Resumos
Este estudo de revisão de literatura teve por objetivo apresentar as ferramentas de trabalho utilizadas com famílias pelas equipes de saúde da família da cidade de Curitiba, Paraná, Brasil. Inicialmente, conceitua-se o trabalho com famílias, cujo propósito central está fundamentado na compreensão de sujeitos integrados ao seu contexto e dinâmica familiar, sendo possível observar o convívio e a interação entre os membros da família. Dessa forma, para além do cuidado coletivo, mesmo a atenção clínica individual pode ser estruturada em bases mais amplas, com maior resolutividade nas intervenções sobre o processo saúde-doença-cuidado. Na sequência, foram caracterizados os objetivos e as finalidades de uso das ferramentas por equipes multiprofissionais do município, tais como o Genograma ou heredograma familiar, o Ciclo de vida das famílias, o modelo F.I.R.O. e o modelo P.R.A.C.T.I.C.E. Concluiu-se que, em Curitiba, o uso das ferramentas é essencial como dispositivo no âmbito das tecnologias leves para o trabalho de cuidado em saúde das equipes de saúde. Favorece a aproximação dos trabalhadores da saúde aos problemas das pessoas na comunidade, possibilitando a coleta de evidências narrativas e a elaboração de estratégias robustas de manejo de ações e serviços em saúde.
Atenção à saúde; Saúde da família; Programa Saúde da Família
This literature review study aimed to present the toolkit for working with families used by family health teams in the city of Curitiba, state of Paraná, Brazil. Initially, the work with families is conceptualized. Its central purpose is based on the understanding of subjects integrated into their context and family dynamics, being possible to observe their daily relationship and interactions. In this way, beyond the collective care, even the individual clinical attention can be structured on wider bases, with more efficient interventions on the health-disease-care process. Then, the objectives and purposes of the use of the tools (for example, Genogram, the Life Cycle of the Families, the F.I.R.O. model and the P.R.A.C.T.I.C.E. model) by multiprofessional teams of the city were characterized. It was concluded that in Curitiba, the use of the toolkit is essential as a light health technology device, as it favors the workers' approach to the people's problems in the community, enabling the collection of narrative evidences and promoting the design of robust strategies for handling health actions and services .
Health Care; Family Health; Family Health Program
PARTE 2- RELATOS DE EXPERIÊNCIA
As ferramentas de trabalho com famílias utilizadas pelas equipes de saúde da família de Curitiba, PR
The toolkit used by family health teams for working with families in Curitiba, PR
Rafael Gomes DitterichI; Marilisa Carneiro Leão GabardoII; Samuel Jorge MoysésIII
IDoutorando em Odontologia (Saúde Coletiva) pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná; Professor de Saúde Coletiva da Universidade Estadual de Ponta Grossa e da Faculdade de Tecnologia Herrero. Endereço: Av. Carlos Cavalcanti, n. 4748, bloco M, Uvaranas, CEP 84030-900, Ponta Grossa, PR, Brasil. E-mail: rafaelditterich@yahoo.com.br
IIMestre e Doutoranda em Odontologia (Saúde Coletiva) pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná; Professora de Administração em Saúde Pública da Faculdade de Tecnologia Herrero. Endereço: R. Álvaro Andrade, n. 345, Portão, CEP 84030-900, Curitiba, PR, Brasil. E-mail: marilisagabardo@e-odonto.com
IIIDoutor em Epidemiologia e Saúde Pública; Professor Titular de Saúde Coletiva da Pontifícia Universidade Católica do Paraná. Endereço: Rua Imaculada Conceição, 1155, Prado Velho, CEP 80215-901, Curitiba, PR, Brasil. E-mail: s.moyses@pucpr.br
RESUMO
Este estudo de revisão de literatura teve por objetivo apresentar as ferramentas de trabalho utilizadas com famílias pelas equipes de saúde da família da cidade de Curitiba, Paraná, Brasil. Inicialmente, conceitua-se o trabalho com famílias, cujo propósito central está fundamentado na compreensão de sujeitos integrados ao seu contexto e dinâmica familiar, sendo possível observar o convívio e a interação entre os membros da família. Dessa forma, para além do cuidado coletivo, mesmo a atenção clínica individual pode ser estruturada em bases mais amplas, com maior resolutividade nas intervenções sobre o processo saúde-doença-cuidado. Na sequência, foram caracterizados os objetivos e as finalidades de uso das ferramentas por equipes multiprofissionais do município, tais como o Genograma ou heredograma familiar, o Ciclo de vida das famílias, o modelo F.I.R.O. e o modelo P.R.A.C.T.I.C.E. Concluiu-se que, em Curitiba, o uso das ferramentas é essencial como dispositivo no âmbito das tecnologias leves para o trabalho de cuidado em saúde das equipes de saúde. Favorece a aproximação dos trabalhadores da saúde aos problemas das pessoas na comunidade, possibilitando a coleta de evidências narrativas e a elaboração de estratégias robustas de manejo de ações e serviços em saúde.
