PARTE I - CONFERÊNCIAS DO X CONGRESSO PAULISTA DE SAÚDE PÚBLICA
Saúde e desenvolvimento social1 1 Conferência no X Congresso Paulista de Saúde Pública,outubro de 2007.
Health and social development
Amélia Cohn
Professora Licenciada do Departamento de Medicina Preventiva da FMUSP; Professora do Mestrado em Saúde Coletiva da UniSantos. Endereço: Avenida Doutor Arnaldo 455, 2º andar, Cerqueira César, CEP 01246-903, São Paulo, SP, Brasil. E-mail: amelcohn@uol.com.br
Este texto é uma versão revista da transcrição de conferência por mim proferida no X Congresso Paulista de Saúde Pública, da Associação Paulista de Saúde Pública (APSP), em outubro de 2007. Desde logo quero deixar aqui registrados meus mais sinceros agradecimentos pelo carinhoso convite que me foi feito pelo Marco Akerman2 2 Presidente da APSP. , mas que sei, conhecendo o funcionamento da instituição, que passou pelo crivo de vários outros companheiros, tão ou mais exigentes e carinhosos quanto ele. A tentativa da exposição, tendo em vista a riqueza dada pela multiplicidade de experiências de trabalho e de formação profissional do público, foi buscar apresentar algumas ideias, que vêm me inquietando, sobre os rumos e os desafios atuais que a saúde vem assumindo no país. Essa tentativa foi de proceder de uma forma minimamente cautelosa, sem alarmismos, mas que possibilitasse trazer elementos para a reflexão sobre as conquistas, os avanços e os retrocessos na implementação do Sistema Único de Saúde (SUS) nessas últimas décadas.
Quando se pensa sobre as políticas de atenção à saúde - avanços e impasses - é necessário refletir: avanços e impasses com relação a quê? De onde se partiu e aonde se quer chegar?. Com essas preocupações em mente é que vou apresentar uma retrospectiva sobre nosso ponto de partida, isto é, a minha leitura sobre de onde partimos, ao invés de aonde se quer chegar, até porque eu não vislumbro muito bem, hoje, aonde se quer chegar com as atuais políticas de saúde em desenvolvimento, e adiante será tratado o tema: em quais termos?. Por ora, será colocada uma série de desafios que, ao que parece, se não estão sendo enfrentados, certamente estão sendo confrontados pelo setor da saúde.
De onde é que se partiu? Partiu-se do movimento da reforma sanitária em que, ou a partir do qual, as conquistas foram muito grandes e muito fortes. Então esse é o pressuposto do qual eu parto. Conseguiu-se, em primeiro lugar, uma nova institucionalidade para a área da saúde: o SUS é uma conquista da reforma sanitária. Em segundo lugar, conseguiu-se implantar vários dos preceitos da agenda presentes na reforma sanitária. E qual é, então, o problema que eu vejo? O problema que eu vejo é que nos encontramos - atualmente este é um desafio - num certo estágio de perplexidade diante do nosso próprio sucesso.
Recentemente, tenho me dedicado a discutir e a estudar as políticas sociais e o perfil que está se conformando no sistema de proteção social brasileiro. Se eu refizer essa trajetória nos últimos 20 anos, quer dizer, da Constituição até os dias atuais, é interessante perceber como a saúde perdeu a dianteira na Agenda Social. A saúde, a partir de 1988, era o setor de vanguarda, que puxava a inovação das outras políticas sociais. Hoje, exatamente, eu consigo ver mais inovações, com erros e acertos, nos outros setores do que no próprio setor da saúde. Não estou, com isso, afirmando que tudo é bom nas demais políticas setoriais, há uma certa - o termo é forte, eu acho que isso não vai ser politicamente correto, mas vamos lá - renúncia da nossa área em levar adiante um projeto para a saúde.
Eu acho que nós estamos enfrentando desafios da gestão da saúde, mas renunciamos a um projeto para a saúde, e apresento algumas hipóteses sobre isso: em primeiro lugar, eu gostaria de deixar claro que, quando digo renunciamos, não é porque todos nós fomos para casa, não. É porque eu acho que nós fomos constrangidos, de certa forma, por sermos responsáveis, segundo a Agenda da Saúde, por colocar "o bloco na rua". E, com isso, coube aos gestores o desafio de procurar soluções e dar respostas para os desafios da saúde em curto prazo - eles estão com a demanda da saúde batendo à sua porta, eles enfrentam esses problemas no cotidiano. Mas este é um Congresso, exatamente, que congrega a academia, no bom sentido do termo - porque, em geral, ele é utilizado pejorativamente - congrega serviços e técnicos do setor. É exatamente nesse aspecto que reside a riqueza de momentos e oportunidades como esta.
