Open-access Agentes comunitárias de saúde e a atenção à saúde sexual e reprodutiva de jovens na estratégia saúde da família

Community health agents and care provided for youths' sexual and reproductive health in the family health strategy

Resumos

As DST/HIV e a gestação não-planejada entre jovens têm exigido o incremento da atenção em saúde sexual e reprodutiva, desafiando a formação profissional tradicional, os processos de trabalho e gestão na atenção primária. Este estudo etnográfico (observação e entrevistas) foi realizado em duas unidades básicas de município turístico do Estado do Rio de Janeiro, focalizando o trabalho das agentes comunitárias de saúde. As agentes abordavam a sexualidade jovem, principalmente das garotas; orientavam o fluxo de ações e influenciavam as estratégias de prevenção e cuidado, enfatizando "gravidez precoce" e "promiscuidade sexual". A saúde de jovens não era considerada integralmente, embora o trabalho das agentes constituísse uma tecnologia de processo com grande potencial na atenção à saúde sexual de jovens. A juventude se beneficia da atuação dessas profissionais, que podem ter seu saber prático mais valorizado. Sugere-se a formação em abordagens baseadas nos direitos humanos e na construção social da sexualidade.

Atenção Primária; Adolescentes; DST; AIDS; Prevenção; Direitos Sexuais e Reprodutivos


Unwanted pregnancies and STD/AIDS among young girls and boys have demanded the enhancement of reproductive and sexual health care, challenging the traditional professional education, the working processes and the management of primary care. METHODS: Ethnographic study (observation and interviews) conducted in two primary health care units of a touristic city in the State of Rio de Janeiro, focusing on the work of the Community Health Agents. RESULTS: The Agents did approach youth sexuality, mainly the girls'; they guided the actions flow and influenced the prevention and care strategies , emphasizing "early pregnancies" and "sexual promiscuity". Young people's health was not approached comprehensively, although the Agents' work constitutes a process technology with great potential for youths' sexual health care. CONCLUSION: Young people benefit from the Agents' professional practices; the Agents' practical wisdom should be valued and their education should include human rights and social construction approaches to health and sexuality.

Primary Health Care; Adolescents; STD; AIDS; Prevention; Sexual and Reproductive Rights


ARTIGOS

Agentes comunitárias de saúde e a atenção à saúde sexual e reprodutiva de jovens na estratégia saúde da família1

Community health agents and care provided for youths' sexual and reproductive health in the family health strategy

Renata BellenzaniI ; Alessandro de Oliveira dos SantosII ; Vera PaivaIII

IProfessora do Curso de Psicologia da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul – Campus Paranaíba. Pesquisadora do NEPAIDS-IP/USP. Endereço: Rua Generoso Ponce, 2005, CEP 79500-000, Paranaíba, MS, Brasil. E-mail: renatabellenzani@hotmail.com

IIProf. Dr. Departamento de Psicologia Social e do Trabalho - IP e NEPAIDS-USP. Endereço: Av Prof. Mello Moraes, 1721, CEP 05508-030, São Paulo, SP, Brasil. E-mail: alos@usp.br

IIIProf. Livre Docente. Departamento de Psicologia Social e do Trabalho – IP e NEPAIDS-USP. Endereço: Av Prof. Mello Moraes, 1721, CEP 05508-030, São Paulo, SP, Brasil. E-mail: veroca@usp.br

RESUMO

As DST/HIV e a gestação não-planejada entre jovens têm exigido o incremento da atenção em saúde sexual e reprodutiva, desafiando a formação profissional tradicional, os processos de trabalho e gestão na atenção primária. Este estudo etnográfico (observação e entrevistas) foi realizado em duas unidades básicas de município turístico do Estado do Rio de Janeiro, focalizando o trabalho das agentes comunitárias de saúde. As agentes abordavam a sexualidade jovem, principalmente das garotas; orientavam o fluxo de ações e influenciavam as estratégias de prevenção e cuidado, enfatizando "gravidez precoce" e "promiscuidade sexual". A saúde de jovens não era considerada integralmente, embora o trabalho das agentes constituísse uma tecnologia de processo com grande potencial na atenção à saúde sexual de jovens. A juventude se beneficia da atuação dessas profissionais, que podem ter seu saber prático mais valorizado. Sugere-se a formação em abordagens baseadas nos direitos humanos e na construção social da sexualidade.

