das mulheres nos empreendimentos de pesca e, finalmente, sua admissão em esquemas de seguridade social.

Dentre os primeiros estudos no Norte e no Nordeste do Brasil ressaltamos, sem pretensão de exclusividade, Motta-Maués, Maria Cristina Maneschy, Alencar, Denise Cardoso e Maria Luzia Miranda Álvares.10 10 ALENCAR, 1991; Maria Luiza Miranda ÁLVARES, 2001; Denise CARDOSO, 2000; Maria Cristina MANESCHY, 1992; e MOTTA-MAUÉS, 1994. Desde então, sobretudo a partir dos anos 2000, cresce a produção acadêmica nacional e internacional a respeito de mulheres na pesca, em seus vários subsetores.11 11 A consulta à base Web of Sciences, com os termos women and fisheries ( mulheres e pesca), ilustra a tendência. Igualmente a seção "Women in Fisheries" na página do ICSF ( http://wif.icsf.net/) disponibiliza uma bibliografia anotada. Na rubrica "Papéis de mulheres na pesca" encontram-se 79 referências entre artigos científicos, monografias, coletâne-as e artigos em revistas de divulgação. Apenas duas são da década de 1980. Em 2001, a FAO publicou a Bibliografia sobre gênero e pesca (1990-2001) (FAO, 2001). 12 Gabriele DIETRICH, 1997; ICSF, 2012; e Barbara NEIS et al., 2005.

O Quadro 1 sintetiza dados sobre atuação de mulheres. Não é um levantamento exaustivo, evidentemente, e as referências não significam que a atividade seja desenvolvida da mesma maneira ou mesma intensidade em todo o país ou região mencionada. Não deixa dúvidas quanto à diversidade da presença feminina e sugere a validade de pesquisas de cunho comparativo e histórico.


A lista contempla trabalhos remunerados e gratuitos, estes últimos principalmente no interior dos grupos domésticos. A pesca tende a ocorrer em águas próximas. Note-se que ocupar a função de membro de tripulação tem sido observado quando proprietários de barco pesqueiro artesanal levam a bordo a esposa, na condição de tripulante, como medida de economia para compensar rendimentos declinantes na atividade ou despesas ampliadas com licenças e combustível. Cresce na costa atlântica canadense desde a crise que vem afetando as pescarias costeiras, como demonstrou Bonnie McCay.13 13 Bonnie McCAY, 2005.

A última linha do Quadro 1 refere-se a uma função basilar que mulheres assumem, a de gerar uma renda monetária complementar, se possível contínua, pois ganhos oriundos da pesca, via de regra, são instáveis. Essa característica foi salientada por Chandrika Sharma e por Maneschy e Christine Escallier,14 14 Maria Cristina MANESCHY e Christine ESCALLIER, 2002; e Chandrika SHARMA, 2004. dentre outros.

Em suma, os estudos têm mostrado como as mulheres contribuem para a pluriatividade das famílias de pescadores, produzindo para o lar e para o mercado. O fato de compatibilizarem encargos domésticos e geração de renda, enfrentando o peso das representações sociais sobre papéis de gênero, concorre para reforçar os baixos valores monetários de seus trabalhos. E, por conseguinte, para excluí-las do estatuto profissional.

Mas a falta de reconhecimento de seus trabalhos e essas outras questões não exprimem uma miopia própria ao setor pesqueiro, uma disfunção a ser corrigida com a reforma de dispositivos legais ou vigilância na aplicação de direitos existentes. Trata-se de manifestação das relações de gênero, como princípio estruturante da sociedade, como destacaram, por exemplo, Dean Bavington, Brenda Grzetic e Barbara Neis, Heleieth Saffioti, Albertina de Oliveira Costa e Cristina Bruschini, Deis Siqueira e Bandeira.15 15 Dean BAVINGTON, Brenda GRZETIC e Barbara NEIS, 2004; Albertina de Oliveira COSTA e Cristina BRUSCHINI, 1992; Heleieth I. B. SAFFIOTI, 1987; e Deis SIQUEIRA e Lourdes BANDEIRA, 1977.

Analisar os mundos da economia e do trabalho na perspectiva das relações de gênero implica levar em conta que as estratégias dos atores econômicos, assim como as políticas pertinentes, não são indiferentes às construções socioculturais que conformam as experiências laborais das pessoas. Está-se lidando, de fato, com naturalizações (destino dado pela biologia) acerca de papéis e de identidades. E, tal como destacaram Nancy Fraser16 16 Nancy FRASER, 1997. e outros, instituições econômicas possuem sempre uma dimensão cultural, pois elas são atravessadas por significados e normas. A ordem econômica de mercado assenta-se em uma "ordem social de gênero", nas palavras de Fraser, com base em prenoções existentes sobre identidades de mulheres e de homens, especialmente no que diz respeito à divisão sexual do trabalho, dentro e fora da família.

É verdade que, historicamente, os padrões definidores das identidades sofrem alterações. Porém, como argumenta Fraser, nas sociedades contemporâneas o gênero continua sendo um eixo de "injustiça socioeconômica e cultural", pois ainda define a separação entre trabalho produtivo e reprodutivo. Hierarquiza perfis de ocupações conforme sejam exercidas, primordialmente, por mulheres ou por homens, com consequências também hierarquicamente valorizadas em termos de prestígio, remuneração, carreiras, direitos sociais. A economia de mercado capitalista requer um tipo de trabalhador adaptado às exigências da competitividade. E, nesse sentido, tende a premiar quem pode se adequar mais plenamente ao modelo, sejam homens, sejam mulheres. Porém, as desigualdades de gênero, acopladas a outras desigualdades, tais como étnicas, geracionais, de classe, favorecem ainda mais o modelo capitalista, ancorado na apropriação do valor gerado pelos trabalhadores e pelas trabalhadoras, e, logo, incidem na baixa remuneração.