Então, quando se diz que o setor parece ter renunciado ao seu projeto, significa afirmar sua renúncia a um conteúdo político e social, o qual significa a eficácia política e a eficácia social da saúde para a construção de uma nova sociedade. Era isso o que estava presente há 20 anos, quando era claro que o Estado, até então, tinha sido o inimigo e, portanto, era a nova geração dos reformistas sanitários que estaria ocupando este lugar do Estado, para dar uma nova direção para a saúde. Avançamos muitíssimo, porém, não queria perder a dimensão crítica, exatamente para que o sistema não fique paralisado pelo sucesso, porque o sucesso é absolutamente acrítico e sem luz.
Com isso, a literatura existente sobre qual é o papel do Estado, o que é a reforma do Estado, o que é a reforma social retoma hoje sua centralidade. Atualmente é corrente, na literatura da saúde, encontrar afirmações com o seguinte conteúdo: a crise do Estado é um ideário neoliberal que coincide com políticas econômicas de restrição orçamentária - não restrição fiscal, mas restrição orçamentária - e, portanto, demandam do Estado uma nova efetividade e uma nova racionalidade de gestão da coisa pública.
Há alguns autores, no entanto, que afirmam o seguinte: muito bem! Esta nova racionalidade, esta nova efetividade: para onde aponta? Ela aponta para imprimir novas formas de gestão no Estado. Por um lado, a regulação do setor privado - uma vez que o Estado brasileiro consegue regular o setor privado; por outro, a flexibilização da administração direta. O Interessante é que ninguém coloca qual é a crise de mercado. Fala-se da crise do Estado, como se o mercado não tivesse crise. Um autor que todos nós conhecemos, o Boaventura de Sousa Santos, coloca uma questão fundamental, a meu ver - na verdade, coloca várias, mas eu vou citar uma -, o problema não está no fato de o Estado estar em crise ou não! O problema está exatamente na redefinição do papel do Estado, de qual é o seu papel hoje. É esse ponto que não está sendo levantado atualmente, talvez, em grande parte, porque a comunidade sanitária esteja pouco crítica com relação ao que quer da área da saúde. Pouco reflexiva,.pouco crítica, no sentido de reflexiva.
Portanto, creio que está se defrontando hoje com um paradoxo. Há uma baixa capacidade propositiva e uma avalanche de demandas crescentes para a área da saúde. Não é à toa que os jornais falam tanto de crise da saúde. Eu escrevi um artigo sobre a propalada "crise da saúde", tal como entendida pela mídia - que, claro, não foi publicado -, com o título Crise da saúde ou soluço de crescimento?. Entre parênteses: não é da geração da maior parte deste público, mas no meu tempo, quando uma criança soluçava, era porque estava crescendo. Essas crises são crises de gestão, de rotas, mas também podem estar manifestando os "sucessos do SUS". O desafio está em saber diferenciá-las para poder enfrentá-las com políticas e programas adequados. Pois, em grande parte, são exatamente novos estágios do sucesso do SUS. Agora, quais são esses novos estágios do sucesso do SUS? Bem, eu acho que essa é uma questão que fica em aberto.
A segunda questão é que nós, a comunidade da saúde, somos contaminados por uma peculiaridade da dinâmica da política brasileira atual. E qual é a dinâmica da política brasileira atual? É a do distanciamento entre a dimensão da política e a dimensão técnica da sua implementação. A gestão da saúde, hoje, é confundida como sinônimo de gerência - e este é mais um dos sintomas da renúncia. Gerência é administração, trata da relação meios/fins, custo/efetividade. Não se trata de uma administração com um conteúdo social e uma diretriz social - que seria a concepção adequada de gestão.
Marco Aurélio Nogueira, em um dos seus textos, afirma: "No caso brasileiro, como em geral no sistema político, você tem a política dos políticos, a política dos técnicos e a política dos cidadãos; e que a grande característica brasileira e latino-americana atual". Mas ele se dedica, fundamentalmente, a estudar o Brasil. A política dos técnicos está se sobrepondo à política dos cidadãos e à política dos políticos, e, com isso, está esvaziando o conteúdo político da política e transformando-a numa técnica aplicada, na velha tradição de Karl Mannheim, transformando o planejamento e a gestão em instrumentos essenciais da política.
