Resumos
O objetivo do presente ensaio é atualizar uma reflexão em curso sobre os conceitos de transdisciplinaridade e complexidade. Com este objetivo, primeiro, discute-se a noção de 'disciplina' no referencial epistemológico do cartesianismo, que aparece como fundamento dos paradigmas dominantes na ciência da modernidade. Em segundo lugar, introduz-se brevemente princípios e elementos constitutivos do que tem sido denominado de "paradigma da complexidade", proposto como marco transformador da ciência contemporânea. Terceiro, apresenta-se uma síntese evolutiva dos projetos metodológicos de organização da prática científica e tecnológica que têm sido denominados de interdisciplinaridade e transdisciplinaridade. Em paralelo, discute-se de modo mais sistemático o desenvolvimento e uso de tais conceitos, a fim de avaliar o que tem sido proposto como perspectiva de integração deles no âmbito da prática científica. Finalmente, algumas das questões epistemológicas e teóricas esboçadas são discutidas, atualizando um debate com interlocutores e críticos no campo da Saúde e em campos científicos correlatos.
Complexidade; Transdisciplinaridade; Interdisciplinaridade; Paradigma; Saúde
The present paper is aimed at updating an ongoing conceptual research on transdisciplinarity and complexity. With this aim, firstly, the notion of 'discipline' is discussed in the cartesian epistemological frame of reference, foundation of dominant paradigms in modern science. Second, principles and constitutive elements of what has been named "complexity paradigm", supposedly a transforming landmark for contemporary science, are briefly introduced. Third, an evolutive synthesis of methodological projects of organization of techno-scientific practice that have been designated as interdisciplinarity and transdisciplinarity is presented. In paralel, it is discussed, more systematically, the development and use of such concepts, in order to evaluate what has been proposed as their integrative perspective into the realm of scientific practice. Finally, some sketched epistemological and theoretical questions are discussed, updating a debate with interlocutors and critiques in health and correlate scientific fields.
Complexity; Transdisciplinarity; Interdisciplinarity; Paradigm; Health
TEMA EM DISCUSSÃO
Transdisciplinaridade e o paradigma pós-disciplinar na saúde
Transdisciplinarity and the post-disciplinary paradigm in health
Naomar de Almeida Filho
PhD em Epidemiologia, Professor Titular do Instituto de Saúde Coletiva, Universidade Federal da Bahia. Pesquisador I-A do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico CNPq. E-mail: naomar@ufba.br
RESUMO
O objetivo do presente ensaio é atualizar uma reflexão em curso sobre os conceitos de transdisciplinaridade e complexidade. Com este objetivo, primeiro, discute-se a noção de 'disciplina' no referencial epistemológico do cartesianismo, que aparece como fundamento dos paradigmas dominantes na ciência da modernidade. Em segundo lugar, introduz-se brevemente princípios e elementos constitutivos do que tem sido denominado de "paradigma da complexidade", proposto como marco transformador da ciência contemporânea. Terceiro, apresenta-se uma síntese evolutiva dos projetos metodológicos de organização da prática científica e tecnológica que têm sido denominados de interdisciplinaridade e transdisciplinaridade. Em paralelo, discute-se de modo mais sistemático o desenvolvimento e uso de tais conceitos, a fim de avaliar o que tem sido proposto como perspectiva de integração deles no âmbito da prática científica. Finalmente, algumas das questões epistemológicas e teóricas esboçadas são discutidas, atualizando um debate com interlocutores e críticos no campo da Saúde e em campos científicos correlatos.
Palavras-chave: Complexidade; Transdisciplinaridade; Interdisciplinaridade; Paradigma; Saúde
ABSTRACT
The present paper is aimed at updating an ongoing conceptual research on transdisciplinarity and complexity. With this aim, firstly, the notion of 'discipline' is discussed in the cartesian epistemological frame of reference, foundation of dominant paradigms in modern science. Second, principles and constitutive elements of what has been named "complexity paradigm", supposedly a transforming landmark for contemporary science, are briefly introduced. Third, an evolutive synthesis of methodological projects of organization of techno-scientific practice that have been designated as interdisciplinarity and transdisciplinarity is presented. In paralel, it is discussed, more systematically, the development and use of such concepts, in order to evaluate what has been proposed as their integrative perspective into the realm of scientific practice. Finally, some sketched epistemological and theoretical questions are discussed, updating a debate with interlocutors and critiques in health and correlate scientific fields.
Keywords: Complexity; Transdisciplinarity; Interdisciplinarity; Paradigm; Health
Introdução
Agrupados sob o rótulo de "novo paradigma" e com diferentes graus de inter-articulação, vários elementos epistemológicos e metodológicos têm sido propostos como tendência alternativa para a ciência contemporânea. A aplicação destes princípios, métodos e lógicas, que às vezes não parecem congruentes entre si, tem sido denominada, particularmente nos países anglo-saxões, de ciência pós-moderna (Santos 1989). Proponentes dos novos paradigmas freqüentemente sugerem que uma nuova scienza encontra-se em pleno desenvolvimento, demandando categorias epistemológicas próprias (como parece ser a categoria da complexidade), novos modelos teóricos (como a "teoria do caos") e novas formas lógicas de análise (como por exemplo modelos matemáticos não-lineares, geometria fractal, lógica borrosa e teoria de redes).
No campo da Saúde Coletiva, vários autores têm defendido a necessidade de novos paradigmas para abordar diferentes questões de pesquisa: Attinger (1985) propõe a análise de políticas de saúde a partir de modelos sistêmicos dinâmicos desde uma perspectiva teórica da complexidade, capazes de integrar os níveis micro e macro e as transformações dos sistemas de saúde. Castellanos (1990) e Almeida-Filho (1990), independentes mas simultaneamente, sistematizaram propostas equivalentes e complementares de uso destas novas abordagens paradigmáticas para a construção metodológica do objeto da pesquisa epidemiológica. Tais propostas vêm sendo ampliadas e difundidas com o objetivo de fomentar uma produção científica concreta, capaz de efetivamente alimentar um possível paradigma novo (Schramm e Castiel, 1992; Castiel, 1994; Breilh, 1995; Almeida-Filho, 1996; Koopman 1996).
Desde 1990, venho trabalhando em uma revisão sistemática de propostas de produção de conhecimento alternativas ao paradigma dominante, explorando suas possibilidades de aplicação nos campos científicos da saúde, focalizando particularmente a Epidemiologia, minha área de formação e pesquisa. Nessa busca, encontrei uma detalhada classificação evolutiva das alternativas de integração de distintos campos disciplinares proposta por Jantsch (1972), atualizada por Vasconcelos (1997, 2002) e adaptada por Bibeau (1996)1 1 Bibeau, G. Séminaire sur l'interdisciplinarité et l'application. Montréal: Université de Montréal, Département d'Anthropologie, 1996. Não publicado. , que funcionou como ponto de partida para uma série de textos sobre temas epistemológicos da Saúde Coletiva e dos corpos de discursos que a estruturam (Almeida Filho, 1989, 1990, 1992, 1997, 1997a, 1998, 2000, 2000a, 2000b).
No presente ensaio, dando seguimento a esse programa de estudo, recupero argumentos e atualizo uma reflexão em curso sobre os conceitos de transdisciplinaridade e complexidade. Com este objetivo, primeiro discuto algumas articulações da noção de 'disciplina' (e seu correlato 'especialidade') no referencial epistemológico do cartesianismo, que aparece como fundamento dos paradigmas dominantes na ciência da modernidade. Em segundo lugar, introduzo brevemente princípios e elementos constitutivos do que tem sido denominado de "paradigma da complexidade", proposto como marco transformador da ciência contemporânea. Terceiro, apresento uma síntese evolutiva dos projetos metodológicos de organização da prática científica e tecnológica que têm sido denominados de interdisciplinaridade (incluindo a série semântica que a precede: pluri-multi-meta) e transdisciplinaridade. Em paralelo, discuto de modo mais sistemático as condições de desenvolvimento e uso de tais conceitos, a fim de avaliar o que tem sido proposto como perspectiva de integração deles no âmbito da prática científica. Finalmente, busco aprofundar algumas das questões epistemológicas e teóricas esboçadas, atualizando um debate em aberto com interlocutores e críticos, com a intenção de contribuir para o avanço do debate epistemológico em Saúde e campos científicos correlatos.
Raízes da Disciplinaridade no Paradigma Cartesiano
Com o sentido primitivo de "demonstração", o termo 'análise' compôs o título atribuído a uma das obras de Aristóteles (As Analíticas). Entretanto, o seu uso moderno como uma forma especial de raciocínio em Lógica e em Filosofia foi primeiro estabelecido por Descartes, em 1635, já como postulado de oposição à noção de síntese.2 ana 2 Etimologicamente, 'análise' provém do Grego - prefixo de semântica variável, "atrás", "inverso", "sempre" ou "de novo", e - lusis (dissolução, decomposição, destruição). O emprego do termo 'análise' foi sucessivamente estendido para a matemática (e.g. álgebra e geometria analíticas) e para as ciências naturais (e.g. análise química e geológica), no final do século XVII, para a gramática (analise sintática e semântica) e para as protopsicologias, já no século XVIII (Rey 1993).
