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A prática do aleitamento materno em um grupo de mulheres brasileiras: movimento de acomodação e resistência

The practice of breastfeeding in a group of brazilian women: a movement of accommodation and resistance

La práctica de la lactancia materna en un grupo de mujeres brasileñas: movimiento de acomodación y resistencia

Resumos

Ações de incentivo a amamentação estão dirigidas ao atendimento das necessidades da criança, não contemplando a mulher em suas especificidades. Objetivou-se, neste estudo, apreender os significados que as mulheres atribuem as vivências e demandas na prática do aleitamento materno. Foram entrevistadas 20 nutrizes que estavam vivenciando a amamentação pela primeira vez. A análise dos dados fundamentou-se na Teoria Feminista. Depreendeu-se que a amamentação para estas mulheres é um processo feminino de contribuição socialmente determinada. Revelam movimento de acomodação ao representarem a amamentação como doação, sacrifício e dedicação, e movimento de resistência ao justificarem o desmame por incapacidade fisiológica para amamentar.

aleitamento materno; saúde da mulher


Actions to stimulate breastfeeding are directed to assist children's needs and do not contemplate woman in her specificities The present study aimed at understanding the meanings women give to their experiences and demands in the practice of breastfeeding. 20 women that were experiencing breastfeeding for the first time were interviewed. Data analysis were based on the feminist theory. Authors found breast feeding as a feminine process socially determined. Women showed accomodation as they felt the act of breast feeding as donation, a sacrifice and dedication as well as resistance when they justified weaninng affirming the lack of physiological capacity for breastfeeding.

breast feeding; women health


Acciones de incentivo a la lactancia materna están dirigidas a la atención de las necesidades de los niños, no contemplando la mujer en sus especificidades. Se definió, en este estudio, aprender los significados que las mujeres atribuyen a las vivencias y demandas en la práctica de la lactancia materna. 20 mujeres que estaban viviendo la lactancia materna por primera vez fueron entrevistadas. El análisis de los datos tuvo fundamento en la teoria feminista. Los autores encontraron, la lactancia materna como un proceso femenino de construcción socialmente determinada. Revela movimiento de comodidad en la medida que representan el acto de amamantar como donación, sacrificio y dedicación, y movimiento de resistencia cuando justifican el desmame por incapacidad fisiológica para la lactación.

lactancia materna; salud de la mujer


Artigo Original

A PRÁTICA DO ALEITAMENTO MATERNO EM UM GRUPO DE MULHERES BRASILEIRAS: MOVIMENTO DE ACOMODAÇÃO E RESISTÊNCIA

Ana Márcia Spanó Nakano1 1 Professora Doutora do Departamento de Enfermagem Materno Infantil e Saúde Pública da Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo; 2 Professora Titular do Departamento de Enfermagem Materno Infantil e Saúde Pública da Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo

Marli Villela Mamede2 1 Professora Doutora do Departamento de Enfermagem Materno Infantil e Saúde Pública da Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo; 2 Professora Titular do Departamento de Enfermagem Materno Infantil e Saúde Pública da Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo

Ações de incentivo a amamentação estão dirigidas ao atendimento das necessidades da criança, não contemplando a mulher em suas especificidades. Objetivou-se, neste estudo, apreender os significados que as mulheres atribuem as vivências e demandas na prática do aleitamento materno. Foram entrevistadas 20 nutrizes que estavam vivenciando a amamentação pela primeira vez. A análise dos dados fundamentou-se na Teoria Feminista. Depreendeu-se que a amamentação para estas mulheres é um processo feminino de contribuição socialmente determinada. Revelam movimento de acomodação ao representarem a amamentação como doação, sacrifício e dedicação, e movimento de resistência ao justificarem o desmame por incapacidade fisiológica para amamentar.

UNITERMOS: aleitamento materno, saúde da mulher

THE PRACTICE OF BREASTFEEDING IN A GROUP OF BRAZILIAN WOMEN: A MOVEMENT OF ACCOMMODATION AND RESISTANCE

Actions to stimulate breastfeeding are directed to assist children's needs and do not contemplate woman in her specificities The present study aimed at understanding the meanings women give to their experiences and demands in the practice of breastfeeding. 20 women that were experiencing breastfeeding for the first time were interviewed. Data analysis were based on the feminist theory. Authors found breast feeding as a feminine process socially determined. Women showed accomodation as they felt the act of breast feeding as donation, a sacrifice and dedication as well as resistance when they justified weaninng affirming the lack of physiological capacity for breastfeeding.