Palavras chaves: Atenção Primária; Adolescentes; DST/AIDS; Prevenção; Direitos Sexuais e Reprodutivos.

ABSTRACT

Unwanted pregnancies and STD/AIDS among young girls and boys have demanded the enhancement of reproductive and sexual health care, challenging the traditional professional education, the working processes and the management of primary care.

METHODS: Ethnographic study (observation and interviews) conducted in two primary health care units of a touristic city in the State of Rio de Janeiro, focusing on the work of the Community Health Agents.

RESULTS: The Agents did approach youth sexuality, mainly the girls'; they guided the actions flow and influenced the prevention and care strategies , emphasizing "early pregnancies" and "sexual promiscuity". Young people's health was not approached comprehensively, although the Agents' work constitutes a process technology with great potential for youths' sexual health care.

CONCLUSION: Young people benefit from the Agents' professional practices; the Agents' practical wisdom should be valued and their education should include human rights and social construction approaches to health and sexuality.

Keywords: Primary Health Care; Adolescents; STD/AIDS; Prevention; Sexual and Reproductive Rights.

Introdução

Estima-se que chega a 34 milhões a população brasileira entre 15 a 24 anos (IBGE, 2008)2. Assegurado pelo artigo 11º do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), o direito à assistência em saúde de adolescentes entre 12 a 18 anos, que, como preconiza o Sistema Único de Saúde (SUS), deveria estar sendo garantida em nível local, não tem sido suficiente ou adequadamente desenvolvida. Ferrari e colaboradores (2008), ao estudarem o Programa de Saúde da Família em Londrina-PR, observaram que os adolescentes são atendidos em situações pontuais de tratamento de doença ou em função da gravidez; as garotas são mais atendidas do que os rapazes, que geralmente são consultados pelos médicos (raramente por enfermeiros) e pouco incluídos em ações de prevenção; há uma percepção geral de que é difícil construir vínculo com adolescentes e que outros segmentos são prioritários.

A gravidez na adolescência, por sua vez, é representada nos discursos técnicos e científicos como um "perigo", um problema social que interrompe planos de vida e projetos de felicidade. Heilborn (2006) afirma que essa construção sociocultural se dá em circunstâncias históricas e sociais específicas, marcadas por argumentações médicas, psiquiátricas e psicológicas, e por análises sociais que associam a ocorrência da gravidez adolescente com a pobreza, baixa escolaridade e acesso restrito aos serviços de saúde. Segundo revisão da autora, conceber a gravidez na adolescência como não desejada a priori indica desconsideração quanto às mudanças dos costumes sexuais no Brasil, à medida que é crescente a aceitação da sexualidade feminina pré-conjugal e do relacionamento sexual entre jovens antes do casamento, como apontam as pesquisas nacionais sobre sexualidade.

Estudos de demografia e saúde apontavam, até o final da década de 1990, um aumento da taxa de fecundidade adolescente no Brasil, Bolívia e Haiti. Entretanto, estudos mais recentes indicam uma mudança no Brasil, a partir de 2000, com a diminuição da fecundidade específica no grupo considerado adolescente (Heilborn, 2006). As jovens com maior renda, que dispõem de outras oportunidades além da maternidade, tendem a postergar o início da vida reprodutiva e têm mais acesso aos meios contraceptivos. Ou seja, coeficientes de fecundidade de jovens de uma mesma faixa etária variam conforme sua inserção social. Em 1996, por exemplo, as adolescentes mais pobres apresentavam uma fecundidade de 128 por mil mulheres, enquanto para as mais ricas este coeficiente era de 13 por mil mulheres (Villela e Doreto, 2006).

