Resumos
O aumento de situações de violência no âmbito do trabalho vem se constituindo um importante problema de Saúde Pública, que tem impacto na dignidade e na qualidade de vida dos trabalhadores. Nessa perspectiva, este artigo tem como objetivo propor, a partir da discussão do fenômeno da violência e de sua faceta concernente ao trabalho, o conceito de violência relacionada ao trabalho, como referência para futuros estudos no campo da Saúde do Trabalhador. Trata-se de um artigo conceitual de síntese, no qual se buscou problematizar a questão da violência e suas interfaces com o conceito de poder, a fim de elaborar uma definição capaz de abarcar a diversidade e a complexidade da relação entre trabalho e violência, além de se mostrar suficientemente abrangente para incorporar a riqueza das discussões acumuladas no campo, sem perder a possibilidade de ser operativo. Argumentamos que a proposição do conceito de violência relacionada ao trabalho poderá evitar mal-entendidos provocados pelo uso de termos como violência do trabalho e violência no trabalho, além de instrumentalizar a produção de conhecimentos que fundamentem a elaboração de diagnósticos mais precisos sobre a condição do trabalhador brasileiro, e, consequentemente, a formulação de políticas de combate à violência e de promoção da cidadania.
Violência; Trabalho; Violência relacionada ao trabalho
The increase of violence situations in the work environment is becoming an important Public Health problem, with impacts on workers' dignity and quality of life. In this perspective, the present article aims to propose the concept of work-related violence, as a reference for future studies in the field of Workers' Health starting from a discussion of the violence phenomenon and its work-related facet. This is a conceptual synthesis article, in which we have tried to look at the issue of violence and its interfaces with the concept of power, in order to build a definition able of embracing the diversity and complexity of the relationship between work and violence, and that is comprehensive enough as well as proving sufficiently comprehensive to incorporate the wealth of accumulated discussions in the field, without losing the possibility of being operative. We argue that the proposition of a work-related violence concept might avoid misunderstandings caused by using terms such as work violence and violence at work, as well as provide a better device to produce knowledge able to ground more accurate diagnostics about the Brazilian worker's condition and, consequently, substantiate the formulation of policies to fight violence and to promote citizenship.
Violence; Work; Work-Related Violence
ARTIGOS
Roberval Passos de OliveiraI; Mônica de Oliveira NunesII
IProfessor Doutor do Centro de Ciências da Saúde da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia. Endereço: Universidade Federal do Recôncavo da Bahia, Centro de Ciências da Saúde. Endereço: Rua do Cajueiro, S/N, Cajueiro, CEP 44574-490, Santo Antonio de Jesus, BA, Brasil. E-mail: robervaloliveira@gmail.com
IIProfessora Doutora do Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal da Bahia. Endereço: Universidade Federal da Bahia, Instituto de Saúde Coletiva. Rua Basílio da Gama, S/N, Campus Universitário Canela, Canela, CEP 40110-040, Salvador, BA, Brasil. E-mail: nunesm@ufba.br
RESUMO
O aumento de situações de violência no âmbito do trabalho vem se constituindo um importante problema de Saúde Pública, que tem impacto na dignidade e na qualidade de vida dos trabalhadores. Nessa perspectiva, este artigo tem como objetivo propor, a partir da discussão do fenômeno da violência e de sua faceta concernente ao trabalho, o conceito de violência relacionada ao trabalho, como referência para futuros estudos no campo da Saúde do Trabalhador. Trata-se de um artigo conceitual de síntese, no qual se buscou problematizar a questão da violência e suas interfaces com o conceito de poder, a fim de elaborar uma definição capaz de abarcar a diversidade e a complexidade da relação entre trabalho e violência, além de se mostrar suficientemente abrangente para incorporar a riqueza das discussões acumuladas no campo, sem perder a possibilidade de ser operativo. Argumentamos que a proposição do conceito de violência relacionada ao trabalho poderá evitar mal-entendidos provocados pelo uso de termos como violência do trabalho e violência no trabalho, além de instrumentalizar a produção de conhecimentos que fundamentem a elaboração de diagnósticos mais precisos sobre a condição do trabalhador brasileiro, e, consequentemente, a formulação de políticas de combate à violência e de promoção da cidadania.
Palavras-chave: Violência; Trabalho; Violência relacionada ao trabalho.
ABSTRACT
The increase of violence situations in the work environment is becoming an important Public Health problem, with impacts on workers' dignity and quality of life. In this perspective, the present article aims to propose the concept of work-related violence, as a reference for future studies in the field of Workers' Health starting from a discussion of the violence phenomenon and its work-related facet. This is a conceptual synthesis article, in which we have tried to look at the issue of violence and its interfaces with the concept of power, in order to build a definition able of embracing the diversity and complexity of the relationship between work and violence, and that is comprehensive enough as well as proving sufficiently comprehensive to incorporate the wealth of accumulated discussions in the field, without losing the possibility of being operative. We argue that the proposition of a work-related violence concept might avoid misunderstandings caused by using terms such as work violence and violence at work, as well as provide a better device to produce knowledge able to ground more accurate diagnostics about the Brazilian worker's condition and, consequently, substantiate the formulation of policies to fight violence and to promote citizenship.
Keywords: Violence; Work; Work-Related Violence.
