Resumos
O objetivo deste ensaio é explorar o tema da desigualdade econômica a partir das distribuições de renda disponível e de patrimônio nos países desenvolvidos e, de modo mais detalhado, nos Estados Unidos. A análise explora o aumento da desigualdade enquanto resultado das transformações da sociedade capitalista ocorridas nos últimos quase 40 anos, que provocaram uma desvalorização dos salários acompanhada de uma maior financeirização da renda associada à dinâmica da riqueza, isto é, do patrimônio detido por certas parcelas das populações desses países. Ele adota uma perspectiva de análise de natureza estrutural, entendendo que o aumento da desigualdade que a crise atual poderá carregar deve ser visto como parte do processo de sua ampliação produzida pelas transformações ocorridas na sociedade capitalista desenvolvida ao longo dos últimos quase 40 anos. Nestes últimos 40 anos, o capitalismo desenvolvido conheceu um processo de sistemática reorganização econômica, social e política de suas estruturas produtivas, das instituições de representação e regulação e da dinâmica da acumulação de capital. A desigualdade deve ser entendida como transformação, que teve a financeirização como instrumento relevante para a modificação da distribuição de renda.
Desigualdade; Distribuição de renda; Desenvolvimento capitalista; Países desenvolvidos; Regulação social
This essay debates the theme of economic inequality from the distribution of disposable income and wealth in developed countries and especially in the United States. The analysis explores the increase in inequality as a result of the transformation of capitalist society have occurred over the past forty years, which led to a devaluation of wages accompanied by greater financialization of income linked to the dynamics of wealth, i.e. the assets held by certain portions of the populations these countries. It adopts an analytical perspective of structural nature, meaning that the increase in inequality that can load the current crisis should be seen as part of its expansion produced by the transformations in capitalist society developed over the past forty years. Over this period, developed capitalism experienced a systematic process of reorganizing the economic, social and politics of their productive structures, institutions of representation and regulation, and the dynamics of capital accumulation. The inequality must be understood as the transformation that took financialization as a relevant instrument for the change in income distribution.
Inequality; Income distribution; Development capitalist; Developed countries; Social regulation
Os países desenvolvidos e a desigualdade econômica*
The developed countries and economic inequality
Claudio Salvadori Dedecca
Professor Titular do Instituto de Economia da Universidade Estadual de Campinas (IE/Unicamp), Campinas, SP, Brasil. E-mail: claudio.dedecca@eco.unicamp.br
RESUMO
O objetivo deste ensaio é explorar o tema da desigualdade econômica a partir das distribuições de renda disponível e de patrimônio nos países desenvolvidos e, de modo mais detalhado, nos Estados Unidos. A análise explora o aumento da desigualdade enquanto resultado das transformações da sociedade capitalista ocorridas nos últimos quase 40 anos, que provocaram uma desvalorização dos salários acompanhada de uma maior financeirização da renda associada à dinâmica da riqueza, isto é, do patrimônio detido por certas parcelas das populações desses países. Ele adota uma perspectiva de análise de natureza estrutural, entendendo que o aumento da desigualdade que a crise atual poderá carregar deve ser visto como parte do processo de sua ampliação produzida pelas transformações ocorridas na sociedade capitalista desenvolvida ao longo dos últimos quase 40 anos. Nestes últimos 40 anos, o capitalismo desenvolvido conheceu um processo de sistemática reorganização econômica, social e política de suas estruturas produtivas, das instituições de representação e regulação e da dinâmica da acumulação de capital. A desigualdade deve ser entendida como transformação, que teve a financeirização como instrumento relevante para a modificação da distribuição de renda.
Palavras-chave: Desigualdade; Distribuição de renda; Desenvolvimento capitalista; Países desenvolvidos; Regulação social.
ABSTRACT
This essay debates the theme of economic inequality from the distribution of disposable income and wealth in developed countries and especially in the United States. The analysis explores the increase in inequality as a result of the transformation of capitalist society have occurred over the past forty years, which led to a devaluation of wages accompanied by greater financialization of income linked to the dynamics of wealth, i.e. the assets held by certain portions of the populations these countries. It adopts an analytical perspective of structural nature, meaning that the increase in inequality that can load the current crisis should be seen as part of its expansion produced by the transformations in capitalist society developed over the past forty years. Over this period, developed capitalism experienced a systematic process of reorganizing the economic, social and politics of their productive structures, institutions of representation and regulation, and the dynamics of capital accumulation. The inequality must be understood as the transformation that took financialization as a relevant instrument for the change in income distribution.
Keywords: Inequality; Income distribution; Development capitalist; Developed countries; Social regulation.
JEL I31, I30, D63.
O objetivo deste ensaio é explorar o tema da desigualdade econômica a partir das distribuições de renda disponível e de patrimônio nos países desenvolvidos1. A análise explora o aumento da desigualdade enquanto resultado das transformações da sociedade capitalista ocorridas nos últimos quase 40 anos, que provocaram uma desvalorização dos salários acompanhada de uma maior financeirização da renda associada à dinâmica da riqueza, isto é, do patrimônio detido por certas parcelas das populações desses países. Ele adota uma perspectiva de análise de natureza estrutural, entendendo que o aumento da desigualdade que a crise atual poderá carregar deve ser visto como parte do processo de sua ampliação produzida pelas transformações ocorridas na sociedade capitalista desenvolvida ao longo dos últimos quase 40 anos.
Nesse sentido, é fundamental explicitar inicialmente que o ensaio considera a crise em curso como resultado das novas condições de acumulação de capital que se consolidaram no período. Nestes últimos 40 anos, o capitalismo desenvolvido conheceu um processo de sistemática reorganização econômica, social e política de suas estruturas produtivas, das instituições de representação e regulação e da dinâmica da acumulação de capital. Enquanto forma de organização impossibilitada de conhecer o estado estacionário, pode-se dizer que o movimento de destruição criadora, inerente ao funcionamento da máquina de acumulação de capital, assumiu características que produziram a corrosão progressiva de uma configuração econômica e social que havia sido consolidada nos anos do pós-guerra, mais especificamente entre 1948 e 1968, e que teve a capacidade de controlar e reduzir as desigualdades econômicas e sociais2.
Cabe entender o aumento das desigualdades como fruto de um novo arranjo econômico, social e político, em vez de analisá-lo enquanto movimento de crise da chamada sociedade salarial conhecida no pós-guerra.
A adoção dessa perspectiva é fundamental para se desfazer de certas amarras presentes em certas abordagens, ao menos desde a década de 1980, sobre as transformações econômicas, sociais, políticas e institucionais. Isto é, relativas à associação das dificuldades atuais às instituições de regulação construídas durante o pós-guerra. Muitas vezes, as dificuldades encontradas pelo desenvolvimento capitalista são associadas à falta de virtuosidade das instituições de regulação em face de uma economia em processo particular de transformação. A falta de virtuosidade decorreria da permanência de instituições inadaptadas às novas condições de acumulação de capital. Tal argumento é falho, ao menos, por um motivo básico. Porque é próprio do desenvolvimento capitalista conviver com um processo recorrente de reorganização institucional e parece ser impossível sustentar, após quase 40 anos de crise da sociedade salarial, que ela ainda possa ser uma amarra ao desenvolvimento presente, depois de tantas transformações de naturezas diversas.
Nesse sentido, este ensaio considera que tais transformações não podem ser vistas como um processo de crise de longa duração, como fazem certas abordagens tanto de natureza ortodoxa como heterodoxa. A partir dos anos 1990, são evidentes as novas condições de acumulação de capital que sustentaram o movimento de crescimento das economias desenvolvidas até a emergência real da crise atual. Ao menos quatro características podem ser consideradas importantes para explicitar o padrão de acumulação das últimas duas décadas e seus impactos sobre o trabalho, a renda e o consumo.
A primeira refere-se a uma nova forma de organização em rede internacionalizada das empresas, que tem a China como referência básica. O processo produtivo passou a ser estruturado considerando-se a possibilidade de produção em grande escala e a baixo custo, de modo a permitir a massificação dos mercados com ciclo curto de vida dos produtos. As grandes empresas centralizaram seu processo de decisão e descentralizaram, inclusive via terceirização, o processo de produção. O primeiro se orientou aos países desenvolvidos e o segundo aos em desenvolvimento.