Na atenção à saúde sexual dos jovens a prevenção das doenças sexualmente transmissíveis (DST) ainda é um desafio. Segundo o Boletim Epidemiológico de 20093, entre 13 e 19 anos, o número de casos de aids entre jovens é maior entre as mulheres do que entre os homens, desde 1998, com 8 casos em meninos para cada 10 em meninas. Entre os de 20 a 24 anos, os casos se dividem de forma equilibrada entre os gêneros. De 1991 a 2008, a faixa de 13 a 24 anos sofreu um aumento na proporção de casos de aids em relação ao universo total dos casos4. Para os homens dos 13 aos 24 anos, a principal forma de transmissão é a homossexual, o que nos incita a refletir sobre o preparo dos profissionais de saúde para acolher rapazes que fazem sexo com rapazes e respeitar seus direitos sexuais e à saúde integral5.

O impacto da epidemia da aids na juventude, portanto, tem exigido o fortalecimento da rede de saúde e a capacitação de equipes para a prevenção das DST e da gravidez indesejada. O uso de preservativo na primeira relação sexual entre os rapazes aumentou de 45% (1998) para 68,3% (2005) e de 51% para 62,5% entre as garotas (Paiva e col., 2008). Os dados da PECAP de 20086 apontam que a faixa etária de 15 a 24 anos é a que mais usa preservativo, em todas as situações (primeira relação sexual, com parceiro casual, com qualquer parceiro e com parceiro fixo). Esse estudo indica que 41,4% dos jovens já pegaram preservativo gratuitamente nos últimos 12 meses, sendo que 37,7 dos que o fizeram obtiveram o insumo nos serviços de saúde, um número expressivo e que vem aumentando, mas ainda é insuficiente.

Por outro lado, pouco se situa esse debate na perspectiva do incremento das ações cotidianas de prevenção e do cuidado em saúde sexual a partir dos serviços de saúde, em especial os da atenção primária e com base nas tecnologias de atendimento mais adequadas e promissoras para se promover o "direito à prevenção". (Paiva e col., 2006). As tecnologias de processo têm sido definidas (Novaes, 2000; 2004) como modos de organizar o trabalho em saúde, e as ações dos profissionais que incluem a dimensão comunicacional e relacional, práticas discursivas entre trabalhadores e entre trabalhadores e usuários, também referidas na literatura como tecnologias "não materiais" (Nemes, 2001). Essas tecnologias se materializam em processos de trabalho com intencionalidades relativamente estruturados e articulados (Novaes, 2006).

Segundo Novaes (2006),

as tecnologias de processo presentes na atenção à saúde apresentam características variadas, incluindo desde procedimentos com componentes técnicos mais estruturados, como por exemplo, os cirúrgicos, até processos de cuidado, educacionais e de gestão, fortemente apoiados em outros referenciais, para sua legitimação (p. 136-137).

As tecnologias de processo se articulam às tecnologias de produto tradicionais, tais como equipamentos, medicamentos, materiais e insumos, no caso da saúde sexual, ao preservativo, aos medicamentos para tratamento das DST, os exames ginecológicos ou urológicos e aos métodos contraceptivos, entre outros. Ou seja, o manejo das chamadas tecnologias de produto "somente realizam seu potencial enquanto procedimento diagnóstico ou terapêutico na atenção à saúde quando se inserem em tecnologias de processo, que, em princípio, também devem estar baseadas em conhecimentos científicos [...]" (Novaes, 2006, p. 136).

O Programa Saúde da Família (PSF)7, concebido como estratégia de reorganização da Atenção Básica no SUS desde 1994, tem sido reconhecido como capaz de desenvolver ou ampliar a cobertura no que concerne às estratégias de prevenção e promoção de saúde (Brasil, 2006a), inclusive da saúde sexual e reprodutiva. Diversos procedimentos ancorados em tecnologias de processo já são desenvolvidos no PSF com potencial de promover a saúde sexual, tais como oferta do exame de Papanicolau, atendimentos da enfermagem às mulheres, planejamento familiar e pré-natal, teste de gravidez, grupos educativos, visitas domiciliares, reuniões com a comunidade, palestras em escolas e em espaços da comunidade e ações intersetoriais (Bellenzani, 2008). Atividades preventivas que valorizam o protagonismo jovem têm surgido como a educação entre pares no aconselhamento pré e pós-teste anti-HIV (Calazans e col., 2006; Paiva e col., 2006).

