Resumos
Estudo descritivo, exploratório, com abordagem qualitativa. Buscou-se conhecer as experiências da equipe de enfermagem, com a morte de uma criança indígena hospitalizada e os sentimentos que emergiram dessa vivência. Participaram da pesquisa 11 profissionais. A coleta de dados foi realizada na Unidade Pediátrica de um hospital público municipal do interior do Estado de Mato Grosso. Após análise, as entrevistas foram agrupadas nos seguintes eixos temáticos: sentimentos manifestados pelo cuidador; estratégias de enfrentamento da morte; acolhimento à família perante a morte; o vivenciar da morte indígena versus não indígena; vivências com a negligência e o preconceito; impacto da morte na vida e saúde do profissional; impacto na vida do profissional; e apoio psicológico ao profissional. A equipe de enfermagem sofre frente à morte da criança indígena, o que acaba influenciando sua vida e suas atitudes, tanto no ambiente hospitalar como fora dele.
Morte; Saúde de populações indígenas; Equipe de enfermagem; Criança
Un enfoque cualitativo descriptivo, exploratorio. Tuvo como objetivo investigar la experiencia del personal de enfermería con la muerte de niños indígenas hospitalizados y los sentimientos que surgieron de esta experiencia. Participaron en la encuesta 11 profesionales. La recolección de datos se llevó a cabo en la Unidad Pediátrica de un hospital público municipal en el estado de Mato Grosso, Brasil. Tras el análisis, las entrevistas fueron agrupados en los siguientes temas: los sentimientos expresados por el cuidador; estrategias de afrontamiento; el apoyo a la muerte de la familia antes de la muerte; la experiencia de la muerte indígenas versus no indígenas; experiencias de abandono y perjuicio; el impacto de la muerte, de la vida y de la salud profesional; impacto en la vida de los profesionales; y el apoyo psicológico profesional. El personal de enfermería sufre antes de la muerte del niño indígena que influye en sus vidas y actitudes tanto dentro como fuera del entorno hospitalario.
Muerte; Salud de los pueblos indígenas; Grupo de enfermería; Niño
Descriptive, exploratory study, using a qualitative approach. The aim of this study was to learn the experiences of the nursing team in face of the death of a hospitalized indigenous child and the feelings that emerged from this experience. Participants were 11 professionals. Data were collected in the pediatric unit of a municipal public hospital in the interior of Mato Grosso state, Brazil. After analysis, the interviews were grouped into the following themes: feelings expressed by the caregiver; strategies for coping with death; support to the family in face of death; the experience of an indigenous versus a non-indigenous death; experiences with prejudice and negligence; the impact of death on the life and health of the professional; impact on the life of the professional; and psychological support to the professional. The nursing team suffers in face of the death of an indigenous child, which influences their lives and attitudes both in and outside the hospital environment.
Death; Health of indigenous peoples; Nursing team; Child
ARTIGO ORIGINAL
Vivências de uma equipe de enfermagem com a morte de criança indígena hospitalizada
Vivencias de un equipo de enfermería con la muerte del niño indígena hospitalizado
Pâmela Roberta de OliveiraI; Tane Miquieli Elicker SchirmbeckII; Rosaline Rocha LunardiIII
IMestre em Educação. Professora Assistente I do Curso de Enfermagem da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT). Mato Grosso, Brasil. E-mail: pamela_veira@yahoo.com.br
IIEnfermeira. Graduanda de Psicologia do Centro Universitário de Várzea Grande. Mato Grosso, Brasil. E-mail: tanefreire@gmail.com
IIIMestre em Ciências da Saúde. Professora Assistente II do Curso de Enfermagem da UFMT. Mato Grosso, Brasil. E-mail: rosaline@terra.com.br
Endereço para correspondência Endereço para correspondência: Pâmela Roberta de Oliveira Universidade Federal de Mato Grosso Instituto de Ciências Biológicas e da Saúde - Curso de Enfermagem Rodovia BR-070, Km 5 78600-000 - Barra do Garças, MT, Brasil E-mail: pamela_veira@yahoo.com.br
RESUMO
Estudo descritivo, exploratório, com abordagem qualitativa. Buscou-se conhecer as experiências da equipe de enfermagem, com a morte de uma criança indígena hospitalizada e os sentimentos que emergiram dessa vivência. Participaram da pesquisa 11 profissionais. A coleta de dados foi realizada na Unidade Pediátrica de um hospital público municipal do interior do Estado de Mato Grosso. Após análise, as entrevistas foram agrupadas nos seguintes eixos temáticos: sentimentos manifestados pelo cuidador; estratégias de enfrentamento da morte; acolhimento à família perante a morte; o vivenciar da morte indígena versus não indígena; vivências com a negligência e o preconceito; impacto da morte na vida e saúde do profissional; impacto na vida do profissional; e apoio psicológico ao profissional. A equipe de enfermagem sofre frente à morte da criança indígena, o que acaba influenciando sua vida e suas atitudes, tanto no ambiente hospitalar como fora dele.