Essa estratégia das grandes empresas forçou a abertura das economias nacionais, imbricando seus mercados de bens e serviços entre si e pressionando seus mercados de trabalho em direção à desvalorização dos salários e das condições de trabalho. Ao mesmo tempo em que o assalariamento ampliou sua participação nos mercados nacionais de trabalho, ele conheceu uma deterioração das suas condições de trabalho. Esse processo foi recorrente tanto nas economias desenvolvidas como naquelas em desenvolvimento, sendo que suas consequências foram relativamente menores nas primeiras, devido à complexidade institucional presente no mercado de trabalho e no sistema de proteção social. A tendência de desvalorização salarial foi de tal ordem que o instrumento de política pública do salário mínimo foi retomado em vários dos países desenvolvidos, com destaque para os EUA e a Inglaterra.
A segunda característica se relacionou à progressiva financeirização das empresas e das famílias. As primeiras passaram a ter no mercado financeiro fonte relevante para aumento da lucratividade e de valorização de seu valor de mercado. As segundas foram atraídas por novos produtos como fundos de aposentadoria e crédito hipotecário residencial, que, em um contexto de perda de eficiência do sistema de proteção social público e menor estabilidade da condição de ocupação, foram vistos ou vendidos como instrumentos de proteção contra riscos futuros. O resultado desse processo foi uma modificação das condições de acumulação e valorização das empresas, que passaram a privilegiar os resultados de curto e médio prazos, e daquelas condições de formação da renda das famílias, que se tornou mais complexa por depender do mercado de trabalho, da proteção social e de inovações financeiras. Esse processo serviu para as famílias se protegerem da desvalorização salarial, ao mesmo tempo em que, de maneira contraditória, criou a expectativa ou a ilusão de maior capacidade de renda e de poder de compra para um padrão de consumo marcado pela depreciação rápida dos bens e serviços adquiridos. O novo padrão de consumo passa a ser caracterizado por um sucateamento rápido dos bens e serviços, fazendo que as famílias vejam como mais interessante sua aquisição via leasing ou hipoteca, por acharem que essas formas de financiamento protegem contra os elevados custos da rápida depreciação dos mesmos.
A terceira característica vinculou-se a um processo de individualização estimulado pela tendência de formação da renda associada à fragmentação do mercado de trabalho e pelo novo padrão de consumo. As transformações produtivas e na regulação das relações econômicas e sociais produziram a quebra das relações coletivas com a individualização do contrato de trabalho, ampliando sobremaneira a concorrência no interior do mercado de trabalho. O enfraquecimento das negociações coletivas e da representação sindical ocorreu concomitantemente ao crescimento das formas de contrato de trabalho estabelecidas pelas partes diretamente envolvidas, movimento muitas vezes ordenado e induzido pelos novos instrumentos de regulação pública do mercado e das relações de trabalho e ao mesmo tempo em que extensas diversificação e diferenciação de produtos fomentaram a busca, mesmo que falsa, de um padrão de consumo personalizado e individualizado. A intensidade da difusão do padrão de consumo pode ser avaliada pela ampla aderência do argumento que ele seria caracterizado pela autonomia do consumidor, sendo reiteradamente vendida a ideia absurda de que os mercados de bens e serviços seriam hoje ordenados por uma ditadura do consumidor. Este teria passado a ditar a lógica de produção de bens e serviços, impondo às empresas uma nova relação com o mercado, a qual serviu inclusive para justificar novas relações de trabalho assentadas em menores salários e proteção social e ao emprego.
A última característica diz respeito à ampla difusão da tecnologia de informação. Apesar de ela estar disponível deste o início dos anos 1960, sua difusão apareceu como resposta à crise do padrão industrial do pós-guerra. Os efeitos da tecnologia da informação foram e continuam sendo extensos, atingindo as condições de organização tanto econômica como social e política. As três características anteriormente mencionadas podem não ser explicadas pela difusão da tecnologia da informação, mas é incontestável que esta possibilitou o deslanche de todas elas. A descentralização do processo produtivo e do trabalho, a criação e a diversificação de ativos financeiros, a individualização do consumo, dentre outras mudanças, têm na tecnologia da informação a base de sua organização. Do ponto de vista do trabalho, ela possibilitou o rompimento da produção em massa baseada em grandes coletivos de trabalhadores, permitindo crescentemente que a atividade produtiva não mais esteja vinculada a um local ou a coletivos específicos de trabalhadores. Também possibilitou o rompimento do trabalho especializado em uma função determinada e dos métodos de controle hierárquicos próprios do taylorismo.
As novas condições de acumulação de capital e as instituições de regulação
Essas características da nova forma da acumulação de capital se traduziram em mudanças nas instituições de regulação econômica, social e política. Aquelas mais fundadas nos interesses coletivos perderam legitimidade para aquelas mais relacionadas a interesses específicos ou de segmentos de empresas, de indivíduos ou de famílias. Como apontou Oliver Williamson (2005) em ensaio que apresenta um balanço da sua trajetória intelectual, as transformações ocorridas nos últimos 40 anos deram proeminência às instituições de regulação de natureza híbrido-hierárquica, que não correspondem à regulação de mercado em razão das falhas que este carrega e da necessidade de elas serem arbitradas exogenamente por algum tipo de instituição; mas que também são diretamente associadas às instituições de regulação de natureza centralizada e hierarquizada, próprias daquela (regulação) realizada pela esfera pública estatal ou pelas grandes empresas. Segundo o autor, as formas híbridas de regulação respondem às necessidades econômicas e sociais de redução dos custos de transação que as diversas modalidades de contrato carregam. Segundo suas próprias palavras, as against simple market exchange, governance is predominantly concerned with ongoing contractual relations for which continuity of the relationship is a source of value. Given that incomplete contracts need to be adapted to disturbances for which contractual provision was not made or was incorrectly made at the outset, continuity can and will benefit from a spirit of cooperation (Williamson, 2005, p. 2).
Nesse sentido, ele argumenta sobre a relevância de a economia se articular a outras áreas de conhecimento, especialmente à do direito, pois o desenvolvimento dos instrumentos de governança de natureza híbrida e hierárquica dos contratos passou a ser o grande desafio da sociedade atual. Na visão do autor, instrumentos de governança dessa natureza tendem a carregar menores custos de transação, pois encontram-se baseados no regime da cooperação. Ainda segundo seu ponto de vista, tanto a regulação de mercado como a centralizada ordenada pelo Estado impõem custos de transação elevados, devido às falhas de informação ou à burocratização dos processos, além de fomentarem a cultura do conflito ou estarem baseadas nela.
Como discutem Ankarloo e Palermo (2004) e Carter e Hodgson (2006), a proposição de Williamson adota certas suposições difíceis de serem justificadas teórica e empiricamente. Uma delas é a visão de que a situação de cooperação ou de conflito seja relacionada à simples vontade das partes ou do aparato jurídico, desconsiderando qualquer possibilidade de ela estar determinada por fatores institucionais da própria organização da sociedade capitalista (Kaufman, 2008). A outra refere-se ao fato de a regulação de natureza híbrido-hierárquica ser inevitavelmente vantajosa. Isto é, quando estabelecida produz resultados positivos em comparação às duas formas puras por ele consideradas. Mesmo que ela possa assumir uma dinâmica virtuosa, não é possível descartar que ela conheça situações disfuncionais como qualquer instrumento de regulação econômica e social. Pois, como reconhece o próprio Williamson, a boa performance depende dos acordos na esfera política. Ademais, a proposição de Williamson privilegia o resultado ótimo, dando menor realce às dificuldades que caracterizam o processo de estabelecimento dos contratos e a impossibilidade, na maioria das vezes, de esse resultado ser alcançado (Pasinetti, 1994; Dugger, 1990).
Apesar da importância dos argumentos colocados por esses diversos autores, é preciso reconhecer que as transformações das instituições de regulação econômica e social, observadas nestes últimos 40 anos, foram convergentes com os argumentos defendidos por Williamson, ao terem permitido romper o regime de regulação pública mais centralizado e com maior presença estatal, tendo sido aberta a perspectiva para a consolidação de outro baseado em formas híbrido-hierárquicas. A emergência do novo regime contou, inclusive, com o apoio do próprio Estado, que foi modificando sua intervenção nos contratos, reduzindo as imposições que sobre eles colocava. O Estado passou a atuar com o objetivo de controlar assimetrias que porventura apareçam no seu estabelecimento ou administração, reduzindo sua função de interventor. O processo de mudança do regime de regulação se apresentou diferenciadamente para cada nação, tendo sido mais intenso nos países considerados anglo-saxões e mais tênue naqueles da Europa nórdica (Hall; Soskice, 2001).