Karl Polany17 17 Karl POLANY, 2000. deu um enfoque peculiar quando apontou como característica do capitalismo a "desimersão" da economia dos contextos concretos de relações sociais, isto é, as redes sociais, as culturas e os ambientes em que as pessoas e as comunidades estão situadas. As decisões sobre produção e regulação econômica foram separadas do conjunto social e concentradas em burocracias estatais, empresariais e organizações profissionais. Esse quadro consolidou a ordem social de gênero na base da economia, na qual cabe em grande parte às mulheres assumir os cuidados. Afinal, são práticas "naturalmente" consideradas femininas, extensão das atividades ligadas à reprodução.

A título de exemplo, cita-se o caso das mulheres pescadoras que alcançaram o reconhecimento legal em vários países. Elas continuam a assumir os cuidados com as pessoas e com as comunidades, duplas jornadas e, por conseguinte, dependência ampliada e obstáculos à participação na vida pública. As relações de gênero contribuem na criação dos espaços e dos tempos da produção, em que agentes desembaraçados de obrigações extraeconômicas podem legitimamente aplicar a racionalidade tout court, a lógica do crescimento e da eficiência, separados, em grande medida, dos tempos e dos espaços da vida privada, da vida comunitária e das sociabilidades de uma maneira geral. De tal modo, não são contabilizados os cuidados, prestados segundo a lógica da dádiva.

Por sua vez, o fato de as mulheres entrarem no mercado de trabalho não altera, por si, a ordem social de gênero. Assim, não se trata apenas de assegurar aquela entrada, como mostraram tantos estudos, mas de repensar a estruturação da economia e da sociedade. Sem isso, mantém-se a difícil compatibilização entre trabalho e os ciclos da vida familiar, a despeito dos avanços nas políticas previdenciárias em muitos contextos. Há que se refletir sobre as políticas de sexo e a simbólica das relações de gênero, que não são a mesma coisa. O fato é que o balanço permanece desigual entre os que têm possibilidade de dedicação maior ao trabalho considerado produtivo e à construção de uma carreira e aqueles que não podem, pois apresentam debilidades ou cuidam de alguém. Ademais, o poder das mulheres (representação política, esferas decisórias no âmbito formal) pode crescer e, simultaneamente, aumentar sua subordinação relativa, pois as lógicas de gênero são múltiplas. Afinal, gênero é a forma primeira de significar as relações de poder, lembrou Joan Scott.18 18 Joan W. SCOTT, 1988. É, também, instrumento simbólico de uma pluralidade de dimensões da vida social. Poder, violência e as outras dimensões afetivas, estéticas, são transversalizadas pela simbólica de gênero.19 19 MACHADO, 2010.

Nessa ótica, insere-se a falta de reconhecimento das atividades de mulheres na pesca, supostamente em razão das características do meio ambiente, tal como se argumenta, que tende a engendrar marcados padrões de divisão sexual do trabalho. Essa é bastante genderizada – "alto-mar é lugar de homem" – assim como também a dádiva é coisa de mulher, "mais generosa". Tal separação articula-se em outras dimensões. Não é neutra. Mulheres sempre trabalharam na pesca. Mas sua identificação social e autoidentificação como pescadoras, trabalhadoras do setor, são recentes no Brasil como em outros países.

Gênero, ambiente, comunidade

O desenvolvimento do setor pesqueiro nas quatro últimas décadas tem testemunhado a redução de capacidades adaptativas às dinâmicas ambientais e crescentemente tem ocorrido em detrimento de comunidades locais. Assim ocorreu com processos de modernização na forma de incentivos a frotas e a instalações de tratamento de pescado de grande porte, tecnologias de maior poder de predação e pouco seletivas e, sobretudo, sistemas centralizados de gerenciamento das pescas, baseados essencialmente nos parâmetros da ciência pesqueira, nos quais os conhecimentos locais não tiveram lugar. Um dos resultados mais conhecidos desse tipo de desenvolvimento foi a extinção comercial do bacalhau na Terra Nova, no Canadá Atlântico, conforme analisaram Cristopher Finlayson e McCay.20 20 Cristopher FINLAYSON e Bonnie McCAY, 1998.

Diante disso, tem-se voltado a atenção à racionalidade de práticas e de saberes locais e tradicionais na apropriação e no uso de recursos naturais. As instituições que muitos grupos forjaram para lidar com os ambientes – águas costeiras, praias, lagos, rios, manguezais – são vistas em inter-relações com esses ambientes, consideradas então como sistemas sociais e ecológicos que coevoluíram, isto é, que se formaram através de influências mútuas ao longo da história dessas relações, conforme análise de Fikret Berkes e Carl Folke e Antônio Carlos Diegues.21 21 Fikret BERKES e Carl FOLKE, 1998; e Antônio Carlos DIEGUES, 2000. Nesse sentido, Folke et al.22 22 FOLKE et al., 2005. cunharam a expressão "sistemas sociais e ecológicos", de modo a realçar a imbricação entre os dois planos, o social e o ambiental.