Nesse sentindo, eu desconfio de que estamos vivendo uma certa esquizofrenia. Qual é essa esquizofrenia? Não sei se é bem isso, mas nós estamos convivendo em mundos divididos. De um lado, o SUS, pelo seu sucesso, consegue, por exemplo, nas políticas atuais, fazer com que outra área setorial, a Assistência Social, assuma seu modelo (da mesma forma que anteriormente já ocorreu no caso da Segurança Pública), tamanha a engenhosidade institucional da proposta do sistema. Então, temos o Sistema Único de Assistência Social (SUAS) e temos o SUS.
Por outro lado, passamos de um momento inicial, onde os estudos e as reflexões, na área da Saúde Coletiva, eram extremamente macroestruturais - era o capitalismo, era a acumulação - e de análises de estudos de casos de processos - processo de descentralização, federalismo, regionalização e por aí afora - para uma tendência atual, em que prevalece algo que não sei muito bem o que é, mas que é rotulado como pós-modernidade, a individualização. É quase como um processo em que, no início da proposta da Saúde Coletiva e da reforma sanitária, por contingências históricas, o mal estava no Estado (era o nosso inimigo na ditadura), e o bem estava na sociedade. Então, nós da sociedade civil sabíamos qual era o bem e éramos portadores da boa virtude. Agora, trata-se de uma época em que, para a implantação do SUS, o Estado tem que tomar a dianteira e o domínio do processo.
Dessa forma, a proposta da reforma sanitária foi ocupar o aparelho do Estado. Nós ocupamos o aparelho do Estado, o Estado inimigo, para implantar a reforma sanitária e o SUS. No momento atual, de um lado há a ênfase em estudos técnicos de efetividade, o que é sempre necessário em qualquer política pública, uma vez que o Estado tem que responder com capacidade e eficiência às demandas sociais. E, de outro lado, a ênfase é no indivíduo, na perspectiva - curiosa e contraditoriamente - do particular e não do privado. Ênfase no indivíduo em particular, na sua dimensão própria.
Esse fato é especialmente preocupante e talvez aqui esteja polemizando com meu companheiro de marchas e contramarchas Gastão Wagner de Sousa Campos3 3 Professor do Departamento de Medicina Preventiva e Social, Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Estadual de Campinas. , quando analisa a tendência atual das políticas sociais e da saúde em particular: são políticas que estão caminhando no fio da navalha. São políticas sociais que têm uma enorme capilaridade social e possuem um forte traço normativo. Por meio delas o Estado controla, domina - e esta é a função do Estado -, em geral os mais pobres, já que essas políticas, mesmo as universais, são prioritariamente dirigidas aos mais pobres. E isso independentemente de ele ser mais ou menos democrático. Saúde é essencialmente normativa; é da natureza da saúde ser normativa: "O que é bom para a saúde? O que é correto, o que não é correto? O que é bom para a hipertensão, o que não é bom para hipertensão? Não fume! Etc."
Num país com tamanha desigualdade social, acredito que estamos obtendo avanços na cobertura do acesso à atenção à saúde ou aos serviços de saúde - e o Programa de Saúde da Família (PSF) é um exemplo disso. Só que cobertura não é acesso, são termos diferentes. E posso expandir o que nós chamamos de direitos sociais, o direito à saúde - então o PSF vai para a comunidade; mas se não assumir como central a dimensão da eficácia social e política da saúde de um programa como o PSF, posso estar desconstruindo a cidadania e transformando a população coberta pelo PSF em consumidora de serviços. Por que isso começou a chamar a atenção? Porque não só na saúde como nas outras áreas sociais - mais na saúde, nós fomos pioneiros e vamos ter de arcar com isso - ocorre um fato singular.
O que foi proposto para a saúde? Descentralização, controle social, extensão de serviços - cobertura, PSF. Ainda recentemente, proposta de flexibilização da administração direta com as fundações privadas de direito público, passando anteriormente pelas Organizações Sociais de Saúde (OSS) ou pela Organização da Sociedade Civil de Interesse Público (Oscip). Se tomar como outro exemplo o Programa Bolsa Família, ele é um programa de transferência de renda com condicionalidades para quem? Para a população pobre. Mas vamos ficar no caso da saúde. A proposta do acesso da população à atenção básica, sobretudo da população pobre, é também um receituário do Banco Mundial. Qual é a peculiaridade do Brasil? É que acolhemos a atenção básica, respondemos a esta conjuntura da reforma da saúde, da reforma sanitária, assumindo os mesmos elementos que o pacote do Banco Mundial, que as agências multilaterais professam para o nosso universo, só que pelo avesso. Isto é, para nós, a descentralização não é a racionalização dos serviços, tal como a proposta do Banco Mundial; consiste numa nova racionalização na qual aproximaria a dimensão da política e a capacidade de representação de demandas e de controle público da população frente ao Estado. Transformamos a descentralização, com sinal negativo, em descentralização com sinal positivo.