Descritores: Morte. Saúde de populações indígenas. Equipe de enfermagem. Criança.
RESUMEN
Un enfoque cualitativo descriptivo, exploratorio. Tuvo como objetivo investigar la experiencia del personal de enfermería con la muerte de niños indígenas hospitalizados y los sentimientos que surgieron de esta experiencia. Participaron en la encuesta 11 profesionales. La recolección de datos se llevó a cabo en la Unidad Pediátrica de un hospital público municipal en el estado de Mato Grosso, Brasil. Tras el análisis, las entrevistas fueron agrupados en los siguientes temas: los sentimientos expresados por el cuidador; estrategias de afrontamiento; el apoyo a la muerte de la familia antes de la muerte; la experiencia de la muerte indígenas versus no indígenas; experiencias de abandono y perjuicio; el impacto de la muerte, de la vida y de la salud profesional; impacto en la vida de los profesionales; y el apoyo psicológico profesional. El personal de enfermería sufre antes de la muerte del niño indígena que influye en sus vidas y actitudes tanto dentro como fuera del entorno hospitalario.
Descriptores: Muerte. Salud de los pueblos indígenas. Grupo de enfermería. Niño.
INTRODUÇÃO
"Pais não deveriam nunca ter de enterrar seus filhos. Existe culturalmente a convicção de que nenhuma dor é maior que a da perda de um filho, pois interrompe o esperado ciclo da vida".1:54 A vida é sempre vista separada da morte, sendo essa concebida e vivenciada como um fracasso.2
A morte é uma perda que deflagra um grupo de respostas emocionais, fisiológicas e comportamentais.3 Esse paradoxo entre a inevitabilidade da morte orgânica e a nossa necessidade de imortalidade pode explicar porque a negação da morte é inerente ao homem. Esta negação, embora natural, pode ou não ser reforçada pelo sistema cultural.4
A morte, em todas as culturas, sempre foi reverenciada com cerimoniais e ritos apropriados, e os mortos sempre foram respeitados. Na cultura ocidental, a partir do século XX, a morte passou a ser escondida, afastada, hostilizada, como uma inimiga a ser vencida a qualquer custo. Por isso não se fala na morte e se pensa nela o menos possível, no entanto, pensar na morte pode ajudar a aceitá-la e encará-la como uma experiência tão importante e valiosa quanto qualquer outra em nossa vida.1,5-6
Nessa concepção de vida voltada para realizações materiais, a morte precoce é vivenciada com grande resistência, pois é compreendida como interrupção no ciclo de vida e de suas posteriores descobertas.2,7 A infância é sentida pela nossa cultura como um período de expectativas e a criança, um ser inocente e frágil, o que leva o profissional a sentir um imenso vazio e impotência ao deparar-se com a morte dela.8
Nos hospitais, os profissionais de saúde precisam estar preparados para receber e cuidar de crianças, adolescentes e suas famílias, necessitando compreender as reações e comportamentos que eles apresentam diante da morte, para assisti-los em suas necessidades, durante o processo de terminalidade.9
Nossa sociedade vem negligenciando o preparo educacional dos profissionais encarregados de prestar cuidados às necessidades físicas e emocionais dos indivíduos, quando as suas funções corporais começam a falhar. Portanto, é indispensável a abordagem educativa sobre os temas da morte, das perdas e do luto na rotina de trabalho dos profissionais de saúde, principalmente os da assistência hospitalar.10
Atualmente, tem se tornado uma constante aos profissionais da saúde, dentro dos hospitais, bem como, nos centros de referência desses hospitais, o atendimento aos povos indígenas, principalmente nos municípios onde as terras indígenas estão localizadas. Isso nos leva a uma reflexão sobre a atuação dos profissionais da saúde, em especial dos enfermeiros, que acolhem tais povos, durante o período de permanência no hospital.