Numa linha similar, McKean e Ostrom investigaram comunidades em montanhas, florestas e zonas litorâneas que instituíram modos de utilizar e de gerir coletivamente os recursos por longos períodos de tempo, sem interferência de autoridades externas e sem comprometer seriamente sua habilidade de responder às mudanças, ainda que não haja total adaptação, tendo em vista que se trata de sistemas vivos, abertos e sob a ação de fatores em diferentes escalas. Esse é o sentido do conceito de "resiliência". Cumpre também lembrar que as histórias locais são continuamente permeadas, ainda que em graus variados, por sua posição em sistemas sociais e econômicos mais amplos em que se inserem por força da divisão inter-regional, nacional e internacional do trabalho. Ademais, as culturas são dinâmicas, sujeitas a conflitos, transformações, interlocuções com outras culturas. E o mundo se torna crescentemente globalizado ou cosmopolitizado.

Sublinha-se, então, que em comunidades pesqueiras de pequena escala, seja de grupos indígenas, ribeirinhas ou costeiras, enfim, populações tradicionais, as práticas produtivas não se reproduzem em um setor separado da existência. Dá-se uma particular articulação entre trabalho, lúdico, religiosidade, assim como ocorre em outras comunidades camponesas. E, em princípio, essa característica se expressa nas variadas capacidades de adaptar suas práticas às mudanças sociais e ambientais. Por essa razão os chamados saberes ecológicos locais têm sido alvo de atenção na busca de conciliação entre economia e ambiente.

Tem-se destacado, também, a importância da participação dos agentes locais para lidarem com a complexidade dos ecossistemas. Folke et al.23 23 FOLKE et al., 2005. relacionam a alta adaptabilidade de um sistema social-ecológico à "[...] capacidade de os atores reorganizarem o sistema dentro de estados desejados em situações de mudança de condições e eventos perturbadores".24 24 FOLKE et al., 2005, p. 444. Esses autores trazem para o centro da análise o tema do empoderamento e da autonomia local, aspecto que Gabriel N. Rebouças, Ana Carla Filardi e Paulo Freira Vieira25 25 Gabriel Nunes Maia REBOUÇAS, Ana Carla Leão FILARDI e Paulo Freire VIEIRA, 2006. igualmente reforçam. A propósito, Thomas Dietz, Elinor Ostrom e Paul Stern26 26 Thomas DIETZ, Elinor OSTROM e Paul STERN, 2003. mostram que muitos casos de degradação ambiental ocorreram sob a vigência de regimes centralizados de administração dos recursos, que deixaram os usuários e os gestores locais e regionais sem autonomia para agir. Daí deriva o conceito de governança adaptativa no manejo de recursos,27 27 FOLKE et al., 2005. o qual envolve autoridade do nível local na definição e na aplicação de políticas, compartilhamento de poder com o Estado, compartilhamento de saberes entre cientistas e conhecedores locais, segurança de direitos dos moradores e dos usuários diretos dos recursos e instâncias participativas de deliberação.

A eficiência das mulheres tem sido identificada no que toca ao desempenho da criação de elos entre a comunidade e agências governamentais e financeiras, quando elas negociam com essas entidades em nome dos companheiros que passam grande parte do tempo no mar.28 28 Katia FRANGOUDES e Cornelie QUIST, 2005; e SHARMA, 2004. Ademais, tem-se enfatizado, ainda, como fez Keneth Ruddle,29 29 Keneth RUDDLE, 2000. a importância de se apreciarem os conhecimentos ecológicos das mulheres em comunidades pesqueiras, a partir de suas várias formas de lidar com os recursos. No Brasil, Lígia Simonian e Regina Di Ciommo,30 30 Regina Célia DI CIOMMO, 2007; e Ligia Terezinha Lopes SIMONIAN, 2006. dentre outros autores, atentaram a essa dimensão.

No que toca à questão ecológica, há os riscos de exaltação da diferença, como ocorreu na década de 1990, sobretudo na Eco-92, quando se enfatizaram a maior adequação das mulheres à causa ecológica e uma suposta compatibilidade entre essa e a luta das mulheres. Elas estariam mais aptas para retomar um diálogo com a natureza. Não podemos reafirmar o princípio cosmológico binário assentado na velha distinção entre cultura (masculino) e natureza (feminino), ao qual se articulam várias outras oposições, como assinalaram Carol MaddCormack e Marylin Strathern.31 31 Carol MADDCORMACK e Marylin STRATHERN, 1980.

Entretanto, é inegável que a mulher e seu mundo sempre estiveram em particular proximidade com a natureza. Sua vinculação na agricultura, com a coleta de frutas e de plantas, com o aprovisionamento de água, com a criação de animais, com a retirada de matérias-primas e a elaboração de artesanato etc., é ancestral. Assim, é fartamente reconhecida sua contribuição na manipulação de sementes e no conhecimento de plantas medicinais. De todo modo, nas décadas passadas foi sintomático o papel dos movimentos de mulheres e feministas em trazer à tona questões novas, a partir das conferências mundiais, em torno dos propósitos da política de empoderamento, como reflexo da contra-hegemonia aos padrões estabelecidos.32 32 O documento da ONU, Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (ODM), fixou metas para os estados-membros até 2015, propostas nas conferências mundiais dos anos 1990. Incluiu a extinção da extrema pobreza, a promoção da igualdade entre os sexos e o fomento de novas bases do desenvolvimento. Esse movimento de empoderamento, muitas vezes lido como dado e de forma unilateral, é pleno de contradições.

As reivindicações de mulheres por reconhecimento de seus vários papéis – econômicos, sociais, políticos – tendem a significar empoderamento das comunidades no tocante ao controle dos recursos de que dependem. Isso porque tratam de trazer a gestão pesqueira para o nível local, compreendendo que a pesca artesanal, como as demais atividades produtivas não se mantêm por si sós, através dos laços mercantis. Ao contrário, decorrem de um conjunto de funções e de relações, envolvem mulheres e homens, tarefas associadas a saberes diversificados, a sociabilidades e a espaços interacionais específicos.