KEY WORDS: breast feeding, women health

LA PRÁCTICA DE LA LACTANCIA MATERNA EN UN GRUPO DE MUJERES BRASILEÑAS: MOVIMIENTO DE ACOMODACIÓN Y RESISTENCIA

Acciones de incentivo a la lactancia materna están dirigidas a la atención de las necesidades de los niños, no contemplando la mujer en sus especificidades. Se definió, en este estudio, aprender los significados que las mujeres atribuyen a las vivencias y demandas en la práctica de la lactancia materna. 20 mujeres que estaban viviendo la lactancia materna por primera vez fueron entrevistadas. El análisis de los datos tuvo fundamento en la teoria feminista. Los autores encontraron, la lactancia materna como un proceso femenino de construcción socialmente determinada. Revela movimiento de comodidad en la medida que representan el acto de amamantar como donación, sacrificio y dedicación, y movimiento de resistencia cuando justifican el desmame por incapacidad fisiológica para la lactación.

TÉRMINOS CLAVES: lactancia materna, salud de la mujer

No Brasil, a proporção de crianças desmamadas precocemente, segundo dados da FIBGE (1992), é de: 43% em torno dos 3 meses e 6% aos 6 meses de vida. O aleitamento materno exclusivo não chega a 30% entre as crianças de 3 meses de idade e representa 6% entre as de 6 meses de idade. Tais índices são preocupantes em considerando as precárias condições de saúde da população brasileira, sendo o aleitamento utilizado como estratégia simplificada para reduzir a morbidade e mortalidade infantil em nível de atenção primária.

Frente a esse quadro, inúmeras campanhas prol aleitamento materno foram e estão sendo realizadas, no entanto pouco tem se observado em termos de mudança no comportamento das mulheres frente ao aleitamento materno.

Os discursos técnicos e acadêmicos que embasam os Programas de Incentivos ao Aleitamento Materno estão dirigidos ao atendimento das necessidades da criança, não contemplando a mulher em suas especificidades. Acreditamos ser necessário um redirecionamento de tais discursos para que se tenha respostas mais efetivas no resgate da prática do aleitamento materno pelas mulheres.

A reflexão crítica de tal problemática nos remete à focalizar a mulher enquanto sujeito social envolvido nessa questão, a busca de uma maior compreensão da mulher enquanto ator social envolvida nessa questão, o aleitamento materno. Para tanto, tais reflexões devem iniciar-se pela compreensão da subjetividade da mulher acerca da amamentação enquanto um aspecto da identidade feminina. Isto possibilitará a desconstrução de conceitos e valores carregados de negatividade a respeito da prática do aleitamento e a reconstrução de modelos de assistência que contempla as concepções e percepções do mundo feminino.

Portanto, o presente estudo tem por objetivo: apreender os significados que as mulheres atribuem às vivências e demandas na prática do aleitamento materno.

ASPECTOS TEÓRICO E METODOLÓGICO DO ESTUDO

A prática do aleitamento materno se articula com a realidade social na qual o envolvimento da mulher para com essa função, guarda relação com a construção social da identidade de gênero, o que faz da teoria feminista a opção teórica para análise deste estudo.

Na teoria feminista, o gênero é tomado como categoria analítica, entendendo que gênero não é simplesmente um fato biológico, mas é assumido como "projeto", desenvolvido dentro de um campo de relações sociais que poderá limitar a liberdade do sujeito.

Na definição de SCOTT (1990), a categoria gênero implica em 2 níveis de análise porém ligados entre si. Esclarece a autora que: "gênero é um elemento constitutivo de relações sociais fundadas sobre as diferenças percebidas entre os sexos, sendo o primeiro modo de dar significados às relações de poder ...ou seja, por meio do qual o poder é articulado"(p.14).

Para LOURO (1996), a "construção dos gêneros é fundamentalmente, um processo social e histórico" havendo uma estreita e contínua imbricação do social e do biológico.

