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O ensino de Antropologia da Saúde na graduação: uma experiência

Teaching medical Anthropology to undergraduate students: an experience

Resumos

Esse texto apresenta uma reflexão sobre o ensino de antropologia na formação de profissionais da saúde a partir da experiência de ministrar uma disciplina em Antropologia da Saúde em nível de graduação na Universidade Federal de São Carlos, em que é parte da grade curricular dos cursos de saúde, estando a cargo do Departamento de Ciências Sociais. A disciplina busca apresentar a teoria e a pesquisa em antropologia e propõe debater pesquisas sobre fenômenos da saúde em antropologia, de modo a melhor introduzir a pesquisa antropológica e, principalmente, a promover uma reflexão sobre a diferença cultural e o exercício profissional em saúde. Essa experiência suscita questões sobre a importância das ciências sociais e humanas, em especial a antropologia, para a formação desses profissionais, e sobre sua aceitação por parte deles, tendo em vista promover uma reflexão no modo como percebem sua própria prática profissional. Discute-se aqui, a partir de uma proposta de programa de curso que tem sido posta em prática há alguns anos, os debates possíveis entre ciências humanas e saúde na graduação e seu impacto na formação de profissionais de saúde.

Antropologia da Saúde; Formação em Saúde; Intermedicalidade


In this paper we develop a reflection on teaching anthropology to health professionals based on the experience of teaching Medical Anthropology to undergraduate students at Universidade Federal de São Carlos (Federal University of São Carlos). The discipline of Medical Anthropology aims to introduce theory and research in Anthropology, and proposes to debate research into health phenomena in anthropology, so as to better introduce anthropological research and, mainly, promote a reflection on cultural differences and professional exercise in the area of health. This experience raises issues concerning the value of social and human sciences, especially anthropology, in the education of those professionals, as well as their acceptance or rejection of these sciences, in order to promote a reflection on the way they perceive their own professional practice. Based on a course that has been taught for some years, we discuss the debates we can propose between the social sciences and the field of health, and their impact on the education of those specialists.

Medical Anthropology; Health Education; Intermedicality


PARTE I - II ENCONTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

O ensino de Antropologia da Saúde na graduação: uma experiência

1 Texto elaborado a partir de apresentação no II Encontro Paulista de Ciências Sociais e Humanas em Saúde, junho de 2009.

1 1 Texto elaborado a partir de apresentação no II Encontro Paulista de Ciências Sociais e Humanas em Saúde, junho de 2009.

Teaching medical Anthropology to undergraduate students: an experience

Clarice Cohn

Doutora em Antropologia Social. Professora do Departamento de Ciências Sociais e do Programa de Pós-Graduação em Antropologia da Universidade Federal de São Carlos - UFSCar. Endereço: Universidade Federal de São Carlos - Via Washington Luís, km 235, CEP 13565-905, Caixa Postal 676, São Carlos, SP, Brasil. E-mail: clacohn@ufscar.br

RESUMO

Esse texto apresenta uma reflexão sobre o ensino de antropologia na formação de profissionais da saúde a partir da experiência de ministrar uma disciplina em Antropologia da Saúde em nível de graduação na Universidade Federal de São Carlos, em que é parte da grade curricular dos cursos de saúde, estando a cargo do Departamento de Ciências Sociais. A disciplina busca apresentar a teoria e a pesquisa em antropologia e propõe debater pesquisas sobre fenômenos da saúde em antropologia, de modo a melhor introduzir a pesquisa antropológica e, principalmente, a promover uma reflexão sobre a diferença cultural e o exercício profissional em saúde. Essa experiência suscita questões sobre a importância das ciências sociais e humanas, em especial a antropologia, para a formação desses profissionais, e sobre sua aceitação por parte deles, tendo em vista promover uma reflexão no modo como percebem sua própria prática profissional. Discute-se aqui, a partir de uma proposta de programa de curso que tem sido posta em prática há alguns anos, os debates possíveis entre ciências humanas e saúde na graduação e seu impacto na formação de profissionais de saúde.

Palavras-chave: Antropologia da Saúde; Formação em Saúde; Intermedicalidade.