É inevitável aos profissionais de saúde que trabalham com as mais diversas sociedades humanas, a compreensão do relativismo cultural, que implica a importância de conhecimentos sobre hábitos, sistemas de crenças, práticas de saúde, cura/prevenção e prioridades de saúde. Essa perspectiva ajuda a garantir a compreensão, a participação e o engajamento da comunidade nas ações de saúde.11
A significativa diversidade cultural dos povos indígenas brasileiros produz múltiplas formas cotidianas de vida e múltiplas formas de compreensão de morte, vida, saúde e doença.12 Dessa forma, torna-se imprescindível à equipe de enfermagem e aos demais profissionais da saúde, a convergência a esse ponto de reflexão, visto que a realidade local é permeada pelo encontro étnico-cultural das diversidades. Segundo dados cedidos pelo hospital pesquisado, no período de 2006 a 2010, de acordo com as Declarações de Óbitos (DOs), ocorreram 253 óbitos de crianças (de 1 a 9 anos), que estavam hospitalizadas, dos quais, 155 eram de crianças indígenas Xavante e 98 de não indígenas.
Diante do exposto, torna-se relevante conhecer as vivências dos enfermeiros frente à morte de criança indígena hospitalizada, visto que esta é uma constante em vários hospitais brasileiros, para entender as diferentes formas de lidar com a morte, dentro do contexto da diversidade cultural e, dessa forma, contribuir para o melhor acolhimento da família indígena, no processo de terminalidade, fora da aldeia.
METODOLOGIA
Foi realizada uma pesquisa de abordagem qualitativa, exploratório-descritiva, com as profissionais da equipe de enfermagem - técnicas de enfermagem e enfermeiras - que atuam na Unidade Pediátrica de um hospital público municipal de uma cidade do interior de Mato Grosso (MT). Obteve-se um total de 11 profissionais, todas do gênero feminino, sendo pré-requisito para participar da pesquisa, já haver vivenciado a morte de criança indígena hospitalizada.
Com a finalidade de atingir os objetivos propostos, foi utilizado um roteiro de entrevista semiestruturada, composto de perguntas abertas. Foram utilizadas as seguintes perguntas: a) Como você se sentiu ao vivenciar a morte de criança indígena? b) Quais foram os sentimentos que surgiram nesse momento? c) A morte de criança indígena afeta suas condições de vida ou saúde? d) O que você faz ou utiliza para ajudá-la a enfrentar essa situação? e) O que você acha do hospital ter um serviço de apoio psicológico que ajude os profissionais de enfermagem a lidar com esse tipo de situação? f) Houve alguma mudança na sua vida profissional ou pessoal a partir da experiência com a morte de criança indígena? g) Vivenciar a morte de criança indígena é igual vivenciar a morte de criança não indígena? h) Você se sente preparada para amparar ou acolher a família da criança indígena no momento da morte/luto?
As entrevistas foram realizadas na sala de descanso da enfermagem, visto que ela apresentava um ambiente calmo e silencioso, essencial à entrevista, as respostas foram gravadas (gravação de voz) e, posteriormente, transcritas na íntegra. Após, utilizou-se a análise de conteúdo, pois essa é a expressão mais comumente usada para representar o tratamento dos dados de uma pesquisa qualitativa,13 ou seja, diz respeito a técnicas de pesquisa que permitem tornar replicáveis e válidas inferências sobre dados de um determinado contexto.
A pesquisa foi desenvolvida após o projeto de protocolo n. 021/CEP-HUJM/2011 ter sido aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa do Hospital Universitário Júlio Müller, da Universidade Federal de Mato Grosso.
Atendendo à garantia do sigilo de identidades das entrevistadas, utilizou-se para a apresentação de trechos dos depoimentos, nomes de flores, em substituição aos nomes próprios.
Utilizou-se, ainda, no estudo, a análise temática, pois ela comporta um feixe de relações e pode ser graficamente apresentada por meio de uma frase, na qual o tema é a unidade de significação que se liberta naturalmente de um texto analisado.13
Primeiramente, as entrevistas foram submetidas a várias leituras, com formulação e reformulação de hipóteses e objetivos, tendo como parâmetro a leitura exaustiva do material e as indagações iniciais. No segundo momento, realizou-se a exploração do material para alcançar o núcleo de compreensão do texto, ou seja, encontrar as categorias, que são expressões ou palavras significativas, em função das quais o conteúdo de uma fala seria organizado. Essas categorias surgiram pelos critérios da repetição e da relevância.