Palavras-chave: Atenção à saúde; Saúde da família; Programa Saúde da Família.
ABSTRACT
This literature review study aimed to present the toolkit for working with families used by family health teams in the city of Curitiba, state of Paraná, Brazil. Initially, the work with families is conceptualized. Its central purpose is based on the understanding of subjects integrated into their context and family dynamics, being possible to observe their daily relationship and interactions. In this way, beyond the collective care, even the individual clinical attention can be structured on wider bases, with more efficient interventions on the health-disease-care process. Then, the objectives and purposes of the use of the tools (for example, Genogram, the Life Cycle of the Families, the F.I.R.O. model and the P.R.A.C.T.I.C.E. model) by multiprofessional teams of the city were characterized. It was concluded that in Curitiba, the use of the toolkit is essential as a light health technology device, as it favors the workers' approach to the people's problems in the community, enabling the collection of narrative evidences and promoting the design of robust strategies for handling health actions and services .
Keywords: Health Care; Family Health; Family Health Program.
Introdução
A Estratégia Saúde da Família foi concebida pelo Ministério da Saúde em janeiro de 1994, com o objetivo de proceder à reorganização da prática assistencial em novas bases e critérios, em substituição ao modelo tradicional de assistência, orientado para a cura de doenças e para a atenção hospitalar (Roncalli, 2003).
A Estratégia Saúde da Família representa, pelo menos, duas novas formas de abordagem da questão da saúde da população: primeiro, busca ser uma estratégia para reverter a forma atual de prestação de assistência à saúde; segundo, é uma proposta de reorganização da atenção básica como eixo de reorientação do modelo assistencial, respondendo a uma nova concepção de saúde. Essa concepção não é mais centrada somente na assistência à doença, mas, sobretudo, na promoção da qualidade de vida e intervenção nos fatores que a colocam em risco - pela incorporação das ações programáticas de uma forma mais abrangente e do desenvolvimento de ações intersetoriais.
Ao se focar a atuação na família, amplia-se a noção de atendimento integral à saúde, em que, a partir de um paciente, as ações são desdobradas para o grupo, com a organização de práticas preventivas coletivas e de promoção de saúde (Pupulin e col., 2003).
O trabalho em saúde da família, como modelo de atenção primária, deve considerar a família como lócus básico de atuação. As técnicas utilizadas para executar o trabalho devem basear-se na realidade local, construindo um fazer consistente que implique na melhoria dos indicadores de saúde da comunidade e obtendo a satisfação não só da população atendida, como também da equipe que executa a proposta (Wagner e col., 1999, 2001).
O município de Curitiba, Paraná (PR), implantou pioneiramente, no ano de 1992, o PSF que, desde a sua origem, trabalha com a visão multiprofissional na atenção à saúde da população, com a incorporação da Odontologia desde seu início. Essa composição de equipe multidisciplinar passou a ordenar as ações e constituem, até hoje, o eixo da prática no PSF do município (Curitiba, 1995).