Porém, em grande parte, esse reconhecimento depende de se explicitarem as desigualdades internas e externas às comunidades. Assim, quando as mulheres se dão conta de sua relevância como agentes econômicos e se constituem em agentes políticos, também criam ou reforçam as identidades de suas comunidades. Entretanto, contraditoriamente, no nível da comunidade tradicional, o espaço público é o espaço dos homens e o doméstico pertence às mulheres. Aquela é claramente dividida em duas coletividades, com normas internas de distribuição de atividades, papéis, funções, direitos, deveres. E no primeiro, dominante, marcado pela representação social e pela fala dos homens, normalmente não se autoatribui a representação do coletivo, do comunitário, como o fazem as mulheres.

Segundo Machado,33 33 MACHADO, 2010. movimentos sociais de algumas populações tradicionais, tais como índios e quilombolas, tendem a enfatizar retoricamente a totalidade como unicidade para representar a diversidade cultural. A defesa do direito das mulheres desses coletivos poderia ser interpretada como contaminante ou "perigosa" para a defesa cultural de cada povo. Afinal, ao se privilegiar a totalidade cultural (todo coerente e homogêneo), as falas masculinas têm sido dominantes. Essa reflexão pode se estender para comunidades de pescadores. A diversidade cultural não pode ser pensada como "[...] expressiva de uma totalidade unitária concebida metaforicamente ao modo de uma 'entidade individual'".34 34 MACHADO, 2010, p. 83.

Assim, concordamos em tomar como princípio a crítica a uma visão unitária e uniformatada de se perceberem as sociabilidades, sejam dentro das fronteiras societárias, sejam culturais. Sociedade e cultura não podem ser metaforizadas como entidades individuais. O foco devem ser as sociabilidades, os espaços interacionais, porque nesses as posições, os lugares dos sujeitos não se equivalem (mesmo que compartilhem valores). Esses estão abertos à concordância, mas também à disputa, ao conflito. Portanto, outro princípio metodológico que nos orienta diz respeito às lógicas de gênero, pensadas como múltiplas. E é fundamental a pergunta de como essas lógicas se articulam. Há que se perguntar ainda: em que medida a militância das mulheres que se envolvem nas referidas lutas políticas distanciam-nas de suas relações e atividades cotidianas? Quais seriam as consequências desse distanciamento para a comunidade?

Reestruturações no setor pesqueiro e as mulheres na pesca

Com a crise dos principais recursos em muitas zonas pesqueiras no mundo, o qual se traduz em indicadores de sobrepesca ou, mesmo, de esgotamento de estoques de interesse comercial,35 35 BAVINGTON, GRZETIC e NEIS, 2004; e DIETZ, OSTROM e STERN, 2003. o setor pesqueiro vem se reestruturando.36 36 A respeito do comprometimento dos estoques, é esclarecedora a matéria "Il faut pêcher moins si l'on veut continuer à pouvoir pêcher": "Le Français Daniel Pauly a révélé la baisse alarmante des stocks de poisson dans le monde" (LE MONDE, 2009, p. 4). Respeitadas as especificidades locais e regionais, há registros de que a indústria pesqueira tornou-se mais móvel; frotas e plantas processadoras se deslocam com mais frequência e amplitude. A flexibilização de relações de trabalho faz parte das estratégias de adaptação de empresas diante de matérias-primas cada vez mais distantes ou escassas. Contratos informais e temporários tornaram-se correntes. Políticas de gestão pesqueira incluem incentivo à redução de frota, tanto artesanal quanto industrial, e limitações ao esforço de pesca, o que pode se dar, por exemplo, pelo estabelecimento de quotas individuais de captura. Em países como Chile, Brasil, Canadá e Índia,37 37 Nalini NAYAK, 2005. expande-se a aquicultura em larga escala, não sem provocar conflitos devido à privatização de zonas costeiras, a exemplo de áreas adjacentes a manguezais, além de agravar a poluição. Acordos multilaterais abrem para frotas e instalações sobrecapitalizadas de países avançando o acesso a novas áreas, notadamente em países cujas economias dependem fortemente dos recursos pesqueiros disponíveis em suas Zonas Econômicas Exclusivas, tal como acontece na África do Oeste, em países como Mauritânia e Costa do Marfim.38 38 CAPE, 2012.

Dentre as repercussões desses processos para as mulheres, vem se acentuando a instabilidade que já caracterizava a atuação feminina no setor, no mais das vezes conjugando-se com precariedade, baixa renda e exclusão de direitos profissionais e sociais. É o que ocorre, por exemplo, quando decréscimos nos volumes de pescado desembarcado ou o deslocamento de plantas processadoras levam à diminuição de postos para mulheres e sua consequente marginalização de benefícios previdenciários que dependem de tempo mínimo de exercício, como tem sido registrado, por exemplo, no Canadá.39 39 McCAY, 2005. O privilégio à exportação de pescado privou mulheres vendedoras em mercados locais de obterem a matéria-prima, inclusive as defumadoras artesanais de pescado em países africanos, conforme analisaram Nalini Nayak, Modesta Medard, Moctar Nech Nedwa,40 40 Modesta MEDARD, 2005; NAYAK, 2005; e Moctar Nech NEDWA, 2010. dentre outras.

