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Práticas em serviço de saúde mental: interface com a satisfação profissional

Práctica en servicios de salud mental: interfaz con satisfacción profesional

Resumos

Este estudo buscou conhecer as percepções e sentimentos dos profissionais sobre a prática em serviços de saúde mental, com foco na satisfação profissional. Trata-se de uma pesquisa descritiva, com abordagem qualitativa, desenvolvida em três Centros de Atenção Psicossocial, com 29 profissionais. Para coleta do material empírico, foi utilizado o grupo focal. A análise dos resultados pautou-se na Análise Temática de Conteúdo. Os resultados centraram-se nas percepções a respeito da prática profissional, destacando-se os impasses vivenciados e os entraves à satisfação profissional. Percebe-se o conflito dos trabalhadores frente às exigências do ideário da Reforma Psiquiátrica brasileira, ao qual se sentem aderidos, e a ausência de recursos necessários à sua aplicação, explicitando uma situação limite - viver e ter de lidar com a angústia de não poder fazer seu trabalho, conforme acreditam deveria ser feito.

Saúde mental; Prática profissional; Serviços comunitários de saúde mental


Este estudio investigó las percepciones y sentimientos de la práctica profesional en servicios de salud mental, centrándose en temas relacionados con la satisfacción en el trabajo. Se trata de un enfoque cualitativo desarrolado en instituciones comunitarias con 29 profesionales, los datos fueron recolectados a través grupo focal y se utilizó el análisis de contenido. Los resultados se centraron en las percepciones de la práctica profesional, poniendo de relieve los dilemas experimentados y barreras a la satisfacción en el trabajo. Se observan los conflictos de los trabajadores frente a los fundamentos de la Reforma Psiquiátrica brasileña, el cual apoyan, y la falta de recursos necesarios para sostener su aplicación en la práctica, demostrando una situación limite - vivir y tener que lidiar con la angustia de no poder hacer su trabajo, como creen que deberia hacerse.

Salud mental; Practica profesional; Servicios comunitarios de salud mental


This study aims at investigating the perceptions and feelings concerning professional practices in mental health services and is focused on issues related to work satisfaction. This is a descriptive study based on a qualitative approach which has been developed through three communitarian services involving 29 professionals. Empirical material was gathered though the target group. Once the content analysis was completed, the results were directed at the perceptions of professional practices, also highlighting all experienced dilemmas and obstacles related to work satisfaction. These obstacles serve to expose all of the difficulties faced by workers in light of requirements stemming from Brazilian Psychiatric Reform ideals which cause them to feel paralyzed, and also the lack of resources required to support professional practices. All of these factors exemplify an extreme situation - living and coping with the distressing feeling of being unable to accomplish their work as they believe it should be done.

Mental health; Professional practice; Community mental health services


ARTIGO ORIGINAL

Práticas em serviço de saúde mental: interface com a satisfação profissional1 Endereço para correspondência: Jaqueline Queiroz de Macedo Laboratório de Stress, Álcool e Drogas Faculdade de Enfermagem de Ribeirão Preto da USP Avenida Bandeirantes, 3900, sala 148 14040-902 - Campus Universitário, Ribeirão Preto, SP, Brasil E-mail: jaquelinemacedo@usp.br

Práctica en servicios de salud mental: interfaz con satisfacción profesional

Jaqueline Queiroz de MacedoI; Helder Pádua LimaII; Maria Dalva Santos AlvesIII; Margarita Antonia Villar LuisIV; Violante Augusta Batista BragaV

IDoutoranda em Enfermagem Psiquiátrica da Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo. Ribeirão Preto, São Paulo, Brasil. E-mail: jaquelinemacedo@usp.br

IIDoutorando em Enfermagem pelo Programa de Pós-Graduação em Enfermagem da UFC. Fortaleza, Ceará, Brasil. E-mail: padua_helder@hotmail.com

IIIDoutora em Enfermagem. Professora Associado do Departamento de Enfermagem da UFC. Fortaleza, Ceará, Brasil. E-mail: dalva@ufc.br

IVDoutora em Enfermagem. Professora Titular do Departamento de Enfermagem Psiquiátrica e Ciências Humanas da Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo. Ribeirão Preto, São Paulo, Brasil. E-mail: margarit@eerp.usp.br