Este reposicionamento do aparelho de Estado não pode ser visto como inédito, pois ele historicamente aparece na forma de regulação da economia americana ao longo do século XX (North, 1990). O trabalho clássico de Rawls (2000), escrito no final dos anos 1960 e publicado no início da década seguinte, já defendia que a regulação híbrido-hieráquica era mais eficiente que aquela estabelecida a partir do Estado e diretamente por ele. Segundo Rawls, o desenvolvimento capitalista se traduziu na organização institucional da sociedade, não mais justificando os instrumentos de regulação de natureza intervencionista próprios do aparelho de Estado. A este cabe estabelecer legislação que impeça desequilíbrios ou assimetrias no estabelecimento dos contratos, descartando, portanto, a possibilidade de que tais desvantagens antecedam o próprio processo. Rawls descarta, como critério mais geral, que haja necessidade de se atuar ex ante sobre possíveis assimetrias ou desequilíbrios, em razão de considerar que a organização da sociedade tem a capacidade de impedir a emergência de tal situação, bem como de coibir comportamentos de natureza predatória que possam criar um ambiente de conflito. Enquanto a formulação de Rawls (2000) é construída no campo de conhecimento do direito, North (1990) e Williamson (2005) desdobram os argumentos para o campo da economia.
A reorganização das instituições implicou mudanças no regime de regulação, ao menos, em três direções.
Contrato e relações de trabalho - flexibilidade das normas e regras de proteção ao trabalho de natureza mais geral estabelecidas pelo Estado, em favor de outro padrão que viabilizou maior autonomia na definição das mesmas pela negociação coletiva ou pelas formas de negociação direta no nível das empresas. Esse movimento possibilitou a descentralização na definição das regras e normas de proteção ao trabalho, produzindo maior heterogeneidade das mesmas entre setores e inclusive entre firmas. Também possibilitou que a concorrência intercapitalista voltasse a ter no custo do trabalho um mecanismo relevante.
Além disso, generalizou-se a adoção de formas de contrato por tempo determinado ou parcial, havendo muitas vezes subsídio público para que as empresas estabeleçam essas formas de contrato. No âmbito das empresas, essas formas passaram a concorrer com aquela caracterizada pela estabilidade e longa duração do vínculo de emprego.
A pressão para a redução da proteção ao trabalho e à renda se tornou, portanto, uma constante nos últimos quase 40 anos, que pode ser rapidamente traduzida na divergência entre o crescimento expressivo da produtividade e a estagnação ou o incremento lento dos salários (Levy, 2007).
Essa mudança resultou no enfraquecimento das negociações coletivas centralizadas e na fragmentação das normas públicas básicas de ordenamento das condições de trabalho, da jornada de trabalho e da formação dos salários. A consequência foi maior flexibilidade da jornada com abertura do trabalho aos domingos, menor restrição ao trabalho noturno e ampliação das horas extras; e também dos salários com a generalização e maior participação da remuneração flexível. Também a deterioração do ambiente de trabalho marcada pela intensificação das tarefas e pela concorrência entre trabalhadores foi se constituindo como regra geral.
O poder de contratação das empresas foi ampliado nesse processo, dando-lhes maior autonomia na definição dos contratos e das relações de trabalho, revertendo tendência de maior equilíbrio nesse processo estabelecida até a década de 1970. Esse movimento foi observado, inclusive, em uma economia na qual a intervenção estatal no mercado e nas relações de trabalho foi historicamente restrita, isto é, na americana (Levy, 2007).
Proteção social e do trabalho - a flexibilidade também atingiu as diversas políticas de proteção social e do trabalho, merecendo destaque duas situações. A primeira ocorreu com a política de seguro-desemprego, que teve a duração do benefício em geral reduzida e a adoção de imposições para que o desempregado passasse a aceitar uma oferta de emprego, independentemente da qualidade da vaga ou compatibilidade com sua qualificação.
A mudança dessa política, que teve a experiência inglesa como caso mais paradigmático, se constituiu em um dos pilares de sustentação da transição do modelo de proteção denominado welfare para o workfare, caracterizada pela superação dos instrumentos de política pública fundados na proteção universal para aqueles de natureza focalizada e que passaram a associar o acesso à obrigação ao trabalho disponível (Deacon, 2004). Essa conduta foi incorporada especialmente em certas experiências como a americana e a inglesa, nas quais as ações de combate à pobreza passaram a exigir irrestrita disponibilidade ao trabalho por parte dos potenciais beneficiados (Mittelstadt, 2004; Cackett; Green, 2005; Bertram, 2006).
A outra alteração importante ocorreu no sistema de previdência e, em certos países, na política de saúde pública, com a abertura ou o fortalecimento da esfera privada ou pública, mas não de natureza estatal. No caso da previdência, esse movimento se traduziu na formação de fundos mútuos com forte presença no e do mercado financeiro. O processo de desvalorização da previdência pública universal apareceu como tendência, ao mesmo tempo em que foram ganhando expressão e legitimidade os instrumentos de previdência complementar privada. Na experiência americana, essa transformação alcançou a política de saúde. A constituição de verdadeiros mercados para previdência e saúde marcou a transformação da forma institucional dessas políticas, bem como toda a regulação que sobre ela se faz. A alteração institucional se traduziu em uma reorganização da renda das famílias, seja em razão da menor importância relativa e absoluta do rendimento previdenciário público estatal ou da redução da cobertura da política pública de atendimento à saúde, seja devido ao fato de as aplicações financeiras nessas formas de proteção terem ganhado expressão nas estratégias de renda e patrimônio das famílias (Bertaut; Starr-McCluer, 2002; Banks; Tanner, 2002).
Novas instituições e formas de regulação emergiram nesse processo, como a importante presença de instituições financeiras organizando esses mercados e a constituição de agências com gestão tripartite na regulação dos mesmos.
Organização política e individualização dos contratos - uma progressiva fragmentação da organização política se plasmou ao longo dos últimos 40 anos, caracterizada principalmente pelo também progressivo aumento da importância das instituições de representação de interesses específicos. Nesse processo, foram perdendo espaço as instituições clássicas de representação mais coletiva como os partidos e os sindicatos.
A perda de representatividade dos partidos e dos sindicatos foi dramática, observando-se um importante rompimento dos laços políticos que mantinham com os segmentos da sociedade que se faziam neles representar. No caso dos partidos políticos, a perda de representatividade os levou a passar a se financiar nas instituições de interesses específicos. Quanto aos sindicatos, procuraram atenuar a perda de legitimidade articulando suas próprias instituições de interesse específico ou dando maior importância às instituições participantes no mercado emergente das políticas de previdência ou saúde.
No âmbito dos partidos, deputados e senadores passaram a manter relações diretas com as instituições de interesse específico (lobbies), sendo muitas vezes por elas financiados. A difusão desse tipo de relação tem acabado por causar tensão interna aos partidos, impedindo-os muitas vezes de adotar uma posição de maioria.
O debate atual sobre a proposta de uma nova política de saúde do governo Obama expressa de forma direta esse tipo de dificuldade. Apesar de eleito propondo uma política de saúde de natureza mais universal, o governo Obama tem encontrado resistência na sua implementação dentro do próprio partido democrata, onde uma parcela de deputados e senadores difunde o argumento, também esgrimido pelos republicanos, de que a adoção da nova política representaria o socialismo no sistema de saúde americano. Tanto o presidente como seus líderes no Congresso e o presidente do partido democrata têm sido obrigados a um esforço de "convencimento" da própria base de representação, sem o qual a proposta não será aprovada no legislativo americano e ainda corre o risco de ser denegada pela Suprema Corte.
Em relação aos sindicatos de trabalhadores e empregadores, as instituições mantêm crescente participação na gestão direta ou em conselhos de administração de fundos de previdência complementar. Através da participação nesses fundos, as instituições exercem controle ou participação acionária em grandes empresas, como parte da estratégia de valorização dos ativos por eles mantidos. A lógica da representação transitou seu foco da agenda política para outra de prestação de serviços, a qual mantém em geral estreita imbricação com os mercados financeiros.