Por outro lado, as tecnologias de processo são raramente tomadas como objeto de análise para aferir sobre sua maior ou menor pertinência ao cenário sociocultural e ao contexto da ação, aos grupos sociais a que se destinam, à promoção da equidade e da integralidade ou, ainda, ao respeito aos direitos humanos. Poucos estudos focalizam aspectos como efetividade, legitimidade social ou equidade, três dos sete pilares da qualidade descritos por Donabedian (1990), relevantes para avaliar ações ou serviços.

Cruz e colaboradores (2007) realizaram uma revisão de artigos que abordam a avaliação de programas de prevenção de DST/aids no período de 1990 a 2005. As autoras observaram que a avaliação foi utilizada principalmente para prestação de contas; poucos estudos contemplavam a avaliação de processos de trabalho ou discutiam a sua relação com os contextos.

Este artigo busca contribuir nessa direção, apresentando uma reflexão crítica sobre o processo de trabalho de agentes comunitários de saúde, categoria profissional da equipe de saúde da família que mais trabalhava junto ao segmento adolescente e jovem estudado em projeto maior. Esse recorte do estudo pretende contribuir com sugestões em relação à educação em saúde/formação profissional dos agentes para o trabalho em saúde sexual e reprodutiva de jovens e para a sustentabilidade de um modelo de atenção verdadeiramente comunitário, segundo a Estratégia de Saúde da Família (ESF).

Método

Este estudo, de caráter descritivo e qualitativo, to­mou como objeto de análise dados coletados no projeto de pesquisa desenvolvido entre 2005 e 2007: "Cenários de vulnerabilidade no contexto do turismo: DST/Aids, mercado do sexo e uso de álcool e outras drogas em comunidades caiçaras do litoral sul de São Paulo e sul do Rio de Janeiro" (CNPq: 475790/2004-9).

Analisaremos os dados colhidos no município turístico do litoral sul do Estado do Rio de Janeiro, onde realizamos observação etnográfica de locais de sociabilidade jovem e de interação com turistas, dos serviços de atenção primária e 10 entrevistas semi-estruturadas com médicos, enfermeiros, auxiliares de enfermagem e agentes comunitárias de saúde que integravam duas equipes de saúde da família do PSF. As equipes integravam duas unidades básicas de saúde escolhidas entre as sete que compõem a rede local de atenção primária à saúde. A escolha dessas unidades se deu em função de características como maior vulnerabilidade social dos usuários dos bairros de cobertura, maior número de adolescentes e jovens cadastrados, presença de alguns "casos" emblemáticos citados por gestores locais (por exemplo, jovens que vivem com HIV) e alta prevalência de DST, segundo o banco de dados da Vigilância Epidemiológica local. No âmbito deste estudo também foram entrevistados 12 jovens de comunidades caiçaras (identidade cultural de comunidades de pescadores que viveram isolados por séculos a beira-mar nesse litoral, com forte presença indígena e quilombola) para se compreender como o contexto sociocultural de uma cidade cuja economia passa a depender do turismo ampliava sua vulnerabilidade às DST/HIV e gestação não planejada, dados já analisados em outro artigo (Bellenzani e col., 2008), assim como os desafios dessa realidade singular para os programas locais.

A reflexão crítica apresentada neste artigo focaliza especialmente as seis entrevistas com agentes comunitárias de saúde, todas mulheres. As entrevistas em profundidade abordaram os seguintes temas, organizados na forma de um roteiro: experiência geral de atuação na estratégia saúde da família; percepção sobre a comunidade e seus problemas de saúde; concepções sobre adolescência, juventude e o reconhecimento das necessidades de saúde dos jovens; concepções sobre sexualidade, saúde sexual e reprodutiva, DST, gravidez, violência sexual; e, principalmente, sua experiência profissional, ou seja, de que modo essas percepções e concepções eram articuladas às suas ações e atividades. Esses temas foram explorados com todos os demais entrevistados no projeto. A transcrição das falas será valorizada para auxiliar o leitor na aproximação com o cotidiano dos entrevistados, nos seus termos.