VDoutora em Enfermagem. Professora Associado do Departamento de Enfermagem da UFC. Fortaleza, Ceará, Brasil. E-mail: vivi@ufc.br

Endereço para correspondência Endereço para correspondência: Jaqueline Queiroz de Macedo Laboratório de Stress, Álcool e Drogas Faculdade de Enfermagem de Ribeirão Preto da USP Avenida Bandeirantes, 3900, sala 148 14040-902 - Campus Universitário, Ribeirão Preto, SP, Brasil E-mail: jaquelinemacedo@usp.br

RESUMO

Este estudo buscou conhecer as percepções e sentimentos dos profissionais sobre a prática em serviços de saúde mental, com foco na satisfação profissional. Trata-se de uma pesquisa descritiva, com abordagem qualitativa, desenvolvida em três Centros de Atenção Psicossocial, com 29 profissionais. Para coleta do material empírico, foi utilizado o grupo focal. A análise dos resultados pautou-se na Análise Temática de Conteúdo. Os resultados centraram-se nas percepções a respeito da prática profissional, destacando-se os impasses vivenciados e os entraves à satisfação profissional. Percebe-se o conflito dos trabalhadores frente às exigências do ideário da Reforma Psiquiátrica brasileira, ao qual se sentem aderidos, e a ausência de recursos necessários à sua aplicação, explicitando uma situação limite - viver e ter de lidar com a angústia de não poder fazer seu trabalho, conforme acreditam deveria ser feito.

Descritores: Saúde mental. Prática profissional. Serviços comunitários de saúde mental.

RESUMEN

Este estudio investigó las percepciones y sentimientos de la práctica profesional en servicios de salud mental, centrándose en temas relacionados con la satisfacción en el trabajo. Se trata de un enfoque cualitativo desarrolado en instituciones comunitarias con 29 profesionales, los datos fueron recolectados a través grupo focal y se utilizó el análisis de contenido. Los resultados se centraron en las percepciones de la práctica profesional, poniendo de relieve los dilemas experimentados y barreras a la satisfacción en el trabajo. Se observan los conflictos de los trabajadores frente a los fundamentos de la Reforma Psiquiátrica brasileña, el cual apoyan, y la falta de recursos necesarios para sostener su aplicación en la práctica, demostrando una situación limite - vivir y tener que lidiar con la angustia de no poder hacer su trabajo, como creen que deberia hacerse.

Descriptores: Salud mental. Practica profesional. Servicios comunitarios de salud mental.

INTRODUÇÃO

A lógica da Reforma Psiquiátrica proposta pela Política Nacional de Saúde Mental no Brasil remete à articulação de ações de saúde e de saúde mental, com base na possibilidade de propor mudanças, uma vez que "é um movimento sociopolítico ocorrendo no âmbito da saúde pública".1:22 Aponta as mudanças como ocasionadas pelo direcionamento político-ideológico e não apenas técnico-cientifico.

Nos serviços substitutivos em saúde mental, o objeto de trabalho é um sujeito com singularidades e implicações de vida além do sofrimento mental e/ou dependência química. Nesse contexto, para atuar na perspectiva psicossocial, autores2 expõem a necessidade de um trabalho em equipe, sustentado por relações horizontais, diálogo e humildade face ao sofrimento mental, bem como flexibilidade na prática entre os profissionais.

O trabalho em saúde mental apresenta-se permeado de especificidades, as quais requerem dos trabalhadores habilidades para lidar com o ser humano, tendo em vista compreendê-lo numa perspectiva da integralidade do cuidado em saúde. Sobretudo porque se lida no cotidiano com o sofrimento e a loucura, o que torna o ambiente permeado por intensa produção subjetiva e intersubjetiva. Assim, os trabalhadores estão expostos a diversas situações, as quais podem ocasionar maior ou menor (in)satisfação.3

Ante a transição das práticas profissionais nos serviços especializados de atenção à saúde mental, exige-se desses profissionais a realização de "novas" práticas que se coadunem com os objetivos da Reforma Psiquiátrica, mesmo em um contexto ainda repleto por concepções preconceituosas, que não ensejam a reinserção social do sofredor mental e, muitas vezes, nem mesmo a sua utilização dos espaços comunitários.4 Nessa realidade, existem ainda as questões e dificuldades relativas ao financiamento dos serviços para realização das atividades e a própria valorização dos profissionais.5