Enquanto se observa uma mudança importante de sentido das estratégias dos sindicatos, transcorre, ao mesmo tempo, a descentralização dos processos de negociação coletiva com crescente individualização dos contratos. Assim, a mudança institucional do mercado e das relações de trabalho e da proteção social e do trabalho se associou à transformação das instituições de representação, permitindo a emergência de uma nova lógica de regulação e estabelecimento dos contratos de natureza mais descentralizada e, em certas situações, mais individualizada.
Do ponto de vista da teoria econômica clássica, como a denominava Keynes, essa tendência permitiria maior flexibilidade da gestão dos contratos de trabalho de modo a produzir maior eficiência, o que se traduziria em maiores níveis de emprego e de salários. Essas novas condições institucionais e de regulação dos contratos de trabalho ganhariam ainda maior importância em um contexto marcado por importantes mudanças tecnológicas e pela progressão de um regime de acumulação de capital baseado em economias abertas. Segundo essa perspectiva, a prevalência das instituições e a regulação pública de natureza mais universal ou geral bloqueariam o processo de reorganização dos contratos e, portanto, os ganhos de eficiência, o que teria por resultado maior desemprego e menores salários. Toda uma literatura econômica, e mesmo sociológica, foi produzida justificando a necessidade de flexibilidade das instituições e da regulação pública, tendo ela lançado sistematicamente mão da comparação entre as economias americana e inglesa e as da Europa continental. Segundo seus argumentos, o expressivo diferencial da taxa de desemprego em favor dos Estados Unidos e da Inglaterra constituía um claro sinal da maior eficiência dessas economias e do papel exercido por um marco institucional mais flexível.
As mudanças no mercado e nas relações de trabalho, nas políticas de proteção social e do trabalho e na organização política com a descentralização dos contratos se processaram em um contexto de alterações importantes nos marcos da política econômica e de transformações tecnológicas nas esferas produtivas e financeiras, que em conjunto produziram e continuam a produzir uma ampliação das assimetrias no estabelecimento dos contratos de trabalho com efeitos negativos sobre a evolução dos níveis de rendimentos e da participação dos salários na renda nacional.
O progressivo fortalecimento das políticas monetária e fiscal de natureza ortodoxa, isto é, centralizadas no manejo da taxa de juros e no controle do déficit público, em um período de rápidas transformações tecnológicas na produção e nas finanças que foram rompendo as fronteiras nacionais, pressionou negativamente, de um lado, as remunerações do trabalho e, de outro, o orçamento da política de proteção social e do trabalho3. A desvalorização dos salários e a crescente restrição orçamentária às políticas de proteção se traduziram em mudanças nas instituições e no regime de regulação, com resultados desfavoráveis na distribuição de renda do trabalho e no acesso aos bens públicos, referências relevantes para o controle das desigualdades durante o período de crescimento e desenvolvimento do pós-guerra nos países desenvolvidos. Do ponto de vista do padrão de acumulação de capital, plasmou-se um processo de financeirização da riqueza que se traduziu em um ambiente mais complexo de distribuição desigual da renda nesses países.
O aumento das desigualdades, interpretações e controvérsias
O aumento das desigualdades nos países desenvolvidos, em curso nestes últimos 20 anos, é objeto de ponderável controvérsia, tanto no âmbito das instituições multilaterais de desenvolvimento, como no meio acadêmico.
A análise dos documentos recentemente produzidos mostra clara divergência entre as interpretações da OECD (2008) e as divulgadas pela direção das Nações Unidas (2005) e Organização Internacional do Trabalho (ILO, 2008a).
Apesar de reconhecer o aumento das desigualdades nas últimas décadas, o documento da OECD considera ser ele produto principalmente das transformações tecnológicas e da ausência de adaptabilidade das instituições públicas em relação a esse processo (OECD, 2009). Segundo este último documento, a superação da crise atual e a retomada do crescimento dependem fundamentalmente de quatro iniciativas dos governos nacionais: i. introducing infrastructure projects that can be brought on stream quickly or improving the quality of existing infrastructure, particularly for education; ii. increasing expenditure on active labour market policies to provide workers with the skills that will be needed as the economy recovers, including through the use of compulsory training programmes; iii. reducing the tax burden on labour income, particularly for low-income workers. This will have a strong impact on spending by this group in the short run, and will enhance job prospects for such workers in the long term; iv. reforming anti-competitive product market regulations, especially entry barriers (OECD, 2009, p. 11-12). Para a instituição, os investimentos em educação, o foco nas políticas ativas para o mercado de trabalho e reformas das instituições de regulação são as vias para a retomada do desenvolvimento com redução da desigualdade nos países da OECD. O documento reproduz argumentos sistematicamente encontrados em outros documentos da própria instituição, sem fazer qualquer ponderação sobre o fato de a maioria dos países ter adotado, em graus diversos, as orientações por ela propostas. Apesar do esforço realizado pelos governos, uma crise sem precedentes atinge as economias de seus países membros, bem como os anos pré-crise, apesar das reformas realizadas, foram marcados pelo recrudescimento das desigualdades, como a própria OECD reconhece (2008). Mesmo assim, a instituição continua a reafirmar sua agenda clássica de reformas da regulação do mercado e das relações de trabalho e de proteção social como via para a superação da crise e do estado de maior desigualdade presentes em seus países membros.
As posições das Nações Unidas e da Organização Internacional do Trabalho se apresentam em uma perspectiva completamente diferente, não considerando as reformas na perspectiva da OECD como vias relevantes para a superação dos problemas econômicos e sociais encontrados pelos países desenvolvidos ou não. Ambas as instituições reconhecem as novas condições de funcionamento do capitalismo, baseadas em economias mais abertas e em um contexto de transformação tecnológica. Apontam a necessidade de se ampliar o diálogo via negociação coletiva e fóruns tripartites, bem como a necessidade de investimento em educação e em formação profissional. Entendem também que as mudanças demográficas se apresentam como um desafio para os sistemas nacionais de proteção social. Contudo, relacionam tanto a crise como o aumento da desigualdade à perda de capacidade dos Estados Nacionais de regularem seus mercados e, de forma cooperada, as suas relações em termos internacionais, apontando como uma expressão das dificuldades o crescimento acelerado dos mercados financeiros.
De acordo com o documento final adotado na Conferência Internacional do Trabalho de julho de 2009, os países membros consideraram ser necessário (i) building a stronger, more globally consistent, supervisory and regulatory framework for the financial sector, so that it serves the real economy, promotes sustainable enterprises and decent work and better protects savings and pensions of people; (ii) promoting efficient and well-regulated trade and markets that benefit all and avoiding protectionism by countries. Varying development levels of countries must be taken into account in lifting barriers to domestic and foreign markets; and (iii) shifting to a low-carbon, environment-friendly economy that helps accelerate the jobs recovery, reduce social gaps and support development goals and realize decent work in the process (ILO, 2009, p. 9-10). Para a instituição, a tendência atual do desenvolvimento capitalista joga contra a geração de emprego e promove a desvalorização da renda do trabalho (ILO, 2008a). As mudanças tecnológicas e demográficas são elementos que levam à potencialização da tendência atual de aumento das desigualdades (Atkinson, 2003).
No debate acadêmico, esse processo levou à retomada do argumento mais conhecido da proposição de Kuznets (1955). Em um ambiente de mudanças tecnológicas e demográficas, se ampliariam potenciais disparidades de renda entre setores produtivos, reforçadas pelos diferenciais de remuneração associados à maior taxa de retorno das novas qualificações ou formações educacionais. E, nesse sentido, investimentos em educação e qualificação apareceriam como as iniciativas mais promissoras para enfrentamento do aumento da desigualdade na fase de transição. A experiência americana foi a mais aprofundadamente explorada, com ampla literatura versando sobre o tema. Tomado como um mercado de trabalho de ponderável flexibilidade, em razão da baixa presença de instituições públicas de regulação e proteção do trabalho, as transformações tecnológicas tenderiam a encontrar menores resistências institucionais em reordenarem a demanda de trabalho, levando a que, em face de uma mudança mais lenta no perfil de qualificação e educação dos trabalhadores (oferta), elas se traduzam em aumento da desigualdade. Em contraposição, os países com maior proteção social e do trabalho conheceriam uma mudança mais tênue da desigualdade, mas, entretanto, um maior incremento do desemprego em razão dos constrangimentos (rigidez) para a geração de novas oportunidades ocupacionais. Segundo estudo recente, ... when it comes to changes in the wage structure and returns to skill, supply changes have been critical, and changes in the educational attainment of the native born have driven the supply side (Goldin; Katz, 2007).