No sentido cartesiano, conhecer implicava necessariamente uma etapa inicial de fragmentação (para ser mais claro, de destruição) da coisa a ser transformada em objeto de conhecimento. Este seria o preço mínimo que se deveria pagar para ascender ao conhecimento racional. Então o princípio da parcimônia, no sentido da simplificação reducionista, validaria os modelos explicativos do novo modo de produção de conhecimento pois o conhecer reduzia o agora objeto aos seus componentes elementares.
Apesar da declarada indissociabilidade entre análise e síntese, estava fora de questão, pelo reconhecimento do primado da experiência, que o conhecimento poderia ser de algum modo totalizante, conforme com clareza atesta Locke (1988 [1690] p.188):
Não devemos, pois, incorporar sistemas duvidosos como ciências completas, nem noções ininteligíveis por demonstrações científicas. No conhecimento dos corpos devemos nos contentar a recolher o que pudermos dos experimentos particulares, desde que não podemos, da descoberta de suas essências reais, apreender ao mesmo tempo todo o conjunto, e às pressas compreender a natureza e propriedades de todas as espécies reunidas. (Grifos nossos.)
Como corolário da analítica cartesiana, certamente sua mais poderosa estratégia de operação, a ciência ocidental se desenvolveu com base na noção de especialidade (e seus correlatos: especialista e especialização). O ideal renascentista do sábio-artista-cientista, encarnado na genialidade de Da Vinci, e o movimento iluminista do enciclopedismo, exemplificado pelo talento múltiplo dos pioneiros cientistas (que eram simultaneamente físicos, médicos, filósofos, matemáticos, astrônomos, naturalistas e alguns até literatos e políticos), eram em certa medida marginais em relação à história da ciência normal (Santos 1989, 2003). A ampliação do escopo da nascente prática institucional da ciência, com suas sociedades e academias, produzia campos disciplinares cada vez mais rigorosamente delimitados, como se fossem e eram territórios inexplorados, demarcados e apropriados pelos seus desbravadores. Por outro lado, na arena científica, mais e mais se valorizava a especialização, tanto no sentido de criação de novas disciplinas científicas quanto na direção de subdivisões internas nos próprios campos disciplinares; no campo das práticas sociais, novas profissões eram criadas; no âmbito da reprodução ampliada, um novo sistema de ensino e formação estruturava-se com base nesta estratégia "minimalista" de recomposição histórica da ciência e da técnica. Podemos em princípio designar essa estratégia de organização histórico-institucional da ciência, baseada na fragmentação do objeto e numa crescente especialização do sujeito científico, como a disciplinaridade.
Na Roma Antiga, os seguidores de um magister (mestre) eram chamados discipuli; o termo passou em seguida a designar aqueles que aderiam à filosofia de uma escola ou de um grupo ou que se ligavam a um mesmo modo de pensar. Nesta família semântica, disciplina inicialmente significava a ação de aprender, de instruir-se; em seguida, a palavra foi empregada para referir-se a um tipo particular de iniciação, a uma doutrina, a um método de ensino. Posteriormente, veio a conotar o ensino-aprendizado em geral, incluindo todas as formas de educação e formação. Por metonímia, a partir do século XIV, com a organização das primeiras universidades, ainda no contexto escolástico, disciplina passou a designar uma matéria ensinada, um ramo particular do conhecimento, o que depois viria a se chamar de uma "ciência". Assim, a disciplina tornou-se equivalente a princípios, regras e métodos característicos de uma ciência particular e, por extensão, de toda a Ciência (Rey, 1993; Bibeau, 1996)2 ana 2 Etimologicamente, 'análise' provém do Grego - prefixo de semântica variável, "atrás", "inverso", "sempre" ou "de novo", e - lusis (dissolução, decomposição, destruição). O emprego do termo 'análise' foi sucessivamente estendido para a matemática (e.g. álgebra e geometria analíticas) e para as ciências naturais (e.g. análise química e geológica), no final do século XVII, para a gramática (analise sintática e semântica) e para as protopsicologias, já no século XVIII (Rey 1993). .
O marco epistemológico do reducionismo cartesiano constrói e trata, muito bem, dos objetos simples. Tem sido designado como um paradigma da explicação, justamente por buscar uma transparência e uma publicidade (sem ironia), termos aliás contidos no sentido original de explicar (ex-plicare, des-enrolar, des-envolver, ex-ternalizar) (Rey, 1993). O velho e bem-firmado reducionismo cartesiano de fato tem subsidiado a maior parte dos avanços científicos e tecnológicos da moderna sociedade industrial. Sem dúvida, o reducionismo valoriza acima de tudo a simplicidade e parcimônia como elementos fundamentais dos seus objetos e modelos. Apenas por brevidade, chamemo-lo de "Paradigma S" (paradigma da simplicidade, ou da simplificação).
Numa fase posterior de expansão do imperialismo científico, já no século XX, a formação de novos campos disciplinares exigiu que os fundamentos da abordagem analítica do problema do conhecimento fossem repensados (Maheu, 1967). Nessa perspectiva, a produção do conhecimento científico visava não mais a fragmentação, mas a construção de objetos através de um processo de composição, ou montagem, de elementos constituintes. Não mais uma busca de desintegração (ou seja, análise) e sim uma integração totalizadora (a síntese). Conforme Morin (1990, 2003), estratégias sintéticas de construção de um dado campo científico configuram uma alternativa para abordar as especificidades e os enigmas dos eventos, processos, fenômenos, na natureza, na história e na sociedade, enquanto síntese provisória de múltiplas determinações. Dessa forma, de algum modo se contemplava a produção de objetos complexos, aqueles que não se subordinam a nenhuma aproximação meramente explicativa, e que nem por isso mereceriam ser excluídos do campo de visão da ciência justamente por serem... indisciplinados. Tratava-se então não apenas de explicar, mas de entender; não somente de produzir a descrição rigorosa ou a classificação precisa mas também a compreensão de uma dada questão científica (Minayo, 1992).
Muitos agora dizem que a ciência contemporânea passa por uma crise paradigmática (Santos, 1989, 2003; Morin, 1990, 2003; Samaja, 1996). No seio de uma prática que flagrantemente reafirma a fragmentação, os melhores cientistas, atuando na vanguarda das chamadas "ciências duras" (principalmente físico-química, genética, biologia molecular, neurociências), se dão conta de que não mais podem deter-se em (ou serem detidos por) questões científicas localizadas, tornando-se especialistas monotemáticos (Maheu, 1967; Powers, 1982; Maturana e Varela, 1984; Prigogine e Stengers, 1986). Em outras palavras, tornam-se conscientes de que é necessário abrir a ciência a questionamentos em um nível mais fundamental, sob pena de terem suas disciplinas transformadas em mero repertório de técnicas e procedimentos desde já superados. Segundo Bibeau (1996),
paralelamente (e contraditoriamente) à superespecialização assistimos a um apagamento de fronteiras (pessoal-político; privado-público; local-global; individual-coletivo; sagrado-profano; objeto-sujeito) que faz com que seja cada vez mais difícil ao pesquisador reencontrar-se nas práticas de pesquisa. Não mais se sabe a que disciplina pertence o autor de uma dada pesquisa ou artigo científico. Esta situação parece provocar um duplo efeito contrário. De um lado, encontra-se ambigüidade, caos e incoerência seguida de fenômenos de fusão, mistura, hibridização e mestiçagem entre métodos e teorias; e de outro lado, uma abertura de fronteiras, uma consideração dos contextos, uma desinsularização das disciplinas.
Desde o final do século passado, cresce no campo científico a consciência de que a ciência se configura cada vez mais como uma prática de construção de modelos, de formulação e solução de problemas num mundo em constante mutação (Samaja, 1996; Maturana, 2001). De certo modo, o narcisismo antropocêntrico típico do cientista de tradição cartesiana parece não ter lugar em uma ciência que mais e mais valoriza a descentração e a relatividade (Morin, 2003). Por outro lado, essa crise ocorre porque a prática da ciência continuamente produz objetos novos. Não somente novas formas para referenciar os mesmos velhos objetos, mas de fato objetos radicalmente novos, realmente emergentes.
O Paradigma da Complexidade
Hoje em dia, em muitos campos científicos anuncia-se que o Paradigma S teria exaurido sua capacidade de apreender as complexas realidades concretas da natureza, história e cultura humanas e, por conseguinte, teria alcançado os seus limites como um terreno fértil para o avanço da ciência. Desde a inauguração da perspectiva sistêmica, ilustres pensadores e cientistas de diversas áreas de pesquisa (uma curta lista: Wiener, von Bertallanfy, Prigogine, Thom, Boulding, Maturana, Simon, Atlan, Lorenz, Morin, entre outros), vêm propondo formas alternativas de superação das debilidades do reducionismo. A articulação sistemática desse desenvolvimento crítico resultou na composição de novos campos interdisciplinares como a Ciência da Informação e a Cibernética. Mais recentemente, essas propostas foram finalmente unificadas, conformando o que veio a ser designado como "paradigma da complexidade" ou, abreviadamente, Paradigma C (Morin, 1984, 1990).