ASTRACT

In this paper we develop a reflection on teaching anthropology to health professionals based on the experience of teaching Medical Anthropology to undergraduate students at Universidade Federal de São Carlos (Federal University of São Carlos). The discipline of Medical Anthropology aims to introduce theory and research in Anthropology, and proposes to debate research into health phenomena in anthropology, so as to better introduce anthropological research and, mainly, promote a reflection on cultural differences and professional exercise in the area of health. This experience raises issues concerning the value of social and human sciences, especially anthropology, in the education of those professionals, as well as their acceptance or rejection of these sciences, in order to promote a reflection on the way they perceive their own professional practice. Based on a course that has been taught for some years, we discuss the debates we can propose between the social sciences and the field of health, and their impact on the education of those specialists.

Keywords: Medical Anthropology; Health Education; Intermedicality.

A primeira contratação de uma antropóloga na UFSCar tinha em vista uma proposta de formação humanista na área de saúde, antes mesmo de se constituir um departamento de ciências sociais. Ainda hoje, a disciplina Antropologia da Saúde é parte da grade curricular da formação em saúde, e antropólogos e cientistas sociais compõem conselhos de coordenação de cursos na área de saúde, que têm se mostrado muito receptivos 2 A Profa. Dra. Marina Denise Cardoso foi a responsável pela consolidação desse debate e dessa interlocução na UFSCar, tendo ministrado por muitos anos a disciplina em questão. O desenho do programa aqui comentado é de minha responsabilidade, cabendo a mim também a responsabilidade por todos os equívocos que possa conter. Cada vez menos, porém, essa interface será possível a partir do desenho disciplinar, já que os cursos da saúde na UFSCar têm adotado o método de ensino de resolução de problemas, que abole as disciplinas. Agradeço à Profa. Marina e às alunas que me acompanharam em estágio docente ao longo desses anos, Marina Pereira Novo, Juliana Affonso Coelho, Lidiane Maciel e Christiane Tragante, pela colaboração na prática docente e nas reflexões que aqui trago, assim como aos organizadores e participantes do Encontro de Ciências Sociais e Humanas em Saúde, promovido pela UNIFESP em 2009, um contexto especial de debate em que muito aprendi, em especial a Eunice Nakamura, colega e parceira de pesquisas em antropologia na área da saúde. 2 2 A Profa. Dra. Marina Denise Cardoso foi a responsável pela consolidação desse debate e dessa interlocução na UFSCar, tendo ministrado por muitos anos a disciplina em questão. O desenho do programa aqui comentado é de minha responsabilidade, cabendo a mim também a responsabilidade por todos os equívocos que possa conter. Cada vez menos, porém, essa interface será possível a partir do desenho disciplinar, já que os cursos da saúde na UFSCar têm adotado o método de ensino de resolução de problemas, que abole as disciplinas. Agradeço à Profa. Marina e às alunas que me acompanharam em estágio docente ao longo desses anos, Marina Pereira Novo, Juliana Affonso Coelho, Lidiane Maciel e Christiane Tragante, pela colaboração na prática docente e nas reflexões que aqui trago, assim como aos organizadores e participantes do Encontro de Ciências Sociais e Humanas em Saúde, promovido pela UNIFESP em 2009, um contexto especial de debate em que muito aprendi, em especial a Eunice Nakamura, colega e parceira de pesquisas em antropologia na área da saúde. . Esse parece ser um ambiente especialmente auspicioso para desenvolver um trabalho no sentido de uma formação realmente humanista dos profissionais de saúde pela UFSCar. No entanto, a experiência de ministrar a disciplina nos mostra mais uma vez a dificuldade de realizá-la: a despeito de uma predisposição institucional, os alunos chegam à sala de aula na expectativa de dominar competências sobre técnicas eficazes e universais de alívio e cura. Por isso mesmo, a experiência dessa disciplina revela-se um caso de especial interesse para refletir sobre o valor e os desafios de uma formação em saúde que leve em conta os preceitos e se beneficie dos debates das ciências humanas.