Introdução
Fenômeno polissêmico e multicausal, a violência apresenta inúmeras modalidades e níveis, o que dificulta a elaboração de uma única definição que abarque o fenômeno como um todo. Resultante de múltiplas determinações, esse fenômeno se articula com processos sociais, que se assentam em uma estrutura social desigual e injusta (Macedo e col., 2001). Sua abordagem teórico-metodológica envolve saberes e práticas de várias áreas, demandando estudos multifocais, transdisciplinares e intersetoriais.
Com este artigo, pretende-se apresentar uma discussão teórica acerca da violência no âmbito do trabalho, que, não considerado, a priori, como possível lócus de violência e exclusão, passa a conviver com tais fenômenos, seja pelo viés da criminalidade, seja nas diversas formas de conflitos nas relações de trabalho, tendo impacto na saúde e na dignidade dos trabalhadores (Campos, 2004). Entende-se que a problematização sobre o tema e a proposição do conceito de violência relacionada ao trabalho poderá instrumentalizar a produção de conhecimentos que fundamentem a elaboração de diagnósticos mais precisos sobre a condição do trabalhador brasileiro, e, consequentemente, a formulação de políticas de combate à violência e promoção da cidadania. Além disso, é importante porque pode revelar situações de afronta à cidadania, possibilitando-se pensar propostas de ação que dignifiquem o lugar ocupado pelo sujeito trabalhador.
O Fenômeno da Violência
O caráter múltiplo e mutante da violência faz com que designe, de acordo com épocas, locais e circunstâncias, realidades bastante diferentes (Minayo, 2003), a exemplo de genocídios, guerras, segregações, agressões físicas, assim como algumas formas de negligência, o ostracismo e o assédio moral (Campos, 2004). Na caracterização de uma violência, como afirma Campos (2004), estão em jogo o contexto em que o evento ocorre e o julgamento do observador. Esse autor traz a noção de violência como um dolo, isto é, um acontecimento danoso, porém, evitável, desnecessário, injusto e/ou ilegítimo. Por conseguinte, para ser considerado uma violência, o evento não pode ser uma fatalidade, nem deve haver justificativa ou legitimação forte para ele, o que enceta o aspecto de construto sócio-histórico desse fenômeno.
Essa argumentação reafirma Costa (1986), segundo o qual não existe um "instinto de violência", isto é, não existe violência sem desejo de destruição, comandando a ação agressiva. Segundo Costa, o desejo pode ser voluntário, racional e consciente ou inconsciente, involuntário e irracional, o que não altera a qualidade especificamente humana da violência, haja vista que o animal não deseja, o animal necessita. Esse autor refere ainda que a violência, quando equiparada a um impulso instintivo, é trivializada, banalizada, o que facilita e até justifica a sua perpetuação.
A violência sempre esteve presente, em suas várias faces, na história do homem (Odália, 1991; Minayo, 1994, 2003). Diante do quadro de intensas mudanças que ora se processam no âmbito mundial, Wieviorka (1997) afirma ser pertinente que se fale em um novo paradigma de violência. De acordo com esse autor, na chamada pós-modernidade, vem ocorrendo uma série de renovações nos significados, percepções e representações da violência, que assume um caráter "infrapolítico". A violência social, outrora alimentada pela luta operária contra a exploração capitalista, que se vinculava a projetos revolucionários de tomada do poder do Estado, parece não estar politicamente organizada, caracterizando-se agora pelo repúdio à exclusão social, que se materializa nas altas taxas de desemprego, e à "exclusão do consumo", fruto do hiato entre as demandas subjetivas das pessoas e a oferta política, econômica, institucional ou simbólica. Além disso, o novo paradigma traz como característica mais marcante e surpreendente da violência o fato de ela ser ao mesmo tempo globalizada e localizada, geral e molecular, mundializada e fragmentada.
No setor saúde, a violência tem sido estudada sob a categoria de "causas externas" (OMS, 2000) de morbidade e mortalidade da Classificação Internacional das Doenças e Problemas Relacionados à Saúde (CID) da Organização Mundial de Saúde (OMS). Essa classe agrega ocorrências causadoras de lesões, envenenamentos e outros efeitos adversos, incluindo os agravos relacionados ao trabalho. Segundo Minayo (1994, 1997), essa categoria é muito limitada para o estudo da violência, pois sua operacionalização ocorre apenas através dos efeitos que se apresentam sobre as pessoas. Além disso, abarca uma amplitude excessiva de eventos e processos, não possibilitando uma classificação precisa do fenômeno da violência. Essas limitações são endossadas por Ristum (2001), que acrescenta o fato de esse enfoque deixar de lado situações violentas cujas consequências não levam a atendimento médico ou policial. Essa autora cita como exemplo o caso de violências cujos efeitos são psicológicos e somente se evidenciam em longo prazo. Apesar dos problemas, os estudos orientados por essa perspectiva têm sido de grande utilidade para a Saúde Pública, constituindo uma base sobre a qual se apoiam reflexões, interpretações e proposições de estratégias antiviolência (Ristum, 2001; Campos, 2003).
Com o objetivo de realizar uma reflexão científica acerca do tema, não o reduzindo ao mundo da delinquência e indo além do enfoque das "causas externas", Minayo (1994) apresenta uma tipologia de distintas formas de violência em que distingue a violência estrutural, a violência de resistência e a violência da delinquência. Essa última representação é a mais comumente identificada com o termo "violência" nas sociedades modernas. Essa dominância oculta muitas outras formas insidiosas de violência como a opressão dos poderosos sobre os fracos (Minayo, 1997).