Em 1995, quando Curitiba já possuía cinco unidades de saúde da família (USF), realizou-se um acordo de consultoria internacional com a Universidade de Toronto, por meio de seu departamento de Medicina Familiar e Comunitária, para a realização de um curso de capacitação denominado "Programa de 5 finais de semana sobre Medicina da Família". Em princípio, o projeto previa a participação exclusiva de médicos com fluência em inglês, mas, para surpresa dos canadenses, 17 profissionais foram escolhidos, sendo 11 médicos, 2 enfermeiras e 4 cirurgiões-dentistas, tornando-se esta a primeira experiência multiprofissional de treinamento dos canadenses. Neste curso, as equipes foram capacitadas a realizarem o trabalho com famílias e tiveram contato com as ferramentas utilizadas para o estudo e diagnóstico das famílias, com base metodológica da Universidade McGill do Canadá (Silveira Filho e col., 2001; Curitiba, 2002). Esse curso atualmente é ministrado por agentes locais, e vem sendo reproduzido na capacitação dos profissionais ingressantes no PSF.
O presente trabalho de revisão de literatura tem por finalidade apresentar as ferramentas de trabalho utilizadas com famílias pelas equipes de saúde da família (ESF) em Curitiba-PR, com base na abordagem familiar sistêmica canadense.
O Trabalho com Famílias
O conceito de trabalhar com famílias deve ser bem compreendido e diferenciado de terapia familiar. Enquanto o primeiro se dá por múltiplas intervenções curtas ao longo do tempo e valendo-se das estruturas da família, o segundo propõe uma intervenção intensa por tempo limitado e busca modificar o padrão de relacionamento da família (Christie-Seely e Talbot, 1984; Wagner e col., 2001).
Trabalhar com famílias exige a incorporação de uma tecnologia "relacional" (Franco e Mehry, 1999), fundada na abordagem humanista, e desenvolvida por meio da compreensão do funcionamento sistêmico da família e da aplicação do método clínico centrado no paciente. Existem momentos-chave que podem e devem ser explorados, como a ocasião de cadastro das famílias, as mudanças no ciclo de vida delas, a observação da resiliência familiar para situações adversas e o surgimento de doenças crônicas ou agudas de maior impacto entre seus membros. Essas situações permitem que o profissional de cuidados primários crie um vínculo com o paciente e sua família, desdobrado em responsabilização no tempo, pois, ao dar atenção, facilita ser aceito para investigar e intervir (Wagner e col., 2001).
Segundo Gomes (1994), o ponto de partida para o trabalho com família é a compreensão, por parte do profissional, do próprio modelo de organização familiar, com crenças, valores e procedimentos que efetivamente são adotados na sua vida em família.
O trabalhar com famílias pode ser dividido didaticamente em diferentes etapas para melhor explicação e compreensão, as quais são, de acordo com Wagner e colaboradores (2001):
1. A associação é um requisito fundamental para a construção do processo terapêutico. É iniciada no momento em que o paciente traz ao profissional uma situação em que a família interfere direta ou indiretamente no processo;
2. A avaliação consiste em analisar a família de um modo mais objetivo, perceber o funcionamento do grupo em estudo, reconhecer a crença da família no processo de adoecer e propor um plano de ação que respeite o seu modo de vida. A avaliação adequada do papel que a pessoa portadora de qualquer agravo possui em sua estrutura familiar permite que o profissional tenha um poder de intervenção que aumenta significativamente a resolubilidade da proposta;
3. Educação em saúde é o terceiro passo para se trabalhar com famílias, uma boa comunicação é essencial para um processo de educação em saúde que capacite os membros da família a desenvolver o autocuidado e hábitos de vida mais saudáveis. O momento ideal para introduzir conceitos de saúde é quando a família busca a equipe de saúde para receber uma explicação sobre um processo de adoecer que deu origem à demanda, pois o cliente está receptivo a esta informação;
4. Facilitação tem base no modelo F.I.R.O., em que o profissional conhece a estrutura familiar, suas relações de poder e trocas de sentimentos e age como facilitador da interação entre os membros da família, esclarece dúvidas sobre a patologia em questão e sua progressão, e informa sobre alternativas de tratamento disponíveis;
5. Referência é o momento em que o profissional da atenção primária encaminha o seu paciente para níveis de maior complexidade de atendimento. Isso gera confiança da família no tratamento e possibilita ao profissional acompanhar o caso.