A análise de seu conteúdo é emblemática da síntese dessa abordagem feita por Minayo (2004). A análise focalizou (1) as interações sociossanitárias que as agentes estabelecem com os/as adolescentes e jovens na atenção às suas experiências e demandas sexuais, e na promoção dos cuidados em saúde sexual e reprodutiva; e (2) as concepções dos profissionais em relação ao fluxo de ações no campo da sexualidade junto a essa clientela. O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética do Instituto de Psicologia da USP. Os nomes atribuídos aos informantes são fictícios.

As falas das agentes sobre seu cotidiano serão analisadas à luz das contribuições conceituais de pesquisadores da saúde que discutem acerca das tecnologias de processo (Nemes, 2001; Novaes, 2000, 2004). A análise foi também informada pela abordagem construcionista que concebe a sexualidade como fenômeno intersubjetivo e psicossocial, implicado na história e no cenário sociocultural local, especialmente nas relações de gênero e na organização de políticas e discursos normativos que definem o sistema sexo/gênero (Paiva, 2008; Parker e Aggleton, 2007). No caso da juventude, em especial no âmbito da perspectiva construcionista, são adotadas tecnologias de processo que ambicionam mais que uma intervenção para "o" desenvolvimento sexual saudável e para mudanças no sentido de "comportamentos e atitudes saudáveis"; são valorizados processos que permitam a colaboração, tomando cada participante da ação em saúde como sujeito da sexualidade e do direito à saúde integral, autônomo, e que contribuam para a compreensão densa da pessoa e sua comunidade sobre o contexto social e intersubjetivo no qual suas cenas sexuais ocorrem.

O campo construcionista escolhe analisar o processo saúde-doença no quadro da vulnerabilidade e dos direitos humanos, quadro que ampliou o paradigma tradicional restrito à "história natural da doença" (Paiva e França-Jr, 2010). Os quadros da vulnerabilidade e construcionista tratam também da "história social da doença", dos seus determinantes sociais concebidos como produção sociocultural e programática do adoecer. Processos de trabalho em saúde, portanto, são co-produtores do processo saúde-doença.

Resultados e Discussão

As Agentes Comunitárias de Saúde Reconhecem as Necessidades em Saúde Sexual da População de seu território, Embora não as Priorizem

Um dos primeiros aspectos que chamou atenção na análise das entrevistas com as agentes comunitárias de saúde é que elas estão abordando a comunidade a que também pertencem com grande intimidade. A interpretação que desenvolvem sobre as necessidades de saúde, com base nas conversas com os moradores da comunidade, confere ao campo da sexualidade um status menos relevante, quando comparado às outras necessidades sociais e de saúde que são percebidas como "urgências", nos termos dos entrevistados: o abuso de álcool e de outras drogas, a pobreza, as condições habitacionais precárias, fenômenos destacados quando as equipes de PSF estão nos bairros de maior vulnerabilidade social. Era corrente entre as agentes a noção de que eram "tantas as necessidades e as faltas" para além do campo da saúde, que o lugar ocupado pela saúde sexual não era, definitivamente, um lugar de prioridade. Vejamos o trecho a seguir:

Eu fui na casa de uma pessoa, ela tem 8 filhos [...] é uma pessoa que a gente procura instruir, procura ajudar, existe o planejamento familiar, mas essas pessoas não querem saber (...) não querem saber de usar uma camisinha ou de tomar uma pílula [...]. Não existem outros problemas, só a gravidez! Para elas não existe a AIDS! Não existe DST, só a gravidez! [...] Como falta tanta coisa, falta essa orientação para que essas pessoas tomem os seus devidos cuidados para ter uma saúde, para ter uma vida sexual ativa legal. Falta tudo isso, falta orientação, falta muita coisa [...] (Maria).

Segundo a mesma lógica, os jovens não constituíam a principal fonte de preocupação dos profissionais, porque eram "tantas as necessidades de saúde" de outros grupos populacionais que a atenção era dirigida prioritariamente aos pacientes hipertensos, diabéticos, idosos, gestantes e aos bebês. Somente quando as adolescentes tornavam-se gestantes passavam a grupo prioritário, aspecto que discutiremos mais adiante.