No Brasil, o Ministério da Saúde, reconhecendo a magnitude do problema dos acidentes e violências para a Saúde Pública, elaborou a Política Nacional de Redução da Morbimortalidade por Acidentes e Violência (Brasil, 2000), como orientador da atuação do setor saúde nesse contexto. O documento estabelece diretrizes para o setor saúde, assumindo violência como: "... evento representado por ações realizadas por indivíduos, grupos, classes ou nações que ocasionam danos físicos, emocionais, morais e/ou espirituais a si próprio ou a outros - por exemplo: agressão física, abuso sexual, violência psicológica, violência institucional" (Brasil, 2000, p. 427). Entende-se que essa definição de violência é mais abrangente e, consequentemente, mais pertinente do que a apresentada por Bobbio e colaboradores (2000), a qual restringe violência apenas a intervenções físicas voluntárias.
Contudo, segundo Minayo (2005), a definição de violência da Política Nacional não menciona, explicitamente, a negligência e a omissão de cuidados, de socorro e de solidariedade, como formas de violência. De acordo com a autora, a inclusão desses comportamentos no âmbito dos atos violentos é um importante passo para desnaturalizar situações responsáveis pela perenidade de hábitos e crueldades que mortificam os outros ou diminuem suas possibilidades de crescer e se desenvolver.
Odália (1991) chama a atenção para o fato de que a violência não traz em si uma "etiqueta de identificação", apresentando-se, frequentemente, como um ato natural, rotineiro, inscrito na ordem das coisas. Nessa perspectiva, coloca que a desigualdade entre os homens, permitindo que alguns usufruam os benefícios oriundos do desenvolvimento social e outros vejam essas conquistas lhes serem negadas, é uma violência. Assim, propõe considerar a violência uma forma de privação. Chauí (1998) corrobora o citado autor, quando, apresenta a etimologia de violência, remetendo-se ao latim vis, força. Segundo a autora, violência significa desnaturar, agir usando a força para ir contra a natureza de outrem; constranger, agir contra a vontade de outrem; transgredir coisas e ações que alguém ou uma sociedade define como um direito; um ato de abuso físico e/ou psíquico contra alguém, caracterizando relações intersubjetivas definidas pela opressão, intimidação e pelo medo. A autora acrescenta que as causas e razões da violência vão além do momento em que são definidas como violência propriamente dita, destacando a cegueira da sociedade brasileira acerca do lugar efetivo de produção da violência: sua própria estrutura.
Assim, essa autora discute que, na sociedade brasileira, percebida como não-violenta, situações como "exclusões" econômicas, políticas e sociais, racismo e sexismo não são considerados formas de violência, o que ocorre como resultado de procedimentos ideológicos naturalizadores. Conforme Chauí (1998), essas ideologias, que mantêm a matriz mítica da não-violência, encontram no autoritarismo social a base material para se constituírem expressões imaginárias da sociedade brasileira. Nesse sentido, chama atenção para o fato de a sociedade brasileira conservar as marcas do período colonial escravista, sendo fortemente hierarquizada em todos os seus aspectos. Portanto, as relações sociais ocorrem sempre entre um superior, que manda, e um inferior, que obedece. "Em suma: micro poderes capilarizam em toda a sociedade de sorte que o autoritarismo da e na família se espraia para a escola, as relações amorosas, o trabalho, os mass media, o comportamento social nas ruas, o tratamento dado aos cidadãos pela burocracia estatal..." (Chauí, 1998, p. 11).
Essa discussão mostra-se bastante profícua para se pensar a violência no âmbito do trabalho, pois toca em um ponto importante desse fenômeno: o autoritarismo das relações de trabalho no Brasil. Aqui, faz-se necessário tecer uma diferenciação entre autoridade e autoritarismo. Conforme Bobbio e colaboradores (2000), autoridade pode ser definida como poder estável, exercido por alguém, a quem seus subordinados prestam uma obediência incondicional, baseada na crença da legitimidade do poder. Esse conceito encontra-se implícito na própria definição de contrato individual de trabalho, contida na Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) (Brasil, 2002), quando há uma menção ao empregador como aquele que dirige a prestação pessoal de serviços do empregado. Autoritarismo, segundo Bobbio e cols., é uma manifestação degenerativa da autoridade, isto é, quando a legitimidade do dirigente é contestada e sua pretensão em mandar torna-se, aos olhos dos subordinados, uma pretensão arbitrária de mando.
Sintetizando sua visão acerca da violência, Chauí (1985) a descreve como uma realização determinada das relações de força, tanto em termos de classes sociais quanto em termos interpessoais. Define violência como um padrão de relacionamento assimétrico-hierárquico de poder, abordando esse fenômeno sob dois ângulos: como conversão da diferença e da assimetria em relação hierárquica de desigualdade, com fins de dominação; e como a ação que trata o ser humano não como sujeito, mas como coisa. Nessa perspectiva, a violência ocorre como consequência das relações de poder, quando se convertem os diferentes em desiguais e a desigualdade em uma relação entre superior e inferior. Diante da íntima vinculação entre os conceitos de violência e poder, mostra-se indispensável examinar esse último.