A Disciplina Antropologia da Saúde na UFSCar

A disciplina Antropologia da Saúde tem sido ministrada como disciplina obrigatória para os cursos da área da saúde e como optativa para os de Ciências Sociais e Psicologia. Com isso, forma-se um público heterogêneo em interesses e formação. Em uma mesma sala de aula, temos antropólogos treinados na arte de duvidar do que parece evidente debatendo com colegas que acreditam na ciência, na tecnologia e na superioridade dos conhecimentos e das técnicas da biomedicina. Para o professor, isso é, ao mesmo tempo, um problema e uma solução, e dificulta como torna interessante o trabalho: o professor se vê obrigado a responder às necessidades de todos os grupos, fornecendo a uns a possibilidade de dominar as técnicas, os conceitos e o debate da antropologia sem arrefecer nos outros o debate e a problematização. Na maior parte dos casos, o ambiente heterogêneo contribui para o sucesso dessa formação, já que o debate enriquece a uns e a outros no que não dominam em sua especialidade; mas acrescenta uma dificuldade: a de ter que contar com aulas e debates introdutórios inclusive para alunos que já fizeram os cursos básicos em antropologia. Tenho buscado contornar essa dificuldade apresentando o debate de um modo que possa ser inovador também aos alunos de Ciências Sociais, que na maior parte dos casos tiveram pouca oportunidade de refletir sobre esses temas desse modo e podem, assim, se beneficiar também com essa parte do curso.

Assim, os objetivos da disciplina são duplos: demonstrar como o debate da antropologia (e um olhar antropológico) pode auxiliar na prática e na produção de conhecimentos na área da saúde e demonstrar como o debate sobre fenômenos da saúde se desenvolve na antropologia. Aqui, enfatizarei na reflexão os impactos na formação de profissionais da saúde, apontando apenas o valor desse debate na formação de antropólogos 3 Deixo apontada, também, que a procura por parte de cientistas sociais em formação por essa disciplina é grande e que nosso Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social contempla uma linha de pesquisa voltada a esse campo, de modo que essa formação tem tido continuidade e se ligado a pesquisadores dessa linha. 3 3 Deixo apontada, também, que a procura por parte de cientistas sociais em formação por essa disciplina é grande e que nosso Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social contempla uma linha de pesquisa voltada a esse campo, de modo que essa formação tem tido continuidade e se ligado a pesquisadores dessa linha. .

Os desafios são igualmente múltiplos e sentidos diversamente, dada ainda a heterogeneidade do alunado. Em especial, aqueles que buscam uma formação na área da saúde, mesmo nesse ambiente institucional que enfatiza a formação humanística, têm dificuldade em acatar alguns dos preceitos da antropologia - em especial as turmas que, dada a grade curricular de seus cursos, fazem essas disciplinas em seu primeiro ano de curso, como é o caso da Fisioterapia, em que a aula de antropologia concorre na atenção dos alunos com a de anatomia, em benefício, evidentemente, dessa última. Esses alunos chegam à sala de aula acreditando que os fenômenos da saúde são biológicos, universais e naturais; que a ciência é o único meio, verdadeiro e legítimo, de produção de conhecimentos, inclusive os que revertam em práticas do campo da saúde; que há uma superioridade tecnológica que se cria nesse campo; e, por fim, que a biomedicina detém o privilégio da eficácia no campo da saúde. Tudo isso deve ser muito cuidadosamente problematizado, para que se possa mostrar-lhes ser necessário ouvir melhor a clientela e entender suas percepções, concepções e itinerários terapêuticos, e que a antropologia pode lhes auxiliar nisso. Para isso, proponho desenvolver com eles um exercício de olhar antropológico e uma reflexão a partir de uma série de temas por meio do estudo de pesquisas em antropologia nessa área; mas, principalmente, busco problematizar a cada momento, e continuamente, suas certezas e convicções.

Uma Proposta de Programa

Para que tudo isso possa ser feito, proponho um programa dividido em duas partes - uma primeira, introdutória, e uma segunda baseada em pesquisas antropológicas na área de saúde. Defendo a necessidade de ambas as partes porque acredito que são mais do que complementares, e que uma depende da outra: de nada valeria aprender a conceituar corretamente cultura a partir dos debates contemporâneos da antropologia se o profissional de saúde em formação não se habilitar a colocá-lo em prática na compreensão e no respeito às diversas manifestações culturais, competência que desenvolverá mais especificamente no debate das pesquisas e de seus resultados; por outro lado, pouco valor teria o debate das pesquisas se os alunos não tivessem sido capacitados e instrumentalizados a entender como foram realizadas e a debatê-las a partir do aparato conceitual e analítico que propõem, e que lhe foi apresentado na primeira parte do curso. Assim, propõe-se que o aluno saia dessa disciplina não recitando corretamente que a doença é definida também pelo modo como é percebida por todos os atores envolvidos, mas sendo capaz de compreendê-lo a ponto de colocá-lo em prática em sua atividade profissional. Isso me parece ser de especial importância atualmente, e paradoxalmente talvez, exatamente pelo fato de que o respeito à cultura está em voga, de tal modo que tudo acaba por ser abarcado nesse preceito que é assim esvaziado, e que se chega a algo próximo a achar que devemos compreender que alguns não têm os meios para compreender algo - o verdadeiro oposto do respeito ao outro -, ou que tudo vale, que cada cabeça é uma sentença, ou coisas do gênero. O desafio aqui é ultrapassar o nível em que se afirma a necessidade de respeitar o outro para alcançar de fato esse respeito, despertando os alunos para a percepção desse outro e de sua alteridade, desse outro em sua alteridade e de seu valor.