Alguns proponentes desses enfoques privilegiam componentes analíticos formais que pretendem justificar a denominação genérica, para essas propostas, de teoria do caos ou da não-linearidade (Ruelle, 1991; Lorenz, 1993; Percival, 1994). Tais propostas se apresentam quase como um "neo-sistemismo", atualizando e expandindo algumas posições da teoria dos sistemas gerais que havia alcançado uma certa influência no panorama científico dos anos 50 e 60 (Boulding, 1956; Buckley, 1968). Por esse motivo, a terminologia "teoria dos sistemas dinâmicos" tem sido empregada com certa freqüência para designar os modelos complexos gerados no contexto de propostas de um paradigma científico alternativo (Gleick, 1986; Lewin, 1992). Portanto, a abordagem da complexidade não constitui rigorosamente uma nova concepção. Apesar disso, concordo com Morin (2003) que a categoria 'complexidade' designa um paradigma que, apesar de não trazer novidades, tem uma chance de tornar-se dominante em diversos campos de conhecimento neste milênio.
A idéia de complexidade seria dessa forma tomada como eixo principal que unificaria parcialmente as diversas contribuições em direção a um paradigma científico alternativo. Trata-se de uma aplicação generalizada da premissa de que, ao contrário da abordagem reducionista do positivismo, que tem como objetivo uma simplificação da realidade, a pesquisa científica dentro de um novo paradigma deve respeitar a complexidade inerente aos processos concretos da natureza, da sociedade e da história (Robson, 1986; Santos, 1989, 2003). Na minha opinião, o Paradigma C, produto da cultura e da história humanas como qualquer outra construção social, resulta de uma prática social-intelectual-institucional chamada ciência, não sendo definível, em uma perspectiva essencialista, por sua maior ou menor aproximação a processos factuais de uma realidade absoluta.
Várias possibilidades se apresentam no sentido de uma definição da complexidade a partir de uma perspectiva mais rigorosa do ponto de vista epistemológico (Edmonds, 1996). Assim, podemos catalogar os seguintes elementos teóricos da complexidade:
Sistemas dinâmicos Definição que compreende estruturas sistêmicas abertas, em constante transformação, totalidades formadas por partes inter-relacionadas, elementos, conexões e parâmetros mutantes. A complexidade de um modelo pode ser entendida como a sua natureza não-finalista, correspondendo na linguagem da teoria dos sistemas à propriedade de retroalimentação de um modelo explicativo sistêmico. Estou convencido que, de fato, complexidade implica a noção de transformação. Nenhum dos modelos baseados na complicação, por mais sofisticados e articulados que sejam, considera a "flecha-do-tempo" no sentido prigoginiano (Prigogine e Stengers, 1986; Coveney, 1994). Mesmo nas suas versões mais desenvolvidas, tais modelos têm se mostrado reducionistas, monótonos ou finalísticos e, acima de tudo, abordam a realidade complexa através de "cortes de congelamento", ou seja, através da paralisia do seu elemento mais fundamental, a natureza dinâmica do ser (Delattre e Thellier, 1979). Um sistema dessa ordem, por mais intricado seja, que sempre converge para o mesmo output fixo, nunca será um sistema dinâmico. É por isso que a noção de retroalimentação revelou-se tão crucial para a teoria dos sistemas. Na mesma medida, isso explica porque a idéia de 'iteração' torna-se chave para definir não-linearidade nos sistemas dinâmicos.
Não-linearidade Trata-se da propriedade de interconexões sistêmicas que vão além das relações dose-resposta, produzindo efeitos que tendem a exceder a previsão, dado um conjunto de determinantes. Os modelos de predição que se baseiam em modelos teóricos de distribuição de eventos baseados em funções caóticas ou não-lineares, descontínuas ou críticas têm sido preconizados como úteis para a descrição das relações determinantes complexas (Thom, 1985). Dois sentidos têm sido em geral agregados à noção de não-linearidade: Por um lado, não-linear pode significar não finalístico, recursivo ou iterativo, no sentido de efeito de sistemas dinâmicos não convergentes (Philippe, 1993). Por outro lado, a não-linearidade pode estar associada à propriedade de relações entre séries de eventos que não seguem a lógica do efeito dose-resposta específico (Lorenz, 1993).
Caos O emprego do termo grego 'kaos', equivalente a "desordem", antônimo de 'cosmos' (também originário do grego, designando "ordem"), no sentido da descrição de sistemas de relações não-lineares, indica que esta perspectiva abre-se à consideração de paradoxos, intoleráveis na epistemologia convencional, como por exemplo a concepção de "ordem a partir do caos" (Atlan, 1981). De todo modo, o uso consagrado em um jargão instituído pela prática incorpora formas alternativas de determinação que emanariam de transições de fase aparentemente desordenadas, ou seja, "caóticas". Esta referência particular, portanto, incorpora um determinismo especial, distinguindo com clareza caos de indeterminação ou de aleatoriedade, ambos corolários do famoso princípio da incerteza que inaugura a crítica à física relativista contemporânea (Ruelle, 1991).
Na prática, caos tem sido definido como a sensitividade às condições iniciais mais a imprevisibilidade do sistema como um todo (Gleick, 1986; Lorenz, 1993). Em termos analíticos, algumas noções de base aparecem com freqüência referidas à teoria do caos: "atratores estranhos" e efeitos "fracos". Primeiro, os "atratores estranhos" constituem uma forma de expressão gráfica de associações de elementos dos sistemas iterativos, portanto apropriada para a representação de relações não-lineares no chamado "espaço-fase" (Eckman e Ruelle, 1985). Segundo, a noção de "sensibilidade às condições iniciais" enquanto uma propriedade essencial dos sistemas dinâmicos abre caminho para os modelos explicativos baseados em efeitos "fracos" ou efeitos sensíveis (interações), ou seja, modelos com menor grau de precisão ou de estabilidade preditiva com base em configurações conhecidas de fatores ou determinantes (Coveney, 1994). A consideração dos efeitos "fracos" ou fatores de interação possibilita a operacionalização de modelos de sistemas dinâmicos sob a forma de redes complexas (Newman, 2003; Strogatz, 2003), a nosso ver com alto potencial para tratar a questão do objeto saúde (Schramm e Castiel, 1992; Castiel, 1994; Almeida Filho, 1997a; Chaves, 1998).
Emergência Definida como a ocorrência imprevista, a categoria 'emergência' remete à transgressão das leis conhecidas da determinação, engendrando o "radicalmente novo" (Castoriadis, 1982). Em outras palavras, trata-se de um processo de determinação ignorada, concernente à ocorrência de algo (objeto, força, vetor) que previamente não existia no sistema. Este é um problema teórico fundamental das diversas perspectivas paradigmáticas alternativas, abrindo-se a ciência à possibilidade da "emergência", no sentido de algo que não estaria contido na síntese dos determinantes em potencial (Morin, 1990). Novamente, tolera-se um paradoxo como parte integrante da lógica científica do novo paradigma: "o novo a partir do existente". A propósito, a questão da descontinuidade tem recebido um tratamento matemático bastante sofisticado através da chamada teoria das catástrofes (Arnold, 1989), elaborada e difundida principalmente por René Thom na década de 80 (Thom, 1985). Essa questão vincula-se estreitamente ao chamado "problema da irreversibilidade", em que a concretude dimensional do tempo é posta em causa.
Borrosidade(fuzziness) Refere-se à propriedade da imprecisão de limites entre elementos dos sistemas, qualidade de uma realidade a-limitada, resultante da transgressão da lógica formal de conjuntos ou do efeito do "borramento" dos limites intra e intersistêmicos. Curiosamente, a "teoria dos conjuntos borrosos" (em inglês: "fuzzy set theory"), proposta por Zadeh no início da década de 60, situa-se entre as concepções menos popularizadas das novas abordagens paradigmáticas. Trata-se de uma abordagem crítica das noções de limite e de precisão, essenciais à teoria dos conjuntos que funda a analítica formal da ciência moderna (Zadeh, 1982). O velho convencionalismo aristotélico define os fundamentos lógicos da certeza com base na identidade e na não-contradição (Costa, 1980). Como corolário, haveria três modalidades de incerteza a contradição, a confusão e a ambigüidade não passíveis de formalização lógica e matemática, portanto fora dos limites da racionalidade científica. A estas, acrescente-se o "borramento", propriedade particular dos sistemas complexos no que se refere à natureza arbitrária dos limites infra-sistêmicos impostos aos eventos (unidades do sistema) e ao próprio sistema, em suas relações com os supersistemas (contextos) e respectivos observadores.
Inicialmente, a teoria dos conjuntos borrosos implicava uma crítica radical à noção de evento como uma fragmentação arbitrária dos processos e da transformação dos elementos dos sistemas dinâmicos, impondo uma delimitação precisa onde ocorre uma fluidez de limites (McNeil e Freiberger, 1993). A isto propus designar como Borramento 1 (Almeida Filho, 2000). Porém a consideração da lógica borrosa pode também implicar uma recuperação da contextualização como etapa do processo de produção de conhecimento. Neste caso, borram-se os limites externos do sistema, ou seja, a interface entre o sistema e o contexto, conformando o que chamei de Borramento 2. Por último, da crítica à noção de limite resulta também um questionamento da categoria epistemológica da objetividade, retomando o clássico problema do observador como efeito de um Borramento 3, neste caso referido à delimitação fluida, ambígua, contraditória e confusa entre sujeito e objeto.