A partir da análise dos dados, foi possível a formulação das seguintes categorias: sentimentos manifestados pelo cuidador; estratégias de enfrentamento da morte; acolhimento à família perante a morte; o vivenciar da morte indígena versus não indígena; vivências com a negligência e preconceito; impacto da morte na vida e saúde do profissional de enfermagem; impacto na vida do profissional; e apoio psicológico ao profissional.
RESULTADOS E DISCUSSÃO
Entre os sentimentos manifestados pelo cuidador, a impotência frente à morte da criança indígena hospitalizada foi citada por 73% das profissionais de enfermagem, corroborando com outros autores.9,14
Dá uma sensação de que você não pode fazer nada. Fica assim, como que a gente é inútil [...] (Begônia).
Às vezes você, como técnico de enfermagem, não poder fazer muita coisa, você não pode [...], às vezes você vê que a criança tá precisando de algum procedimento que não é da sua alçada, sabe? (Rosa).
Um estudo realizado em terapia intensiva pediátrica, com profissionais de enfermagem, ressalta que o sentimento de impotência torna-se mais evidente diante de casos em que houve tentativas exaustivas e em vão de luta contra a morte.15
Para alguns pesquisadores, a sensação de impotência surge em consequência da própria formação direcionada a recuperar a vida.16-17 Os profissionais de saúde costumam sentir tristeza, após a morte de seus pacientes, devido à sensação de perda e vazio.16 O sentimento de tristeza foi relatado por 55% das profissionais participantes do estudo. Dados semelhantes foram encontrados também em outra pesquisa sobre o envolvimento do enfermeiro no processo de morrer.16
[...] os indígenas, eles choram muito alto, então aquilo é muito triste, sabe? Aquela mãe chorando, é muito triste mesmo, é muito comovente [...] (Rosa).
Piedade e dó são esses termos que costumam se entrelaçar e confundir, e, ao averiguar a origem dessas palavras, confirma-se que ambas têm significado semelhante e traduzem um sentimento benévolo para com o sofrimento alheio. Esses sentimentos foram citados por 27% das profissionais de enfermagem.
[...] aquele sentimento assim de piedade pela criança [...] (Girassol).
[...] dá dó, muita dó sabe, fico pensando muito, ainda mais quando as mães estão junto [...] (Orquídea).
Outros sentimentos citados foram culpa, revolta e frustração. Alguns autores destacam que os sentimentos gerados no enfermeiro podem ser potencializados quando o óbito ocorre em crianças cujo vínculo com a equipe está mais consolidado, e o tempo de convivência com os pais e com a equipe são fatores desencadeantes destes sentimentos, ou seja, quando surge o apego, o vínculo.9,16
[...] tem aquelas crianças que você já se apegou [...], porque às vezes você fica muito tempo junto, cuidando daquela criança, e aí, queira ou não queira, você cria um vínculo com a criança [...] (Margarida).
Se você tem já um vínculo afetivo com a criança, no caso que ela já está com você há muito tempo, sim. Agora, se não, já não faz tanta diferença (Amarílis).
A morte amedronta o enfermeiro e o faz refletir sobre sua própria finitude e a de seus familiares, o que torna o envolvimento mais doloroso para o profissional que se apegou a uma criança que foi a óbito.15
Durante as entrevistas emergiram também sentimentos de frieza e de indiferença ao se relembrarem das vivências com a morte da criança indígena hospitalizada.
[...] é o que todos os profissionais fazem, por isso falam que, com o tempo, todo mundo endurece e acaba que a morte, já, já, faz parte do cotidiano, você nem sente o que você sentia no início. Fica mecânico, você acostuma com a morte [...] (Amarílis).
O profissional de enfermagem vivencia, em sua rotina de trabalho, o sofrimento da pessoa que recebe seu cuidado, assim como também compartilha com a família os momentos de dor e sofrimento; na pediatria não é diferente, já que o envolvimento é ainda mais intenso, devido à doçura e ao carinho das crianças. Com o passar dos anos, essa rotina de perpétuas passagens por experiências dolorosas faz com que esses profissionais criem mecanismos de defesa, ou seja, verdadeiras peneiras, na tentativa de se manterem indiferentes aos fatos que outrora já os feriram muito, psicologicamente.