Ainda segundo essa perspectiva, a redução da intervenção pública seria decisiva para a reorganização dos contratos e das relações de trabalho e, por decorrência, para o restabelecimento da economia em dinamizar a geração de empregos. Em grande medida, essa abordagem tomou como referência a proposição de Williamson, pois considera que a intervenção pública, ao gerar rigidez do contrato e das relações de trabalho, acaba por elevar o custo de transação das empresas e desestimular as decisões de investimento, produção e emprego.
A crítica a essa abordagem se baseou no argumento keynesiano clássico de que o nível de emprego é determinado pelas decisões de investimento e consumo e que estas foram colocadas em xeque pela tendência de globalização e financeirização da economia alimentada por uma política econômica completamente submetida à lógica da política monetária focada na taxa de juros e da fiscal centrada no controle a qualquer custo do orçamento público (Marglin; Schor, 1990; Howell, 1999). As condições da política econômica com rápida abertura dos mercados deslancharam um processo recorrente de racionalização produtiva das empresas com consequências negativas sobre o nível e a estrutura de emprego e sobre os salários (Gordon, 1996). O processo ocorreu tanto em relação às condições de produção, por ampliar as incertezas sobre as variáveis- chave das decisões de investimento e de produção, quanto em relação àquelas associadas à sustentação do consumo corrente da população, ao gerar a deterioração dos salários e ampliar o risco do desemprego. A busca pela obtenção de taxas de retorno rápidas e elevadas consolidou um movimento especulativo que reforçou as tendências de financeirização das empresas, em detrimento da esfera produtiva (Wray, 2009), processo alavancado pelas inovações tecnológicas de toda natureza4. As mudanças na forma de gestão e nos objetivos das empresas no contexto das transformações tecnológicas pressionaram negativamente os custos salariais ao mesmo tempo em que abriram espaço para ganhos expressivos para os gestores do processo (Lustig et al., 2009). O acirramento da concorrência intercapitalista com fortalecimento dos objetivos financeiros nas decisões de investimento e produção acabaram por ampliar a heterogeneidade dos padrões de rendimento intra e intersetores, com desvalorização dos setores produtivos em favor dos financeiros, permitindo o aumento da desigualdade tanto de renda quanto das condições de trabalho.
Essa leitura sobre os determinantes econômicos da desigualdade no contexto atual permitiu inclusive outra interpretação para o efeito Kuznets (Galbraith; Hale, 2009) e, nesse sentido, do próprio processo de flexibilização da regulação pública, que possibilitou maior autonomia das empresas em estabelecerem a diversidade de contratos que manejam permanentemente, onde os custos correntes passaram a ter papel decisivo, em especial aqueles relativos ao trabalho.
O recorrido sobre as interpretações do processo recente de aumento das desigualdades nos países desenvolvidos mostra, entretanto, que o foco da análise se encontra nos níveis e na distribuição de renda corrente da população antes da incidência dos tributos. Mais especificamente, sobre as formas de renda consideradas estatisticamente como oriundas do exercício do trabalho5. Cabe analisar agora alguns dos indicadores explorados no debate atual.
Desigualdade, a evidência mais geral
A perspectiva mais abrangente de análise da desigualdade parte da alteração da distribuição de renda informada pelos sistemas de contas nacionais. Considerando as óticas da produção, do consumo e da renda, é a análise desta última que aporta alguma informação sobre o enfoque mais geral da desigualdade. O nível e a participação da renda do trabalho no produto são considerados como o indicador primário sob o enfoque da renda quanto à distribuição do excedente gerado em uma nação a cada ano.
Esse indicador apresenta vantagens e desvantagens. Em relação a estas últimas, a principal restrição decorre de ele não permitir conhecer o perfil da distribuição no interior da renda do trabalho. Quanto às vantagens, a principal decorre de ele propiciar uma informação rápida e precisa da participação dessa forma de renda no resultado produtivo de uma nação. Devido ao esforço das Nações Unidas em unificar a metodologia das contas nacionais, o indicador possibilita comparabilidade direta entre países, mesmo considerando as restrições que ele possa apresentar. Feitas essas observações, cabe olhar o que o indicador nos informa.
Tomando os dados compilados pela OCDE, que considera a participação dos salários no produto no setor privado, observa-se uma tendência clara e inegável de perda de importância da principal forma de renda do trabalho no produto em todos os países entre 1980 e 2006, independentemente das especificidades de configuração produtiva e das instituições de regulação pública nacionais. É importante ainda ressaltar que tal tendência reverteu movimento de elevação da participação observada para a maioria dos países entre 1970 e 19806. Como explicitamente reconhece a OCDE, the moderate but significant rise in income inequality recorded in most OECD countries since the mid 1980s has occurred alongside significant declines in the share of wages in value added. Across 15 OECD countries with data spanning the entire period since 1976, this share has declined by around 10 points (i.e. 15%), with larger declines (of 15 points or more) in Ireland, Italy and Japan, and smaller ones (5 points or less) in Denmark, Greece, the United Kingdom and the United States (OECD, 2008, p. 35).
Mesmo que de maneira bastante agregada, esse resultado indica o processo de enfraquecimento em termos de renda do trabalho assalariado na apropriação do excedente produtivo. O risco econômico e social desse movimento se explicita se considerado que, ao longo desse período, todos os países da OCDE conheceram um aumento do assalariamento nos seus mercados nacionais de trabalho, sendo que, em muitos deles, essa relação de trabalho supera atualmente a cifra de 80%. Estabeleceram-se, portanto, movimentos contraditórios entre a participação da renda e a da ocupação da população assalariada. Enquanto a geração do produto tem ampliado a sua dependência em relação ao assalariamento, este tem se apropriado progressivamente menos da contribuição realizada para a geração do excedente.
Esse processo contraria teses veiculadas nas últimas décadas sobre um possível fim da relação de trabalho assalariado. Esta forma de trabalho perde importância em termos de renda, mas não em relação à obrigação de garantir a geração do excedente econômico na sociedade capitalista. E, nesse sentido, o resultado agregado propiciado pela contas nacionais explicita um movimento mais geral de alteração da desigualdade que pode ser lida com uma síntese das consequências de uma nova fase de acumulação de capital, onde a precariedade de renda e das relações de trabalho são faces de uma mesma moeda, ou melhor, da moeda enquanto dinheiro que fundamenta e legitima a reprodução da riqueza e da desigualdade.
Como argumenta Castel, analisando o capitalismo destes últimos quase 40 anos, il s'est peu à peu avéré cependant, même si la prise de conscience a été lente, que l'on ne traversait pas une zone de turbulences passagères et qu'il ne suffisait pas d'attacher as ceinture en attendant de repartir en avant avec la "reprise". En fait, et sommes nous mieux en mesure de La comprendre aujourd'hui, ce qui s'est joué au long de ces trente dernières années, c'est un changement de régime du capitalisme. Nous sommes sortis du capitalisme industriel qu'il importe sans doute moins de nommer que de comprendre comment et dans quelle mesure il affecte les manières de produire et d'échanger et les modes de régulation qui s'étaient imposés sous le capitalisme industriel. C'est en ce sens que l'on peut parler d'une "grande transformation" dont l'ampleur est comparable à celle que Karl Polanyi a analysée pour la période de l'implantation du capitalisme industriel en Europe occidentale (Castel, 2009, p. 13).
Como apontado anteriormente, essa transformação alcança a formação da renda das famílias, podendo afirmar que a desvalorização dos salários é parte desse processo. O constrangimento da segurança salarial tem induzido as famílias, segundo a capacidade de cada uma ou de acordo com organização coletiva, a buscarem novas fontes de renda via mercado ou a demandarem alguma nova transferência de renda do Estado. Tal movimento acabou levando as famílias a procurar novas formas de proteção contra o risco futuro tanto na esfera financeira como na da política pública. No que se refere a esta última, essa necessidade, associada à heterogeneidade dos contratos e relações de trabalho, acabou corroendo o pilar básico de sustentação do estado de bem-estar social, a situação de assalariamento estável baseada no contrato por tempo indeterminado de trabalho.