Fractalidade Indica uma geometria do microinfinito, desenvolvida por Mandelbrot (1982, 1994) como solução para analisar graficamente os padrões repetidos das relações não-lineares. A noção de "fractais" parece a mais fascinante e de maior utilidade para o desenvolvimento de modos alternativos de produção do conhecimento científico. Trata-se de uma nova geometria, baseada na redução das formas e propriedades dos objetos ao "infinito interior", como por exemplo na possibilidade de dividir uma linha em duas partes iguais, que poderão por sua vez serem divididas, e assim sucessivamente, mantendo-se sempre a forma original de uma linha dividida pela metade. Desta maneira, pode-se representar de um modo altamente sintético a constatação da permanência de certas propriedades através dos diferentes níveis do sistema (Series, 1994). Uma variante dessa noção pode ser encontrada, com as devidas especificidades, na famosa questão local versus global, que tem alimentado uma discussão de extrema atualidade nas ciências sociais contemporâneas (Hannerz, 1993).
Nessa altura, é preciso considerar uma distinção fundamental entre simples, complicado e complexo. Nesse conjunto de definições, 'simplicidade' resulta de ana-lysis, i.e., da operação que fragmenta o sistema nas unidades mais simples possíveis. Isto equivale à redução das relações e processos sistêmicos às formas elementares de determinação, que constituem "modelos simples". A transição da simplicidade à complexidade não é linear e direta, tendo a noção de complicação como nível intermediário imediatamente superior (Morin, 1984, 2003). Complicado é um sistema que apenas multiplica nexos da mesma natureza (por exemplo, nexos causais) entre elementos do sistema de um mesmo nível hierárquico. Multiplicar os elementos de um dado sistema não é suficiente para nele "introduzir" complexidade. Consideremos como ilustração desse aspecto a definição epidemiológica de multicausalidade (Almeida Filho, 1992). Esta implica uma modelagem da complicação mas não da complexidade, na medida em que não indica hierarquia nem incorpora a diversidade complexa dos nexos presentes na realidade. Todas as interconexões entre os componentes são do mesmo tipo, tornando-o um sistema monótono. Trata-se de outra faceta do reducionismo cartesiano, no sentido de que essa forma de modelar a realidade reduz a diversidade dos nexos existentes em qualquer fenômeno ou processo a relações estandardizadas.
A incorporação de diferentes níveis e formas elementares de determinação em um mesmo modelo permite defini-lo como sistema complicado de segunda ordem ou "modelo pré-complexo". De fato, todas as relações internas do modelo ainda convergem para um desenlace, assim visto como a finalização do processo. A despeito do poder heurístico superior desse modelo em relação ao modelo precedente, ele opera no domínio da complicação (mas não no da complexidade), posto que nele não há qualquer tratamento da transformação dos fenômenos na dimensão temporal. Abordagens transdisciplinares são especialmente indicadas para construir e operar modelos desse tipo, dispositivos intuitivos para a articulação de diferentes formas de determinação, incluindo a transformação de componentes em fatores através de variáveis tipo "proxy". Tais modelos podem assumir a forma de modelos prototípicos para a desejada integração entre as ciências sociais (com processos macrossociais como relações de composição na base do modelo), lógica e semântica (justificando anamorfoses que produzem links entre a base do modelo e os fatores modelados) e as ciências clínicas e da saúde pública (responsáveis pela modelagem de riscos, doenças ou outros efeitos sobre a saúde) (Almeida Filho, 2000a).
Em uma perspectiva pragmática, buscando acercar a questão da complexidade a partir de uma abordagem descritiva, podemos desenvolver um certo roteiro para o reconhecimento da complexidade onde ela se manifesta, ou seja, nos objetos-modelos ou nos quadros teóricos do Paradigma C. Este roteiro leva ao reconhecimento de graus de complexidade: Grau I: não-linearidade; Grau II: não-linearidade + emergência; Grau III: não-linearidade + emergência + borrosidade; Grau IV: não-linearidade + emergência + borrosidade + fractalidade.
Chamemos à propriedade resultante da introdução de não-linearidade no modelo como complexidade de Grau I. Na teoria clássica dos modelos sistêmicos, essa propriedade foi certa vez descrita como retroalimentação, ou feedback. Os matemáticos hoje em dia preferem chamá-la de "iteração" (Newman, 2003). Creio que podemos denominá-la de 'retroação'. O que é interessante frisar nesse processo é que tais formas de representação da realidade têm a intenção de superar a paralisação da realidade dos modelos pré-complexos. Modelos dessa natureza preenchem uma propriedade fundamental da complexidade não-linearidade (retroação) , mas ainda não a emergência. Isso quer dizer que, quando tomamos as variáveis no seu conjunto, o efeito combinado resultante ainda equivale à soma dos efeitos individuais. Porém não é isso o que ocorre na modelagem de sistemas reais, pois freqüentemente o efeito resultante é maior que a soma dos efeitos das variáveis individuais. Proponho que o excedente dos efeitos em geral, que constituem processos sinérgicos de interação, constitui exemplos de emergência em sistemas complexos. Nessa interpretação, ao serem introduzidas no modelo, tais interações têm impacto sobre a variação que está sendo avaliada como resultante de um efeito convencionalmente predito. Temos aqui portanto a formulação de uma modelagem de Complexidade Grau II.
Nos modelos anteriores, cada um dos elementos se apresenta como isolado do conjunto das coisas, fenômenos, objetos e processos, nos quais necessariamente se situa. Claro que não é assim, há transições de fase na variação modelizada que aparentemente impedem que se especifique, com precisão rigorosa e corte discreto, os limites exatos entre a situação anterior e a nova situação. Da mesma maneira, não é possível definir os limites entre os efeitos de todos os fatores ativos no modelo. As fronteiras entre ser e não ser nem sempre podem ser claramente demarcadas. Um dado modelo que impõe limites entre os elementos que o compõem será necessariamente mais fiel ao conjunto de processos que o sistema pretende representar? De fato, não podemos saber quando começa a situação alterada nem onde estão os limites dos elementos entre si e deles com o seu contexto. No contexto do paradigma da complexidade, o termo 'borrosidade' é útil para designar essa propriedade de sistemas reais, o que justificaria definir com isso modelos de Complexidade Grau III.
Em suma, a aplicação destes princípios, métodos e lógicas, que às vezes não parecem congruentes entre si, sugere que um novo paradigma científico encontra-se em pleno desenvolvimento, demandando categorias epistemológicas próprias (como parece ser a categoria da complexidade), novos modelos teóricos (como a "teoria do caos") e novas formas lógicas de análise (como por exemplo a geometria fractal e os modelos matemáticos não-lineares). O pressuposto de base dessa perspectiva é que as teorias dos processos irreversíveis e da entropia da Termodinâmica, da indeterminação e da causalidade probabilística da Física quântica, dos sistemas dinâmicos da Biologia, enfim as abordagens da complexidade em geral, seriam capazes de produzir as novas metáforas necessárias para compreender e superar o distanciamento entre o mundo natural e o mundo histórico. Essas metáforas descrevem sistemas dinâmicos complexos, auto-regulados, mutantes, imprevisíveis, produtores de níveis emergentes de organização. Mesmo que ainda não se observe um padrão teórico de aceitação geral, as propostas encaminhadas valorizam a fragmentação fractal, a relatividade, o dinamismo, a indeterminação e a contingência como características da formulação alternativa para a construção de uma nova família de entes científicos os objetos complexos.
Conceitualmente, o objeto complexo é sintético, não-linear, múltiplo, plural e emergente. Como um objeto-modelo sistêmico, faz parte de um sistema de totalidades parciais e pode ser compreendido ele mesmo como um sistema, também incorporando totalidades parciais de nível hierárquico inferior. Em sua forma de objeto heurístico (Bunge, 1972), não pode ser explicado por modelos lineares de determinação. Em outras palavras, trata-se de um objeto-modelo submetido a funções não-lineares de determinação. Por isso, o objeto complexo não possibilita a predição, nem a partir dele se pode diretamente gerar tecnologia. Sabemos também que metodologicamente o objeto complexo é aquele que pode ser apreendido em múltiplos estados de existência, dado que opera em distintos níveis da realidade. O objeto complexo é multifacetado, alvo de diversas miradas, fonte de múltiplos discursos, extravasando os recortes disciplinares da ciência.
Para uma abordagem respeitosa desses intrigantes atributos, a organização convencional da ciência, em disciplinas autônomas e até estanques, precisa ser superada por novas modalidades da praxis científica, instaurando formas alternativas de disciplinaridade. Daí que para construí-lo como referente é preciso operações de síntese, produzindo modelos holísticos de determinação complexa, e para designá-lo apropriadamente é necessário o recurso à polissemia resultante do cruzamento de distintos discursos disciplinares. Dessas operações resultam projetos metodológicos de organização da prática científica e tecnológica que têm sido denominados de interdisciplinaridade (incluindo a série semântica que a precede: pluri-multi-meta) e transdisciplinaridade.