Para tanto, há a necessidade de reflexão no âmbito da subjetividade desses profissionais, a sua implicação com os serviços e a perspectiva que têm do próprio trabalho, que influenciam diretamente no seu comprometimento com as práticas profissionais. Entende-se a satisfação profissional como o bem-estar ante as práticas relacionadas com as demandas do serviço profissional.6

A satisfação é determinada por aspectos intrínsecos e extrínsecos ao ambiente de trabalho e tem consequências na vida do trabalhador, nas suas mais diferentes áreas. Tais elementos estão presentes no próprio ambiente em que se realizam as atividades laborais, os quais pertencem a dois grandes grupos: eventos e condições (remuneração, trabalho em si, promoção e reconhecimento, condições e ambiente de trabalho), e agentes (colegas e subordinados, supervisão e coordenação/gerenciamento, instituição/organização).3

No círculo da saúde mental, estudos evidenciam que a insatisfação no trabalho está diretamente relacionada às mudanças na equipe e elevados índices de faltas, ações que podem afetar a qualidade da assistência.7 Somados a isso estão ainda outros fatores, como a exposição às dificuldades dos usuários, condições e qualidade de vida, apatia e ausência de autonomia com relação à prática e aos recursos, além do envolvimento com o outro, o que influencia diretamente na satisfação profissional da equipe dos serviços de saúde mental.8

Assim, questiona-se: como os profissionais de serviços especializados em saúde mental se sentem com relação à prática que desenvolvem no cotidiano? Ante o exposto, objetivou-se identificar as percepções e sentimentos dos profissionais de nível superior acerca da prática que desenvolvem nos serviços substitutivos em saúde mental.

MATERIAL E MÉTODOS

A pesquisa descritiva, com abordagem qualitativa, foi desenvolvida em um município do interior do Estado da Paraíba, que apresenta 385.213 habitantes, situada na caatinga, entre o alto do sertão e o litoral, e contém 112 estabelecimentos de saúde, dentre os quais cinco Centros de Atenção Psicossocial. No âmbito da Reforma Psiquiátrica brasileira teve o hospital psiquiátrico público local desativado há meados de uma década, época na qual foram criados diversos serviços substitutivos. O cenário para coleta de dados foi três desses serviços: Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) III, CAPS infantil e CAPS álcool e outras drogas.

Para a composição do número de participantes do estudo considerou-se a Portaria/GM n. 336/2002, que define o quantitativo mínimo de profissionais de nível superior obrigatórios para o funcionamento do serviço. Desse modo, a amostra foi composta de forma intencional, não-aleatória, por 29 profissionais entre enfermeiros (seis), psicólogos (11), assistentes sociais (dois), fisioterapeutas (dois), fonoaudiólogos (três) e pedagogos (cinco) que atendiam aos critérios de inclusão: atuar no serviço em exercendo uma ocupação de nível superior e estar vinculado ao serviço há pelo menos seis meses.

Para consecução do material empírico foi utilizado o grupo focal, tipo de coleta de dados em grupo que permite a interação dos participantes em torno de um tema,9 tendo como pergunta norteadora - "O que você sente ao realizar suas atividades diárias nesse serviço?" A técnica mostrou-se adequada pela constituição da diversidade de conhecimentos acerca do objeto da representação, ao agregar a entrevista à dinâmica do grupo. Assim, ocorreram três grupos focais no período de janeiro e fevereiro de 2011, um em cada serviço exposto, com duração média de uma hora cada, conduzido pelo moderador e auxiliado por dois observadores. A análise dos núcleos de sentido das falas pautou-se na Análise Temática de Conteúdo.10 De início foi realizada a organização do material, a partir da leitura geral que permitiu a especificação do campo em que iria se fixar a análise (fase de pré-análise). A partir dessa primeira etapa, foi realizada a descrição analítica, em que se procedeu à codificação do corpus. Ao final, com foco no material empírico obtido, partiu-se para a interpretação referencial, com a reflexão e o estabelecimento de relações do conteúdo presente nas falas, com o intuito de encontrar o sentido latente e dinâmico que apresentam.