O trabalho com famílias em situação de risco tem um percurso dinâmico em contínua transformação, feito de tentativas, erros e aprendizagens, no qual os objetivos mudam durante o percurso porque são modificados pelos sujeitos acompanhados (Velschan e col., 2002).
As ferramentas de trabalho com famílias
As ferramentas de trabalho com famílias, também conhecidas como ferramentas saúde da família, são tecnologias relacionais, oriundas da Sociologia e da Psicologia, que visam estreitar as relações entre profissionais e famílias, promovendo a compreensão em profundidade do funcionamento do indivíduo e de suas relações com a família e a comunidade (Silveira Filho, 2007).
Dentre as ferramentas de avaliação usadas na atenção primária pelas equipes em Curitiba estão: o genograma, o ciclo de vida das famílias, o F.I.R.O. e o P.R.A.C.T.I.C.E.
Genograma ou heredograma familiar
O genograma foi desenvolvido na América do Norte, baseado no modelo do heredograma, e mostra graficamente a estrutura e o padrão de repetição das relações familiares. Suas características básicas são: identificar a estrutura familiar e seu padrão de relação, mostrando as doenças que costumam ocorrer, a repetição dos padrões de relacionamento e os conflitos que desembocam no processo de adoecer (Rakel, 1997; Moysés e col., 1999; Moysés e Silveira Filho, 2002); também pode ser usado como fator educativo, permitindo ao paciente e a sua família ter a noção das repetições dos processos que vem ocorrendo e como estes se repetem. O genograma é traçado a partir de símbolos gráficos, ao lado dos símbolos data de nascimento, eventos importantes, patologias e nome dos pacientes. Pode ser colocado no início do prontuário como sumário de problemas prévios, ações preventivas e medicamentos em uso (Moysés e col., 1999).
O genograma ou Árvore da família é um método de coleta, armazenamento e processamento de informações sobre uma família. É uma ferramenta que parte de um conceito sistêmico de família e tem sido utilizada em contextos mais convencionais de constituição do núcleo familiar, embora possa ser aplicada também em interpretações ampliadas do conceito de família (Moysés e Silveira Filho, 2002).
Na representação iconográfica, as figuras geométricas são as pessoas e as linhas conectoras, suas relações. As representações são convencionadas, possibilitando que todos tenham entendimento comum acerca daquele gráfico. É importante deixar sempre claro a pessoa que ocupa papel central no genograma, normalmente aquela que originou a necessidade de utilização dessa ferramenta. Essa pessoa passa a ser, então, estruturante do problema e, também, da representação familiar em questão (Moysés e Silveira Filho, 2002).
Todos os problemas de saúde, de situações sociais ou existenciais, de comportamento afetivo, de hábitos ou estilos de vida daquela família que, no entendimento do profissional de saúde da família, forem pertinentes, devem ser anotados. Informações relativas ao estilo de vida, que sejam pertinentes na adequação dos cuidados com a saúde daquela família, também podem ser levantados, como uso de medicamentos, alcoolismo, drogadição e outros; dados socioculturais e econômicos que possam influenciar o funcionamento familiar, questões de credo religioso, de trabalho, de vida social e de lazer e outros. Por fim, devem aparecer as relações interpessoais, de conflito, de resolução de conflito e problemas de comunicação (Wilson e Becker, 1996; Rakel, 1997; Matlack, 2001; Moysés e Silveira Filho, 2002).