As agentes comunitárias, de modo geral, associaram a promoção da saúde sexual e reprodutiva com a prática da busca ativa das mulheres adultas para a realização do Papanicolau, com o oferecimento de laqueaduras ou vasectomias, com as orientações sobre como evitar gravidez não desejada e se prevenir das DST. A principal atribuição do PSF nessa área foi definida pelas informantes como "fazer prevenção", "dar orientações" e "informar a população". Na fala de Lídia, agente: "O papel do PSF é orientar, né? Trazer essas pessoas para a gente estar orientando o que pode acontecer."

As dificuldades das profissionais na decodificação das queixas e na abordagem da sexualidade e da saúde sexual resultavam das próprias características do trabalho, definido como assistencial e generalista. Por outro lado, as representações sobre a sexualidade, marcadas por sentidos e valores pessoais e não por sua formação profissional (Paiva, 2008), destacavam-se nas narrativas das agentes pelo tom "corriqueiro" que elas imprimiam à abordagem dessas questões junto à população, em especial junto aos/às jovens. Elas, de fato, identificavam situações, faziam escutas, colhiam dados, efetuavam orientações, sugeriam a realização do exame "preventivo" ou a consulta ginecológica e levavam as informações coletadas ao conhecimento dos técnicos das equipes. As experiências sexuais dos/das jovens interpelavam as agentes cotidianamente, desencadeando reflexões acerca do seu processo de trabalho e das tecnologias a serem implementadas por elas.

Eu acho que as meninas novas que se envolvem com rapazes não se previnem, não usam camisinha, "é" muitas meninas com NIC I, NIC II [...] A gente está querendo fazer palestras nas escolas para falar sobre isso [...]. A gente chama para colher o preventivo, aí elas vêm, de 30 a 60 dias chega o resultado. E quando chega o resultado, a enfermeira vai identificar e a maioria está com NIC III, NIC II (...) A gente está com muita gestante na faixa de 13 a 16 anos, grávidas e com essas doenças. (Lidia).

A visão dessa profissional, os conhecimentos sobre a comunidade onde atua e sobre suas famílias, a interpretação acerca do que era (ou não) necessidade de saúde têm implicação direta nas estratégias de prevenção planejadas pelas equipes de PSF.

A partir de conversa minha, ela (uma adolescente) já tinha falado para mim que queria marcar um preventivo. Eu perguntei se ela era virgem. Aí ela falou que não e disse o tempo que ela tinha começado a ter relação. Eu falei: "vamos agendar sim [...]". Na época ela devia ter uns 16 anos [...] ela falou que estava sentindo umas dores quando tinha relação e então ela queria fazer um preventivo. Aí foi aonde a gente (equipe) descobriu que ela estava com NIC II [...]. Fomos descobrindo o que tá acontecendo com as meninas, as DST, tudo, não só esta, assim, várias... Vendo o que a equipe precisa fortalecer mais. (Marisa).

A proposta de incluir agentes comunitários de saúde (ACS) na atenção básica se baseia justamente na noção de que os profissionais têm vínculo com a sua comunidade (Brasil, 2006a), o que facilitaria a comunicação com a população e seu acesso ao sistema de saúde. Os profissionais de medicina e enfermagem, também entrevistados no estudo, reconheciam e qualificavam como imprescindível ao trabalho assistencial a "conversação" das agentes com as pessoas e o potencial disso se converter em maior aproximação entre usuários, equipe e serviço de saúde. Valorizavam o potencial das agentes em construir vínculo e mobilizar as pessoas e grupos na promoção da saúde, facilitando, em tese, a abordagem da sexualidade – seja pela divulgação do (exame) "preventivo" (Papanicolau), seja pelas orientações sobre prevenção das DST.

No entanto, confiança e vínculo não diminuem as dificuldades, tampouco criam aptidão pessoal ou segurança do profissional para abordar assuntos ligados à sexualidade. Cinco das seis agentes entrevistadas relataram desconforto em abordar queixas sexuais durante as visitas domiciliares, e abordar queixas é atribuição central desse profissional e sua tecnologia de processo mais usual:

[...] doenças sexualmente transmissíveis a gente trata, mas isso depende muito das mulheres, porque elas que têm que vir para a gente e dizer o que elas têm, né? Eu não posso chegar na casa dela e falar: "_ você está com corrimento? (Marisa)

[...] não se fala deste assunto do mesmo modo que se fala da hipertensão do paciente. (Ivana)