O desenvolvimento do estudo seguiu as diretrizes emanadas da Resolução 196/96 do Conselho Nacional de Saúde, sendo iniciado após parecer favorável n. 0620.0.133.000-10, emitido pelo Comitê de Ética em Pesquisa da UEPB, garantindo os princípios bioéticos de autonomia, não-maleficência, beneficência e justiça. Todos os participantes assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido e, em razão do anonimato, foram nomeados de P (Participante), seguido do número que representa a ordem em que foi introduzido na pesquisa. Para ter-se uma visão do contexto geral do trabalho e da preservação do anonimato dos participantes, optou-se por não caracterizar a formação profissional e o serviço especializado no qual atua.

RESULTADOS

A partir dos discursos foram conhecidas as percepções e sentimentos dos profissionais acerca da prática profissional em saúde mental. Este artigo aborda a categoria "Aspectos referente à satisfação profissional", expondo a relação entre as subcategorias "Demanda de trabalho" e "Carência profissional no comprometimento das práticas".

Aspectos referente à satisfação profissional

Demanda de trabalho

Os participantes enfatizaram os aspectos relativos ao cansaço, em face das práticas realizadas no serviço de saúde mental, pelo fato de remeterem à exposição a fatores que afetam a sua resistência emocional e física.

[...] e me sinto também cansada, no final do dia, porque é um trabalho muito desgastante [...] (P12).

[...] e creio também que essa questão do cansaço que [participante 12] falou, no fim do dia a gente está um pouco moído. Porque os casos que a gente pega são um pouco pesados [...] (P13).

[...] por mais que muitas vezes eu chegue superestressada, sobrecarregada em casa, porque você acaba se sobrecarregando [...] (P27).

[...] porque a demanda é muito grande, a gente sabe que os casos são, são casos bem sérios, então a gente precisaria, realmente, tá mais de dentro, ta olhando, observando [...] são casos muito delicados. Às vezes você pode achar que ta fazendo uma coisa seria e acabar, sem querer, provocar alguma coisa que não é tão agradável na criança (P18).

Verifica-se que a demanda de trabalho sentida está causando cansaço, estresse e sobrecarga, pois alegam dificuldades acerca da quantidade e das características dos usuários assistidos. Essa situação exige dos participantes atenção constante, vigilância e concentração, pois atuam junto a usuários com quadro "pesado", "sério", "delicado". Enfatiza-se, também, o fato de não exporem os indicadores que motivam essa classificação dos usuários.

Carência de investimento no profissional

A condição para valorização no desenvolvimento das práticas parece estar associada ao investimento no profissional. Dentre os participantes, apenas oito são concursados públicos, regidos pelo plano de cargos, carreiras e salários, enquanto, entre os demais, o vínculo decorre de contratos temporários ou são celetistas. Quanto ao investimento no profissional, os participantes apontam que isso reflete a valorização que o serviço dedica a este, que implica em ofertar rendimentos financeiros correspondentes à categoria profissional e ao trabalho executado, mas, além disso, ao investimento na sua capacitação, fornecimento de condições de atuação favoráveis com relação a materiais e instrumentos e meios de progressão na área.

A minha angústia é sentir tanta angústia por todas essas questões dos CAPS, e na verdade não ser valorizada a angústia que a gente sente, porque a gente recebe um salário insignificante, não dá nem conta de pagar um acompanhamento terapêutico, no mínimo, e a insalubridade nem, na verdade, paga um plano de saúde. Então, assim, a gente já começa a ver que o nosso trabalho de trabalhar com tantas questões que adentram na saúde mental, mas na verdade não há um reconhecimento em cima desse trabalho. Se cobra uma carga horária total, 40 horas ao pé da letra, cobra-se um investimento teórico, um investimento pessoal, mas na verdade não oferece recursos para que a gente possa investir nesse trabalho, [...] porque, assim, o salário da gente hoje, 40 horas, eu acho que é o que ta mais baixo em todo o [...] eu acho que a nível de Brasil, que é R$1.200,00 [...]. Na verdade, ta defasado faz cinco anos [...] (P14).