Essa ferramenta é de especial importância por alcançar o objetivo de analisar a complexidade das relações humanas, uma vez que o ambiente afetivo tem impacto relevante no processo saúde-doença. As circunstâncias às quais os sujeitos são submetidos no decorrer de suas vidas podem favorecem o seu desenvolvimento biológico, social e psicológico; tanto favorável como desfavoravelmente (Maciel, 2005).
Os genogramas não precisam ser realizados rotineiramente com todos os pacientes; são mais eficazes quando aplicados de forma seletiva (Rakel, 1997).
Os componentes do genograma devem incluir, de acordo com Rakel (1997):
1. Três gerações;
2. Os nomes de todos os membros da família;
3. Idade ou ano de nascimento de todos os membros da família;
4. Todas as mortes, incluindo a idade em que ocorreu ou a data da morte e a causa;
5. Doenças de problemas significativos dos membros da família;
6. Indicação dos membros que vivem juntos na mesma casa;
7. Datas de casamentos e divórcios;
8. Uma lista dos primeiros nascimentos de cada família à esquerda, com irmãos sequencialmente à direita;
9. Um código explicando todos os símbolos utilizados;
10. Símbolos selecionados por sua simplicidade e visibilidade máxima.
Rakel (1997) afirma que a familiaridade com os símbolos padrão permite a obtenção mais rápida de informações. Esses símbolos padrão devem ser utilizados sempre que possível, mas variações podem ser facilmente desenvolvidas para fornecer informações mais exatas ou úteis.
No caso do município de Curitiba, foi desenvolvido por cirurgiãs-dentistas da Unidade de Saúde Augusta o genograma direcionado à saúde bucal, justamente pela necessidade de compreender o contexto das doenças bucais e os fatores de risco nas famílias atendidas pelo PSF (Moreira e Scheffer, 2008). Esse genograma foi estabelecido pelo Protocolo Integrado de atenção à Saúde Bucal (Curitiba, 2004) como ferramenta para o trabalho em saúde bucal pelas Equipes de Saúde Bucal (ESB). Esse genograma odontológico apresenta símbolos a serem utilizados para problemas bucais ou que a eles estejam associados, como: alta atividade de doença bucal, dieta cariogênica, fluorose, uso de prótese parcial ou total, tabagismo, diabetes e outros.
Ciclo de vida das famílias
Esta ferramenta divide a história da família em estágios de desenvolvimento, caracterizando papéis e tarefas específicas a cada um desses estágios (McWhinney, 1994; Carter e McGoldrick, 1995; Wilson e Bader, 1996; Moysés e Silveira Filho, 2002).
Assim como as pessoas, as famílias têm os seus ciclos, influenciando-se mutuamente no viver do seu dia a dia. A compreensão desses ciclos e da maneira como eles interferem no processo saúde-doença possibilita à equipe de saúde prever quando e como as doenças podem ocorrer (Oliveira e col., 1999).
O ciclo de vida é um fenômeno complexo, pois ele é uma espiral da evolução familiar, na medida em que as gerações avançam no tempo em seu desenvolvimento que vai do nascimento à morte (McGoldrick e Gerson, 1995).
O ciclo de vida das famílias é uma série de eventos previsíveis que ocorrem dentro da família como resultado das mudanças em sua organização. Toda mudança requer de cada membro uma acomodação ao novo arranjo, transformando o papel a cada alteração de limites. Afinal, "nas fases de transição onde a família é desafiada a estruturar um novo pacto que o estresse cresce, possibilitando o surgimento de doenças" (Wagner e col., 1999).