Bourdieu (2003) apresenta uma profícua discussão sobre poder e violência , ao elaborar o conceito de poder simbólico, através do qual são impostas as concepções, significações e construções das classes dominantes, acerca da realidade, como legítimas. Esse conceito surgiu da teorização sobre capital como relação social (Bourdieu, 2002), inspirada na noção de capital econômico do marxismo. A partir desse pressuposto, Bourdieu (2002) desdobrou sua teorização para outras formas de riqueza, dando origem a conceitos como capital cultural, que designa uma relação privilegiada com a cultura erudita e escolar; capital social, associado à rede de relações sociais; e capital simbólico, formado pelo conjunto de signos e símbolos que permitem situar os agentes no espaço social. Assim, o lugar que cada indivíduo ocupa no espaço social é concernente ao volume global de capital que ele detém, além do modo como esse capital está subdivido entre econômico, social, cultural e simbólico, e das estratégias de reconversão desenvolvidas. Esse "jogo social", de acordo com o autor, é marcado por uma violência simbólica, definida como:
... violência suave, insensível, invisível a suas próprias vítimas, que se exerce essencialmente pelas vias puramente simbólicas da comunicação e do conhecimento, do desconhecimento, ou, mais precisamente, do reconhecimento ou, em última instância, do sentimento. Essa relação social extraordinariamente ordinária oferece também uma ocasião única de apreender a lógica da dominação, exercida em nome de um princípio simbólico conhecido e reconhecido tanto pelo dominante quanto pelo dominado, de uma língua (ou uma maneira de falar), um estilo de vida (ou uma maneira de pensar, de falar ou de agir) e, mais geralmente, de uma propriedade distintiva, emblema ou estigma [...] (Bourdieu, 2003, p. 7-8).
Conforme Bourdieu (2003), a distribuição desigual de capitais, na sociedade, possibilita que esse tipo de violência se institua, pois o dominado não dispõe de outros instrumentos de conhecimento para pensar sobre a violência e sobre si mesmo, além dos que têm em comum com o dominante, os quais são resultantes da incorporação de relações de dominação, fazendo com que essa situação seja vista como normal. Dessa maneira, os efeitos da dominação simbólica ocorrem por intermédio de esquemas de percepção, aquém das decisões da consciência e dos controles da vontade.
Outro importante pensador que teorizou acerca do poder foi Foucault (1985), que não considera o poder como realidade concreta que tenha em si uma essência. Para ele, o que existem são formas distintas e heterogêneas de poder, que se caracterizam como prática social, historicamente constituída e em constante transformação. Conforme sua formulação, existe uma mecânica de poderes, ditos periféricos e moleculares, que estão disseminados por toda a sociedade, assumindo formas mais regionais e pontuais, descartando-se, assim, a ideia do Estado como única forma do exercício do poder. Esses poderes não têm uma localização específica, funcionando como uma rede socialmente construída, na qual toda a sociedade está envolta. Nessa perspectiva, não existem indivíduos que têm poder ou não o têm, visto que o poder não se caracteriza como propriedade, e sim como relações que se estabelecem entre atores sociais, sejam indivíduos ou instituições. Da mesma forma, o poder não pode ser considerado uma mercadoria que possa ser dada ou negociada, nem um lugar que se possa ocupar. Assim, esse autor considera o poder como algo que se concretiza e acontece nas relações sociais, apresentando um caráter positivo desse fenômeno, haja vista que o considera uma rede produtiva que atravessa toda sociedade, muito mais do que uma instância negativa que tem como única função reprimir. Desse modo, uma relação de poder não aprisiona, pois existe sempre a possibilidade de resistência, sendo possível modificar uma determinada situação.
Bobbio e colaboradores (2000) partilham desse entendimento de poder, quando o definem como a capacidade do homem de determinar o comportamento de outrem. Acrescentam à discussão sobre as relações de poder o fato de tratar-se de uma relação triádica, pois "para definir um certo poder, não basta especificar a pessoa ou o grupo que a ele está sujeito: ocorre determinar também a esfera de atividade à qual o poder se refere ou a esfera de poder" (Bobbio e col., 2000, p. 934). Assim, uma mesma pessoa pode exercer ou estar submetida a vários tipos de poder relacionados com diversos campos. No caso deste artigo, consideramos a esfera do trabalho, em que o empregador influencia o comportamento dos empregados, mas também vê seu comportamento influenciado por eles. Ainda segundo os autores, em relações sociais e políticas, como é o caso das relações de trabalho, quando não se consegue exercer o poder, recorre-se, muitas vezes, à violência.
Essa articulação entre poder e violência remete ao pensamento de Hannah Arendt (1994), que distingue os dois conceitos, caracterizando-os como termos opostos: a afirmação absoluta de um significa a ausência do outro. Segundo a autora, a violência aparece onde o poder está em risco e conduz a sua desaparição. É a desintegração do poder que oferece ocasião para a violência, pois, quando os comandos não são mais obedecidos, os meios de violência não têm utilidade para restabelecer o poder. Assim, a violência é incapaz de criar poder, podendo, sim, destruí-lo. A autora desenvolve essa discussão, caracterizando a violência por seu caráter instrumental, sempre multiplicadora da potência individual e dependente de instrumentos para realizar-se, e o poder como: "... habilidade humana não apenas para agir, mas para agir em concerto. O poder nunca é propriedade de um indivíduo; pertence a um grupo e permanece em existência apenas na medida em que o grupo conserva-se unido" (Arendt, 1994, p. 36).