Em povoações litorâneas no Norte e no Nordeste do Brasil, as mulheres geralmente tecem redes, beneficiam o pescado, coletam mariscos e algas e pescam nas proximidades, atividades instáveis e descontínuas. Suas comunidades enfrentam, de ordinário, concorrência na ocupação das zonas costeiras, mais acirrada onde o turismo é mais intenso, poluição e impactos de eventos climáticos amplificados devido a desmatamentos e ocupações irregulares. Em suma, o quadro geral aponta que vulnerabilidades vêm se acentuando.

Entretanto, esses processos não se dão em um vácuo de resistências. Assim se verifica, em diferentes países, a emergência da categoria "mulheres na pesca" ou "pescadoras". No Brasil, a Articulação Nacional de Pescadoras é um grande exemplo. É notável em um ramo que, conforme as representações convencionais e hegemônicas, é associado aos pescadores, hábeis e corajosos homens a enfrentar o mar distante e seus perigos. Desse modo, as pescadoras em movimento criam suas próprias versões de empoderamento e conscientizam-se de sua presença objetiva em curso no processo da pesca, desestabilizando noções como as de que são "ajudantes" ou "dependentes"; enfim, de que elas não estão nesse setor em suas próprias capacidades.

Há que assinalar que, em países da Europa Ocidental, associações estão buscando o reconhecimento legal da condição de "esposas" de pescadores (fishermen's wives); como tal, pleiteiam voz e voto em negociações de políticas que incidem sobre suas comunidades de origem, além do direito de representarem os cônjuges nas instâncias deliberativas. A demanda por parte da Rede Europeia de Organizações de Mulheres da Pesca e Aquicultura (AKTEA) e suas afiliadas nacionais insiste na efetivação do estatuto legal de "esposa colaboradora" (collaborating spouse). Note-se que essa reivindicação ajusta-se com a Diretiva da União Europeia (Diretiva EU 86-913) adotada em 1986, a qual estendeu a seguridade social a cônjuges ou companheiros de trabalhadores autônomos. Contudo, ainda que se trate de um direito assegurado, permanecem grandes desigualdades na implementação no setor pesqueiro entre os países-membros.41 41 AKTEA, 2010. 42 FRANGOUDES e QUIST, 2005. Assim, observa-se que o movimento inclui percepções e lutas que não se ancoram em uma representação pautada por um coletivo de gênero. Avança em termos de demandas, mas, simultaneamente, pode estar reforçando outras dualidades de gênero constituintes da comunidade.

Destaque-se que quase sempre as mobilizações privilegiam o objetivo de acesso a dispositivos de seguridade social. Afinal, as características dos trabalhos envolvidos tendem a alijá-las de benefícios previdenciários, especialmente em países onde a titularidade para essas benfeitorias requer contribuições financeiras regulares, limites mínimos de tempo de contribuição ou exercício contínuo da profissão. É o que ocorre quando a cidadania social, isto é, o usufruto de direitos sociais, é dependente da condição de trabalhador definida de maneira restrita ou universal. Universalidade que nega as diferenças de gênero. Por conseguinte, não abriga facilmente mulheres em ramos como a pesca e a agricultura, sem nos referirmos aos trabalhos não remunerados.

De um lado, formam-se associações de mulheres pescadoras, movimento do qual são exemplos a Articulação de Pescadoras no Brasil e as associações de cônjuges de pescadores em outros países. E, de outro lado, as mulheres buscam o direito de adentrarem as organizações de classe, tais como os sindicatos, as colônias e as federações de pescadores em pé de igualdade com os sócios homens. Isso indica como os modos de operação simbólica das categorias de gênero são flexíveis e a necessidade de se refletir sobre a política de sexo em suas relações com essa simbólica.

Há, ainda, outra evidência: o avanço desse movimento das pescadoras nas trilhas criadas pelo movimento feminista internacional, a partir de meados dos anos 1980. O movimento identificara essa situação do ponto de vista institucional e cultural e procurou, desde então, desenvolver o debate sobre o empoderamento como tática de quebrar as barreiras que dispunham os níveis de desigualdades sociais nos vários âmbitos, incluindo-se aí as relações de trabalho.

Formar ou vincular-se a organizações é, muitas vezes, uma exigência para se poder atuar em prol de interesses coletivos, na defesa da terra e do ambiente, assim como para alcançar políticas compensatórias e de apoio à renda. De fato, embora as mulheres possam efetivamente participar das decisões relativas à produção familiar, dividir a administração do barco com os companheiros ou assumi-la integralmente, carecem, no geral, de voz nas organizações. Nesse quadro, importa compreender como as mulheres estão construindo identidades novas e reivindicando reconhecimento, em condições de vulnerabilidade econômica, política e cultural.

Mulheres & movimentos: a pesca em ação política

Pescadora, como visto, passa a ser um termo e um lugar de identificação cultural e política. A título de exemplo da tendência, o Quadro 2 indica algumas organizações de caráter nacional ou regional. São, na verdade, redes que congregam associações mais localizadas.


A emergência das pescadoras no plano político resulta de mobilizações e de alianças muito distintas. Por vezes elas se formaram com a ajuda das organizações profissionais de pescadores e, por vezes, em oposição a essas. Afinal, "a alteridade de gênero é entendida como sempre operando uma fratura nos modos de interpretar valores compartilhados. Mesmo que compartilhados, as perspectivas pelas quais são vividos e apreciados se distinguem entre homens e mulheres".43 43 MACHADO, 2010, p. 90.