40 horas de saúde mental não é brinquedo. Não é fácil, não [...] (P15).

Devia ser humanamente, humanamente não, devia ser proibido [40h semanais de saúde mental] (P21).

Conforme os relatos evidenciam, o desconforto vivenciado não se refere, somente, ao sentimento de angústia, que por si só já seria suficiente, mas ao fato de constatar que seu compromisso não está sendo reconhecido pelos órgãos públicos. Além disso, o cumprimento da carga horária integral na área da saúde mental lhes ocasiona uma sensação de sobrecarga de trabalho, devido às prováveis necessidades de melhoria de condições locais de trabalho e por não lhes ser proporcionado um acompanhamento específico de sua saúde, fato considerado pelo profissional como um sinal de reconhecimento pelo seu desempenho.

[...] e vendo isso, quando a gente percebe que o nosso salário deixa muito a desejar [risos], ainda assim, a gente se sente muito feliz com o trabalho que a gente faz aqui. Exatamente por isso que a gente vem! (P29).

O salário, um indicador importante de valorização profissional, não atinge o nível esperado, no entanto, o trabalhador diz sentir-se feliz com seu trabalho, revelando uma relação ambivalente em relação ao trabalho desenvolvido e a remuneração financeira do mesmo.

Os discursos apontam que não se valoriza a angústia sentida pelo participante com o desenvolvimento da prática profissional, evidenciada pelos indicadores cobrança de cumprimento de horário para trabalhar, com a demanda de saúde mental, de investimento teórico pessoal, não financiado pelo serviço, e necessidade de apoio emocional terapêutico. Esses dois últimos, por sua vez, são impedidos de serem arcados pelo participante, devido ao "salário baixo" oriundo do serviço. Tal fato enfatiza a concepção de que a atuação na área relaciona-se com sentimentos de altruísmo e doação.

Comprometimento das práticas

A prática profissional na saúde mental também foi associada à carência de recursos materiais, financeiros, intersetoriais e comunitários, que interfere nas ações desenvolvidas e compromete a qualidade da assistência. As condições subjetivas, relacionadas ao profissional, também influenciam, ocasionando frustrações e angústias ante a impossibilidade de solução de alguns casos vivenciados na prática.

Só eu não me sinto melhor porque a questão do meio, assim, as escadas lá de cima, elas não nos ajudam, aqui a gente só tem mesmo o corpo e a mente para trabalhar. Já foi falado aqui, não tem nada... estrutura. Tem muita coisa que a gente precisa para nos ajudar para se realizar profissionalmente [...] (P26).

Com base no discurso do profissional, pode-se constatar o quanto ele se sente sem apoio institucional para realização de um trabalho de qualidade e, até mesmo, para se sentir realizado profissionalmente. Pelo exposto, parece que o profissional conta principalmente, e quase que exclusivamente, consigo mesmo enquanto recurso de atuação, motivo pelo qual talvez apontem que o trabalho que realizam é uma doação.

Porque a gente, venhamos e convenhamos, para realizar qualquer tipo de passeio, qualquer atividade sociocultural fora do serviço, é preciso ter recurso, e a gente não tem. Não é destinado recurso para dentro do serviço para poder fazer isso. Infelizmente, a gente fica de mãos atadas, desenvolvendo atividades tipo brechós, tipo festinhas, para a gente poder arrecadar fundos, para desenvolver alguma coisa com nossos próprios usuários. Deveria não ser dessa forma [...] (P8).

Esse depoimento corrobora o anterior e amplia a informação, dando indicadores a respeito das carências vivenciadas e que dificultam a realização de um trabalho, conforme preconizado pelas diretrizes governamentais.

Apesar de aqui existirem algumas angústias dentro da gente, porque por mais que a gente se doe, alguns não estão conseguindo sair daqui do CAPS, por questão desse processo social contra o qual a gente deve lutar, que é uma das grandes dificuldades que existem na própria sociedade, que é a questão do preconceito, e eles vêm demandando isso aqui [...] (P5).

Como ser humano, a gente também se angustia com a angústia do outro, e, se a gente não consegue suportar essa angústia, que é comum a todos, o nível de angústia vai lá para cima, e a gente paralisa, e só ver dificuldades, e só, e impossibilidades, e não consegue dar encaminhamento ao caso. Então eu acho que, pessoalmente, o maior desafio é suportar e lidar, e dar o encaminhamento à angústia [...] (P21).