O conhecimento do desenvolvimento da família é útil porque facilita a previsão e antecipa os desafios que serão enfrentados no estágio de desenvolvimento de uma dada família, e isso permite melhorar o entendimento do contexto dos sintomas e das doenças (McWhinney, 1994; Carter e McGoldrick, 1995; Wilson e Bader, 1996).
Os estágios apresentam movimentos de autonomização, expansão de uma nova família jovem que se constitui, seguida pela contração de uma família madura, que envelhece. Tais estágios incluem tarefas a serem cumpridas pelos membros familiares, bem como tópicos de promoção de saúde familiar que podem ser implementados (Moysés e Silveira Filho, 2002).
Os estágios podem ser agrupados da seguinte forma (Quadro 1):
O ciclo de vida é constituído por uma série de eventos previsíveis que ocorrem no desenvolvimento da vida familiar, exigindo adaptação e ajustamento de seus membros. Por isso, o ciclo de vida familiar possibilita uma visão antecipada dos problemas e, embora não utilize tecnologia "dura" na forma de equipamentos biomédicos, permite uma "tomografia" da situação de vida das pessoas, no contexto familiar, com seu processo de viver, ter saúde ou adoecer. O ciclo de vida é particularmente útil no diagnóstico de situações indefinidas, que perfazem quase 50% dos comparecimentos em serviços de saúde (Moysés e Silveira Filho, 2002). De acordo com Moysés e Kriger (2008), ele pode expandir as possibilidades de atenção em saúde centradas nas relações e papéis familiares.
Com o genograma, o ciclo de vida permite identificar as doenças mais prevalentes no grupamento familiar. Dessa forma, fornece uma visão antecipada dos problemas, além de ser útil no diagnóstico de situações indefinidas. O ciclo de vida também identifica dois momentos básicos: se a família está em expansão ou em contração, os quais podem ser normais ou patológicos (Wagner e col., 2001).
É necessário, entretanto, que se compreenda que os estágios do desenvolvimento humano não podem ser tratados de maneira fragmentada, de modo a gerar estratégias de ações e serviços em saúde verticalizados para cada etapa da vida em que o indivíduo esteja (Silveira Filho, 2006).
O modelo F.I.R.O. de avaliação da família
Segundo Moysés e Silveira Filho (2002), o modelo é baseado em Orientações Fundamentais nas Relações interpessoais, do original em inglês Fundamental Interpersonal Relations Orientations (FIRO). As proposições do modelo F.I.R.O., quanto ao estudo das famílias, são aplicáveis em quatro situações:
1. quando as interações na família podem ser categorizadas nas dimensões inclusão, controle e intimidade, ou seja, a família pode ser estudada quanto às suas relações de poder, comunicação e afeto;
2. quando a família sofre mudanças importantes, ou ritos de passagem, tais como descritos no ciclo de vida, e faz-se necessário criar novos padrões de inclusão, controle e intimidade;
3. quando a inclusão, o controle e a intimidade constituem uma sequência inerente ao desenvolvimento para o manejo de mudanças da família;
4. quando as três dimensões anteriores constituem uma sequência lógica de prioridades para o tratamento: inclusão, controle e intimidade.
A inclusão diz respeito à interação dentro da família para sua vinculação e organização, ou seja, desvenda os que "estão dentro" ou os que "estão de fora" do contexto familiar apresentado. Aprofunda os conhecimentos da organização familiar e dos papéis dos indivíduos nessa família e entre as gerações. Percebe a conectividade, ou seja, a interação entre os familiares, buscando clarear as questões de comprometimento, de educação e do sentimento de pertencer à família. Conhece os modos de compartilhar, a interação entre os familiares, a identidade da família como um grupo, incluindo as questões de valores e dos rituais familiares (Wilson e col., 1996b; Moysés e Silveira Filho, 2002).