Pluri-Multi-Meta-Inter/Transdisciplinaridade
Coerentemente preocupado com a incidência dessa questão no âmbito educacional, Jantsch (1972) propôs uma detalhada classificação evolutiva das alternativas de interação ou integração de distintos campos disciplinares. A base dessa tipologia, retomada e adaptada por Vasconcelos (1997, 2002) e Bibeau (1996)1 1 Bibeau, G. Séminaire sur l'interdisciplinarité et l'application. Montréal: Université de Montréal, Département d'Anthropologie, 1996. Não publicado. , seria a observação da própria prática científica e dos corpos de discursos por ela alimentados. Esses autores definem as seguintes etapas sucessivas:
Multidisciplinaridade: conjunto de disciplinas que simultaneamente tratam de uma dada questão, problema ou assunto (digamos, uma temática t), sem que os profissionais implicados estabeleçam entre si efetivas relações no campo técnico ou científico. É um sistema que funciona através da justaposição de disciplinas em um único nível, ausente uma cooperação sistemática entre os diversos campos disciplinares. Uma representação esquemática dessa situação encontra-se na Figura 1, onde os pequenos círculos indicam os diferentes campos disciplinares A, B e C, dispostos isoladamente porém incorporados por um campo temático t.
Pluridisciplinaridade: implica a justaposição de diferentes disciplinas científicas que, em um processo de tratamento de uma temática unificada t, efetivamente desenvolveriam relações entre si. Seria portanto ainda um sistema de um só nível (como na multidisciplinaridade), porém os objetivos aqui são comuns, podendo existir algum grau de cooperação mútua entre as disciplinas. De todo modo, envolvendo campos disciplinares situados num mesmo nível hierárquico, há uma clara perspectiva de complementaridade, sem, no entanto, ocorrer coordenação de ações nem qualquer pretensão de criar uma axiomática comum (Vasconcelos, 1997). Uma representação gráfica esquemática desta modalidade, em que setas simbolizam a comunicação cooperativa, encontra-se na Figura 2.
Interdisciplinaridade auxiliar: interação de diferentes disciplinas científicas (A, B, C e D), sob a dominação de uma delas (no caso D), que se impõe às outras enquanto campo integrador e coordenador. O sistema apresenta dois níveis e aqui pode-se reconhecer a posição superior de uma disciplina em relação às outras. Por exemplo, os manuais de especialidades médicas em geral integram distintas disciplinas (como a patologia, a epidemiologia, a nutrição, a propedêutica, etc.) subordinando-as, posto que as informações tomadas de empréstimo dessas disciplinas são colocadas a serviço da especialidade enquanto disciplina-mestra (Vasconcelos, 1996, p7). A Figura 3 traz uma representação gráfica desta modalidade.
Metadisciplinaridade: trata-se de uma contribuição de Bibeau (1996)1 1 Bibeau, G. Séminaire sur l'interdisciplinarité et l'application. Montréal: Université de Montréal, Département d'Anthropologie, 1996. Não publicado. ao esquema original. A interação e as inter-relações entre as disciplinas são asseguradas por uma metadisciplina que se situa num nível epistemológico superior. Esta não se impõe como coordenadora mas sim como integradora do campo metadisciplinar, atuando como mediadora da comunicação entre as disciplinas do campo. Um exemplo geral: desde a emergência da ciência moderna, as matemáticas têm atuado como linguagem formalizada de comunicação científica empregada por diversas disciplinas (Granger, 1980; Castoriadis, 1988). No campo da saúde coletiva, a clínica bem que poderia ocupar esta posição metadisciplinar. O esquema gráfico proposto por Bibeau (1996)1 1 Bibeau, G. Séminaire sur l'interdisciplinarité et l'application. Montréal: Université de Montréal, Département d'Anthropologie, 1996. Não publicado. acentua a dupla via de relação entre as disciplinas e a metadisciplina, conforme a Figura 4.
Interdisciplinaridade: implica uma axiomática comum a um grupo de disciplinas conexas A, B, C e D, cujas relações são definidas a partir de um nível hierárquico superior, ocupado por uma delas (no caso, D). Esta última, geralmente determinada por referência à sua proximidade da temática comum, atua não somente como integradora e mediadora da circulação dos discursos disciplinares mas principalmente como coordenadora do campo disciplinar. Segundo Vasconcelos (1997, p.8), advogando esta modalidade como integradora do campo da saúde mental, a interdisciplinaridade se sustenta sobre uma problemática comum, uma axiomática teórica e/ou política compartilhada e uma plataforma de trabalho conjunto, "desta forma gerando uma fecundação e aprendizagem mútua, que não se efetua por simples adição ou mistura, mas por uma recombinação dos elementos internos".
A Figura 5 representa esquematicamente essa modalidade, onde destaca-se o símbolo D, indicando uma disciplina integradora do campo interdisciplinar:
Transdisciplinaridade: de acordo com o esquema Jantsch-Vasconcelos-Bibeau, trata-se do efeito de uma integração das disciplinas de um campo particular sobre a base de uma axiomática geral compartilhada. Baseada em um sistema de vários níveis e com objetivos diversificados, sua coordenação é assegurada por referência a uma finalidade comum, com tendência à horizontalização das relações de poder. Implica criação de um campo novo que idealmente desenvolverá uma autonomia teórica e metodológica perante as disciplinas que o compõem. Vasconcelos (1997) assinala que a transdisciplinaridade significa uma radicalização da interdisciplinaridade, "com a criação de um campo teórico, operacional ou disciplinar de tipo novo e mais amplo". A ecologia e a "nova saúde mental", enquanto campos oriundos da "verdadeira" integração de diferentes disciplinas, seriam exemplos desta proposição. A Figura 6 é apresentada por vários autores como ilustração de um campo transdisciplinar.
À primeira vista, dispomos de um esquema detalhado, adequado, claro e preciso, capaz de dar conta de tão relevante problema. Entretanto, devemos analisá-lo cuidadosamente, visto que todo dispositivo conceitual sustenta-se em princípios e pressupostos que necessitam ser revelados e expostos ao escrutínio público, sobre eles aplicando o velho e infalível princípio da dúvida sistemática. Como vimos acima, este é sem dúvida um dos mais importantes legados da filosofia cartesiana, talvez o principal fundamento do modo científico clássico de produção de saberes.
Em um texto publicado em 1997, em Ciência & Saúde Coletiva, analisei o esquema acima apresentado e desenvolvi um argumento crítico dos seus fundamentos (Almeida Filho, 1997). Avaliando o conteúdo das formulações resumidas acima, identifiquei os seguintes postulados subjacentes ao conceito de ciência nele implícito:
1. Campos disciplinares constituem estruturas, compostas por uma axiomática teórica e certamente compreendendo uma matriz metodológica, cujos princípios e conceitos fundamentais são passíveis de decodificação.
2. Quando os campos disciplinares interagem entre si, produzem relações interdisciplinares que tendem a ser convergentes, com elevado grau de reciprocidade, definidas pela temática e pela axiomática do campo.
3. As relações de poder político internas a um dado campo disciplinar equivalem (ou correspondem) às relações de poder técnico que estruturam as respectivas disciplinas.
4. A comunicação interdisciplinar é desejável e factível, podendo ser realizada pela tradução de princípios e conceitos entre as disciplinas.
Sem a presunção de assumir uma posição privilegiada de maior aproximação com a realidade, propus uma série oposta de pressupostos, buscando uma crítica lógica e pragmática da proposta analisada. Suponhamos que os campos disciplinares não constituem de fato estruturas, com um grau variado de autonomia, e sim que são instituídos por uma práxis (Samaja, 1996). Nesse caso, mais importante que uma axiomática e uma disciplina (no senso comum do termo), para a constituição do campo científico contribuem decisivamente elementos intraparadigmáticos simbólicos, éticos, políticos, pragmáticos. De acordo com Chalmers (1994), Samaja (1996) e Santos (2003), entre outros, para além de fundamentos lógicos e questões metodológicas e temáticas, a produção organizada do conhecimento científico se realiza em uma complexa rede institucional operada por agentes históricos concretos, ligada estreitamente ao contexto sócio-político mais amplo.
Em consonância com este primeiro "contrapostulado" e em oposição ao postulado 2 acima, admitamos que, de fato, não são os campos disciplinares que interagem entre si mas sim os sujeitos que os constroem na prática científica cotidiana, seus agentes institucionais representativos portanto. Em outras palavras, não existiriam campos vazios, ou pelo menos preenchidos por entidades abstratas (conceitos, noções, modelos, etc.). Os espaços institucionais da ciência seriam permanentemente ocupados por sujeitos da ciência, agentes históricos, condutores da e conduzidos pela prática científica. Podemos ousar mais ainda e propor que não existem campos disciplinares per se, ou melhor, estes só se realizariam enquanto instituições de uma dada subcultura científica e como formas mentais e efeitos práxicos (ou seja, na ação) dos seus agentes.