A rede AKTEA, em novembro de 2004, realizou uma primeira conferência internacional, em Santiago de Compostela, Espanha.44 44 FRANGOUDES e QUIST, 2005. Desde então, faz encontros anuais e edita um boletim.45 45 FISH WOMEN, 2012. Sua agenda inclui atribuição de status profissional para tarefas de administração do barco da família (compras, contabilidade), com direito à previdência; treinamento e crédito; e aceitação das mulheres para representar a profissão de pescadores artesanais nos órgãos públicos pertinentes.

No Brasil, um dos resultados da mobilização de mulheres foi a criação, em 2006, da Articulação Nacional das Mulheres Pescadoras, durante reunião em Recife e contando com vários apoios, com ênfase para o Conselho Pastoral dos Pescadores (CPP). Seu segundo encontro nacional foi em maio de 2010.46 46 Naina PIERRI e Natália Tavares de AZEVEDO, 2010. De acordo com a Carta de Fundação,47 47 CARTA DE FUNDAÇÃO, 2006. as primeiras mobilizações remontam à década de 1970. O documento lembra os esforços pioneiros de religiosas ligadas à Igreja Católica, cujo intuito era identificar a condição de trabalho da "marisqueira", inicialmente nas localidades de Itapissuma e Cabo, em Pernambuco, os quais culminaram com a conquista de seu direito à carteira profissional de pescadora. O documento também revela a eleição inédita, em 1985, de uma mulher para presidir uma colônia de pescadores e, nove anos depois, uma federação estadual de pescadores, ambos os feitos ocorridos em Pernambuco. Quanto ao estado do Ceará, o referido texto ressalva o papel crucial que as mulheres tiveram na luta de comunidades de praia contra a especulação imobiliária. Vale lembrar que o Movimento Nacional dos Pescadores (Monape) também contribuiu com o processo, na medida em que desenvolveu algumas ações visando à mobilização de mulheres pescadoras, tendo, inclusive, promovido uma primeira reunião de mulheres em 1994 em São Luís, Maranhão.48 48 Maria Cristina MANESCHY, Edna ALENCAR e Ivete H. NASCIMENTO, 1994.

Passos importantes foram dados nos anos seguintes, a começar pela presença de mulheres nas delegações de pescadores à 1ª Conferência Nacional de Aquicultura e Pesca, em 2003, convocada pela então Secretaria Especial de Aquicultura e Pesca. Nesse evento, as participantes questionaram fortemente o reduzido número de mulheres, o que motivou a convocação em 2004, pelo Governo Federal, do 1º Encontro Nacional das Trabalhadoras da Pesca e Aquicultura, precedido de encontros estaduais nos quais foi discutida sua situação e foram elaboradas reivindicações e propostas.49 49 PIERRI e AZEVEDO, 2010. Em 2006, já na 2ª Conferência Nacional de Aquicultura e Pesca, as delegadas conseguiram que o documento final do Encontro de 2004 fosse integrado ao documento final dessa segunda conferência do setor pesqueiro brasileiro. Foi então que essas mulheres tomaram a decisão de formar sua Articulação Nacional. Pierri e Azevedo também destacam o protagonismo das mulheres nos atuais esforços de revitalização do movimento de pescadores artesanais no Brasil. Ou seja, seu movimento não apenas se articula com o fortalecimento das comunidades de origem, como já indicado. Dá seguimento aos focos iniciais de resistência que criaram nas colônias quando sequer eram incluídas nas fichas de associados, mas atuavam nos "clubes de mães", conforme apontaram pesquisas no Pará.50 50 ÁLVARES, 2001; e Josinete Pereira LIMA, 2000.

Essa movimentação, levada a efeito com diferentes ênfases em vários estados, repercutiu na formulação da nova Lei de Pesca do Brasil, a qual incorporou uma concepção ampliada de pesca e abriu portas para o reconhecimento pleno das mulheres como agentes produtivos. A categoria "atividade pesqueira artesanal" passou a incluir os "[...] trabalhos de confecção e de reparos de artes e petrechos de pesca e o processamento do produto da pesca artesanal", nos quais é grande a presença das mulheres.51 51 Lei n. 11.959, de 29 de junho de 2009, dispõe sobre a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável da Aquicultura e da Pesca.

É digno de nota que, no Brasil, reuniões governamentais participativas para debater e propor políticas pesqueiras passaram a incluir temáticas sobre mulheres. Não são "temas centrais" e nem atraem a mesma atenção de público que os assuntos mais claramente econômicos. Mas é inegável o significado simbólico e político dessa inclusão. Tal inserção ocorreu, por exemplo, no Fórum Pan-Amazônico de Pesca que a Secretaria de Estado de Pesca e Aquicultura do Pará (SEPAq) organizou em novembro de 2008, na cidade de Belém. O evento foi antecedido de reuniões nos municípios com o fim de levantar demandas. No que tange às mulheres, a maioria das demandas foi dirigida aos órgãos públicos de seguridade social e de trabalho (ministério e delegacias regionais) e às secretarias executivas para que reconhecessem as pescadoras. Em segundo lugar, os cursos de capacitação, nos quais constava o tema "legislação pesqueira"; e, em terceiro lugar, creches. Ou seja, primeiro o mundo do trabalho é visto como produtivo – reconhecimento de suas atividades com as garantias e as representações correspondentes – e sua capacitação como trabalhadoras da pesca, quer dizer, a sua inclusão em outro nível do espaço público. Em seguida, a dimensão da maternidade/domesticidade. É possível identificar, assim, a triangulação dos enfoques sobre as hierarquias de poder, envolvendo poderes familiares, comunitários e governamentais.