Os primeiros contatos com a ocorrência da morte são muito mais difíceis e dolorosos, mas a cada nova vivência os profissionais aprendem a lidar com a situação.14 Contudo, os profissionais não estão adequadamente preparados para conviver com a morte, o que os leva a usarem a frieza e a indiferença como mecanismo de defesa.4
Entre as estratégias de enfrentamento da morte surge a fé. Ficou evidente, na fala das profissionais participantes da pesquisa, a espiritualidade e a religiosidade como pontos fundamentais no enfrentamento da morte.
[...] só não tive depressão porque eu rezo demais, aí eu consegui [...] (Orquídea).
Eu sou uma pessoa forte, eu acredito muito em Deus [...] (Margarida).
Eu entrego a criança sempre na mão de Deus e nunca me preocupo, não. Assim, fico, às vezes, com o pensamento neles, mas eu sempre rezo por eles [...] (Girassol).
Esses dados corroboram os encontrados por outros autores que ressaltam a espiritualidade e/ou a religiosidade como fatores positivos de enfrentamento para o evento da morte pediátrica.18-19
Outra forma citada pelas profissionais, como mecanismo de enfrentamento da morte da criança indígena hospitalizada, foi a conversa com amigos e colegas de trabalho.
[...] converso muito com a minha fisioterapeuta [...], ela que me ajuda muito (Begônia).
[...] eu converso com outros colegas, pra gente desabafar mesmo (Violeta).
Das 11 profissionais entrevistadas, apenas uma afirmou sentir-se preparada para acolher a família, no momento do óbito da criança indígena hospitalizada.
Eu me sinto [preparada], porque eu dou o máximo de mim e eu tento conversar, até mesmo assim, antes, sem ela morrer. Sabe, a gente conversa muito, eu brinco muito [...] com as mães eu tento conversar, eu acho que eu me sinto preparada, sim (Begônia).
Evidenciou-se, neste estudo, a dificuldade das profissionais em apoiar a família da criança indígena hospitalizada, durante o momento do óbito, não obstante o Ministério da Saúde20 enfatize ser a principal dificuldade no atendimento da população indígena, a comunicação, e isso também, muitas vezes, impossibilita o diagnóstico e, consequentemente, o tratamento.
Não, não me sinto preparada, porque é muito complicado, porque às vezes eles têm o ritual deles e eu desconheço como que seja (Camélia).
Não, eu não me sinto preparada. Eu inclusive, quando morre, eu acho que eu deveria conversar, mas eu faço é correr [...] (Tulipa).
Eu não me sinto preparada assim, porque a cultura deles é diferente da minha [...] (Margarida).
O momento da morte de uma criança é difícil de ser compreendido pela família, e o profissional da enfermagem precisa desenvolver um olhar diferenciado dentro dessa subjetividade do luto, visto que ele é diferentemente vivenciado, em cada região brasileira, em cada cultura, credo ou religião. Compreender e aceitar o que parece ser tão diferente é um passo largo a caminho da integralidade da assistência e, mais ainda, é a percepção mais profunda do outro. O apoio à família indígena, que perdeu uma criança, não exige participação em rituais de luto, nem mesmo que fale sua língua, ou que o profissional faça parte de sua cultura, pelo contrário, exige-se o respeito ao seu modo de sentir, chorar e expressar.
Sobre o vivenciar da morte indígena e da morte não indígena pelo profissional de enfermagem da Unidade Pediátrica, surgiram divergências entre as experiências relatadas.
Tem uma pequena diferença [...], a relação deles é mais forte, isso que eu vivencio, não sei se é só naquele momento da morte, mas parece que eles são muito apegados [...] (Camélia).
[...] a gente não quer diferenciar, mas acaba diferenciando, a gente não quer, mas acaba sendo diferente, a gente vê que o sentimento deles é maior do que o do branco [...] (Alfazema).
A criança branca, não que seja preconceito, mas eu sinto mais, porque [pausa] os indígenas, eles tem um hoje, um amanhã, um depois, entendeu? [...] (Margarida).
Na verdade é bem diferente, porque poucos dos indígenas estão preocupados e envolvidos com o tratamento da criança (Violeta).
Algumas profissionais de enfermagem expressaram ter percebido uma maior afetividade dos povos indígenas pelos seus filhos, no momento da morte, ao contrário dos não indígenas. Talvez esse comportamento se justifique no modo ímpar de o indígena vivenciar o luto, que, na maioria das vezes, ocorreu com choro alto e prolongado, dentro da Unidade Pediátrica. Essa forma de expressar sua dor pela perda é diferente ao olhar da enfermagem, pois, mesmo que o choro seja comum entre o índio e o não índio, o que chama a atenção das profissionais é o modo de chorar e de expor o sofrimento, de forma mais intensa.