Há Desigualdade na Oferta de Atenção em Saúde Sexual entre Garotas e Rapazes

As agentes comunitárias de saúde entrevistadas associaram saúde sexual a questões do universo feminino e da saúde da mulher, confirmando tendência descrita por Figueiredo (2005) de "invisibilidade" dos rapazes pelos profissionais e serviços de saúde. Somente uma agente mencionou que os jovens do sexo masculino a procuravam para tirar dúvidas sobre DST e métodos contraceptivos ou solicitar tratamento. Outra agente descreveu como era sua visita domiciliar, o que permite visualizar as diferenças no acesso às ações de prevenção e ao tratamento das DST entre garotas e rapazes.

Bom, os homens nunca me falaram nada [...]. Eu sei de casos que tiveram por que vieram ao médico direto. O médico dava o remédio, depois pedia para "mim" voltar, porque essa é uma parte que tem que ter notificações. Eu ia até a casa, procurava conversar com a mulher. Muitas das mulheres, depois de muito tempo de confiança, conversavam comigo na frente deles, acabavam dizendo que "estava" melhorando: "a ferida melhorou, a coceira melhorou". Mas nunca eles chegaram e falaram: "eu estou com coceira, dá para marcar um médico para mim". Já as mulheres, normal: "estou com corrimento, dá para marcar um preventivo, uma consulta?", "Eu tive relação ontem e doeu, tem como marcar o médico para ver o que é?" Sempre foram abertas quanto a isso. Na visita a gente entra, vê a ficha daquela pessoa e sabe o que ela tem. Dali eu já faço o meu questionário: "Sr. João, está bem a sua pressão?", "Dona Maria, fez o preventivo esse ano já?". E quando a gente descobria HPV, essas coisas, a gente tinha mais um certo cuidado, a gente começava a colher o preventivo de 6 em 6 meses, para estar controlando aquela ferida [...] se precisar ir para o hospital do câncer, a gente manda e assim vão fazendo o tratamento delas [...]. (Marisa)

Os rapazes enfrentam mais dificuldade de acesso às ações de prevenção e tratamento e aos serviços, se comparados às garotas. Nota-se nesse relato que a função da rede básica como "porta de entrada" do usuário, no caso um rapaz, para um sistema hierarquizado, é mediada pelo desempenho da agente.

Rapazes chegam para gente, pedem para marcar médico, uma consulta. Ele chegou para mim e pediu: "Tem como você marcar uma consulta, porque eu estou com uma doença que eu peguei, não sei se foi de alguma mulher, de alguma menina, estou mal mesmo?" Falei: "Você vai, a gente fica tentando marcar médico para fora". Porque aqui tem que ser tudo encaminhado para fora. (Lídia)

O baixo acesso e o comprometimento da resolutividade quando há necessidade do médico especialista, por exemplo, marcam a perspectiva das agentes. Quando as garotas, por sua vez, relatam sintomas de DST, as agentes têm disponível um fluxo mais ágil dentro do SUS e da UBS, uma vez que podem ser examinadas pela enfermeira com formação em saúde da mulher ou lhes é oferecido o Papanicolau. No caso dos homens, não é uma prática amplamente instalada de que médico/a de família e enfermeiro/a façam avaliação clínica. Em geral, os homens são encaminhados sem avaliação prévia do generalista para consulta de especialidade, no caso urologista, cujo acesso tende a ser significativamente mais difícil pelo SUS.

O "Problema" da Gravidez na Adolescência

Quando questionadas acerca dos problemas de saúde mais frequentes entre adolescentes de 11 a 17 anos e jovens de 18 a 24 anos, as agentes citam, além da alta prevalência de DST, a gravidez não planejada entre mulheres adolescentes solteiras menores de idade, nomeada como gravidez na adolescência, e o uso abusivo de álcool e outras drogas. A gravidez na adolescência é o "mote" tanto para a realização de ações de prevenção como de assistência, no caso o acompanhamento em pré-natal das gestantes jovens.