Assim, a Primeira Parte da disciplina, que denomino Teoria e Pesquisa em Antropologia: uma introdução, tem por objetivo introduzir os estudantes em conceitos chave da antropologia e apresentar-lhes os métodos e as técnicas de pesquisa em antropologia. Inicia-se, de fato, com um exercício de reflexão sobre temas e termos, tais como etnocentrismo, relativismo, respeito à diferença (que, como apontamos, quanto mais entra em moda, menos se pratica, já que normaliza um debate, exigindo assim um tratamento e um cuidado especial em aula), alteridade, diversidade cultural, diferença cultural etc. Tendo sido posto esse debate, conceitos chave da antropologia, como cultura e sociedade, são definidos e problematizados - de modo a instrumentalizar os estudantes a utilizá-los e também, fundamentalmente, de modo a permitir-lhes ir além de essencializações, mostrando-lhes não serem totalidades fechadas e imutáveis, mas modos de viver e perceber o mundo. Textos que apresentam o campo de debate, tais como Canesqui (1994, 2003) e Minayo e Coimbra Júnior (2006), são de grande ajuda neste momento do curso. Em especial, é importante fazer um exercício que permita aos alunos perceber que por diferenças culturais estamos falando de algo diverso do que "crenças", "crendices" etc., modo pelo qual frequentemente leem esses fenômenos. Problematizar o próprio termo crença e referi-lo a diferenças culturais é um modo interessante de fazê-lo.

A metodologia de pesquisa em antropologia é apresentada com o cuidado necessário para demonstrar-lhes ser mais do que uma técnica de coleta de dados. Assim, a etnografia, outro termo que está em moda, é apresentada para além dos instrumentos de pesquisa, mas de modo a fazê-los permitir que, em antropologia, etnografia já é teoria, análise, debate.

Tenho especial apreço pelo texto clássico de Malinowski (1986), em que as técnicas são apresentadas de modo primoroso; porém, ressalto que esse texto, se utilizado em classe, tem de ser problematizado em sua imagem de ciência e na posição do antropólogo em campo, além de em sua percepção da cultura e de sociedade. Ou seja, trabalhá-lo com alunos em classe dá trabalho e exige cuidados; costumo fazê-lo recuperando esse debate em aula, para não sobrecarregar a carga de leitura que para esse alunado já é grande, mas busco dar-lhes referências bibliográficas caso possam se dedicar a esse debate. Recuperar a história da antropologia e o modo como o antropólogo se coloca em campo e valoriza o conhecimento que pode construir sobre o nativo em relação aos conhecimentos do próprio nativo pode ser um importante meio de fazer essa reflexão. O texto de Velho (1978), embora tenha caído em desuso nos cursos de antropologia, tem se mostrado muito útil no debate que propõe sobre a possibilidade e os desafios de se fazer antropologia sobre o que nos parece familiar e nos é próximo - afinal, é esse o exercício que proponho a esses estudantes, distanciar-se e estranhar, problematizar o que lhes é familiar, próximo, e tido por dado. É mesmo interessante que ele venha acompanhado, no debate, pelo texto de Da Matta (1978), com que dialoga, e que permite uma passagem a partir da experiência narrada por Malinowski para a apresentada por Velho. Os debates realizados por Márcio Goldman (2006) e por Favret-Saada (2005) revelam-se importantes para colocar em questão a relação pesquisador-pesquisado e a relação do pesquisador com as concepções do pesquisado. A relação, então, entre a distância que separa e as aproximações possíveis entre pesquisador e pesquisado e entre os profissionais de saúde e sua clientela, no que diz respeito às concepções desta sobre o que é saúde e às suas práticas de saúde, pode então ser feita, promovendo uma reflexão interessante sobre a prática profissional que esses alunos pretendem desenvolver.