Os agentes não seriam somente indivíduos ocupando posições e atores desempenhando papéis. Mais que isso, os sujeitos da ciência seriam essencialmente agentes sociais, organizados em grupos sociais peculiares que têm sido denominados de "comunidades científicas", estruturados nas matrizes de pensamento e conduta que Thomas Kuhn (1970) com muita propriedade conceituou como 'paradigmas'. Daí decorre que as relações interdisciplinares em princípio tenderiam mais ao conflito do que ao diálogo. A convergência, a reciprocidade, o mútuo enriquecimento, a fecundação e aprendizagem conjuntas, tudo isso que Rorty (1991) denomina de "solidariedade científica", são efeitos desejáveis que fortuitamente poderiam ocorrer nas relações entre campos disciplinares distintos, porém infelizmente só aconteceriam com mais frequência no seio das raras "comunidades ideais de diálogo" (Habermas, 1978) formadas no processo de construção da coesão interna dos paradigmas. Como a comunicação "franca" interparadigmática não se exerce, o paradigma não se torna dominante senão por meio de uma luta pela hegemonia que se trava em um dado campo disciplinar. Neste particular, a proposição seguinte sobre a natureza especial das relações de poder dentro dos campos científicos me parece preliminarmente prejudicada. De fato, apesar das simbioses e interações possíveis no espaço da comunicação interdisciplinar e interparadigmática, Mario Testa (1989) com facilidade nos convence de que o poder político tem natureza e determinações muito distintas do poder técnico, mesmo em âmbitos de aplicação por definição valorizadores do poder técnico, como deve ser o caso da arena científica.
Caso concordemos com essa série de contrapostulados, resta-nos concluir que a comunicação interdisciplinar é impossível, rejeitando o quarto postulado do esquema analisado. Enfim, terminei por refutar o essencial do esquema analisado, da seguinte maneira (Almeida Filho, 1997):
Os princípios e conceitos fundamentais que compõem uma dada axiomática teórica e uma matriz metodológica qualquer não podem ser decodificados, traduzidos e recombinados simplesmente porque axiomáticas e matrizes não são somente princípios e conceitos. Mais ainda, o que faz uma disciplina ou um paradigma é muito mais do que apenas uma combinação método-lógica. Somente a quem já se encontra "dentro" de um dado paradigma, e que por isso já o incorpora (traz no seu corpo, faz dele seu corpo, é por ele possuído, etc.), é dado ver o seu objeto privilegiado.
Em O Nascimento da Clínica (subintitulado "uma arqueologia do olhar médico"), Foucault (1963) mostra como a protociência do homem construiu uma visão de mundo, um paradigma, por meio de uma pragmática. Aqueles que foram enculturados no paradigma clínico bem sabem quanto custa "aprender" a ouvir a mítica quarta bulha no meio de chiados e estalidos do estetoscópio, a reconhecer uma estrutura histológica onde de fato se encontram manchas multicoloridas no microscópio, a identificar uma lesão patológica entre borrões, claros e escuros da chapa radiográfica. O uso do termo "enculturado" não é inocente. Ao fazê-lo, pretendi propor que a questão da comunicação interdisciplinar inscreve-se em um registro similar ao da comunicação interétnica. Anos de trabalho de campo etnográfico afinal arranharam o etnocentrismo dos antropólogos, que agora admitem que o seu mandato de intérpretes interculturais é pelo menos descabido (Geertz, 1973; Fabian, 1979; Asad, 1994).
Para alcançar a desejada "síntese da complexidade", é certo que será necessário produzir discursos capazes de atravessar fronteiras disciplinares. Para que uma efetiva comunicação interdisciplinar (interparadigmática, interétnica, etc.) se estabeleça, será imprescindível um compartilhamento de linguagem e de estruturas lógicas e simbólicas (Vasconcelo,s 2002). Paradoxalmente, caso isso ocorra, será porque as fronteiras já não fazem sentido. Mas não é esta abertura das fronteiras disciplinares justamente a demanda que se impõe à ciência contemporânea? Não será exatamente esta a via privilegiada (quiçá a única via) de acesso aos objetos complexos de que falávamos acima? Mas será que os modelos propostos acima poderiam dar conta dessa tarefa, ou seja, operar como estratégias de apreensão-aproximação introduzindo complexidade nos processos de produção do conhecimento?
Transdisciplinaridade como Projeto Epistemológico
Como se a tão almejada síntese pudesse ser produzida por meio de uma operação de adição, a multidisciplinaridade e a "interdisciplinaridade auxiliar" do esquema Jantsch prometem superar a fragmentação pela somatória. No primeiro caso, esta seria resultante de algum processo espontâneo, de duvidosa possibilidade de ocorrência, como se a síntese pudesse emergir pelo mero contato entre campos disciplinares distintos. No segundo caso, os autores do esquema indicam uma possibilidade de síntese pela via digamos "totalitária", imposta por um campo disciplinar hierarquicamente superior. Pragmaticamente avaliando a factibilidade desse modelo, a sua eficácia certamente dependerá de que modalidade de síntese estamos falando. Se considerarmos aquele tipo de síntese subordinada ao projeto tecnológico da produção industrial, resultante da soma dos atributos de objetos simples do reducionismo cartesiano, então a chamada interdisciplinaridade auxiliar poderá constituir a estratégia mais econômica (portanto mais eficiente) para a produção de objetos complicados. Se, por outro lado, estivermos tratando de objetos complexos, as limitações dessa estratégia são tão evidentes que dispensam comentário. De todo modo, trata-se de uma modalidade de ação conjunta entre disciplinas científicas que resiste a uma crítica pragmática, mesmo revelando a sua incapacidade de dar conta das demandas de atualização da prática científica frente à complexidade.
Por outro lado, modelos de pluridisciplinaridade e interdisciplinaridade, tal como definidos no esquema analisado, parecem revelar mais um caráter ideológico, prescritivo ou normativo, do que propriamente uma proposta de prática de apreensão-aproximação dos objetos complexos. Nesse sentido, a pluridisciplinaridade e a interdisciplinaridade plena enquadram-se na família dos programas micropolíticos. Entretanto, a sua contribuição potencial para a construção de uma ciência da complexidade, no sentido já apontado, me parece reduzida, posto que buscam compor o objeto complexo através de uma síntese tipo interparadigmática. Essa síntese seria obtida graças à circulação dos discursos produzidos pelos distintos campos disciplinares, tarefa impossível pela via da comunicação, conforme argumentei acima. Cabe incorporar nesse mesmo grupo de estratégias criticáveis no plano lógico a "transdisciplinaridade" tal como definida no esquema analisado, na medida em que este a assume como uma radicalização da interdisciplinaridade.
Entretanto, a proposta da metadisciplinaridade de Bibeau (1996)1 1 Bibeau, G. Séminaire sur l'interdisciplinarité et l'application. Montréal: Université de Montréal, Département d'Anthropologie, 1996. Não publicado. , no sentido de uma linguagem axiomática comum a um grupo de disciplinas conexas, parece destoar do restante do esquema, por isso mesmo abrindo uma interessante possibilidade de construção "metateórica". Trata-se do único modelo que permite um tratamento da questão interdisciplinar enquanto problema relacionado às formas de comunicação possíveis entre matrizes disciplinares distintas. O seu problema fundamental, considerando a estrutura da crítica aqui desenvolvida, é que também não escapa aos argumentos levantados contra os postulados 1, 2 e 3. Tal como os outros modelos acima desconstruídos, também trata os campos disciplinares como entidades míticas abstratas, produtoras de inter-relações fetichizadas e idealizadas. E como fazer para incorporar tanto a crítica lógica quanto a perspectiva pragmática? Creio, e penso que nisto se resume a minha contribuição pessoal, que a resposta para essa questão passa por redefinir o conceito de 'transdisciplinaridade'.
A proposta esquematizada na Figura 7 baseia-se na possibilidade de comunicação não entre campos disciplinares mas entre agentes em cada campo, através da circulação não dos discursos (pela via da tradução) mas pelo trânsito dos sujeitos dos discursos. Tomemos a série V-Z para representar os campos disciplinares que se relacionam em torno do objeto complexo Oc, cada um tendo acesso a uma faceta particular deste objeto. Por seu turno, a série a-h refere-se aos agentes da prática científica, sendo que os sujeitos a, b, c, d são capazes de transitar entre pelo menos dois campos disciplinares (c, no esquema apresentado, poderá circular por três campos) enquanto os especialistas e, f, g, h permanecem restritos aos seus respectivos campos.
Com a intenção de melhor clarificar a proposta por meio de um exemplo, mas certamente correndo o risco de não conseguir respeitar a complexidade do objeto, apliquemos o esquema de Jantsch ao campo da Saúde Coletiva. Certamente que não haverá campo científico contemporâneo mais justificadamente transdisciplinar, nem objeto de conhecimento com mais alto grau de complexidade que os fenômenos da saúde-doença-cuidado.3 3 Como propus em outro momento (Almeida Filho 2000a), o "complexo saúde-doença-cuidado" é um daqueles objetos indisciplinados, não-lineares, múltiplos, plurais, emergentes, multifacetados, que exigem dos pesquisadores um tratamento sintético e totalizante.