Costa (1986) enfatiza a validade da diferenciação proposta por Arendt (1994). Para ele, o motivo de haver uma tendência a se pensar no poder como sinônimo de violência e na obediência como sinônimo de sujeição está relacionado ao modelo de funcionamento das sociedades, que têm sempre o confronto violento como única via para os mais diversos tipos de conflito. Como assevera esse autor, o poder em si não tem como finalidade a dominação, mas permitir que os homens ajam em comum acordo, visando alcançar interesses e objetivos universalizáveis. Ao referenciar essa asserção ao mundo do trabalho, em que empregadores e empregados estabelecem relações de poder, seria possível dizer que essa caracterizaria uma situação de exercício de um "poder legítimo". Essa situação, conforme Bobbio e colaboradores (2000), ocorre quando o poder é considerado legítimo por parte dos indivíduos que participam da relação, o que envolve diversos aspectos, como o conteúdo das ordens; o modo ou o processo como as ordens são transmitidas; a fonte das ordens. Entretanto, quando o exercício do poder é desviado para interesses e objetivos privados, a instância que o exerce perde legitimidade, surgindo a violência (Costa, 1986).
Violência e Trabalho
Ao debater sobre as dificuldades e possibilidades de prevenir diferentes formas de violência, Minayo e Souza (1999) apontam a violência nos ambientes de trabalho como um dos problemas que mais afligem o Brasil no atual momento histórico. A relação entre trabalho e violência materializa-se, principalmente, pela infração de princípios fundamentais e direitos no trabalho, por isso carrega um profundo sentido de negatividade, já que não contribui para o desenvolvimento da pessoa nem para o aperfeiçoamento do gênero humano. Essa discussão encontra-se no escopo do campo da Saúde do Trabalhador, cujo objeto pode ser definido como o processo saúde/doença de grupos humanos, em sua relação com o trabalho (Mendes e Dias, 1991). Nessa perspectiva, busca-se compreender o adoecer e o morrer dos trabalhadores, através do estudo dos processos de trabalho, articulado com o conjunto de valores, crenças, ideias e representações dos atores sociais envolvidos.
A violência mostra-se tão premente para a Saúde do Trabalhador, que a própria Política Nacional de Segurança e Saúde do Trabalhador (PNST) (Brasil, 2004) traz uma menção a ela:
Entre os problemas de saúde relacionados ao trabalho deve ser ressaltado o aumento das agressões e episódios de violência contra o trabalhador no seu local de trabalho, traduzida pelos acidentes e doenças do trabalho; violência decorrente de relações de trabalho deterioradas, como no trabalho escravo e envolvendo crianças; a violência ligada às relações de gênero e ao assédio moral, caracterizada pelas agressões entre pares, chefias e subordinados (Brasil, 2004, p. 6).
A Rede Nacional de Atenção Integral à Saúde do Trabalhador (Renast) vem sendo implementada como a principal estratégia da PNST para o Sistema Único de Saúde (SUS), e tem como intuito desenvolver ações assistenciais, de vig úde do Trabalhador (Dias e Hoefel, 2005).
Ao dissertar acerca da violência na história do trabalho no Brasil, Dal Rosso e Freitas (2001) discutem as associações entre violência e relações de trabalho, partindo da definição de violência como infração a direitos. Eles iniciam seu percurso histórico, enfocando o trabalho escravo, principal forma de suprimento de força de trabalho, no Brasil, até 1888. Esse sistema, intrinsecamente violento, suprime a liberdade, privando o exercício do livre arbítrio por parte do escravo, transformando-o em mercadoria. Pela sua decisiva influência na estruturação da sociedade brasileira, não só deixou marcas indeléveis (Chauí, 1998), como continua a figurar como uma das formas de violência existentes no país. Minayo Gomez (2005) afirma que a escravidão persiste, sendo responsável por manter, em diversos estados do Brasil, homens, mulheres e crianças em privação de liberdade por meios que os confinam longe da vista da sociedade, sob prisão física e moral e em condições degradantes de trabalho.
Continuando a avançar no itinerário histórico da vinculação entre violência e relações de trabalho, é enfocado o trabalho servil, que, a despeito de ser empreendido por pessoas formalmente livres, apresenta características de sujeição e dependência. Dal Rosso e Freitas (2001) mencionam o campesinato dependente, desenvolvido por pequenos produtores autônomos, cuja violência decorria da quantidade de trabalho que se lhes autoimpunham, assim como do grau de dependência que tinham em relação aos agentes mercantis e às instituições capitalistas. Essas relações sociais violentas do passado refletem a atual situação de conflito e violência na zona rural brasileira. Autores como Minayo Gomez (2005) e a Comissão Pastoral da Terra (CPT, 2001) ressaltam as várias formas de violência resultantes dos conflitos no campo, gerados pelo aumento da concentração de terra e falta de uma efetiva reforma agrária, os quais têm levado a um grande número de mortes.
Finalizando sua incursão histórica, Dal Rosso e Freitas (2001) tratam das relações de assalariamento. Para entender melhor a violência presente nessas relações, é necessário considerar Marx (1987), que descreve o trabalho, na sociedade capitalista, como uma relação de compra e venda de força de trabalho entre o capitalista e o trabalhador, que faz esse contrato, posto que as condições sociais não lhe dão alternativa para "ganhar a vida" (Braverman, 1977). Assim, para o capitalista, o processo de trabalho ocorre entre "coisas que lhe pertencem" (Marx, 1987), concepção na qual o trabalhador está desumanizado, reduzido a uma mercadoria, a um "fator de produção" (Braverman, 1977). Essa descrição também guarda grande proximidade com a forma de organização e gestão da força de trabalho escravo.