A desigualdade no mercado de trabalho
O recuo dos salários no Produto Interno Bruto tem sido acompanhado de mudanças na própria estrutura salarial, que vem ampliando seu grau de desigualdade. Apesar da importância da renda do trabalho dependente na estrutura de renda dos países desenvolvidos, é escassa a disponibilidade de informação tabulada. Os resultados colocados à disposição pelas principais instituições internacionais organizam principalmente informação sobre o perfil da distribuição do total da renda de mercado. Isto é, das formas de renda relativas ao trabalho assalariado, ao trabalho autônomo e ao pró-labore dos empregadores
É inexistente informação tabulada sobre os valores nominais ou reais dos decis da distribuição salarial, bem como de seu grau de desigualdade. A dificuldade em encontrar esses dados pode ser rapidamente constatada através de uma busca na internet colocando as seguintes palavras-chave: wage, gini, oecd7. O resultado indicará uma série de ensaios sobre desigualdade da estrutura salarial, mas nenhum apresenta uma série com os valores dos decis e de índices de desigualdade. Estudos realizados por instituições multilaterais tratam do assunto sem o devido detalhamento da informação8. Portanto, a análise aqui realizada tem seus limites dados pela restrição de informação disponível sobre salários para os países da OCDE.
Como indicado anteriormente, as alterações na distribuição dos rendimentos encontram-se relacionadas com as mudanças na estrutura ocupacional. Ao menos em duas perspectivas: de um lado, a recorrência do desemprego9 tende a pressionar negativamente os salários, ao enfraquecer o poder de barganha dos trabalhadores10 com a destruição de empregos de certos segmentos de ocupações ou setores de atividade econômica (Galbraith, 2008). De outro, a reorganização da estrutura ocupacional em termos de qualificação e maior heterogeneidade dos contratos de trabalho deve se associar a alterações na estrutura de salários (Gordon; Dew-Becker, 2008).
Os mercados nacionais de trabalho dos países da OECD viveram com ambos os movimentos durante estes últimos 40 anos. De um lado, um desemprego recorrente e, de outro, mudanças na estrutura ocupacional, mas com a reiteração do trabalho assalariado marcado por uma progressiva heterogeneidade das formas de contrato e de relações de trabalho.
Segundo dados da OECD, dentre os países desenvolvidos11, somente a Itália apresenta atualmente uma participação do trabalho assalariado inferior a 80% do total da ocupação12. Entre 1990 e 2008, apenas Canadá, Holanda e Suécia conheceram uma pequena redução dessa participação. Se a predominância do assalariamento é uma dimensão evidente dos mercados de trabalho desses países, ela é caracterizada por uma progressiva transformação ditada pelo incremento relativo e absoluto dos contratos de trabalho em tempo parcial.
De uma situação de presença residual nos anos 1970, exceção feita à Suécia e à Holanda, esse tipo de relação de trabalho tem expressão em todos os mercados de trabalho dos países desenvolvidos13. Ainda de acordo com a OCDE, a difusão do trabalho dependente com contrato por tempo determinado apresenta-se ainda de forma restrita, conhecendo participações inferiores a 5% em 200814.
Pode-se afirmar, seja via desemprego, seja através do contrato e das relações de trabalho, que os mercados nacionais de trabalho conheceram um processo de progressiva fragmentação dos coletivos de trabalho que dificilmente não poderiam se traduzir em desvalorização dos salários com aumento da desigualdade. A transição de um modelo de organização fundado na lógica do interesse coletivo para outro orientado para aquela de interesse individual ou de segmento restrito de ocupados, corroeu uma determinada estrutura institucional, dando espaço para outra de natureza mais fragmentada em termos de interesse e de resultados salariais, como apontam Kochan e Shulman (2007).
A tendência de desvalorização dos salários pode ser observada quando se compara sua evolução com aquelas do Produto Interno Bruto ou da produtividade. Segundo dados da OECD, os salários conheceram incrementos relativamente mais lentos desde 1990, com exceção da Dinamarca15. A discrepância é significativamente mais acentuada em relação ao desempenho do Produto Interno Bruto.
Segundo dados do Bureau of Labor Statistics (BLS) para os Estados Unidos, enquanto a produtividade industrial teve um incremento de 150% entre 1979 e 2005, o salário médio no setor ficou estagnado. A evolução desfavorável dos salários torna-se ainda mais patente quando relacionado o salário mínimo com o salário médio. Segundo a OCDE, essa relação tem se mantido estável desde o início dos anos 1990, com exceção de França, Irlanda e Coreia, que conheceram um incremento da expressão relativa do salário mínimo devido ao aumento de seu valor real observado ao longo do período. Isto é, esse resultado evidencia um comportamento do salário médio que não destoa daquele do piso de remuneração legal, sugerindo, portanto, que os acordos coletivos ou individuais não têm sido capazes de produzir ganhos salariais relativamente mais expressivos que aquele propiciado pela política pública16.
A evolução desfavorável do salário médio tem se traduzido em um aumento da dispersão salarial, evidenciado pela relação entre os rendimentos do nono e do primeiro decis. Esse movimento tem estado presente na maioria dos países da OCDE, independentemente das diferenças de estruturas institucionais de regulação do mercado e das relações de trabalho. Alguns países escapam desse movimento, como a Finlândia, a França e o Japão. Outros conhecem uma progressão importante da relação, como Estados Unidos e Reino Unido. Apesar dessas diferenças, existe um reconhecimento amplo sobre a consistência do movimento enquanto expressão de uma tendência de elevação da desigualdade no mercado de trabalho. Como reconhece a OECD (2008), é preocupante que o aumento da desigualdade, nos últimos anos, tenha ocorrido em um contexto de crescimento econômico.
É preciso explicitar, como indica Levy (2007) para a experiência americana, que tal resultado deve ser analisado considerando as mudanças na matriz institucional da regulação do mercado e das relações de trabalho. As transformações econômicas e tecnológicas, em um regime de economia aberta e de política econômica conservadora, e as mudanças nas instituições de regulação pública recompuseram uma assimetria no mercado e nas relações de trabalho, que explica a distribuição desigual dos ganhos que o crescimento recente propiciou. Apesar de as alterações no quadro institucional terem sido convergentes com a perspectiva conservadora, debatida anteriormente, os resultados não confirmam sua hipótese de que elas se traduziriam em menor desigualdade.
Ao contrário, o enfraquecimento da regulação pública tem sido acompanhado da ampliação recorrente da desigualdade nos países desenvolvidos nestes últimos quase 40 anos. As novas condições de regulação pública sobre o mercado e as relações de trabalho, em conjunto com as novas condições econômicas e tecnológicas, possibilitaram a corrosão progressiva da sociedade salarial do pós-guerra, que havia dado sustentação para a redução das desigualdades durante as décadas de 1950-1970 (Lindert, 1998; Castel, 2009; Galbraith, 1998).
A desigualdade, do mercado de trabalho para a renda dos domicílios
A perda de importância da renda do trabalho no Produto Interno Bruto e as transformações na estrutura e na formação dos salários tiveram impactos sobre o processo de formação da renda monetária dos domicílios, bem como no seu perfil de desigualdade.
Segundo dados compilados pela OCDE, uma clara tendência de aumento da concentração da estrutura de renda disponível17 tem sido observada nos últimos quase 40 anos, sendo que poucos países escaparam desse movimento. Ademais, os resultados indicam a importância das políticas públicas para a redução da desigualdade nesses países. Em vários deles, ela conhece uma redução substantiva após a incidência das transferências propiciadas pela política de proteção social, sendo que metade dessa redução é explicada pelas políticas de transferência de renda e de subsídio à habitação. Portanto, as políticas de proteção social têm impedido, mesmo tendo sido enfraquecidas pela política econômica, um aumento maior da desigualdade de renda dos domicílios nestas últimas décadas, explicitando a importância e a complexidade das instituições públicas e seu papel para a redução da desigualdade. Se, de um lado, o enfraquecimento da proteção ao trabalho alimentou o aumento da desigualdade, nota-se, de outro, que a proteção social continuou a contribuir para a sua redução.