A mesma autora observa ainda, que gênero é mais que uma identidade aprendida, uma aprendizagem de papéis. O gênero é constituído e instituído pelas múltiplas instâncias e relações sociais, pelas instituições, símbolos, formas de organização social, discursos e doutrinas.

O conceito de gênero implica em idéias de relação, pois os sujeitos se produzem em relação e na relação.

Processo de investigação

Contexto do estudo:

Após análise e aprovação pela coordenação da Unidade Básica de Saúde do bairro Ipiranga da cidade de Ribeirão Preto, estado de São Paulo¾Brasil, realizamos os primeiros contatos com a clientela informando a respeito dos objetivos da pesquisa.

Participaram do estudo nutrizes que estavam amamentando pela primeira vez e se dispuseram a falar sobre essas vivências.

Na coleta dos dados optamos pela técnica da entrevista semi-estruturada, seguindo um roteiro norteador e observação de elementos do contexto. As entrevistas foram realizadas no domicílio e gravadas com o consentimento dos sujeitos.

Na análise dos dados foi fundamentada na "Hermenêutica-dialética" a qual auxilia o pesquisador na tarefa de explicar e interpretar um pensamento, o que pode ser literal ou temático. Utilizamo-nos da análise temática por permitir, segundo MINAYO (1992), a compreensão simbólica de uma realidade a ser penetrada. Tal análise consiste em descobrir os núcleos de sentido que compõem uma comunicação cuja presença ou freqüência signifique alguma coisa para o objetivo analítico visado.

Os passos da análise seguiram os sugeridos por MINAYO (1992): pré análise, exploração do material, tratamento dos resultados obtidos e interpretação dos mesmos.

RESULTADOS

No perfil biográfico dos sujeitos sociais estudados foi possível identificar alguns traços comuns acerca da construção social do gênero feminino.

A internalização dos espaços que circunscrevem o masculino e principalmente o feminino, em questão, teve início na infância. No processo de construção descrito por essas mulheres, apreendemos que o universo feminino apresentava marcas das relações de dependência e controle circunscrito aos pais. A figura materna era voltada mais ao espaço privado, constituindo-se em agente disciplinador dos filhos, bem como o elemento de suporte emocional e de manutenção da unidade doméstica. O pai, orientado fundamentalmente para o espaço externo, se convertia na principal fonte de renda da família e embora ausente na maior parte do convívio familiar, encerram em si mesmo a autoridade no seio da família.

Para as tarefas do gênero, apreendemos que na construção social dessas mulheres, essas foram orientadas para o desempenho de atividades resguardadas no seio da família, tais como os afazeres domésticos, cuidados com irmãos menores, além das brincadeiras restritas ao espaço interno, como as brincadeiras de casinha, de mamãe e filhinha, as quais estimulam a obediência, a dependência e a contenção da agressividade, estando condizente ao esperado da figura feminina.

Como refere ROMANI (1982), a internalização dos espaços que circunscrevem o masculino e feminino resulta de uma retradução cultural do biológico, onde os conceitos situam-se, fundamentalmente, no campo simbólico, definindo-se por qualidades opostas atribuídas ao homem e à mulher, polarizando qualidades "passivas", como resignação, paciência, fragilidade, emocionalidade e qualidades "ativas" como agressividade, força, dinamismo para a tipologia feminina e masculina, respectivamente. A medida em que é requerida da mulher ser "naturalmente" paciente, é socialmente aceito como "natural" ao homem ser impaciente, o que justifica a sua inabilidade para a maternidade, conforme apreendido no relato das entrevistadas:

"...acho que mãe tem muito mais paciência que o pai, têm aquele cuidado, agora pai não liga muito, não tem paciência, pega um pouquinho no colo e acha que está fazendo muito ...." (E.9)

Desta forma, a identidade de mulher se esclarece para ela, quando se vê diante do exercício da maternidade, especialmente quando toma consciência da responsabilidade que lhe são incumbido por sua "natureza" hábil à maternagem.