O controle refere-se às interações do exercício de poder dentro da família. Podem ser identificadas situações de (Wilson e col., 1996b; Moysés e Silveira Filho, 2002):
1. controle dominante, quando um exerce influência sobre todos os demais, caracterizando o controle unilateral;
2. controle reativo, quando se estabelecem reações contrárias, ou seja, de reação a uma influência que quer tornar-se dominante;
3. controle colaborativo, quando se estabelece a divisão de influências entre os familiares.
A intimidade refere-se às interações familiares correlatas às trocas interpessoais, ao modo de compartilhar sentimentos, tais como esperanças e frustrações, ao desenvolvimento de atitudes de aproximação ou de distanciamento entre os familiares, às vulnerabilidades e às fortalezas (Wilson e col., 1996b; Moysés e Silveira Filho, 2002).
Os comportamentos ligados à saúde e aos transtornos, por exemplo, o hábito de fumar e a obesidade, podem servir como um modo de os membros da família serem incluídos ou excluídos das vidas uns dos outros, criar terreno para uma batalha pelo controle e para abrir e fechar oportunidades para a intimidade (McDaniel e col., 1994).
Quando o paciente e sua família experimentam uma doença séria, a esfera da inclusão é aquela onde as mais fundamentais e precoces mudanças podem ocorrer. Por exemplo, o membro doente pode perder papéis, perder o emprego, a função de cuidar de casa ou de alguém. À medida que os papéis vão mudando, o paciente gravemente enfermo vai sentindo a perda do controle. Ele pode se sentir irresponsável ou incompetente. Então, mudanças na intimidade podem ser experimentadas, manifestadas por um decréscimo nas trocas afetivas entre o paciente e a família (Wilson e col., 1996b).
Essa ferramenta é muito útil quando nos deparamos com situações de doenças agudas, de hospitalizações ou acompanhamento das doenças crônicas, pois a família deverá negociar, entre seus membros, possíveis alterações de papéis decorrentes das crises familiares advindas dessas situações (Moysés e Silveira Filho, 2002). Ela também pode ser usada para entender como uma família está lidando com alterações no ciclo de vida, ou na avaliação de disfunções conjugais ou familiares (Wilson e col., 1996b).
Modelo P.R.A.C.T.I.C.E. de avaliação da família
Segundo Moysés e Silveira Filho (2002), o esquema P.R.A.C.T.I.C.E. opera por momentos de entrevista familiar e representa o acróstico das seguintes palavras do original em inglês problem, roles, affect, communication, time in life, illness, coping with stress, environment/ecology.
Esse modelo facilita o desenvolvimento da "avaliação familiar", fornecendo as informações sobre que intervenções podem ser utilizadas para manejar aquele caso específico. Ele pode ser usado para itens da ordem médica, comportamental e de relacionamentos (Walters, 1996).
O esquema P.R.A.C.T.I.C.E. foi desenvolvido para o manejo das situações mais difíceis. É focado na resolução de problemas, o que permite uma aproximação com várias interfaces que criam problemas para as famílias analisadas. Deve ser aplicado sob a forma de uma conferência familiar e a abordagem pode se dar em diversas aproximações (Moysés e Silveira Filho, 2002):
P - Problema apresentado (Problem)
Este momento auxilia a equipe de saúde da família a compreender o significado daquele problema, muitas vezes o motivo da queixa, da autopercepção e da busca de atendimento por parte da família. Permite compreender como aquela família vê e enfrenta o problema (Moysés e Silveira Filho, 2002).
Nem todas as informações podem ser obtidas nos primeiros minutos, mas enunciar os problemas em algum ponto e observar como a família reage é parte importante da entrevista de ajuda. O clínico tem de evitar proteger e expor uma "vítima" da família e tem de ter tato, ser neutro e enfático com os membros da família (Wilson e col., 1996a).
R - Papéis e estrutura (Roles and structure)
O momento aprofunda aspectos do desempenho dos papéis de cada um dos membros e como eles evoluem a partir dos seus posicionamentos (Moysés e Silveira Filho, 2002).