Parece que, face a esses obstáculos, e ainda por não conseguir realizar seu trabalho dentro de padrões que julgariam adequados, e pela não resolução das demandas apresentadas pelos usuários, tudo isso gera conflitos pessoais, acompanhados de angústia, a ponto de lhes fazer sentir paralisar, por não perceber mecanismos possíveis para o encaminhamento das situações.

A partir das falas constantes nas subcategorias, foi construída a figura 1, a qual expõe um esquema com as subcategorias elencadas, bem como os elementos que integram e definem as percepções e sentimentos expostos pelos participantes.


Nesse diagrama se procurou esquematizar as percepções desses trabalhadores no intento de estabelecer articulações entre as mesmas. Percebeu-se a existência de uma demanda de trabalho geradora de cansaço, sobrecarga, a qual é potencializada pela carência de investimentos para implementar as práticas inovadoras que o modelo de atenção à saúde mental preconiza. Por sua vez, isso gera angústia, da mesma forma que tal carência de investimentos leva-os a perceber seu trabalho como uma doação, portanto, uma atuação desvalorizada que se concretiza através da constatação do valor da sua remuneração profissional e do não reconhecimento de seu desgaste, e, ainda, ao considerar as peculiaridades da clientela atendida e da quantidade de usuários e trabalho requerido, que acaba sendo realizado sem o apoio (material e logístico) necessário.

Frente a esse cenário, o trabalhador usa quase que exclusivamente a si mesmo, "o próprio corpo e mente" na realização de seu trabalho, por isso, talvez, ao não conseguir soluções ou encaminhamentos para os casos, vivencie a "paralisia", pois seu envolvimento é sentido também como psíquico-corporal.

DISCUSSÃO

As modificações preconizadas pela Reforma Psiquiátrica orientam o uso de diversas tecnologias na atuação interdisciplinar dos serviços de saúde mental, como acolhimento, escuta terapêutica, projetos terapêuticos individuais, vínculo, participação da família, que requerem uma requalificação e expansão dos papéis dos profissionais da equipe de atenção em saúde mental.11

Entre os elementos que contribuem para a sobrecarga de trabalho estão o acúmulo de funções cotidianas na prática profissional, o contato com o sofrimento mental, a família e o contexto social, cujas repercussões, nos profissionais, atingem a subjetividade aflorando os mecanismos de defesa de vários matizes.12

Nas falas dos profissionais aparecem convicções que remetem ao exposto por autora13 ao tratar da saúde do trabalhador de saúde mental. Na sua compreensão, há nessa área uma articulação de dois discursos, um explicito e um implícito, sobre os quais discorrer-se-á na sequência.

O discurso explícito refere-se aos objetivos dos equipamentos de saúde mental, os quais, em teoria, originariam e norteariam o trabalho daqueles que atuam nesses espaços, quais sejam "[...] reintegração do doente mental à sociedade, diminuição do sofrimento psíquico, cura, salvaguarda da dignidade humana",13:69-70 discurso esse que busca estar visível. Fato esse constatado no contexto dos profissionais participantes deste estudo, mais visível ainda no cuidado no uso dos termos para se referir aos usuários dos serviços e no não esclarecimento das razões do porquê o trabalho com eles "não é brinquedo", "é pesado".

O outro lado do discurso, "que nunca se acha nos documentos oficiais" e que não é expresso francamente são, dentre outros, "os entraves burocráticos para a realização de projetos superadores, o desamparo e o desânimo que os agentes de saúde vivem a cada passo, os baixos salários, as precárias condições de trabalho, de formação, a falta de espaços de reflexão que suportem suas práticas".13:70

Essas questões apontadas apareceram nos relatos dos participantes bem como a sua interferência no comprometimento de sua atuação, no sentido de atender aos objetivos de um serviço de saúde mental, conforme preconizados pelas políticas de saúde mental brasileiras. Consequentemente, ao perceberem que não atingem tais objetivos, vivenciam a insatisfação com o seu trabalho, a impotência e angústia ao não dar um encaminhamento adequado aos casos e, finalmente, a "paralisia" por não encontrar meio de resolução e saída.