Nessa primeira parte, textos clássicos que serão importantes para o debate que se fará depois e que têm se mostrado interessantes para iniciar a reflexão relativista sobre saúde são trabalhados em aulas expositivas e dialógicas. Em especial, textos sobre corporalidade e pessoa, como os de Mauss (1974), acompanhados da introdução à sua obra feita por Lévi-Strauss (1974), e os textos seminais de Duarte - proponho aqui um recente (Duarte, 2003) - permitem iniciar uma reflexão sobre diferentes noções de corpo e uma construção diferenciada da pessoa que as diversas realidades brasileiras irão colocar em jogo continuamente.

Os famosos textos de Lévi-Strauss (1975a e 1975b) são cruciais para introduzir, com o refinamento trazido por ele, a discussão sobre a eficácia da biomedicina e sua exclusividade. Um estudo cuidadoso do canto xamânico e das agências que ele mobiliza auxilia a colocar em debate o modo como em mundos diversos, em diversas concepções de mundo, as etiologias são diversas, os agentes patogênicos e os agentes de cura são diversos, o corpo é diverso... Esse texto (Lévi-Strauss, 1975a), se bem trabalhado, coloca em jogo muitas das questões cujo desenvolvimento será crucial ao longo de todo o curso. O texto em que debate o xamanismo (Lévi-Strauss, 1975b) permite problematizar os agentes de cura e suas múltiplas atuações, assim como coloca em jogo a comparação entre especialidades médicas e outros agentes de cura, na famosa comparação entre o xamã e o psicanalista.

A introdução do debate de Latour sobre a ciência e a modernidade é importante para mostrar como a antropologia tem permitido ver a construção da verdade e do conhecimento científico, de modo a problematizar a posição de verdade única e absoluta e de eficácia em que se coloca a biomedicina na qual se formam esses estudantes (Latour, 2000, 2004, 2009) 4 Embora me referindo constantemente, nunca acrescentei ao programa de curso o debate realizado por Foucault sobre os saberes técnicos, os poderes e os saberes, e as instituições, e grande parte porque ele é debatido em outros momentos dos cursos realizados por esses alunos; assim, se não acrescento aqui esse debate, não é por minorar sua importância, mas porque ele já é debatido em outros momentos, sendo referência conhecida e trazida ao debate por esses alunos. Em outros ambientes institucionais e contextos pode ser importante considerar a inclusão de seu debate no programa do curso. 4 4 Embora me referindo constantemente, nunca acrescentei ao programa de curso o debate realizado por Foucault sobre os saberes técnicos, os poderes e os saberes, e as instituições, e grande parte porque ele é debatido em outros momentos dos cursos realizados por esses alunos; assim, se não acrescento aqui esse debate, não é por minorar sua importância, mas porque ele já é debatido em outros momentos, sendo referência conhecida e trazida ao debate por esses alunos. Em outros ambientes institucionais e contextos pode ser importante considerar a inclusão de seu debate no programa do curso. .

Tendo apresentado os conceitos e a metodologia e tendo problematizado a posição da ciência e do profissional da saúde a partir do debate da antropologia, tem início a segunda parte do programa, que intitulo Pesquisas Antropológicas, e que tem por método pedagógico a apresentação de seminários pelos alunos. Com isso, os alunos se veem debruçando-se em textos etnográficos e articulando debates antropológicos que apresentarão aos colegas em aula. Sempre os asseguro de que os seminários jamais deverão ser a atribuição da responsabilidade da aula aos alunos, mas um convite para que façam uma reflexão antropológica sobre os temas propostos e que a compartilhem com os colegas. Assim, é grande a responsabilidade do professor, que deve auxiliar neófitos em antropologia, ainda se debatendo com suas certezas sobre a eficácia, a verdade e o poder da biomedicina e dos profissionais de saúde, que se veem com realidades muito diversas das que conhecem. Uma mediação e uma (responsável e respeitosa) problematização conjunta com o grupo de estudantes apresentando o seminário e seus colegas são cruciais para que esse exercício seja produtivo a todos e possa, assim, cumprir os objetivos de apresentar aos alunos a antropologia e levá-los a refletir e problematizar suas crenças e convicções. Os temas dos seminários são escolhidos a partir dos interesses das turmas, e podem variar consideravelmente a cada ano; porém, alguns textos clássicos são sempre interessantes e permitem debates especialmente importantes. Parece-me também fundamental aproveitar esse momento para apresentar possibilidades diversas de pesquisa, para além da etnográfica - bibliográfica, histórica, documental etc.