"...a mulher tem mais responsabilidade se não tinha acaba tendo mais que o homem, eu acho que isso possa ser talvez pela maternidade..." (E.14)

O processo de formação da identidade de gênero traz para a mulher/mãe a grande responsabilidade pelos cuidados iniciais (maternagem), através desta, as crianças de ambos os sexos organizam suas noções de gênero, assim como a própria identidade.

De acordo com CHODOROW (1990), a identidade de gênero ocorre da vivência das crianças de sexo feminino e masculino com suas mães, ou seja, as mães tende a vivencias suas filhas como mais parecidas com elas, e delas inseparáveis, o que as tornam identificadas mais inconscientemente com suas mães e fundem a experiência de apego com o processo de formação da identidade, o que resulta em capacidade de empatia e relacionamento pessoal. Quanto aos meninos, as mães ensinam a serem masculinos de forma mais consciente que as meninas, vivenciando os filhos como seu contrário. Estes ao se definirem como masculinos, separam-se de suas mães, diminuindo o amor primário e seu senso de ligação para com elas.

Tais condições esclarecem para nós, o fato das mulheres carregarem suas mães dentro de si, enquanto modelo interno de importante referência do ser mãe, apresentando-se mais envolvidas nas relações interpessoais e afetivas do que os homens que são construídos para um futuro papel menos afetivo na família e para uma participação fundamentalmente impessoal e extra familiar na divisão do trabalho.

"...depois que a gente é mãe, aprende a dar valor em muitas coisas, a gente vê o quanto uma mãe sofre por um filho, ela faz coisas por um filho que pai não faz, por ele dou até minha vida..."(E.20)

O gostar ou não do papel materno, amadurecer com ele ou sobreviver a despeito dele, atualizar-se ou se auto destruir para BARDIWICK (1979), depende das renúncias que a maternidade impõe. Ao que se pode apreender a maternidade assume uma importância significativa na vida dessas mulheres. Como observa MORAES (1981) no discurso dominante sobre o sexo feminino, a maternidade é enfatizada como álibe, razão de existência e legitimação da mulher enquanto ser social.

Tomam a maternidade como sendo "coisas de mulheres", conforme refere CHORODOW (1990), instituindo e reafirmando a identidade construída ao longo da história cuja lógica foi sempre a de servir o outro.

"...a gente tem que abrir mão de algumas coisas, também não vai ser para a vida toda de ficar assim em função do bebê..." (E.8)

O vínculo entre mãe e filho é realçado por essas mulheres o que OLIVEIRA (1993), considera de "experiência fusional materna" que é renovada a cada maternidade na mulher, mantendo os sentimentos de comunhão e proteção como próprio do ser mãe.

As vivências e demandas no aleitamento materno: movimentos de acomodação e resistência

O movimento que nos interessou apreender foi como as mulheres agem e reagem, constróem e reconstróem o exercício do aleitamento.

Na construção do "território feminino" valores são incorporados, tais como os citados por OLIVEIRA (1993): a ênfase no relacionamento interpessoal, a atenção e o cuidado do outro, a proteção à vida, a valorização da maternidade e do afeto, a gratuidade das relações. Estes movimentos foram reapresentados nos discursos dessas mulheres acerca do exercício do aleitamento materno, esboçando ora movimento de conformismo ora de resistência ao entreterem-se como aspectos de seu destino.

Ao ser incorporado à mulher os valores do aleitamento materno para a criança, ou seja: garantia da saúde, promoção do bem estar físico e emocional, sua contribuição na formação, crescimento e desenvolvimento infantil e na resistência do organismo à doenças; acaba-se por instituir à mulher relações de poder sobre o controle do desenvolvimento, morbidade e mortalidade infantil.

O aleitamento materno como um importante controle da morbidade infantil foi uma forma eficiente de instituir como obrigação materna a amamentação, que segundo MOTA (1990) este se constitui um fator assegurador do bem estar físico e emocional da criança e com ela a econômia da nação. Os seguintes depoimentos exemplifica tais apreensões.