Ao contrário, duas profissionais expressaram ter percebido menor afetividade dos indígenas pelos filhos, devido ao não envolvimento com a terapêutica hospitalar, ou por terem outros filhos, o que demonstra um obstáculo ao atendimento integral e humanizado na vigência do princípio de equidade do Sistema Único de Saúde.
Poucos profissionais são capazes de compreender o diferente. As manifestações da família indígena, durante o tratamento e diante da morte, provocam sentimentos diferentes e respostas emocionais mais intensas da equipe de enfermagem. Os relatos revelam um desconhecimento, por parte do profissional de enfermagem, sobre o modo como a família indígena vivencia o tratamento hospitalar.
A maioria dos acompanhantes das crianças indígenas, durante a hospitalização, no local do presente estudo, é do sexo feminino. Observa-se que as mulheres Xavante são muito carinhosas e cuidadosas com seus filhos, mas, em sua maioria, no ambiente hospitalar, são mais tímidas e falam pouco, o que pode ter sido interpretado como falta de interesse pela terapêutica.
Algumas falas mostram a vivência da enfermagem com a negligência e com o preconceito, na sua rotina de trabalho:
[...] isso me acaba, tanto médico como enfermeiro, eu acho que não é que aproveita muito, eu acho que acaba, sei lá, por ser indígena, sabe?Eu sinto que tem uma diferença [...] (Rosa).
[...] a gente falou tanto pro médico, e o médico não fez nada. A gente falou: doutor, é suspeita, vamos pedir o exame, exame de escarro, vamos fazer uma investigação. Nada feito, e a criança morreu [...]. A gente tenta, mas ele fala: 'o médico aqui sou eu' [...] (Begônia).
Outro estudo também confirmou uma experiência com a negligência e o preconceito vivenciados por enfermeiros, que se queixavam da falta de cumplicidade dos médicos, esperada por eles, principalmente nos momentos difíceis da assistência ao paciente.21 Ainda, outros autores mostraram sentimentos de angústia, dúvida e raiva, vivenciadas pelos enfermeiros, por acreditarem que falharam na prestação dos cuidados, ou por não terem sido esgotadas todas as alternativas para recuperar a vida dos pacientes, ou por negligência de outros membros da equipe de saúde.22
Outro ponto mencionado pelas profissionais foi a negligência familiar:
[...] já chegou da aldeia ruim, porque eles não aceitavam lá na aldeia, não aceitavam, trazer pro hospital (Alfazema).
[...] descaso por parte da própria família. Como que pode deixar a criança chegar ao ponto que chega. Aí eles chegam aqui no hospital e acham que os medicamentos, só os medicamentos e os cuidados vão resolve, e não é bem assim [...] (Margarida).
[...] a gente acaba vendo assim, a criança indígena, ela morre muito mais por descuido da família (Amarílis).
Contradizendo esses relatos, a Fundação Nacional de Saúde ressalta que a prioridade no atendimento do Distrito Xavante são as crianças, visto que em todas as reivindicações dos Xavante aparecem as crianças como sua maior preocupação.20
Para os indígenas, o nascimento, a vida e a morte, por exemplo, são pensados e vivenciados de diferentes formas, ou seja, o seu modo de ver e sentir o mundo é muito singular e, portanto, a não observância à subjetividade de outros povos a quem se está destinado a cuidar, como profissional da saúde, é o mesmo que não observar a si próprio.
Em relação ao impacto gerado pela convivência rotineira com a morte de criança indígena hospitalizada, as opiniões foram distintas.
[...] isso me prejudica muito. Ás vezes, eu estou lá em casa, fico lembrando daquilo, sabe, vai me remoendo, é horrível, ai isso eu sinto que prejudica, no caso da saúde emocional [...], é uma coisa assim, que você leva pro resto da vida, eu lembro um, assim, de um por um que passou [...] (Rosa).