A - Afeto (Affect)
O momento reconhece como se estabelecem as demonstrações de afeto entre os familiares e como essa troca afetiva pode interferir, positivamente ou negativamente, no problema apresentado (Moysés e Silveira Filho, 2002).
C - Comunicação (Communication)
O momento ajuda a observar como se dá a comunicação verbal e não verbal dentro da família (Moysés e Silveira Filho, 2002).
T - Tempo no ciclo de vida (Time in life)
O momento correlaciona o problema com as tarefas esperadas dentro do ciclo de vida a serem desempenhadas pelos membros daquela família, tentando verificar onde pode estar situada a dificuldade (Moysés e Silveira Filho, 2002).
I - Doenças na família, passadas e presentes (Illness in family)
O momento resgata a morbidade familiar, valoriza as atitudes e os cuidados frente às situações vividas e trabalha com a perspectiva de longitudinalidade do cuidado, contando com o suporte familiar (Moysés e Silveira Filho, 2002).
C - Lidando com o estresse (Coping with stress)
O momento parte das experiências descritas, buscando identificar fontes de recursos internos à própria família, que possam ser mobilizados para o enfrentamento do problema atual (Moysés e Silveira Filho, 2002).
Como a família lidou com as crises no passado? Como lida com a crise presente? Quão compreensivos e coesos eles foram e são agora? Quais são as forças e os recursos da família? O papel do profissional é identificar as forças, explorar alternativas de enfrentamento, se requeridas, e intervir se a crise estiver fora do controle (Wilson e col., 1996a).
E - Meio ambiente ou Ecologia (Environment or Ecology)
O momento identifica o tipo de sustentação familiar e como podem ser mobilizados todos os recursos disponíveis para manejar o problema em questão. Isso incluem as redes sociais e de vizinhança, bem como questões mais estruturais, como coesão social e determinantes sociais no trabalho, na renda, no saneamento, na escolaridade dentre outros (Moysés e Silveira Filho, 2002).
O profissional de saúde pode ser de ajuda para a família explorando os recursos familiares estendidos, suporte religioso, questões legais, recursos de saúde da família e fatores culturais (Wilson e col., 1996a).
Muitas das informações necessárias para essa ferramenta podem ser extrapoladas de uma discussão geral com a família sobre a percepção do problema presente. Sugere-se que entre uma e três linhas sejam necessárias para cada um dos oito setores do modelo. Deve ser notado que nem todas as áreas cobertas pelo P.R.A.C.T.I.C.E. serão necessariamente vistas em uma intervenção específica (Walters, 1996).
Considerações Finais
Com a aplicação das ferramentas de trabalho com famílias, as Equipes Saúde da Família (ESF) em Curitiba procuram conhecer como é o relacionamento entre os membros da família, como se dá o processo saúde-doença dentro da família e conseguem acompanhar de perto situações que possam desestruturá-la, tais como acidentes graves e morte súbita. É com base nas etapas de trabalho com famílias que as equipes escolhem a abordagem e as ferramentas adequadas, definem o atendimento e, sobretudo, conseguem antecipar problemas, conduzir campanhas educativas nas comunidades e famílias ou sugerir mudanças em hábitos que fatalmente desencadeariam ou agravariam doenças. Outro fato importante na utilização das ferramentas é que, em Curitiba, não são frequentes as mudanças nas ESF, permitindo o desenvolvimento do princípio da atenção primária à saúde da longitudinalidade, isto é, de um trabalho com famílias contínuo e a longo prazo, fazendo com que os profissionais tenham, assim, um maior conhecimento, envolvimento e proximidade com as famílias e a comunidade.
Recebido em: 04/11/2008
Reapresentado em: 11/03/2009
Aprovado em: 21/03/2009
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
05 Out 2009 -
Data do Fascículo
Set 2009
Histórico
-
Aceito
21 Mar 2009 -
Revisado
11 Mar 2009 -
Recebido
04 Nov 2008