"...tem que amamentar porque dá muitas coisas, muita doença na criança, por não amamentar... A mamadeira causa muita desidratação..." (E.5)

"...o médico falou que quando não dá o peito, principalmente nos primeiros dias de vida, a criança se torna uma criança chata, ela não para de chorar, ela fica irritada, tudo para ela faz ficar nervosa, quando ela cresce e desenvolve, ela fica uma criança revoltada..." (E.10)

Observou-se ainda que a mulher, enquanto provedora do leite materno, apresenta-se envolvida em relações hierárquicas, o que a impede o afrontamento explícito da carga negativa que tal prática reflete na sua saúde mental. Gravitam, dessa forma, em jogos de ambivalência e compensação, a medida que circunscreve em si mesma a responsabilidade e a culpa de tudo que pode advir à criança. A mulher torna-se "cumplice da sua própria opressão" como refere MOTA (1990) o que ao nosso entender, se constitui em um movimento de acomodação.

A cobrança social à mulher para que amamente seus filhos tem se respaldado nas comprovações científicas que realçam o valor do leite humano no desenvolvimento bio-psico-social da criança, estando portanto, seu papel social definido por determinantes biológicos e concebido como fazendo parte da "natureza" da mulher.

"...amamentar é importante para o bebê, acho que é um fator que faz parte da mãe... é da natureza mesmo..." (E.1)

Segundo ROMANI (1982), a eficácia da ideologia "naturaliza" a adscrição dos espaços a cada sexo. A força de coerção da ideologia reside, justamente, na introjeção deste caráter supostamente essencialista, a partir do qual são forjadas "verdades" absolutas no sentido de que teoricamente não se poderia ultrapassar uma condição "natural" de sexo. No entanto, ressalta a autora, que apesar da eficácia da ideologia que procura naturalizar as desigualdades sexuais e ocultar às próprias mulheres o caráter político das relações entre os sexos, tornando-as cúmplices de sua desvalorização, esta assimetria, por ser um produto social, tem comportado, historicamente, a resistência.

E como lembra FOUCAULT (1986), qualquer luta é sempre resistência dentro da própria rede de poder, ressaltando que onde há poder há resistência, não existindo, portanto, um lugar propriamente de resistência, mas pontos móveis e transitórios que se distribuem por toda a estrutura social.

O significado que as mulheres estudadas têm da amamentação parece constituir-se da visão idealizada de uma maternidade romântica onde o ser mãe é

"... a coisa mais bonita que ocorre na face da terra, porque a gente passa por várias experiências na vida mas essa de ser mãe é extraordinária..." (E.20)

"...você participar , é amar, é tudo...não sei se é porque eu estava um pouco vazia e agora eu estou me sentido mais preenchida como mulher..." (E.7)

KITZINGER (1978) alude para o fato de estarmos diante do mito da maternidade, em que as mulheres em conseqüência de terem dado à luz, tornam-se diferentes do seu eu anterior, abnegadas, generosas experimentando a satisfação suprema de se sacrificarem deste modo.

Historicamente a dignificação da maternidade começa a ser corporificada a partir do século XVIII como experiência de felicidade para a mulher o que implicava desde aquela data sacrifícios, doação, dores e sofrimento, que para BADINTER (1985) ainda é atualmente vivenciada por muitas mulheres e apreendidos nos depoimentos das entrevistadas.

"...eu perdi o corpo mas ganhei uma vida, que é ele, ele é como se fosse minha vida, antes eu não tinha sentido para ninguém, me sentia mal amada, hoje eu tenho ele que depende de mim..." (E.17)

A mulher tendo sua valorização social mediada pelo outro, legitima-se como ser relativo aos determinantes fora de si, introjeta o altruísmo como parte de sua "natureza" feminina, carga essa evidenciada ao amamentar o filho, expressando, mais uma vez, sinais de conformismo ou mesmo movimentos de acomodação frente às situações que advém do processo.

"...eu me acostumei com isso, acho que faz parte da minha vida. No começo eu nem saia de casa, até ele ter condição de comer outras coisa..." (E.19)

A mulher ao incorporar a imagem idealizada de mãe perfeita, ela não deve ressentir-se do egocentrismo e das exigências de gratificação imediatista próprias do recém nascido. No cuidar-se de si, a mulher ratifica a força das raízes sociais como estando voltada para fora de si mesma, despojando-se assim em prol dos "outros", e atribuindo ao seu corpo um valor inferior ao do filho. Da mesma forma, o atendimento às suas necessidades são relegadas a padrões mínimos; e o interesse pela imagem corporal amortecido pela temporalidade do processo que ora se impõe.