Sabe-se que a atividade, em ambiente hospitalar, abrange uma série de fatores geradores de insalubridade e penosidade, produzindo agravos à saúde do trabalhador. É consenso também que, na organização hospitalar, dificilmente existe a preocupação em proteger, promover e manter a saúde de seus funcionários, o que, sem dúvida, é uma situação paradoxal, porque, ao mesmo tempo em que o hospital tem como missão salvar vidas e recuperar a saúde dos indivíduos enfermos, favorece o adoecer das pessoas que nele trabalham.22
Observa-se, nas falas das profissionais, que, mesmo afirmando que a morte não afetava suas vidas e saúde, acabaram relatando sentimentos e sintomas que estão relacionados a problemas de saúde, de ordem psicológica e física. Esses dados também foram encontrados em outro estudo, no qual as queixas das profissionais de enfermagem eram expressas por elas como se não fossem problemas de saúde.23
[...] fico triste, mas eu não carrego pra fora daqui, tipo assim, eu consigo equilibrar aqui dentro. Eu fico ruim, fico triste, tipo abalado, eu choro às vezes, mas não choro na frente deles. Às vezes eu vou pra algum lugar, fico triste, choro às vezes o dia todinho, às vezes até quando eu saio daqui [...] (Orquídea).
Ao serem questionadas sobre o impacto na vida profissional, percebemos que mencionaram mudanças pessoais, ou seja, de valores e princípios, o que não deixa de ser positivo, pois um profissional mais humano terá sempre um olhar diferenciado às necessidades do outro.
[...] valor a vida, eu acho que a gente passa a valorizar mais, e o quanto que a gente é limitado também, a gente é muito limitado, e às vezes a gente acha que a gente não é (Violeta).
Mecanismos de projeção e empatia envolvidos durante o ato de cuidar dos enfermeiros também foram evidenciados neste estudo, assim como em outros manuscritos.15
[...] quando a gente começa na enfermagem, é um sentimento que [pausa], quer dizer, a gente não tem muito sentimento, trabalha ali mais pelo dinheiro que a gente quer receber no final do mês, aí, com o tempo que você vai mexendo com as crianças, se torna mãe, você forma uma família, aí é diferente, então, assim, acaba sendo diferente sim, o modo da gente de gostar deles. Você se coloca, eu pelo menos me coloco no lugar deles (Tulipa).
Eu mudei muito, mudei minha maneira de ser, mudei minha maneira de conversar com as pessoas, com meus filhos em casa, com o meu marido, mudei muito, sabe, você muda sem querer sabe, melhora [...] (Alfazema).
Apenas uma participante afirmou que conviver com a morte da criança indígena hospitalizada não ocasionou mudanças em sua vida.
Deixar de pensar na morte não a retarda ou evita.6 Devemos e precisamos nos preparar, diariamente, para enfrentar essa tarefa. Porém, a grande maioria dos profissionais está despreparada para lidar com aspectos emocionais, inclusive em entrar em contato com suas próprias emoções.24-25
Todas as profissionais entrevistadas neste estudo responderam ser de suma importância receber apoio psicológico, discutir e trabalhar suas emoções.
A gente tem que ter um certo equilíbrio, tem que ter um preparo psicológico, senão você vai a loucura, não é? (Margarida).
Apesar de estarem sujeitos a vivenciar diariamente episódios de morte, os enfermeiros, geralmente, não são devidamente preparados para lidar com tais situações, visto que, durante a trajetória acadêmica, são enfatizadas apenas a promoção e a preservação da vida, e não o preparo para a morte e o processo de morrer.16
As mudanças necessitam ocorrer, simultaneamente, nas escolas e nas instituições hospitalares, ou seja, as escolas deveriam preparar seus alunos para lidarem com a vida e a morte, nos hospitais, enquanto as instituições hospitalares poderiam, com o auxílio da educação permanente, ajudar os profissionais a realizarem reflexões sobre o luto.9
Portanto, pelo fato de a maioria dos enfermeiros não ter embasamento teórico, nem vivência, durante a faculdade, acerca de tanatologia, é crucial permitir aos alunos que exponham seus conflitos com relação ao tema da morte e que conheçam os de quem está morrendo, abrindo um espaço, nas salas de aula, para que possam falar livremente sobre o assunto.4,16
Mudanças nas matrizes curriculares são processos burocráticos e lentos, mas, imprescindíveis, e são citados por vários autores que salientam a importância de a estrutura organizacional hospitalar fornecer recursos que permitam momentos nos quais os cuidadores encontrem apoio e segurança, reciclem seus conhecimentos sobre a doença e atividades nessa área, minimizando sentimentos negativos, reduzindo incertezas sobre a efetividade do tratamento e levando-os à busca de um cuidado mais humanizado.10, 12-13, 15-17
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O assunto aqui tratado é inexaurível, visto que é comum, na rotina de trabalho dos profissionais da saúde, o acontecimento da morte, e, já que o fenômeno é ilimitável e com diferentes faces, podemos compreender que a equipe de enfermagem vivencia o processo da morte de acordo com a situação apresentada, mas mantendo como princípio a preservação, como bem maior da vida.