O movimento não é unilinear. As pescadoras brasileiras estão a alcançar visibilidade política, mas elas continuam a enfrentar déficits na consideração das particularidades de seus trabalhos. Muitas vezes contribui para isso a dedicação de modo descontínuo, não só porque não há procura constante, mas também porque elas conciliam com atividades fora da pesca e, principalmente, porque cuidam das famílias sem usufruírem de infraestrutura e de equipamentos coletivos apropriados.

No segundo encontro da Articulação Nacional, conforme afirmam Pierri e Azevedo, as pescadoras reivindicaram segurança nos territórios de trabalho e de moradia e pesquisas sobre as espécies que capturam para que sejam fixados períodos de defeso, isto é, de proibição das pescarias para proteger sua reprodução. Elas argumentaram, ainda, que precisavam de ações de prevenção dos problemas de saúde ocupacional, tais como lesões por esforço repetitivo,52 52 Confeccionar redes, coletar mariscos e processar peixes e caranguejos envolve muitos gestos repetitivos. males de coluna e de pele, afecções ginecológicas e vulnerabilidade a animais peçonhentos. Pleitearam atendimento de saúde mais abrangente e adaptado a sua realidade. Lembraram que, assim como os pescadores, elas trabalham desde tenra idade. Confirma-se o quanto as condições de saúde da população tendem a espelhar a qualidade de sua própria vida e a necessidade de visibilizar sua igualdade com os homens na busca por reconhecimento político e social. De qualquer modo, a identificação das condições em que trabalham, dos níveis de saúde no trabalho, já se torna uma perspectiva de conscientização às suas necessidades, antes claramente de fora das reivindicações.

Tal como já demonstrado, há diferenças no processo de organização das mulheres e de suas demandas. Afinal, como diria Heleieth Saffioti,53 53 SAFFIOTI, 1987. não se pode isolar a questão da mulher de seu contexto sociocultural, econômico e político. E, como diria Machado, há diferentes exercícios de poder e de atribuição de prestígio. Há formas plurais com sentidos plurais. E, também, há semelhanças entre as suas reinvindicações, apesar de contextos diferenciados. Para ilustrar, vale rever a lista de objetivos da AKTEA. Tal como as pescadoras brasileiras reivindicam lugar nos fóruns de decisão sobre políticas de pesca e de gerenciamento costeiro, as europeias formularam explicitamente à Comissão de Pesca da União Europeia e dos estados-membros que instituam "Departamentos de Mulheres".54 54 AKTEA, 2010.

A organização também reagiu a um texto divulgado em abril de 2009, o Livro Verde da Reforma da Política Comum de Pescas (Green Paper Reform of the Common Fisheries Policy), o qual submeteu à discussão pública uma proposta de reforma da política regional de pesca. Segundo a rede, não havia menção às mulheres, ainda que as comunidades fossem citadas. Em sua resposta, consta a seguinte declaração, que merece ser citada na íntegra por demonstrar a distância entre as atribuições que assumem e seu poder político:

As mulheres exercem diferentes papéis nas comunidades: econômicos, sociais e culturais. As empresas familiares de pesca dependem da participação das mulheres para sua sobrevivência econômica. As mulheres pescam ou comercializam pescado ou mariscos, remendam redes, fazem a administração e a contabilidade dos negócios da pesca. Ademais, representam a empresa familiar em questões de interesse legal e profissional quando os maridos ou companheiros estão no mar. Elas frequentemente iniciam atividades de diversificação como processamento, turismo ou restauração. Mas suas contribuições muitas vezes não são remuneradas ou declaradas. As mulheres em toda a Europa querem o reconhecimento de seu papel nesses empreendimentos pesqueiros a fim de terem acesso a benefícios sociais e representação.55 55 AKTEA, 2010.

Por conseguinte, esse movimento visibiliza o processo contínuo de construção do "social", no qual se tornam públicas necessidades humanas de subsistência, historicamente alocadas no espaço do privado. Necessidades de subsistência ganham importância, e as atividades relacionadas são reconhecidas e passam a ser admitidas em espaço público.

Considerações finais

No Ocidente, há várias diferenças no processo de organização das mulheres e em suas demandas, porque há diferentes contextos e, logo, diferentes exercícios de poder e de atribuição de prestígio. Pensar relações de gênero implica pensar as relações nas quais se incluem formas plurais com sentidos plurais, ambiguidades e contradições.

Ao buscarem participação, voz, as mulheres não estão apenas reivindicando direitos para si próprias, porque a comunidade à qual pertencem é uma constante. Assim, objetivam representar os pescadores e as comunidades nas instâncias políticas nas quais se estão definindo as políticas de pesca; buscar meios de promover a inserção em novas bases da economia pesqueira em contextos socioculturais e, mais especificamente, socioambientais; e desvelar temas relativos à democracia, aos direitos, às dinâmicas ambientais.

É lícito ler nas declarações que produzem a formulação de caminhos para implementar a governança adaptativa. Isso implica questionar a ordem e a simbólica de gênero, trazendo os cuidados com o meio ambiente e com as pessoas, a produção de alimentos e a segurança das famílias para o centro das preocupações práticas de regulação e do desenvolvimento. Tanto como questões de mulheres quanto de todos, do todo, seja esse pensado no nível da comunidade, seja da sociedade. Mas, por sua vez, esse movimento em sua dimensão denunciatória das subordinações e das opressões de gênero esbarra nas dificuldades de se enfrentarem como coletivo de mulheres em suas comunidades marcadas por profunda polaridade hierárquica de gênero. Como visto, esse fator não as intimida, haja vista que passam a interferir nesse processo patriarcal assumido pelo setor produtivo e incorporado nas sociedades tradicionais onde convivem.