Além disso, fatores políticos e culturais não se constituem de modo a favorecer a implementação do serviço, em razão de os órgãos públicos e a população ainda considerarem a necessidade de isolamento do sofredor mental.14 Esse contexto tem como consequência o comprometimento dos objetivos das práticas dispostas nesses "novos" serviços.

A saúde mental está demarcada num campo que carece de valor, quando comparado a outros da área de saúde, considerados como de mais atributos e procedimentos tecnológicos. Assim, a demanda da assistência psiquiátrica, muitas vezes, não passa pela capacitação (ou valorização) dos seus trabalhadores.13

Além disso, a operacionalização das práticas enfrenta dificuldades que envolvem a ausência de profissionais capacitados, de apoio financeiro que valorize o trabalho e de materiais para elaboração e realização das práticas, artísticas, pois estudo5 evidencia que a ênfase dos órgãos públicos para o funcionamento dos serviços é apenas a garantia dos medicamentos.

Quando os profissionais discutem sobre a dificuldade de recursos, remetem à discussão do financiamento dos CAPSs, o que é tratado em estudos teóricos.5,15 Afirma-se a constituição de um serviço com base em novas tecnologias e na atenção psicossocial, enquanto a lógica do financiamento ocorre via Autorização de Procedimento de Alta Complexidade (APAC), dependente da especificidade clínico-diagnóstica da doença.

Quanto aos investimentos no processo de desinstitucionalização, os profissionais evidenciam que a falta de autonomia pode influenciar na satisfação profissional,, em razão de os recursos e das possibilidades de abertura social ser insuficiente no contexto em que se encontram, achado que se coaduna com estudo desenvolvido na área.14

A insatisfação com o trabalho pode desencadear a diminuição da realização pessoal com as atividades profissionais, que se revelam em sentimentos como desmotivação, redução da autoestima, insuficiência. Desse modo, o profissional que atua na assistência, desenvolve uma luta cotidiana face aos sofrimentos, às necessidades dos usuários dos serviços e às próprias necessidades, requisitando atenção à sua própria saúde para que possa ocorrer um ajuste no enfrentamento da realidade profissional.16

Em razão do exposto, ressalta-se a dificuldade em obter requisitos materiais para realização de atividades, sejam artísticas, culturais ou de lazer, que apropriem os usuários dos CAPSs das oportunidades sociais disponíveis. Em adição, os profissionais encontram-se preocupados com as dificuldades da atenção, como a criação de redes, suporte familiar, parcerias com outros dispositivos e espaços de base comunitária, que auxiliem na reabilitação psicossocial e inclusão do usuário.

O campo de atuação na assistência aos usuários dos CAPSs é percebido pelos participantes, muitas vezes, como ato de doação. Essa ajuda pode ser entendida sob três perspectivas: biológica, como meio de aliviar o sofrimento alheio, o que ocasiona estresse em si próprio; religiosa, que está intrinsecamente, relacionada ao símbolo de bondade; e profissional, que remete ao dever daqueles que se disponibilizaram a fazer o possível por outro que esta em sofrimento.16 Depreende-se que as ações realizadas nos serviços repercutem além do universo da prática profissional nas condições subjetivas desses profissionais, uma vez que este profissional confronta-se, cotidianamente, com o dilema entre sensibilizar-se ou não com o outro, pois necessita assistir o usuário de modo humanizado, e, ao mesmo tempo, não se abater com os inúmeros sofrimentos que presencia na prática.16

Nessa conjuntura, os profissionais dos serviços de saúde mental percebem-se como instrumentos necessários para que os usuários possam transpor as barreiras em busca de iniciativas de inclusão social que reivindiquem direitos estabelecidos. Todavia, também referem impotência e vivenciam angústia ante a gestão pública na realização das práticas requeridas pelo serviço, por não depender apenas a esses a consecução de todos os recursos intersetoriais necessários.