Uma vez que o profissional de enfermagem confronta-se com a morte, no trabalho, necessita adquirir conhecimentos e desenvolver capacidades e competências para encarar a morte do seu semelhante. É essencial desenvolver habilidades para atuar no processo de terminalidade e de luto da família do paciente, lembrando sempre de todos os seus aspectos socioculturais. Ajudar o doente e a família, num momento em que experimentam grande sofrimento, constitui um dos maiores desafios que a prática quotidiana coloca aos profissionais de enfermagem, tornando-se muito mais complexa, quando se trata do atendimento ao indígena, visto que o profissional não tem conhecimento acerca da língua, dos rituais e das crenças desses povos.
Na vivência das profissionais de enfermagem com a morte de criança indígena hospitalizada, emergiram sentimentos como impotência, tristeza, culpa e revolta. Para enfrentar e amenizar esses sentimentos, as profissionais buscam na religiosidade e na conversa com amigos o apoio psicológico necessário.
Evidenciou-se que a morte da criança indígena hospitalizada afeta a vida e a saúde das profissionais de enfermagem que atuam no cuidado à criança internada, apesar de elas, muitas vezes, ignorarem esse fato. Isso nos leva ao questionamento sobre a omissão do cuidado à saúde mental dos profissionais da saúde, principalmente da equipe de enfermagem que enfrenta constantemente o luto, em sua rotina de trabalho.
Dentre os significados atribuídos pelas profissionais de enfermagem à morte da criança indígena, sobressaíram as diferenças culturais, no momento do luto. Revelou-se, então, o impacto da diversidade cultural dentro do contexto hospitalar e o obstáculo de vivenciar isso como cuidador, exigindo, desse modo, um maior empenho da equipe de saúde para um olhar voltado às diferenças e a busca por uma compreensão universal do outro, independente da raça, cor ou credo.
Outro ponto em destaque é a falta de conhecimento das profissionais relacionado à língua e à cultura indígena, o que dificulta muito a assistência, de forma integral, tanto no tratamento, como no momento do óbito e posterior acolhimento da família. A dimensão do trabalho da saúde com povos indígenas é muito diferente da rotina de trabalho com os não indígenas e requer uma delicadeza ímpar, no momento da assistência, destacando também o respeito, a dedicação, o envolvimento e a paciência.
Sugere-se, portanto, a inclusão de matérias específicas sobre a cultura indígena, nos cursos de formação técnica e superior, bem como a valorização de projetos de extensão universitária que levem professor, aluno e profissional de enfermagem a transpor os muros das práticas hospitalares no exercício do relativismo cultural. Incentivam-se, também, treinamentos, no âmbito hospitalar, às equipes de saúde, para que o atendimento às diferentes populações possa ocorrer de forma mais integral e humanizada, valorizando o princípio da dignidade da pessoa humana.
Assim, este trabalho se abre para novas perspectivas, outras vivências, compreensões e interpretações diversas para as experiências do enfermeiro, no processo de morte e de morrer da criança indígena. Espera-se que este estudo leve ao questionamento sobre a atual matriz curricular que leva à formação de profissionais da saúde, da rede pública e privada, pois há profissionais com dificuldade no enfrentamento da morte e do luto, apesar de essas situações fazerem parte do cotidiano de todos os profissionais das áreas da saúde, especialmente da enfermagem.
Recebido: 05 de Abril 2012
Aprovado: 03 de Outubro 2013
- 1. Norouziehák HM. Case management of the dying child. Case Manager [online]. 2005 [acesso 2012 Mar 21]; 16(1):54-7. Disponível em: http://www.hawaii.edu/hivandaids/Case_Management_of_the_Dying_Child.pdf
- 2. Hoffmann L. A morte na infância e sua representação para o médico - reflexões sobre a prática pediátrica em diferentes contextos. Cad Saúde Pública. 1993 Jul-Set; 9(3):364-74.
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
06 Fev 2014 -
Data do Fascículo
Dez 2013
Histórico
-
Recebido
Abr 2012 -
Aceito
Out 2013