Os textos de Duarte (1986), Montero (1985) e Queiroz (1992) figuram dentre esses clássicos brasileiros. O primeiro permite problematizar com os estudantes a noção de pessoa e de psiqué no trato dos serviços de saúde, já que demonstra que os modelos biomédicos, psicologizantes e sociologizantes devem ser modulados por uma concepção mais holística de pessoa, que é operada pelas "classes trabalhadoras", e que dão ao "nervoso" um poder explicativo de sofrimentos e perturbações que não podem deixar de ser levadas em conta pelos profissionais de saúde. A segunda permite ver de outro modo essa mesma questão da pessoa e de sua integração, ao refletir sobre a umbanda como uma alternativa terapêutica. Esse texto permite aos alunos debater sobre as relações entre classe popular e ciência ou cultura erudita, hegemônica, e problematizá-las, entender a umbanda como um sistema e perceber que a umbanda responde a outras questões que os problemas de saúde colocam às pessoas e que dizem respeito à sua integridade para além do modelo biomédico e fisiológico. O texto de Queiroz (1992), por sua vez, permite que se veja um início de reflexão sobre agentes de cura para além da biomedicina e dos serviços oficiais de tratamento médico, a partir de uma pesquisa em Paulínea na época ainda do SUDS. O debate trazido por Cardoso (1999) com sua pesquisa sobre a medicalização em uma pequena cidade interiorana de Minas Gerais retoma e fecha esses temas todos, sendo uma importante ferramenta para o debate sobre a pesquisa etnográfica desses temas.

A questão da institucionalização é um tema especialmente interessante e fundamental e que gera impactos importantes. Nesse curso, problematizo a partir de um texto curto, e de uma autora razoavelmente desconhecida, mas que se mostrou precioso para o debate. Trata-se do texto de Redko (1991), em que uma pesquisa etnográfica com internas do antigo Juqueri é apresentada para entendermos as representações que elas fazem sobre serem internas e consideradas doentes, assim como as relações que estabelecem entre si, com as funcionárias, com a família e com a instituição. O texto, que se organiza de acordo com as noções de doença mental, corpo, tempo, espaço, relação com o outro, permite recuperar toda a antropologia, em seus temas privilegiados, mas também, e principalmente, uma das mais fortes críticas à institucionalização que conheço, vinda das vozes daquelas que de outro modo jamais seriam ouvidas: mulheres que foram retiradas do convívio social por terem sido diagnosticadas como loucas. Só por isso é uma aula de antropologia, em que se demonstra como perceber o sentido em discursos e práticas que se apresentam, imediatamente, como sem sentido, como insanas.

Um debate sobre aborto, concepção e infanticídio (Rohden, 2003) traz à discussão não só esses temas polêmicos, cujo debate em sala de aula permite demonstrar como essas definições são múltiplas, em negociação e conflito, e indefinidas ainda atualmente, como uma pesquisa em antropologia que é histórica e documental. Mais do que isso, permite debater como uma especialidade médica se forma conformando para si um campo, em que a medicalização, a criminalização e a normatização de práticas estão em jogo e negociação. O livro traz à tona também as questões de gênero em sua relação com a saúde, a fecundação e a fertilidade, com a normatização dos corpos e da sexualidade. Assim também, textos reunidos na coletânea organizada por Leal (1995) complementam o debate, ao colocar em jogo práticas contraceptivas de mulheres de extração rural ou popular do Rio Grande do Sul com aquelas prescritas pelos serviços médicos, em um encontro que frequentemente se mostra ineficaz dado o desencontro de perspectivas e a incapacidade mútua de compreensão.