"...tem dia que eu acordo e não dá nem para ir ao banheiro escovar os dentes, ela me consome...as vezes quando eu tenho que ir ao banheiro, eu deixo assim para ir na última hora, quando eu não estou agüentando mais...eu não tenho almoçado nos horários, mudou tudo minha vida, as vezes eu tenho fraqueza, tontura..." (E. 13)

"...agora eu estou só para amamentar mesmo, então eu não estou me importando com mais nada, com roupa com nada. depois que parar de amamentar, ai eu penso como consertar, porque ai...estragou, despencou o meu seio...mesmo que eu tenho que esperar um ano vai ficar despencado mesmo, não vou deixar de amamentar, enquanto eu tiver leite..." (E. 3)

Refere FOUCALT (1985) que o "cuidado de si" situa no cerne da "arte da existência" que se pretende ser. O princípio do cuidado de si tomou a forma de uma atitude, de uma maneira de se comportar, impregnou formas de viver, desenvolveu-se em procedimentos, em práticas e em receitas que eram refletidas, desenvolvidas, aperfeiçoadas e ensinadas. Constitui assim, o cuidado de si, uma prática social, dando lugar a relações interindividuais, a trocas e comunicações e até mesmo a instituições enfim, o cuidado de si proporciona um certo modo de conhecimento e a elaboração de um saber.

Ao analisar as representações que as mulheres trazem sobre a realidade vivenciada no aleitamento materno, no exercício do cuidado de si, a mulher ocupa-se do cuidado com seu corpo quando se tem por fim atender as necessidades da criança.

"... eu tomo cuidado de não comer certos alimentos porque faz mal, é perigoso, diminui o leite, coisas ácidas, gorduras, não comer alho e cebola. Tomo esses cuidados pela criança, para ela não ter cólica e poder ter mais leite..." (E. 14)

Essa forma de representar o cuidado de si, aparece como uma intensificação dos aspectos circunscrito ao gênero feminino: o de ser relativo, sensível, contido e principalmente da gratuidade das relações.

A visão idealizada de uma maternidade de doação e sacrifícios cria a mãe masoquista, conforme denomina BADINTER (1985), em que todo sofrimento que dela possa advir deve ser bem tolerado, já que é inerente à sua função de mãe.

"...no hospital foi difícil porque ela não conseguia muito chupar, ficava desesperada, quando saí do hospital já estava mamando normal, doía muito o bico, mas ela estava mamando...eu tenho muita paciência sabe, tem que ter mas as vezes cansa, dói as costas, ela já está num pezinho bom, te dói as costas, te dói os braços , mas eu não estou nem ligando, já estou me acostumando com a dor, quando ela não está comigo, sinto falta da dor..." (E. 13)

Padecer de dor tem ressonância com a visão figurativa de mulher abnegada onde todo o sofrimento tem sua recompensa, revelando movimento de acomodação pela contenção frente aos desconfortos ou incômodos vivenciados.

Como inerente à "natureza" e ao destino feminino a dor é configurada como parte integrante do processo "normal" de amamentar e que todas mulheres passam e suportam. Essa se constitui como mais um dote da imagem de mulher idealizada pois deve ser forte para enfrentar o sofrimento e a dor, como também deve manter sempre a alegria e a tranqüilidade no cuidado da criança.

Acrescido a essas determinações para com o gênero feminino, a expectativa de ser o aleitamento um processo "natural", acaba por ofuscar sinais e sintomas de intercorrências mamárias vivenciadas, sendo elas representadas pelas mulheres como ocorrências normais. Constatamos que muitas das entrevistadas apresentaram no pós parto algum tipo de intercorrência mamária, no entanto ao questionarmos se elas haviam tido algum problema durante a fase da amamentação, para nossa surpresa apenas duas delas responderam afirmativamente à pergunta, as demais só acenaram positivamente, na medida que nominávamos as possíveis intercorrências.