Ribeiro (1999) acrescenta que o assalariamento origina condições e formas de organização do trabalho que colocam os trabalhadores em situações específicas de risco à saúde, produzindo uma seletividade social das enfermidades e mortes relacionadas ao trabalho. Além disso, o autor aponta que, nesse sistema, ocorre uma naturalização da morte e do adoecimento relacionados ao trabalho, descaracterizando-os enquanto violência.
Um exemplo desse processo é o que Machado e Minayo Gomez (1995) chamam de "gestão científica" dos acidentes de trabalho. Eles relatam que a primeira preocupação, dirigida à redução da responsabilidade do capital sobre os aspectos negativos do processo de trabalho, é encontrar um culpado pelo acidente: Teoria da Culpa. Essa teoria, conforme os autores, conduz à análise dos acidentes, buscando lhes atribuir duas causas: ato inseguro do trabalhador, ou condição insegura possibilitada pela negligência ou falta de diligência do empregador. Essa concepção, normalmente, impõe culpabilidade às próprias vítimas do acidente e mascara o caráter complexo e sobredeterminado desses eventos.
O mesmo ocorre com as doenças profissionais e as doenças relacionadas ao trabalho. O aumento, nos dias atuais, da prevalência dos Distúrbios Osteomusculares Relacionados ao Trabalho (DORT) (Dias e Hoefel, 2005; Wünsch Filho, 2004), e o aparecimento, embora discretamente, dos transtornos mentais (Wünsch Filho, 2004), mostra-se, em grande parte, resultado das mudanças nos padrões de uso da força de trabalho promovidas pelos processos de reestruturação produtiva e de globalização da economia.
A partir dessa discussão, é possível concluir que o trabalho, no modo de produção capitalista, adquire um significado de exploração, um processo que ocorre em uma zona de conflito de interesses contraditórios: os de quem vende sua força de trabalho e os daqueles que a exploram. O poder é, então, exercido, prioritariamente, por aquele que detém o capital, sem que, necessariamente, configurem-se, na relação, elementos que legitimem esse exercício.
Como destacam Dal Rosso e Freitas (2001), o trabalho assalariado possibilita um grau maior de organização e resistência que os outros sistemas anteriormente descritos, como o escravismo e o campesinato dependente. No trabalho assalariado, os trabalhadores são, por princípio, livres, podendo se unir para defender seus interesses. Essa ideia corrobora Mendes e Dias (1991, p. 347), que descreveram o trabalho assalariado como "espaço de dominação e submissão do trabalhador pelo capital, mas, igualmente, de resistência, de constituição, e do fazer histórico". Sato (2002) afirma que os trabalhadores criam, individual e coletivamente, através de negociações cotidianas, formas para resistir à racionalidade imposta pela organização do trabalho, buscando adequar os contextos de trabalho a suas características pessoais. Através do conhecimento construído na prática, replanejam o trabalho para então executá-lo, "tanto com a finalidade precípua de amenizar os esforços do trabalho, como para manifestar a resistência política ao poder e controle gerenciais ou ainda, para tornar factível aquilo que foi planejado por outrem" (Sato, 2002, p. 1148).
No entanto, o que predomina na literatura são relatos de situações de autoritarismo, como o de Barreto (2003), que falam da humilhação que sofrem os trabalhadores, as quais trazem um ranço do período de ditadura militar, vivenciado no país, que representou ápices de violações de direitos do trabalho (Dal Rosso e Freitas, 2001) e influenciou, assim como o escravismo, a configuração da sociedade brasileira. Barreto (2003), em um estudo acerca de trabalhadores de indústrias químicas de São Paulo, descreve situações de repreensão, constrangimento e humilhação de superiores hierárquicos para com seus subordinados, transformando o ambiente de trabalho em lócus de desprazer e sofrimento. Pontua que, nas relações autoritárias, a saúde é abalada, pois o outro não é visto como um "legítimo outro", levando a manifestação de distúrbios e danos psíquicos variados. Ainda conforme essa autora, em um clima de insegurança quanto à manutenção do emprego, as relações autoritárias, a competitividade estimulada e o individualismo geram, no trabalhador, indiferença ao sofrimento alheio e ao seu próprio sofrimento.
Essas colocações sustentam a discussão proposta por Dejours (2001), na qual ele argumenta que o sentimento de medo, vivenciado pelos trabalhadores diante da ameaça de desemprego, gera condutas de obediência e submissão, quebrando a reciprocidade entre os trabalhadores e apartando-os do sofrimento do outro. A partir dessa proposição, ele analisa o processo que denomina de "banalização do mal", que favorece a tolerância para com a injustiça e, através do qual, faz-se passar por adversidade, situações de afronta a civilidade. Assim, o autor afirma que a "banalidade do mal" diz respeito ao comportamento de chefes, patrões e até mesmo de trabalhadores, que se tornam colaboradores de um sistema que funciona mediante a mentira e a injustiça, coniventes com infrações a leis trabalhistas e normas sociais de urbanidade. Todavia, apesar de apresentar uma visão bastante soturna das relações sociais de trabalho, caracterizando-as como relações de dominação, Dejours (2001) coloca que o trabalho pode permitir uma contrapartida aos efeitos deletérios da dominação por intermédio da psicodinâmica do reconhecimento.