A saúde indígena é outro desses temas que possibilitam debater questões fundamentais para a percepção da dificuldade em se ouvir o outro no que ele tem a dizer, reconhecendo no que diz algo de verdadeiro e significativo: o encontro com essa alteridade radical é extremamente produtivo para essa reflexão, que deve ser feita com cuidado para que as primeiras impressões se diluam sem cair nas explicações fáceis e reducionistas. Para isso, os textos de Langdon (1994), que acompanha um itinerário terapêutico a partir de um profundo conhecimento etnográfico sobre as etiologias, as práticas terapêuticas, a cosmologia, o xamanismo e os recursos terapêuticos disponíveis à população em questão, os Siona da Colômbia, e o de Novo (2009), em que a formação e a atuação dos Agentes Indígenas no Parque Indígena do Xingu são debatidas também a partir de um conhecimento etnográfico fino, fazem uma bela dobradinha para se perceber o encontro de alternativas terapêuticas do ponto de vista indígena e do sistema de saúde, de modo a revelar, de um lado, as estratégias indígenas em relação à biomedicina e, de outro, a dificuldade dos profissionais, dos serviços e do sistema de saúde em perceber e incorporar as medicinas e as estratégias indígenas.

Os debates, realizados em seminários, como disse, podem ser múltiplos, e esse percurso aqui apresentado é apenas um dos possíveis que almejem alcançar uma compreensão pelos profissionais de saúde em formação do que seja a diferença cultural, da alteridade, e de como respeitá-las em sua prática profissional. Isso se busca promover também com uma proposta de avaliação final que tem uma pesquisa antropológica - um exercício de olhar antropológico, como o chamo - como mote. Assim, os alunos escolhem um tema de pesquisa, que elaboram ao longo do semestre, sob supervisão e orientação, de modo a exercitar uma compreensão de pontos de vista e diferentes práticas. Esse trabalho tem sido muito bem-sucedido, e os alunos têm mostrado grande inventividade na seleção de objetos de reflexão e empenho na pesquisa.

Mas nada disso deve fazer-nos esquecer das dificuldades aqui tantas vezes anunciadas e que também permeiam todo o trabalho e todo o percurso da disciplina, seja qual for a escolha temática de seminários e pesquisa. Afinal, a crença na ciência, na biomedicina, na tecnologia, no profissional de saúde, é difícil de abandonar e, mais ainda, a possibilidade de entender o outro em sua alteridade, difícil de abraçar. De fato, momentos de maior paz fazem ver que a tarefa da disciplina ainda não foi cumprida - quando os alunos não reagem às provocações da diferença cultural e da alteridade na maior parte das vezes não é porque as aceitaram, mas porque não as puderam alcançar e compreender. Essa dificuldade, claro, não tem nada de cognitiva - tem a ver com o que se falava acima, da facilidade aparente em aceitar as diferenças no mundo contemporâneo. Assim, depoimentos bem-intencionados em aula remetem às diferenças em práticas e concepções de saúde, terapêuticas e cuidados a classes sociais, escolaridade, diferenças geracionais ou de contextos socioeconômicos. Essa "sociologização" da explicação acaba por anular a diversidade e, no limite, recoloca ao profissional de saúde sua missão civilizatória e humanitária de normatizar práticas e corpos e de esclarecer.

Nesses momentos, é importante trazer ao debate questões polêmicas e trajetórias terapêuticas. Por exemplo, uma aluna trouxe ao debate o caso de um rapaz que, Testemunha de Jeová, ao se recuperar da cirurgia a que foi submetido contra a sua vontade, na qual necessitou de transfusão de sangue, suicidou-se: qual a medida e o critério para as decisões clínicas nesses momentos? Onde está a omissão de socorro em casos como esse? Qual a medida ética? Ou, quando se fala de populações indígenas, em que os cuidados de puericultura e preventivos quase nunca são reconhecidos pelos profissionais da saúde, como é o caso que conheço mais de perto, dos Xikrin (Cohn, 2000), em que as mães se recusam a deixar seus bebês pernoitando na enfermaria para tomar soro, já que, sendo local onde muitas mortes ocorreram, é também local em que estarão especialmente vulneráveis aos espíritos dos mortos que ali podem rondar, e que podem capturar seu karon, seu duplo, separando-o do corpo de modo a fazê-lo por fim fenecer: por que não aplicar o soro em casa, em casos como esse, em que a enfermaria está a no máximo 500 metros da casa, se não por uma incapacidade de reconhecer a legitimidade dessa decisão e seu caráter de cuidado, prevenção e puericultura? Ou os casos sempre polêmicos de contracepção, aborto e infanticídio, que, ainda hoje, colocam em jogo concepções de vida - onde começa? A partir de quando sua integridade é ameaçada? - e a responsabilidade pela decisão sobre sua legitimidade - em que casos serão justificáveis e aceitáveis? E quem decide: a mãe, o juiz, o médico? Porque, como lembra Mariza Corrêa em apresentação do livro de Rohden (2003) acima citado, não é que os médicos não apreciem a arte de enganar a natureza - é que eles não gostam quando outros a fazem.