O PSF é a proposta de mudança de modelo, não é um pacote básico de atenção à saúde para a população pobre. Nós não acoplamos o PSF, por exemplo, a um copagamento, como no caso da Colômbia, onde se considera ter havido uma grande reforma. É obvio que o PSF vai pressionar a demanda por serviços de saúde dos demais níveis de atendimento, e por isso eu mencionei "soluço de crescimento" nos níveis de maior complexidade, e vai exigir mais investimento do Estado nesses níveis.
Mas a linha de raciocínio aqui desenvolvida aponta para priorizar outro tipo de racionalidade para a administração pública direta dos serviços de saúde. E isso tanto no que diz respeito aos serviços de maior complexidade - com essas propostas perigosas de serem geridos por fundação privada de direito público - e paralelamente já houve algumas experiências, como a da dupla fila no Hospital de Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo e no Instituto do Coração (INCOR). No entanto, a questão aqui não reside em valorar se isso é bom ou mau, em termos de princípios, mas em como fazer para que essas experiências, uma vez implementadas, não tragam para o interior do setor público de prestação de serviços a racionalidade privada do mercado na administração desses serviços, fazendo prevalecer o custo/efetividade, por exemplo, em detrimento da racionalidade social. É nesses termos que se coloca o "estar caminhando no fio da navalha", e poder cair para o lado bom (prevalecer o interesse público e coletivo) ou para o lado mau (imprimir uma racionalidade econômica ao gasto público que é própria do mercado e, portanto, seletiva).
E por que se caminha sobre o fio da navalha? Porque todos os elementos maléficos estão congregados no setor da saúde, inclusive organizados e institucionalizados pela comunidade sanitária, mas aos quais foi proposta outra versão virtuosa - e, apesar dos pesares, vai-se conseguir implementar de uma forma virtuosa as propostas do SUS, se não formos aplacados pela dimensão eminentemente técnica de gerência dos serviços. Nesse sentido, diante da questão: O que seria mais urgente hoje na saúde?, a resposta seria repensar sua relação com a cidadania - e cidadania no sentido amplo do termo, porque ele implica sua dimensão política, sua dimensão social e sua dimensão civil. E talvez outra grande questão para a área da saúde consista em como reassumir, atualizando, não o debate da reforma sanitária, da relação público x privado - o diabo era o privado, Deus era o público -, mas reavaliar: Qual é a função, hoje, do Estado na área da saúde? Por quê? Porque se está frente a processos que nós mesmos, premidos pela necessidade de oferecer respostas às demandas e à sociedade, implantamos. E esses processos de gestão - não é só gerência, é gestão - na área da saúde estão formulando um novo mix público e privado no interior dos serviços públicos estatais. Este é o problema, que tenho denominando como a segunda onda de privatização na saúde. Muito mais perversa do que a primeira, porque, na primeira, foi garantida a demanda para o mercado de serviços privados de saúde por meio de renúncia fiscal, subsídios etc. - antes era pela previdência social. Hoje, essa privatização é invisível porque acontece incutindo no interior do serviço público estatal a racionalidade do serviço privado - que é o que ocorre quando são firmados contratos de gestão com as Oscip, por exemplo. Há experiências que dão certo? Nivaldo Carneiro Junior, em sua tese de doutorado4 4 Carneiro Junior, N. O setor público não estatal: as organizações sociais como possibilidades e limites na gestão pública da saúde (Tese de Doutorado). São Paulo: Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, 2002. , analisou experiências que mostram que isso nem sempre é um problema. Agora, se for "pensar no atacado", neste Brasil de dimensões continentais, aonde se quer chegar com isso? Qual é o passo seguinte? Qual a capacidade de regulação do Estado desse terceiro setor?
E, finalmente, mais duas questões. A primeira delas retoma uma velha e antiga polêmica sobre a reforma sanitária brasileira, em que ficou famoso um embate entre o Gastão Wagner de Sousa Campos e a Sonia Fleury5 5 Presidente do Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (CEBES). . Mas, se desde aquela época ela está presente, hoje ela se repõe aggiornada pelos mais de 20 anos que se passaram desde então. Creio que seja necessário refletir, para que voltemos a ser propositivos: A reforma sanitária é, hoje, uma reforma da reforma do Estado ou uma reforma na reforma do Estado?