Nessa perspectiva, o trabalho representa um valor moral na sociedade, algo central na vida das pessoas, que subsidia tanto a sobrevivência material como social (Barreto, 2003; Oliveira, 2004). É também uma visão positiva e estruturante do trabalho que Salanova e colaboradores (1993; apud Salanova e col., 1996) destacam, quando assinalam 11 funções que ele desempenha na vida das pessoas: integrar ou significar (algo que pode dar sentido a vida); proporcionar status e prestígio social; formar identidade; possibilitar a sobrevivência material; vivenciar contatos sociais; estruturar o tempo; manter o indivíduo em uma atividade obrigatória; desenvolver habilidades; transmitir normas, crenças e expectativas sociais; proporcionar poder e controle; comodidade.
Dal Rosso e Freitas (2001) afirmam que, apesar de o trabalho, em algumas situações, ser causa de sofrimento, adoecimento e morte, não se devem considerar essas características inerentes a ele, mas consequências evitáveis. Por isso, deve-se buscar um melhor entendimento das forças que emergem do trabalho ou para o trabalho e que o afastaram de seu conteúdo inicial (Seligmann-Silva, 1990). As diversas formas de violência relacionadas ao trabalho são exemplos de fenômenos que têm como consequência esse afastamento do trabalho de suas funções estruturantes da vida das pessoas.
Conceituando Violência Relacionada ao Trabalho
Tal como o fenômeno da violência em geral apresenta dificuldades conceituais e de delimitação, assim também ocorre na abordagem da violência no âmbito do trabalho (Campos, 2003). Pode-se perceber, na literatura brasileira em Saúde do Trabalhador, uma tendência em distinguir a violência do trabalho da violência no trabalho (Santos Júnior, 2004; Santos Júnior e Dias, 2004; Campos, 2004).
Conforme essa distinção, que, como aponta Campos (2003), tem caráter eminentemente didático, a violência do trabalho seria aquela "que se origina no modo de produção e toma corpo na organização do processo de trabalho, provocando sofrimento, desgaste, adoecimento e, finalmente, a morte relacionados ao trabalho" (Campos, 2003, p. 1645). Segundo esse autor, não se trata de afirmar que o trabalho em si seja violento, mas que o modo como é ele organizado e gerenciado pode se configurar uma forma de violência para com os trabalhadores. Essa categoria de violência pode ser compreendida como uma das manifestações da violência estrutural descrita por Minayo (1994), violência velada, presente na exploração e opressão de trabalhadores, que se manifesta em condições e ambientes de trabalho insalubres e inseguros, bem como no cerceamento de conquistas da sociedade a exemplo de benefícios trabalhistas e previdenciários.
A categoria violência no (ambiente de) trabalho, mais utilizada na literatura científica de língua inglesa (violence at work, workplace violence), caracteriza a relação entre violência e trabalho enquanto risco para os trabalhadores (Campos, 2003, 2004). Esse tipo de violência poderia ser incluído no que Minayo (1994) classificou como violência de resistência, abrangendo as respostas à violência estrutural por pessoas ou grupo de pessoas oprimidas, e como violência da delinquência, caracterizada como atos considerados criminosos, realizados por pessoas externas ao trabalho (assaltantes), internas (colegas de trabalho) ou que tenham alguma relação com o trabalho. Essa classe de violência identificaria agressões de diversas naturezas, ocorridas no ambiente de trabalho, que constituiriam causas de sofrimento, adoecimento e até morte de trabalhadores, podendo ser considerada uma das formas como se apresenta a violência do trabalho (Campos, 2003).
Violência ocupacional é outra designação para o estudo da relação entre violência e trabalho, utilizada por Machado e Levenstein (2000) ao investigar acerca da criminalidade e vitimização de trabalhadores de transportes coletivos. Esses autores argumentam que o crescimento da violência intencional no ambiente de trabalho está relacionado ao atual estágio do capitalismo, no qual vem ocorrendo um incremento significativo do número de trabalhadores no setor de serviços. Esse processo tira o trabalhador do espaço circunscrito e, a priori, seguro das fábricas e os coloca em contato direto com a população em geral.
Na Enciclopédia da Organização Internacional do Trabalho (OIT), é adotado o conceito de violência como: "qualquer tipo de comportamento agressivo ou abusivo que possa causar um dano ou desconforto físico ou psicológico em suas vítimas, sejam essas alvos intencionais ou envolvidas de forma impessoal ou incidental" (Warshaw, 1998, p. 51.2). Como coloca Campos (2004), definições de violência, a exemplo da estruturada pela OIT, procuram incluir diversas formas de violência: desde as mais evidentes, como homicídios, agressões físicas e diferentes formas de crime, a agressões verbais e violência psicológica.
Neste artigo, propõe-se a utilização do conceito de violência relacionada ao trabalho, considerada como toda ação voluntária de um indivíduo ou grupo contra outro indivíduo ou grupo que venha a causar danos físicos ou psicológicos, ocorrida no ambiente de trabalho, ou que envolva relações estabelecidas no trabalho ou atividades concernentes ao trabalho. Também se considerada violência relacionada ao trabalho toda forma de privação e infração de princípios fundamentais e direitos trabalhistas e previdenciários; a negligência em relação às condições de trabalho; e a omissão de cuidados, socorro e solidariedade diante de algum infortúnio, caracterizados pela naturalização da morte e do adoecimento relacionados ao trabalho.