A saúde mental não é a ausência de angústia, nem o conforto constante e uniforme, mas a existência da esperança, das metas, dos objetivos que podem ser elaborados. O que faz as pessoas viverem é o desejo, não só as satisfações. Quando o desejo não é mais possível, surge a perda do vigor, ocasionando sofrimento.17

Além disso, é apontada a carência de investimento no profissional para o aprimoramento das práticas, pois há a necessidade de condições de trabalho estáveis, e segurança trabalhista com salários condizentes com a área profissional, haja o fato de que profissionais com contratos precários remetem a uma equipe que pode não se implicar com os objetivos e a transformação das práticas, requerida pela atenção psicossocial. Em busca de solucionar a situação, autores18 indicam a necessidade de providências no que concerne ao comprometimento da gestão com a realização de concursos públicos voltados para os serviços da área.

A organização do trabalho, caracterizado pelo conteúdo da tarefa e pelas relações profissionais, exerce impacto no funcionamento psíquico do trabalhador, gerando prazer/sofrimento dependendo do quanto a tarefa é significativa para o trabalhador, e se as relações são ou não de reconhecimento, cooperação, confiança e solidariedade. Assim, o prazer/sofrimento inscreve-se numa relação subjetiva do trabalhador com seu trabalho de modo que, ao relacionar-se com os outros, vivencia e compartilha sua tarefa, influenciado por seus valores pessoais. O prazer é vivenciado quando são experimentados sentimentos de valorização e reconhecimento no trabalho.17

No contexto dos participantes, esse reconhecimento envolve também o investimento no profissional quanto à valorização da sua condição de saúde, pela consideração de que a atuação profissional ocasiona desgastes emocionais; e financeira, com salários e condições de trabalho adequadas às demandas e às exigências dos órgãos públicos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Neste estudo parece evidente o impasse dos trabalhadores frente às exigências do ideário da Reforma Psiquiátrica brasileira, preconizado pelas políticas de saúde mental, ao qual se sentem aderidos, e a ausência de sustentação de recursos necessários à sua aplicação na prática. A percepção dominante dos participantes foi a de que só podem contar consigo próprio, seus recursos pessoais, sem o apoio institucional necessário para realização de uma prática de qualidade, e também sinalizam uma situação limite - viver e ter de lidar com a angústia de não poder fazer seu trabalho, conforme acredita que deveria ser feito.

Além disso, a prática em saúde mental nos serviços substitutivos analisados é percebida nesta pesquisa como cansativa, em consequência das dificuldades na obtenção de recursos e da característica da demanda, que vão além do campo de trabalho, comprometendo as práticas e o alcance dos objetivos a que se propõem os serviços. Esta situação se amplia pelo fato de os investimentos no profissional serem percebidos como insuficientes, dadas as exigências que lhe são dirigidas.

Por se tratar de uma área que se encontra em constante luta pela definição de novas práticas, os profissionais da saúde mental são elementos fundamentais para a consecução da própria Reforma Psiquiátrica. Todavia, é nítida a necessidade de atenção a tais profissionais, responsáveis pelas práticas nos serviços de saúde mental, o que ocorrerá pela ampliação da ótica do Poder Público e da sociedade, para as questões relativas às demandas profissionais, autonomia no desenvolvimento da prática e valorização profissional.

Apesar dos achados relevantes deste estudo, existem limitações quanto ao método que devem ser consideradas, em razão da amostra intencional, não aleatória, que impossibilita a generalização dos resultados. Sugere-se a realização de estudos que possam aprofundar as questões quanto às condições de trabalho e ao desgaste psíquico do profissional em saúde mental nos serviços substitutivos.

Recebido: 03 de Maio 2012

Aprovado: 10 de Setembro 2013

1 Artigo extraído da dissertação - Representações sociais dos profissionais sobre a prática em saúde mental: pressupostos, ressignificação e satisfação profissional, apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Enfermagem da Universidade Federal do Ceará (UFC), 2011

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  • Endereço para correspondência:
    Jaqueline Queiroz de Macedo
    Laboratório de Stress, Álcool e Drogas
    Faculdade de Enfermagem de Ribeirão Preto da USP
    Avenida Bandeirantes, 3900, sala 148
    14040-902 - Campus Universitário, Ribeirão Preto, SP, Brasil
    E-mail:
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      06 Fev 2014
    • Data do Fascículo
      Dez 2013

    Histórico

    • Recebido
      03 Maio 2012
    • Aceito
      10 Set 2013
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