Assim, as explicações fáceis que tomam, ou tornam, desigualdades socioeconômicas, baixa escolaridade, extração, geração, religiosidades, e remetem a crendices, crenças etc., têm sempre que ser problematizadas e colocadas em questão, para que se abracem compreensões mais finas, que deem conta da diversidade, da lógica e da legitimidade desses modos outros de perceber o sofrimento, a dor, a perturbação e atuar sobre eles. De modo a perceber, enfim, que não há crendices nesse mundo, mas concepções legítimas, e todas elas a seu modo belas, e que a única crença cega com que se lida nesse caso é a da eficácia única da ciência e da medicina - que se deve desarmar para se conhecer de fato as razões do outro, sua concepção de saúde e de integridade da pessoa que se busca reconstituir.

Nessa disciplina, como se percebe, se caminha sempre na corda bamba. O risco de errar é sempre presente e grande. Qualquer mau passo gera mais incompreensões, qualquer vacilo pode dar em outra explicação fácil, em mais uma versão da missão civilizatória do profissional de saúde. Mas, quando bem-sucedida, pode aproximar - porque colocar em pé de igualdade talvez seja esperar demais, mas nunca custa, também, manter as esperanças - médicos e clientela, tornando-os aliados, não mais inimigos, e compreensíveis mutuamente. Se um dia isso se realizará em um país tão fortemente eivado pelo preconceito, pela intolerância, não se sabe ainda ao certo; mas certamente vale a tentativa.

Recebido em: 20/09/2010

Aprovado em: 04/10/2010

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  • 1
    Texto elaborado a partir de apresentação no II Encontro Paulista de Ciências Sociais e Humanas em Saúde, junho de 2009.
  • 2
    A Profa. Dra. Marina Denise Cardoso foi a responsável pela consolidação desse debate e dessa interlocução na UFSCar, tendo ministrado por muitos anos a disciplina em questão. O desenho do programa aqui comentado é de minha responsabilidade, cabendo a mim também a responsabilidade por todos os equívocos que possa conter. Cada vez menos, porém, essa interface será possível a partir do desenho disciplinar, já que os cursos da saúde na UFSCar têm adotado o método de ensino de resolução de problemas, que abole as disciplinas. Agradeço à Profa. Marina e às alunas que me acompanharam em estágio docente ao longo desses anos, Marina Pereira Novo, Juliana Affonso Coelho, Lidiane Maciel e Christiane Tragante, pela colaboração na prática docente e nas reflexões que aqui trago, assim como aos organizadores e participantes do Encontro de Ciências Sociais e Humanas em Saúde, promovido pela UNIFESP em 2009, um contexto especial de debate em que muito aprendi, em especial a Eunice Nakamura, colega e parceira de pesquisas em antropologia na área da saúde.
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    Deixo apontada, também, que a procura por parte de cientistas sociais em formação por essa disciplina é grande e que nosso Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social contempla uma linha de pesquisa voltada a esse campo, de modo que essa formação tem tido continuidade e se ligado a pesquisadores dessa linha.
  • 4
    Embora me referindo constantemente, nunca acrescentei ao programa de curso o debate realizado por Foucault sobre os saberes técnicos, os poderes e os saberes, e as instituições, e grande parte porque ele é debatido em outros momentos dos cursos realizados por esses alunos; assim, se não acrescento aqui esse debate, não é por minorar sua importância, mas porque ele já é debatido em outros momentos, sendo referência conhecida e trazida ao debate por esses alunos. Em outros ambientes institucionais e contextos pode ser importante considerar a inclusão de seu debate no programa do curso.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      11 Abr 2011
    • Data do Fascículo
      Mar 2011

    Histórico

    • Recebido
      20 Set 2010
    • Aceito
      04 Out 2010
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