"... como assim problema? acho que não ...Ah! sim bico rachado, peito empedrado eu tive, fui até para o hospital tirar leite porque eu não estava agüentando, estava dando febre, ele estava mamando mas não adiantava nada ele mamar. ...eu já esperava por isso a rachadura essas coisas de empedração isso é normal..." (E. 20)

Pudemos apreender portanto, que a intercorrência mamária para as mulheres entrevistadas diz respeito ao corpo feminino, carregando o estigma de ser "naturalmente" submetido e espoliado como também, é atribuído a ele um valor inferior ao filho. Dessa forma, a dor, sintoma indicativo de anormalidade, é sufocada em função da resposta ao sacrifício esperado para o perfil de mãe.

"...meu bico rachou bonito, eu não agüentava de dor, mas eu dava assim mesmo. Eu peguei a mania, quando rachou o bico, de tomar água enquanto estava dando de mamá, assim parece que me acalmava, era uma forma que eu me acalmava de não sentir tanta dor..." (E. 19)

"...chegou a rachar um pouquinho meu bico, doía, doía, doía, você tem que por um pano na boca e morder, assim dá para agüentar..." (E. 7)

Estes são aspectos que nos possibilitam compreender porque as mulheres tendem a buscar assistência tão tardiamente, apenas quando o quadro já se apresenta agravado e que reintera a conotação de ser a intercorrência mamária um processo normal e o corpo feminino dado à sujeição.

A exaltação de sentimentos prazeirosos ao amamentar o filho é esperado pelo meio social, no entanto é comum a coexistência de ambigüidade de sentimentos frente à amamentação. O desprazer nem sempre é explícito para quem o vivencia, por não serem condizentes ao perfil idealizado de mãe, "não terem os verdadeiros instintos maternos". Percebemos que não é permitido à mulher o afrontamento explícito, o que pode ser justificado pela hierarquia que já está posta institucionalmente e historicamente, às necessidades do filho em primeira instância.

"...é difícil, mas é bom amamentar, porque qualquer mulher que falar que não gosta...É bom para ele e eu também gosto de amamentar, eu tenho prazer de amamentar ele...é um pouco cansativo, a gente não pode falar que não é, acordar de madrugada, as vezes você acabou de se deitar e ele quer mamá...é difícil..." (E. 3)

O modelo cultural tradicional de mãe, tomado por referência pelas mulheres, acaba sendo fonte de angústias por sentirem-se inadequadas pelas vivências de desprazer, chegando a expressarem um certo movimento de conformismo quando se atém a transitoriedade do processo de amamentar ou mesmo um movimento de resistência ao se declararem "incomodadas".

Nas representações das nutrizes deste estudo observa-se que ao mesmo tempo são convertidas e se convertem em sujeitos, num processo contínuo de disciplinarização, regulação e auto-regulação que para FOUCAULT (1986) constitui o centro de funcionamento das redes de poder.

Como lembra MEYER (1996), a produção e organização da vida social e especialmente a produção dos saberes e dos sujeitos implicados, se fazem a partir da dimensão produtiva de poderes múltiplos e dispersos, os quais agem nos domínios: relacional, habilidades e no simbólico.

A questão da produção láctea tem um significado ímpar, tanto para a mulher como para o seu meio relacional, como determinante de sua capacidade de ser boa nutriz, o que a qualifica como mãe.

Na situação cotidiana, incorrem na prática do aleitamento misto e o desmame precoce, evidenciados não só no grupo em estudo como na população em geral, sob justificativa de falência do biológico, na queda da produção láctea.

"... eu tenho pouco leite, eu falei para o médico que ela ficava nervosa pois o leite demora para descer, daí eu comecei por minha conta dar o "NAN", então ele falou para mim dar cento e vinte gramas para ela, já que eu não estava tendo muito leite..." (E. 4)

A figura do médico apresenta-se dotada de poder, por representar a autoridade deste saber, com conhecimento racional e científico baseado em dados clínicos, o que serve de respaldo à mulher para não ser desaprovada no seu meio social, por ter tomado a iniciativa de introduzir o complemento. E ao fazer isso cria um espaço próprio para dar conta de sua especificidade, monta um esquema de vigilância total que, se não está inscrito na organização espacial, se baseia na "pirâmide de olhares". É o olhar invisível a que FOUCAULT (1986, p. 18) refere:

"aquele que permite ver tudo permanentemente sem ser visto que deve impregnar quem é vigiado de tal modo que este adquira de si mesma a visão de quem o olha".