Explicita-se, desse modo, uma dimensão relevante do desenvolvimento capitalista atual, associada à presença de uma base institucional suficientemente abrangente para influenciar a distribuição de renda, mesmo após o longo período de transformação da política pública estabelecida pela perspectiva conservadora. Apesar de todo o discurso positivo ou negativo em relação à predominância dos mecanismos de regulação de mercado18, nota-se que eles tiveram papel decisivo no que se refere à desigualdade associada ao mercado de trabalho. No campo da proteção social, os instrumentos extramercados continuam a ter função fundamental para a redução da desigualdade de renda.
Como indicado anteriormente e como será explorado mais à frente, as mudanças no mercado de trabalho se traduziram em alterações na formação da renda dos domicílios19. Outras condições para o processo de formação da renda domiciliar têm sido estabelecidas pelas novas formas de organização e acumulação de capital, que se expressam, de um lado, pela desvalorização da renda do trabalho e, de outro, pela maior importância das formas de renda de natureza financeira e derivada da posse de ativos. Ambos os processos tendem a afetar de maneira diferenciada os domicílios ou famílias. Aqueles de menor renda vêm perdendo renda do trabalho, ao mesmo tempo em que possuem baixa capacidade de obter compensação via renda financeira, em razão de não serem detentores relevantes de ativos financeiros ou não. Os domicílios de alta renda perdem renda do trabalho, entendida na forma clássica de salários, mas ganham renda de outras naturezas, tanto pelo mercado de trabalho como pela posse de ativos. Esse movimento tem chamado a atenção de vários autores, que têm procurado analisar a evolução da renda do decil ou percentil considerado "top" em relação ao decil de base da distribuição, os 10% mais pobres (Piketty; Saez, 2006; Atkinson; Piketty, 2007; Landais, 2007 e Leigh, 2007a).
Essa preocupação se justifica, em grande medida, por dois argumentos. O primeiro decorre do poder dado pela apropriação de renda que tem sido concentrada em um segmento restrito da população nas últimas décadas. Os dados mostram que a parcela 1% mais rica tem se apropriado dos aumentos mais expressivos de renda. O outro se relaciona às implicações desse movimento em termos de esmigalhamento dos segmentos intermediários da distribuição, a considerada classe média. Os autores têm argumentado sobre a consolidação de um processo de concentração de renda marcado por uma progressiva polarização da estrutura, que vem produzindo uma alteração fundamental da configuração socioeconômica que deu sustentação ao movimento de redução da desigualdade no pós-guerra (Leigh, 2007a).
Os resultados apresentados nos estudos mostram um aumento substantivo da participação do estrato 1% superior na maioria dos países desenvolvidos. Segundo os dados compilados por Leigh (2007a), em vários países a situação atual remonta àquela prevalecente no início dos anos 1960. Para os Estados Unidos, o estrato superior detém atualmente uma parcela de renda equivalente à observada nos anos 1930, sendo o país que, de modo mais evidente, conheceu o aumento mais acentuado da participação do 1% mais rico nas últimas décadas. Para os países analisados, a única exceção é a Holanda.
Segundo Saez20, o 1% mais rico se apropriou de 45% e 65% dos aumentos do total da massa de rendimentos dos domicílios nos Estados Unidos durante os períodos 1993-2000 e 2000-2007, respectivamente. Ainda segundo dados desse autor, os salários e os bônus representavam, em conjunto, 10% da renda de mercado dos ocupados em cargos de direção pertencentes ao 1% mais rico, no final dos anos 1990, sendo a parcela restante explicada pelo recebimento de ações ou de outras formas de ativos financeiros.
Em suma, o aumento da desigualdade da renda tem sido associado a uma transformação do processo de formação da renda das famílias, que apresenta evidências razoáveis de sua associação com as alterações na dinâmica de acumulação capitalista rumo a uma maior financeirização da riqueza, a qual apresenta historicamente uma distribuição desigual.
Financeirização, renda disponível e patrimônio líquido dos domicílios, um processo simbiótico do aumento da desigualdade
Ao longo deste ensaio, trabalha-se a perspectiva de o aumento da desigualdade estar associado a uma alteração do processo de formação da renda dos indivíduos e das famílias, a qual estaria determinada por novas condições de acumulação de capital com maior centralidade da esfera financeira. A vantagem de se analisar esse processo a partir das experiências dos países da OCDE é de dupla ordem. A primeira decorre, mesmo que ainda limitada, da maior disponibilidade de informação, seja sobre a renda auferida via atividade do trabalho, seja aquela relacionada à posse de ativos de naturezas diversas. A outra se refere à análise das desigualdades em países nos quais a estrutura institucional pública teve papel relevante para sua redução, dentre a qual a desigualdade exclusiva de renda corrente. Esta segunda característica tende a dar maior estabilidade aos instrumentos de regulação e políticas públicas, reduzindo a possibilidade de a ocorrência de choques externos explicar mudanças no estado geral de desigualdade nesses países. Portanto, alterações na situação de desigualdade devem expressar alterações institucionais na organização da atividade econômica associadas a outras na matriz institucional. E quanto às mudanças nessa matriz, parece haver razoável reconhecimento da sua ocorrência na literatura econômica (Williamson, 2005; Kochan; Shulman, 2007). Dados sobre a estrutura de renda das famílias são disponíveis somente para os Estados Unidos. De acordo com o levantamento Survey of the Consumer Finances (SCF), realizado pelo Federal Reserve, 80% da renda média das famílias americanas provém da atividade do trabalho. Contudo, perfis bastante diferenciados são encontrados segundo níveis (estratos) de patrimônio líquido. No último decil superior, aproximadamente metade da renda total dos domicílios tem origem na forma salário, enquanto essa participação corresponde a 80% dos 25% de domicílios de menor renda. No estrato superior, os ganhos de capital equivalem a quase 15% e, no estrato inferior, a praticamente zero.
Considerando resultados de outros estudos que apontam para o fato de os ganhos de renda durante as últimas décadas não terem sido derivados da forma salário21, constata-se que a probabilidade de maiores ganhos se apresenta para os estratos em que os rendimentos na forma variável tenham maior expressão. Deve-se observar ainda a tendência de perda de representatividade da renda na forma salário durante o crescimento econômico ocorrido ao longo desta década. Isto é, as mudanças no mercado de trabalho, considerando-se aquelas incorridas na matriz institucional, tenderam a reforçar a importância das formas de renda não salarial. Enquanto para os estratos inferiores essa alteração foi marcada pelo maior peso das formas de renda da política pública de proteção social, tem-se que, para o superior, teve maior expressão a renda de fonte variável (juros, dividendos e ganhos de capital).
O processo de desvalorização da renda na forma salário se traduziu em mudanças na formação da renda das famílias, que tenderam a assumir características distintas segundo o tamanho do patrimônio líquido por elas detido, dada a forte distribuição desigual que sua posse carrega. Segundo a SCF, a concentração (Gini) do patrimônio líquido dos domicílios americanos correspondia a 0,812. Quando considerados os rendimentos auferidos segundo as outras formas de renda, o indicador de desigualdade da distribuição salarial era de 0,504 contra outros próximos de 0,880 para as distribuições dos juros e dividendos e dos ganhos de capital. Esses resultados são observados para outros países, como Reino Unido, Itália, Alemanha e Holanda (Banks; Tanner, 2002; Guiso; Jappelli, 2002; Eymann; Borsch-Supan, 2002 e Alessie et al., 2002).
Ainda segundo os resultados da SCF de 2007, 40% dos domicílios do primeiro decil não tinham "checking accounts"22. Isto é, não possuíam o instrumento básico de acesso ao crédito do mercado financeiro americano, exigido nos contratos para aquisição de ativos de maior expressão para a formação de um patrimônio. Ao contrário, o "checking accounts" se constituía em prática corrente nos estratos superiores. Em outras palavras, esses domicílios não somente concentram parte relevante do patrimônio líquido das famílias americanas, como têm maior potencial de acesso ao crédito necessário, ao menos parcialmente, para o seu aumento.