Se ela for uma reforma na reforma do Estado, o campo de ação está bem delimitado: vamos ficar nos limites da implementação da racionalidade administrativa dos recursos disponíveis para o setor, talvez brigando por mais recursos, e vamos esquecer o aonde se quer chegar - e aí talvez a dimensão da técnica possa de meio se transformar num fim em si. Medem-se quais são as necessidades, quais são as prioridades e o diagnóstico torna-se a política, a necessidade à qual vai responder.
Se ela for reforma da reforma, há que se pensar qual é a essência, qual é o papel do Estado e retomar essa discussão, com coragem, porque não está nada clara. Em que contexto? Num contexto em que, do ponto de vista institucional, a saúde está no interior de um sistema de proteção social híbrido no seu esquema de financiamento - e isso poucas pessoas têm apontado, com uma ou outra exceção, como a Ana Luiza D'Ávila Viana6 6 Professora do Departamento de Medicina Preventiva da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. e sua equipe - porque ela é financiada por impostos, contribuições e fundos patrimoniais, e a forma e o perfil de financiamento têm a ver com o produto. Em segundo lugar, ela se caracteriza, também, como parte desse sistema de proteção social, por uma oferta fragmentada de serviços, segmentando a clientela, em que pesem todos os avanços dos discursos, inclusive da atenção básica na saúde.
Do ponto de vista da sua implementação, uma vez conquistada a concepção de seguridade social, de 1988, abre-se caminho para retrocessos significativos nos três componentes da seguridade social, porque cada setor se enfraquece ao ir à luta sozinho, exatamente pela característica de o sistema ter uma oferta de serviços e benefícios fragmentada e uma clientela segmentada. Perdeu-se a concepção de seguridade social: a Assistência Social está inventando a sua, a Previdência Social está inventando a sua, e a Saúde está inventando a sua. Mas o conjunto e a articulação desses três componentes, como entes de um sistema de seguridade social, foram perdidos. No caso da Previdência Social, ela exerce um papel fundamental dado o montante de recursos que envolve - é o segundo orçamento do país -, e é o maior objeto de desejo do mercado e do governo, porque os fundos de pensão são uma fonte importante de poupança para investimentos.
Dessa forma, do ponto de vista da saúde, quais seriam os avanços e impasses que o setor apresentaria hoje? Eu traduziria que os avanços foram muitos - está aí o SUS; e eu falaria não em impasses, mas em desafios. E talvez o principal deles seja como fazer avançar a proposta da saúde dentro de uma concepção política e socialmente progressista. Qual é a nova criatividade que teremos? Esse não é um desafio de pouca monta, pois esta perda de projeto não significa um fracasso apenas setorial, talvez seja um processo muito mais amplo que está ocorrendo na nossa sociedade, já que está difícil identificar a existência de um projeto de sociedade por parte das forças da assim chamada direita, da assim chamada esquerda e, muito menos, dos assim chamados progressistas.
A reforma sanitária tinha um projeto de reconquista da democracia e, como a saúde sempre é onisciente, ela achava que através da reforma sanitária a sociedade iria modernizar-se e democratizar-se. A saúde atuaria como o grande carro chefe desse processo. Durante uns poucos anos o setor funcionou assim, apontando nesse sentido; no entanto, creio que essa trilha foi perdida já há um bom tempo.
Outro aspecto que parece ser relevante é a ênfase na subjetividade, no humanismo, no acolhimento - em detrimento, na maior parte das vezes, à dimensão da cidadania. A grande questão para os cientistas sociais é identificar como se reúnem e como se criam na contemporaneidade os sujeitos sociais. E criar sujeitos sociais consiste em criar indivíduos - indivíduos, não pessoas - autônomos, com capacidade de decisão em todas as dimensões da sua vida social - não só política, mas também na sua vida particular. Igualmente, há que distinguir a dimensão do privado da dimensão do particular, que é do que aqui se trata.