A propósito, cabe citar a frase que abre o documento de AKTEA: "Atrás de cada barco tem uma mulher, uma família e uma comunidade". Ou seja, não existe apenas a pesca como setor ou os recursos em si, mas coletividades, redes sociais em terra e no mar, identidades, histórias, subjetividades. São esses componentes como articulações, conjunto, que sustentam a atividade e lhes conferem capacidades de adaptação às incertezas ambientais, sociais, econômicas. Perspectiva totalizante, mas não unitária de se perceberem as sociabilidades, sejam dentro das fronteiras societárias, sejam culturais.

A literatura consultada sobre instituições de gestão ambiental tende a enfatizar os princípios subjacentes às instituições "bem-sucedidas". Dentre eles estão a participação, a comunicação entre os agentes sociais em sua diversidade, a equidade, as percepções de justiça nas regras de uso dos recursos, a possibilidade de alterar as regras e a aceitação de que os conhecimentos técnico-científicos por si sós são insuficientes. Em tal quadro, compreende-se que as relações entre homens e mulheres são um aspecto crítico na construção dessas instituições, porque também nelas a mulher tende a ser percebida através da simbólica das relações de gênero nas quais o feminino é lido como inferior.

Todavia, os níveis de empoderamento assumidos pelas mulheres da pesca podem ser contabilizados em muitas frentes. Incluem o direito de associação, o acesso a espaços de direção em organizações de pescadores, a busca e as possibilidades de se capacitarem para lidar com a modernização pesqueira e, ao mesmo tempo, contribuir com as lutas locais contra políticas de ocupação de seus territórios e a favor de garantia de acesso aos recursos. Essa trajetória das mulheres na pesca, que fortaleceu seu autoconhecimento sobre as hierarquias de poder nas relações de trabalho, foi possível com o dimensionamento dos debates sobre os temas da inclusão e da exclusão dos sujeitos sociais, aspirantes de uma identidade construída através da participação nos poderes públicos.

A busca por empoderamento, como eixo central das discussões sobre as origens da subordinação e da desigualdade das mulheres na sociedade, fortaleceu novas políticas em âmbito internacional, nacional e local nas últimas décadas. O significado desse empoderamento nas relações entre os sexos tem sido insuficiente para destituir integralmente o poder de mando masculino no coletivo, onde transitam, em suas comunidades. Contudo, tem propiciado a desmontagem de marcadores sociais que antes polarizavam as relações nesses ambientes. Uma das dificuldades nessa trajetória é o persistente atrelamento do lugar de gênero ao todo, seja esse pensado como família ou comunidade.

[Recebido em 25 de fevereiro de 2011 reapresentado em 17 de novembro de 2011 e aceito para publicação em 8 de março de 2012]

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  • 5
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  • 11
    A consulta à base Web of Sciences, com os termos
    women and
    fisheries (
    mulheres e
    pesca), ilustra a tendência. Igualmente a seção "Women in Fisheries" na página do ICSF (
    http://wif.icsf.net/) disponibiliza uma bibliografia anotada. Na rubrica "Papéis de mulheres na pesca" encontram-se 79 referências entre artigos científicos, monografias, coletâne-as e artigos em revistas de divulgação. Apenas duas são da década de 1980. Em 2001, a FAO publicou a
    Bibliografia sobre gênero e pesca (1990-2001) (FAO, 2001).
    12 Gabriele DIETRICH, 1997; ICSF, 2012; e Barbara NEIS et al., 2005.
  • 13
    Bonnie McCAY, 2005.
  • 14
    Maria Cristina MANESCHY e Christine ESCALLIER, 2002; e Chandrika SHARMA, 2004.
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    Dean BAVINGTON, Brenda GRZETIC e Barbara NEIS, 2004; Albertina de Oliveira COSTA e Cristina BRUSCHINI, 1992; Heleieth I. B. SAFFIOTI, 1987; e Deis SIQUEIRA e Lourdes BANDEIRA, 1977.
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  • 30
    Regina Célia DI CIOMMO, 2007; e Ligia Terezinha Lopes SIMONIAN, 2006.
  • 31
    Carol MADDCORMACK e Marylin STRATHERN, 1980.
  • 32
    O documento da ONU, Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (ODM), fixou metas para os estados-membros até 2015, propostas nas conferências mundiais dos anos 1990. Incluiu a extinção da extrema pobreza, a promoção da igualdade entre os sexos e o fomento de novas bases do desenvolvimento.
  • 33
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    BAVINGTON, GRZETIC e NEIS, 2004; e DIETZ, OSTROM e STERN, 2003.
  • 36
    A respeito do comprometimento dos estoques, é esclarecedora a matéria "Il faut pêcher moins si l'on veut continuer à pouvoir pêcher": "Le Français Daniel Pauly a révélé la baisse alarmante des stocks de poisson dans le monde" (LE MONDE, 2009, p. 4).
  • 37
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  • 50
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  • 51
    Lei n. 11.959, de 29 de junho de 2009, dispõe sobre a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável da Aquicultura e da Pesca.
  • 52
    Confeccionar redes, coletar mariscos e processar peixes e caranguejos envolve muitos gestos repetitivos.
  • 53
    SAFFIOTI, 1987.
  • 54
    AKTEA, 2010.
  • 55
    AKTEA, 2010.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      12 Dez 2012
    • Data do Fascículo
      Dez 2012

    Histórico

    • Recebido
      25 Fev 2011
    • Aceito
      08 Mar 2012
    • Revisado
      17 Nov 2011
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