E quanto ao aumento do patrimônio observado nas últimas décadas, os dados da SCF evidenciam um claro desequilíbrio quando considerados os diversos estratos de domicílios segundo posse de ativos. Enquanto os 10% de maior patrimônio incrementaram, em média, aproximadamente US$ 1 milhão ao seu portfólio entre 1989 e 2007, observou-se que os 25% inferiores tiveram um aumento ao redor de US$ 4 mil. Isto é, os domicílios de maior patrimônio conseguiram um incremento 244 vezes ao obtido pelos 25% com menor posse de ativos, sendo que a relação entre os patrimônios dos dois estados era de 178 vezes em 2007. Portanto, os ganhos de renda associados aos ativos tendem a ampliar a desigualdade da distribuição de patrimônio.
Ainda em relação a esses dois estratos, a SCF informa que, em 2007, 17% dos domicílios de menor patrimônio tinham dívidas vencidas havia mais de 60 dias, contra 0,7% do estrato superior. E que quase 80% dos domicílios do estrato inferior tinham a residência principal como garantia de débito contraído, contra 29% daqueles do estrato de maior patrimônio.
Esses resultados apontam a necessidade de relacionar renda corrente e patrimônio, mas também a dinâmica entre renda e ativo na análise da desigualdade. Pois como argumenta Leigh (2007a), é necessário associar a desigualdade ao desequilíbrio de poder econômico derivado da renda disponível e de patrimônio dos domicílios do "top" da distribuição. Esse poder se traduziu em ganhos extremamente elevados de rendas patrimoniais, que devem ser associados ao comportamento da renda corrente desses domicílios23 e, posteriormente, à valorização do patrimônio por eles detido.
Dados mais agregados sobre a desigualdade na distribuição do patrimônio líquido encontram-se compilados para alguns outros países. Esses resultados agregados têm sido produto de um importante esforço realizado pela Luxembourg Income Study (LIS), instituição financiada por diversos países desenvolvidos e que vem contando com a participação de alguns em desenvolvimento. A instituição tem procurado consolidar os dados relativos à renda corrente ou de mercado das famílias, bem como aqueles referentes ao patrimônio por elas detido, com o objetivo de entender a dinâmica atual da renda e a complexidade da desigualdade de renda no capitalismo atual. Como se pode notar na Tabela 6, são poucos os países com informação disponível sobre patrimônio dos domicílios, sendo que ela é encontrada pontualmente, não havendo a possibilidade de uma série histórica24.
Os resultados reiteram aqueles propiciados, de modo mais detalhado, pela Survey of Consumer Finances (SCF) para os Estados Unidos, mesmo que o grau de desigualdade encontrado seja relativamente menor em alguns dos países selecionados.
Além da elevada concentração observada em todas as distribuições nacionais, os dados compilados pela LIS revelam a existência de uma parcela ponderável de domicílios com patrimônio negativo. Isto é, em situação de endividamento superior aos ativos detidos.
A intensidade da concentração do patrimônio pode ainda ser avaliada quando se comparam seus valores médio e mediano com aqueles observados para a renda disponível nos países considerados pelo LIS. Reiteradamente as relações entre médias e medianas para patrimônio líquido são muito mais elevadas que as encontradas para a renda disponível.
Mesmo assim, as relações entre médias e medianas para o patrimônio líquido revela limitadamente o tamanho da desigualdade da distribuição da posse dos ativos. De um lado, vemos que essa relação corresponde a 3 e 7 vezes para a Suécia e os Estados Unidos, respectivamente. De outro, percebe-se que o grau de desigualdade da distribuição de patrimônio, medido pelo coeficiente de Gini, é superior na Suécia (Tabela 6). Isto é, a relação entre média e mediana pode dar alguma ideia da extensão da desigualdade, mas é insuficiente para revelar sua intensidade e a associação que ela dinamicamente envolve entre patrimônio e renda disponível.
De fato, uma nova era da desigualdade
Fitoussi e Rosanvallon (1996) argumentaram em favor de uma nova era da desigualdade na sociedade capitalista desenvolvida. De acordo com os autores, sua particularidade é produto da ocorrência de três processos concomitantes e interdependentes: i. de enfraquecimento dos princípios de igualdade na sociedade com enfraquecimento dos interesses coletivos; ii. de natureza estrutural relacionado às mudanças nas estruturas de renda disponível, de gasto e de patrimônio; iii. de natureza dinâmica associada à dinâmica das instituições jurídica e econômica e tecnológica.
Ao longo deste ensaio procurou-se explorar a emergência desse novo estado de desigualdade, relacionando-o à ocorrência desses processos, procurando indicar como eles têm produzido alterações substantivas na dinâmica de formação da renda disponível dos indivíduos, das famílias e dos domicílios. Mesmo reconhecendo a importância de todos eles, parece haver razoável evidência de que as mudanças na regulação dos contratos e das relações de trabalho e seus efeitos de ampliação da heterogeneidade do trabalho assalariado e de desvalorização dos salários se constituem em raiz do aumento da desigualdade nestas últimas décadas.
O enfraquecimento do trabalho assalariado no processo de repartição primária do produto foi decisivo para afetar tanto a proteção social e do trabalho como os interesses coletivos que a ordenavam politicamente a partir de uma maior democratização na gestão tanto da política econômica como da política social.
Esse movimento se traduziu em ampliação do grau de liberdade da acumulação de capital em favor das formas de renda variável e de valorização do patrimônio e da renda a ele associada, tendo ele sido amplamente favorecido pelas transformações tecnológicas e pela abertura das economias trilhadas, desde a década de 1970, pelas economias desenvolvidas e em desenvolvimento.
Desse modo, o movimento foi corroendo a capacidade de regulação das instituições que haviam permitido a menor desigualdade no pós-guerra, sendo, entretanto, que o processo pode não ter ganho uma velocidade mais expressiva devido à impossibilidade de a acumulação de capital recusar a complexa estrutura institucional construída em seu desenvolvimento secular. A literatura econômica dá amplas evidências sobre a reorganização contínua das instituições de forma a garantir a emergência de estruturas virtuosas à nova dinâmica de acumulação de capital. Concomitantemente, a necessidade do complexo institucional acabou por reproduzir, ao menos em parte, as estruturas que contribuíram para a redução da desigualdade no pós-guerra, isto é, as políticas sociais.
O processo de reorganização atingiu diferenciadamente as instituições de regulação, sendo que parece ter afetado de modo mais intenso aquelas relacionadas ao mercado e às relações de trabalho, transformação fundamental para alterações nas condições de repartição primária do excedente. A renda estável na forma salário perdeu legitimidade e espaço para aquelas de natureza variável, afetando a formação de renda das famílias e a referência fundamental desse processo. Sendo as rendas variáveis particularmente acessíveis aos segmentos superiores da distribuição, seja em decorrência das ocupações exercidas por essa parcela da população, seja pela importância da posse de patrimônio que ela detém, constata-se que a mudança na formação dos rendimentos se transfigurou em maior desigualdade econômica.
Assim, uma nova era da desigualdade econômica foi emergindo nos países desenvolvidos, revertendo a tendência de queda que havia sido estabelecida pela chamada sociedade salarial no pós-guerra. Tanto Fitoussi e Rosanvallon (1996) como Castel (2009) apontam para a transmutação desse processo econômico para o social, tornando multifacetada, portanto, a desigualdade. Ademais, o documento da American Political Science Association (Apsa, 2004) explora as mudanças nas instituições e na conformação institucional dos interesses políticos dos diversos segmentos da sociedade, que tiveram papel fundamental tanto para legitimar as transformações econômicas como as sociais que explicam o aumento da desigualdade.
Finalmente, se a posse de patrimônio e a inserção no "top" da estrutura ocupacional, por um lado, dão evidências estatísticas da raiz do aumento da desigualdade econômica, deve-se ressaltar, por outro, que a relevância dessas variáveis decorre da reorganização institucional na regulação econômica e social e do novo modo de acumulação de capital que esta permitiu consolidar nos últimos quase 40 anos.
Trabalho recebido em 2 de agosto de 2010
Aprovado em 9 de setembro de 2011.
Anexo
Referências bibliográficas
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Anexo
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
29 Jan 2013 -
Data do Fascículo
Dez 2012
Histórico
-
Recebido
02 Ago 2010 -
Aceito
09 Set 2011