Nessa seara temática, um tema muito pouco desenvolvido - de novo, a não ser pelo grupo da Ana Luiza D'Avila Viana -,é como fica essa questão do Estado produtor, do Estado provedor e do Estado regulador na área da saúde. É muito sujeito distinto trabalhando com a mesma coisa. Como é que nós vamos apostar, por exemplo, no caso das Oscip, na capacidade de regulação do Estado? Todas as análises de regulação, excluindo a escola francesa, vêm mostrando a capacidade que o mercado tem, no processo de regulação, de capturar as agências de regulação com seus interesses, aí sim, privados. Na medida em que dimensiona a técnica, enfraquece a regulamentação; dimensiona o indivíduo e enfraquece o coletivo; como é que vamos resgatar essa capacidade de regulação do Estado se ela demanda o fortalecimento da dimensão política e o fortalecimento da esfera pública?
E isso numa conjuntura em que as restrições fiscais existem, os contingenciamentos existem, e em que o nosso sistema de proteção social está indo para uma linha que está cobrindo a população, que está aumentando os gastos na área social - pelo menos segundo os últimos dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) -, mas que está, ao mesmo tempo, criando um sistema híbrido de proteção social, assumindo, de um lado, políticas que correspondem a direitos e, de outro, programas que correspondem a semidireitos ou quase direitos. O Programa Bolsa Família não é um direito, porque não está inscrito na Constituição Federal do Brasil, embora politicamente talvez seja difícil extingui-lo no futuro dada a sua apropriação pela sociedade. Mas é um programa de transferência condicional de renda. Qual é uma das suas condicionalidades? Ações na área da saúde para gestantes e crianças. Assim, a saúde, que é um direito, para outro programa torna-se uma obrigação, transformando-se num fator restritivo para a população ter acesso ao benefício. No entanto, não resta dúvida de que a condicionalidade da saúde imprime maior eficácia ao setor propriamente dito. Mais uma vez, como é que enfrento essa dubiedade? Percebem como se está caminhando no fio da navalha? A dubiedade é resolvida da seguinte forma: o não comprimento da condicionalidade significa não à penalização do beneficiário, o que consistiria no pacote do Banco Mundial; mas significa exatamente um questionamento e uma demanda para os governos locais irem atrás da criança que não está vacinada, que não está na escola etc. É muito mais um questionamento para a administração pública do que para a família. Só que isso vem representando o aumento da demanda por serviços, sobretudo nas áreas mais pobres, nos municípios mais pobres. E com isso começa o exercício da bola de neve.
Em síntese, creio que o desafio que se apresenta para nós é: como resgatar e retomar novas modalidades de se pensar a saúde enquanto questão social, enquanto uma questão para a sociedade? Qual a eficácia social que se quer para a saúde? Qual a relação que se vai estabelecer nesse novo projeto da saúde enquanto questão social, hoje, reatualizada entre as dimensões técnica, política e social das políticas de saúde? Talvez esta tenha sido sempre uma "caixa preta" que fomos incapazes de decifrar ao longo da trajetória da reforma da saúde nessas décadas da reforma sanitária. Como articular os níveis macro e micro de análise? Determinantes da saúde é a nova moda temática, e a ela se associa outra: a da humanização e a da glorificação dos sujeitos individuais, descolados da história concreta da sua trajetória na dinâmica social. Como propor, formular e pensar a questão de um projeto para a saúde, para que ela efetivamente tenha um conteúdo democrático? E conteúdo democrático não em termos meramente formais, mas da perspectiva da construção de cidadãos, para que traga consigo a democratização do Estado e o fortalecimento dos sujeitos sociais e da esfera pública.
Tenho me dedicado, nos últimos anos, a discutir as questões sociais e sempre fiquei intrigada com a questão da porta de saída do Programa Bolsa Família. Isso porque, recentemente, verificam-se muitos avanços em políticas distributivas na área social, mas não em políticas redistributivas, porque políticas re-distributivas implicam, efetivamente, reformas estruturais na sociedade, investimentos em políticas estruturais. Então, todas as políticas de transferência de renda e políticas de saúde, entre elas, são políticas que funcionam muito para o combate à pobreza; no entanto, a desigualdade está caindo muito pouco em nossa sociedade, porque seu enfrentamento não se dá por meio de políticas distributivas, o combate à desigualdade está nas políticas de caráter estrutural - e acho que é este o novo desafio que a sociedade brasileira tem pela frente.
E aí eu me deparei com um texto recente do Eduardo Galeano, autor de As veias Abertas da América Latina, em que ele transcreve o depoimento de uma menina pobre, que assim define o pobre: "Pobre é aquele que encontra a porta fechada". Creio que este seja o desafio: como conseguir arrombar essa porta?
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
03 Ago 2009 -
Data do Fascículo
Jun 2009