Consideremos V como o campo disciplinar da Epidemiologia, ao tempo em que Z representará o campo da Clínica, Y, o da Biologia, e X, as Ciências Sociais em Saúde. Cada um desses campos disciplinares dispõe de um ponto de observação privilegiado em relação a cada faceta de Oc; nenhum deles, no entanto, é capaz de apreender todos os ângulos do objeto. Vejamos agora os nossos agentes: a, especializado em Antropologia Médica e em Ecologia, transita do campo das Ciências Sociais para o campo da Biologia; b é portador de uma dupla formação em Imunobiologia e em Clínica Médica, podendo deslocar-se do campo biológico para o campo clínico sem dificuldades; c é capaz de atravessar os campos da Clínica, da Epidemiologia e das Ciências Sociais em Saúde; finalmente, d possui uma formação na subárea que tem sido denominada de Epidemiologia Social. Os "especialistas" f (sociologia da comunicação), g (histopatologia), h (neuropsiquiatria) e e (epidemiologia de doenças crônicas) são competentes na método-lógica, nos conteúdos e na linguagem dos seus respectivos campos disciplinares, tal como o são os seus colegas "transdisciplinares". Apenas para concluir este exercício, imaginemos que o objeto complexo seja Depressão e que sua abordagem enquanto importante problema de saúde coletiva dependerá da produção eficiente de um discurso coordenado, resultante de operações cognitivas de diversas naturezas, relativamente válido como objeto-modelo sintético destinado a orientar a ação sobre aquele complexo de múltiplas determinações.
Retornando ao plano geral, dessa maneira, a síntese poderá ser construída em dois níveis: (a) uma síntese paradigmática no âmbito de cada campo científico e (b) uma síntese transdisciplinar construída na prática transitiva dos agentes científicos particulares. A primeira dessas sínteses permite uma participação interessada inclusive dos especialistas, que poderão ter o seu viés disciplinar e paradigmático enriquecido com aportes transdisciplinares. Porém somente a segunda síntese seria aquela capaz de dar conta do objeto complexo Oc, por meio de totalizações provisórias, construídas por meio de uma prática cotidiana "transversal" dos sujeitos do conhecimento e operadas na concretude dos seus aparelhos cognitivos.
Finalizei o texto base deste argumento comentando o perfil dos novos mutantes metodológicos prontos para o trânsito interdisciplinar, transversais, "operadores transdisciplinares da ciência", capazes de trans-passar fronteiras, à vontade nos diferentes campos de trans-formação, agentes transformadores e transformantes, enculturados nos distintos campos científicos que estruturam os campos de práticas transdisciplinares.
Serão (ou são, porque de fato já estão por aí) mutantes metodológicos, sujeitos prontos para o trânsito interdisciplinar, transversais, capazes de trans-passar fronteiras, à vontade nos diferentes campos de trans-formação, agentes transformadores e transformantes. A formação desses agentes será essencialmente "anfíbia", com etapas sucessivas de treinamento-socialização-enculturação em distintos campos científicos. Esta "metáfora biológica" (só para atestar que a era da transdisciplinaridade já começou) é atraente para ilustrar a questão, pois os anfíbios são animais que passam parte da vida em um meio biológico e parte em outro meio ambiente e que, por isso mesmo, possuem uma enorme capacidade de adaptação. (Almeida Filho, 1997, p.18)
Assim, para além de uma síntese paradigmática no âmbito de cada campo científico, defendi a necessidade de uma síntese transdisciplinar construída na prática transitiva dos agentes científicos particulares. Avaliando o potencial de aplicação dessa concepção alternativa de transdisciplinaridade ao contexto da saúde pública contemporânea, Paim e Almeida Filho (1998) adiantam que a formação desses agentes seria essencialmente "anfíbia", com etapas sucessivas de treinamento-socialização-enculturação nos distintos campos científicos que estruturam o campo de práticas da Saúde Coletiva.
Críticas e Debates
Este posicionamento tem sido objeto de intensos debates, o que me tem trazido mais oportunidades de avançar e aprofundar alguns dos seus pontos principais. Castiel (1997) fez uma crítica pertinente ao me atribuir uma expectativa otimista de homogeneidade interna nos distintos campos disciplinares. Ayres (1997) também pôs em dúvida o meu otimismo propositivo, assinalando que nada garante que do trânsito dos sujeitos científicos resultará alguma transdisciplinaridade e que a natureza do meu ato de definir uma transdisciplinaridade poderia abortar uma "promissora vocação subversiva" da proposta. Acho que isso é possível, mas só a prática nos permitirá saber. Concordo que sínteses paradigmáticas compartilhadas são condição essencial para qualquer movimento de síntese transdisciplinar. Porém o movimento da transdisciplinaridade se deve iniciar com algum grau de concordância dos estatutos de cientificidade dos objetos nos respectivos campos. As contribuições de Sevalho (1997) e Portocarrero (1997) trouxeram à baila os objetos fronteiriços, objetos híbridos, quase-objetos, objetos complexos, objetos estruturados, semi-estruturados e não-estruturados revelados pelos estudos sociais das ciências. A partir dessa plataforma, poder-se-ia avançar a proposta de uma nova família de objetos científicos simultaneamente fronteiriços, híbridos, mestiços e complexos, os "trans-objetos". Nesse caso, diferente do que assinala Castiel (1997), os "objetos complexos" não compreendem apenas sistemas adaptativos com graus diferenciados de complexidade, e sim também "produtos culturais" resultantes de uma prática social.
Aceitando o debate (Almeida Filho, 1997b), recorri à distinção austiniana entre ato locucionário (onde a fala expressa algum sentido), ato ilocucionário (que traz uma intenção ao dizer algo) e ato perlocucionário (em que falar produz certos efeitos, desejados ou não) para me posicionar em relação à questão central do debate: "será que a mera locução da série propositiva 'multi-pluri-inter-meta-trans-disciplina' na verdade não esconderia um projeto de construção semântica e pragmática de um objeto-em-campo?". Não como formalismo nem como mais uma proposta doutrinária, o meu ato ilocucionário vagamente pretendeu uma certa "subversão atenuada" de cunho ostensivamente pragmático. Com o texto alvo desse debate, pretendi fazê-lo pela via da desconstrução do discurso convencional da disciplinaridade, seguida da construção de uma proposta de definição provisória e interessada da transdisciplinaridade como superação pragmática do esquema vigente.
Avaliando essa linha de abordagem da transdisciplinaridade, Carvalheiro (1997) levanta críticas relevantes que merecem ser incorporadas ao seu desdobramento. Em primeiro lugar, a análise do tema da tradução impossível como um elemento de enfraquecimento do potencial de integração interdisciplinar foi claramente equivocada. A "comunicação imperfeita" será justamente a brecha por onde se pode infiltrar possibilidades de emergência do novo (talvez a alteridade castoriadiana). Ainda bem que não se pode traduzir perfeitamente, diriam os artistas, porque aí está a liberdade de criação e recriação. Em segundo lugar, constatando que a transdisciplinaridade situa-se no registro de uma "dupla ruptura epistemológica", Carvalheiro (1997) faz séria restrição (com a qual concordo integralmente) à concepção de que a mobilidade transdisciplinar seria privilégio exclusivo dos campos da ciência.
Retomando o fio da sua contribuição pioneira à reflexão epistemológica em saúde, de certo modo por ele inaugurada no Brasil com o pequeno clássico Saúde & Sistemas (1978), Mario Chaves (1998) propõs uma abordagem multidimensional como plataforma de luta teórica contra o processo de contínua fragmentação e intensa disciplinaridade do conhecimento, a partir dos conceitos de 'transdisciplinaridade' e 'complexidade'.
A idéia de 'transdisciplinaridade' da linhagem teórica Piaget-Jantsch-Morin a que se filia Mario Chaves indica uma integração das disciplinas de um campo particular sobre a base de uma axiomática geral compartilhada. Baseada em um sistema de vários níveis e com objetivos diversificados, sua coordenação é assegurada por referência a uma base de conhecimento comum, com tendência à horizontalização das relações interdisciplinares. Desse modo, a transdisciplinaridade implica a criação de um campo novo que idealmente seria capaz de desenvolver uma autonomia teórica e metodológica perante as disciplinas que o originaram, como teria ocorrido com a moderna ecologia, oriunda da biologia evolucionista, em sua interface com a química orgânica e as geociências.
O conceito de complexidade é sumarizado no texto de Chaves a partir de uma retificação da suposta conotação do senso comum que o toma como equivalente a caos, desordem e obscuridade, para valorizá-lo como fundamento de uma "nova ciência". Frente ao dilema de tratar a complexidade como teoria ou como paradigma, Chaves (1998) prefere seguir Edgar Morin (1990), profeta do holismo epistemológico do fin de siècle, com a expressão "pensamento complexo". Desse modo, Chaves pretende articular os dois conceitos, considerando complexidade em nível superior de abrangência em relação a transdisciplinaridade. Complexidade refere-se a uma propriedade totalizante do "Mundo Real" (grifado pelo autor no seu texto), enquanto transdisciplinaridade seria seu equivalente na esfera do conhecimento. Em suas próprias palavras: "A complexidade está para o mundo real como a transdisciplinaridade está para o mundo acadêmico".