ARANTES (1991) observa que a decisão pela amamentação está na dependência da mulher, no entanto, ela é levada a justificar suas ações conforme o significado que seus atos têm para os outros.

Nesse mecanismo de produção de saberes sobre o aleitamento materno, as mulheres explicitam uma noção de agente social dependente de várias posições de sujeito, resultante de determinações múltiplas, contraditórias e conflitivas em sua subjetividade.

Tal condição se traduz como sendo um certo movimento de resistência, onde se cria e recria um outro poder, que se manifesta de forma mais subliminar ou sutil, pois acontece mais no terreno impreciso da emocionalidade e da afetividade, muito mais constitutivo do jogo de poder feminino, que do masculino. Entendemos que este tipo específico de poder é o que FOUCAULT (1986) chamou de disciplina ou poder disciplinar, que não é um aparelho ou uma instituição visto ser uma técnica, um dispositivo, ou seja, um mecanismo, um instrumento de poder. Portanto, para ele, são métodos usados pelos indivíduos que permitem o controle minucioso das operações do corpo, que asseguram a sujeição constante de suas forças.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Tendo por base os depoimentos das mulheres estudadas nos foi possível apreender que para elas, o aleitamento materno guarda em si características de uma prática que se instala, se determina e se resolve no espaço privado do domínio feminino, reproduzindo discurso ideológico que trata o aleitamento materno como uma prática dirigida ao atendimento das necessidades da criança.

A amamentação é ainda representada como um protótipo de feminilidade, qualificando socialmente a mulher como mãe.

As representações que as mulheres fazem do aleitamento materno guardam, em sua essência, um certo movimento de acomodação quando elas se atem ao ideário de maternidade, de dever, doação e sacrifícios, ao mesmo tempo um movimento de resistência, que se manifesta de forma invisível e por vezes, até inconsciente ao se mostrarem incapacitadas fisiologicamente para a amamentação. Entretanto, elas sofrem as conseqüências sentindo-se inadequadas ante o modelo de mãe em que se referenciam.

Torna-se urgente que se dimensione a amamentação no âmbito da mulher de modo que esta não seja apenas vista em sua biologia, mas dentro de um contexto mais amplo que envolve ao ser mulher: mãe, esposa, trabalhadora e cidadã. Esclarecemos entretanto, que com esse novo olhar, não estamos negando à criança seus direitos e necessidades, mas buscar um equilíbrio na demanda de ambas as partes envolvidas.

Recebido em: 20.3.98

Aprovado em: 28.8.98

  • 01. ARANTES, C.I.S. O fenômeno amamentação: uma proposta compreensiva. Ribeirão Preto, 1991. 86p. Dissertação (Mestrado) - Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo.
  • 02. BADINTER, E. Um amor conquistado: o mito do amor materno. Trad. Waltensir Dutra. 5. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985.
  • 03. BARDIWICK, J.M. Maternidade: da obrigação à escolha. In: BARDIWICK, J.M. Mulher sociedade transição. Trad. Wanda de Oliveira Roseli. São Paulo: Difusão Cultural, 1979. p. 72-96.
  • 04. CHODOROW, N. Psicanálise da maternidade: uma crítica a Freud a partir da mulher. Trad. Nathanael C. Caixeiro, Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos,1990.
  • 05. FOUCAULT, M. História da sexualidade III O cuidado de si. 4 ed. Rio de Janeiro: Graal, 1985.
  • 06. FOUCAULT, M. Microfísica do poder 6.ed. Rio de Janeiro: Graal, 1986.
  • 07. FUNDAÇÃO IBGE. Crianças e adolescentes: indicadores sociais. Rio de Janeiro,1992. v. 9.
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  • 1
    Professora Doutora do Departamento de Enfermagem Materno Infantil e Saúde Pública da Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo;
    2
    Professora Titular do Departamento de Enfermagem Materno Infantil e Saúde Pública da Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      29 Ago 2005
    • Data do Fascículo
      Jul 1999

    Histórico

    • Aceito
      28 Ago 1998
    • Recebido
      20 Mar 1998
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