Dentro desse macroconceito, são estabelecidas as seguintes subcategorias:
Violência nas relações de trabalho - situações de conversão da autoridade em relação hierárquica de desigualdade (autoritarismo nas relações de trabalho), explícitas em agressões físicas, repreensões, constrangimentos e humilhações de superiores hierárquicos para com seus subordinados, com fins de dominação, exploração e opressão, tratando o ser humano não como sujeito, mas como coisa.
Essa categoria pode ser dividida em violências físicas e psicológicas. Como colocam o International Labour Office (ILO, 2000) e Campos (2004), violências físicas são situações facilmente reconhecidas, nas quais se faz uso da força física para ofender alguém, a exemplo de chutes, socos, empurrões, tiros etc. As violências psicológicas, as quais vêm recebendo maior atenção apenas recentemente, caracterizam-se por comportamentos repetidos, inoportunos e não recíprocos, que, cumulativamente, têm um efeito devastador na vítima, e podem ser subdivididas em:
Ameaça - promessa ou insinuação do uso ilegal de força, visando coagir, inibir ou constranger uma pessoa ou grupo e provocando medo de dano psicológico, sexual, físico, ou outra consequência negativa para a vítima.
Assédio - conduta indesejada (verbal, visual ou física), que afeta a dignidade da pessoa, tendo como fundamento a idade, alguma deficiência, o sexo, a orientação sexual, a raça, a orientação religiosa, política, sindical etc.
Bulling e Mobbing - tipo de assédio psicológico, que consiste em comportamentos persecutórios, ofensivos, com característica vingativa, cruel ou maliciosa, que visa humilhar ou desestabilizar um indivíduo ou grupo, isolando-o de contatos sociais e disseminando informações falsas sobre ele. É realizado por alguém (bulling) ou por um grupo (mobbing) hierarquicamente superior.
Violência na organização do trabalho - quando o modo como é organizado o trabalho (divisão do trabalho; controle de ritmo e produtividade; modo operatório; contrato e jornada de trabalho; rotatividade da força de trabalho; sistema de gestão de segurança e saúde) coloca os trabalhadores em situações de risco à saúde.
Violência nas condições de trabalho - quando as condições de trabalho são insalubres e inseguras, expondo o trabalhador a riscos físicos, químicos, biológicos, ergonômicos ou de acidentes.
Violência de resistência - ações dos trabalhadores em resposta às violências relacionadas ao trabalho, tanto com a finalidade de amenizar os esforços no trabalho e torná-lo factível, como para manifestar a resistência política ao poder e controle gerenciais.
Violência de delinquência - atos socialmente identificados como criminosos, realizados por pessoas externas ao trabalho, internas ou que tenham alguma relação com o trabalho.
Violência simbólica - quando os trabalhadores são tratados como "cidadãos de segunda categoria", seja pela cor da pele, pela baixa escolaridade, pela ausência de qualificação profissional, por serem trabalhadores informais, ou por um estigma associado à determinada categoria profissional.
Considerações Finais
A complexidade real da experiência e do fenômeno da violência exige a abertura para integrar esforços e pontos de vista dos mais diversos, envolvendo pesquisas científicas que forneçam informações mais fidedignas para a implementação de políticas e estratégias de prevenção (Minayo, 1994). Assim, cabem ser exploradas diferentes metodologias de investigação, potencialmente capazes de verificar possíveis relações entre condições de vida das populações e determinadas manifestações da violência (Macedo e col., 2001), a exemplo da utilização de desenhos etno-epidemiológicos de pesquisa (Nunes e Paim, 2005). De modo complementar, faz-se mister a construção de um conceito capaz de abarcar a diversidade e a complexidade desse fenômeno, além de se mostrar suficientemente abrangente para incorporar a riqueza das discussões acumuladas no campo, sem perder em possibilidade de ser operativo. Foi sobre esse último aspecto que nos debruçamos.
Desse modo, este artigo buscou, a partir da discussão do fenômeno da violência e de sua faceta concernente ao trabalho, propor o conceito de violência relacionada ao trabalho, como uma referência para futuros estudos no campo da Saúde do Trabalhador. Entende-se que a utilização dessa nomenclatura pode evitar mal-entendidos provocados pelo uso de termos como violência do trabalho e violência no trabalho. Outrossim, por apresentar uma definição mais ampla e abrangente, o conceito de violência relacionada ao trabalho poderá ajudar a desvelar situações de violência, ocorrentes no âmbito do trabalho, que estejam para além da percepção dos próprios atores sociais envolvidos.
Trata-se, portanto, de um artigo conceitual de síntese. Mas, para além da síntese, da densidade teórica e discussões teóricas, para que serve o conceito proposto? Produzir um conhecimento que poderá instrumentalizar ações concernentes ao combate à violência relacionada ao trabalho, através da melhoria das condições de trabalho, instituindo práticas coletivas promotoras de saúde e segurança, construindo, assim, "locais de trabalho saudável" (Dias e Melo, 2003).
Recebido em: 23/07/2007
Reapresentado em: 14/04/2008
Aprovado em: 29/05/2008
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
09 Jan 2009 -
Data do Fascículo
Dez 2008
Histórico
-
Aceito
29 Maio 2008 -
Revisado
14 Abr 2007 -
Recebido
23 Jul 2007