No que concerne à definição do que é efetivamente complexidade, Chaves (1998) seleciona dois importantes aspectos: por um lado, complexidade como a propriedade de sistemas que "mantém a distinção entre as partes, (... que) associa sem tirar a identidade das partes que a compõem, mas sempre considerando que o todo é maior que a soma das partes". Por outro lado, a complexidade aparece por ele referida en passant como a coexistência de mundos entrelaçados em um mesmo espaço-tempo. Aqui encontro um primeiro ponto de crítica: na minha opinião, as opções de Chaves frente à polissemia do conceito de complexidade privilegiam justamente aspectos de mais difícil operacionalização nos processos concretos de produção de conhecimento.
Em Complexidade e Pesquisa Interdisciplinar, Eduardo Vasconcelos (2002) se propõe a responder algumas das críticas que eu teria feito à sua obra anterior (Vasconcelos, 1997). Como é comum em controvérsias acadêmicas, muitas vezes as tintas tornam-se mais carregadas do que efetivamente o são. Eu não atribuí uma perspectiva acrítica, a-histórica, idealista e reificada da noção de disciplina, muito menos qualquer imputação de ingenuidade, ao importante esforço intelectual pioneiro e ainda quase solitário de Vasconcelos. Talvez tenha assinalado somente excessivo (mas perdoável) respeito à matriz geradora do esquema Piaget-Jantsch que tem fortes traços neo-kantianos e um viés de "imperialismo epistemológico". Aliás, este viés encontra-se bem identificado e fortemente criticado no trabalho recente do autor (Vasconcelos 2002), onde constato uma análise detalhada e cuidadosa dos obstáculos e limitações à análise das práticas inderdisciplinares a partir do referencial da pedagogia social de base piagetiana.
De todo modo, Vasconcelos (2002) retoma o esquema evolutivo de Jantsch no sentido da construção de um projeto interdisciplinar de prática científica em uma perspectiva que considero mais crítica. Primeiro, amplia o escopo da questão para além da disciplinaridade, incluindo interações e interfaces não somente entre campos disciplinares, mas também conexões interparadigmáticas, interteóricas, multiprofissionais, etc. Segundo, inspirado em propostas de construção de um novo senso comum emancipatório correspondentes à "segunda virada epistemológica" (Boaventura Santos, 1989; 2003), contextualiza a questão das práticas multi-pluri-inter/trans ao conceito de "campos de saber/fazer" e a conecta ao tema dos novos paradigmas. Finalmente, buscando uma salutar abertura pragmática, Vasconcelos (2002) articula o esquema evolutivo de Jantsch a uma tipologia descritiva de sistemas equivalentes a quatro modalidades de prática (multi-, pluri-, pluri-auxiliar, inter-) e a um campo (trans-). Convergimos no que diz respeito aos dois primeiros pontos, especialmente porque já haviam ambos sido incluídos na série de críticas resumida acima. Ainda assim, e para manter o debate vivo, eu diria com relação ao terceiro ponto que não faz sentido considerar a conexão inter- exclusivamente como prática nem a modalidade trans- como campo. Pelo contrário, creio que o dinamismo dos trânsitos, das travessias, das transições aponta muito mais para processos práxicos do que para formas topológicas estruturadas tipo "campos".
Epílogo
Mas, enfim, em que a concepção de transdisciplinaridade por mim proposta se distingue e quiçá avança em relação à idéia de transdisciplinaridade de Piaget-Jantsch-Morin e seus seguidores?
A noção de transdisciplinaridade havia sido originalmente concebida por Jean Piaget (1967) articulada à proposição de uma epistemologia genética que, não obstante o seu potencial, foi concebida enquanto metaprojeto, um devir inalcançável, e não como conceito senso-estrito. As proposições posteriores dos seus discípulos, principalmente no campo da filosofia da Educação, conforme a sistematização de Jantsch (1972), não conseguem, insisto, escapar do idealismo neo-kantiano e sua avaliação otimista do potencial transformador da práxis humana. Aí encontro um primeiro elemento de crítica, quando se propõe que o sonho piagetiano (ou mais precisamente, dos seus herdeiros intelectuais) da transdisciplinaridade teria hoje dadas as condições de ser realidade.
A proposta de articulação entre complexidade e transdisciplinaridade de Morin (1990; 1999; 2003) e seguidores (Freitas, Morin e Nicolescu, 1994) remete à capacidade do pensamento complexo de lidar com a incerteza e a possibilidade de auto-organização, além da sua dependência da noção de "unidade do conhecimento". É justamente nessa "utopia da síntese" desenvolvida nos textos citados acima que concentro o foco da minha crítica, sob três aspectos: Em primeiro lugar, o abstracionismo de Morin, apesar de expressar um pensamento criativo, fascinante e sedutor, cada vez mais se afasta do rigor epistemológico necessário aos embates pela consolidação de novas formas de prática científica. Em segundo lugar, creio que a sua definição quase estruturalista de transdisciplinaridade, com ênfase em disciplinas, superposições, interstícios e espaços vazios, perde a oportunidade de considerar o caráter transitivo, praxiológico e "desancorado" daquele conceito. Em terceiro lugar, o seu tratamento das relações entre transdisciplinaridade e complexidade, propondo uma duvidosa equivalência de nível simultânea a uma especificidade teórica, resulta em hierarquização e discriminação dos espaços de aplicação dos conceitos.
Realmente, conforme corretamente assinalado por Vasconcelos (2002), as relações entre complexidade e transdisciplinaridade haviam sido pouco exploradas no texto-base desse debate. Isto ocorreu talvez porque me parecia mais adequado concentrar a discussão sobre o problema dos limites (a propósito, uma das vertentes de definição da complexidade), porque não me agrada a noção de interface: trata-se de uma aceitação implícita da inevitabilidade das fronteiras (ou fases, ou faces) disciplinares, justamente o que a permeabilidade e a transitividade da idéia-prática da transdisciplinaridade buscam superar. Mais do que definir ou especificar uma construção doxológica com a idéia de transdisciplinaridade, pretendi observar e registrar uma potencialidade de desenvolvimento de objeto, método e campo científico, propondo formas de crítica e articulação lógica, epistemológica e praxiológica de um dado discurso-prática. Realmente não consegui encontrar maneira mais apropriada de abordar a hermenêutica científica vigente do que o recurso à desgastada noção kantiana dos juízos sintéticos que subjaz na dualidade análise-síntese (Samaja, 1996). Não obstante, mantenho o argumento de que, em uma perspectiva de crítica histórica, toda operação de sintetização produz totalizações provisórias, através de uma prática cotidiana de produção de "objetos práxicos".
Além disso, não me parece adequado usar a categoria 'complexidade' para resumir o conjunto de propriedades dos objetos concretos, realçando as raízes empíricas dos processos complexos como elementos essenciais para a constituição do novo paradigma. Uma leitura epistemológica das perspectivas paradigmáticas alternativas não reforça a determinação do empírico sobre o conceitual. A mera existência de um objeto concreto não gera objetos de conhecimento, porém a produção de objetos de conhecimento pode gerar objetos concretos. Há cada vez mais exemplos na história da ciência de geração de objetos concretos, como verificamos na Física moderna (Powers, 1982) ou mesmo em todos os objetos no mundo da informática, que é um espaço cibernético (o famoso cyberspace), um mundo absolutamente criado e que agora se constitui como realidade, neste caso como realidade virtual.
Enfim, concordo com Boaventura Santos (2004) de que necessitamos uma transformação radical do sistema de formação dos sujeitos da ciência, no contexto de um novo paradigma. Conforme assinala Morin (1990, p.125-6), "precisamos pensar/repensar o saber, não sobre a base de uma pequena quantidade de conhecimentos como nos séculos XVII e XVIII, mas considerando o estado atual de dispersão, proliferação, parcelamento dos conhecimentos". De acordo: porém devemos procurar não um enciclopedismo com base na genialidade de sujeitos individuais como na Renascença ou no Iluminismo, e sim uma forma renovada de enciclopedismo construído coletivamente. Cada vez mais o processo de produção do conhecimento científico será social, político-institucional, matricial, amplificado. Nesse cenário, a produção competente da ciência viabilizará abordagens totalizantes, apesar de parciais e provisórias, sínteses transdisciplinares dos objetos da complexidade.
Em suma, esta proposição realista de transdisciplinaridade sustenta-se na relação/tensão entre ciência enquanto rede de instituições do campo científico e ciência como modo de produção de conhecimento, mediada em todas as instâncias pelo conceito de prática científica (Pickering, 1992; Samaja, 1996; 2004). Trata-se de uma abordagem materialista-histórica da ciência, fundamentando uma definição pragmática da transdisciplinaridade como processo, estratégia de ação, modalidade de prática, e não como propriedade ou atributo de relações modelares entre campos disciplinares. Dessa maneira, fará mais sentido assinalar o caráter instrumental da transdisciplinaridade como prática de transformação da "ciência normal" em ciência "revolucionária", para respeitar a terminologia kuhniana, na emergência de novos paradigmas no campo científico e de novas estratégias de ação no campo da prática social. Será que dessa maneira seremos obrigados a superar o paradigma das disciplinas? Isto implicará a emergência de uma ciência pós-disciplinar?
Recebido em: 04/11/2005
Aprovado em: 29/11/2005
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
01 Abr 2008 -
Data do Fascículo
Dez 2005
Histórico
-
Recebido
04 Nov 2005 -
Aceito
29 Nov 2005