Eu tenho um grande número de adolescentes, sim. [...] conheço muito bem a população [...] mais fácil acesso de conversar certos tipos de assuntos com eles. [...] Quando perdem a virgindade, eu falo: "Vamos fazer um preventivo, vamos tomar o remédio, senão daqui a pouco você vai ficar grávida". Sempre procuro mostrar o problema antes de acontecer. A menina me procurou e disse: "Eu perdi a virgindade, mas minha mãe não sabe, eu preciso fazer um preventivo". Eu falei: "Tudo bem, pode deixar que eu vou marcar, mas não vou falar para sua mãe que você não é mais virgem". E com isso eu fui criando um vínculo com eles. Então com os adolescentes eu tenho a maior liberdade na minha área. (Luciana)

Com exceção das mulheres jovens, em torno de 20 a 24 anos, casadas e mães, a presença do segmento adolescente e jovem nos serviços foi descrita como baixa. Por outro lado, se geralmente são ausentes dos serviços, cuja cobertura carece ser ampliada, quando se trata de adolescentes grávidas elas "roubam a cena" e a invisibilidade se transforma em "supervisibilidade". Isso indica que não é o grupo populacional, mas sim sua condição que é priorizada para ações no âmbito do PSF. O depoimento de uma agente sobre como ela se dirigiu à mãe de uma adolescente de 14 anos que acabara de saber que a filha estava grávida é expressivo.

[...] a minha função é estar fazendo isso também, é estar acompanhando mais que nunca a sua filha. Agora ela é uma gestante! Ela vai ter que fazer um pré-natal [...]. (Graça)

Quando perguntada sobre quais eram as necessidades desta adolescente, na perspectiva do serviço de saúde, antes dela se tornar uma gestante, Graça comenta:

Essas necessidades não aparecem. Ela é apenas uma adolescente [...]Na verdade, eu penso assim: que até ai [até engravidar] não era um problema, como se fosse um problema para a mãe, para a família.. E, também, a gente tem a obrigação de fazer esse acompanhamento. Antes, quando ela era simplesmente uma adolescente, eu fazia uma visita domiciliar, você não tem tempo de estar falando tantas outras coisas. Às vezes esses adolescentes não estão em casa, tanto menino quanto menina [...] nem lembramos: "Ah! Aqui tem um adolescente, o fulano de tal tem uma filha (...)". (Graça)

Outro aspecto que chamou atenção nos relatos é o "silêncio" quanto à paternidade adolescente, o que parece se relacionar com um pressuposto implícito de que a paternidade é por excelência secundária para os rapazes. Em relação a eles não se deve "esperar muito", criar expectativa quanto ao ato de "assumir o filho" em co-responsabilidade, mesmo que não venha se casar ou compor novo núcleo familiar. Os "pais adolescentes" não constituem um grupo para o qual são direcionadas ações programáticas.

O que Mais as Agentes Comunitárias de Saúde Podem Fazer na Atenção à Saúde Sexual dos Jovens?

As agentes comunitárias de saúde entrevistadas reconhecem que seu trabalho pode incluir mais atividades: a distribuição de preservativos, mais diálogo sobre prevenção; sensibilizar, mobilizar, reunir pessoas para atividades coletivas, além de potencializar a prevenção durante as vistas domiciliares.

Pelo seu lugar social e capacidade de circulação na comunidade e nas residências, as agentes têm potencial para realizar a distribuição do principal insumo para a prevenção das DST/HIV, o preservativo. Vejamos o depoimento de uma das entrevistadas, responsável pela cobertura de uma área de zona rural, que inclui um quilombo. Ela valoriza o postinho, localizado dentro do quilombo, que funciona uma vez por semana. A unidade localizada no centro da cidade funciona todos os dias em horário comercial, mas está distante 20 quilômetros da área de cobertura da agente.

Eu tenho muita facilidade de conversar com jovens, apesar da minha idade, mas eu tenho filhos, então eu procuro conversar. E têm muitos jovens lá e eu percebo que eles gostam, aí vão até o postinho, pegam camisinha, eu oriento como é que tem que fazer... Eu sempre pego preservativo aqui na unidade [central], levo para o meu posto de saúde [dentro da comunidade quilombola] e converso que tem que usar mesmo! Não tem que ter vergonha de usar! (Aurélia)

Tecnologias "não materiais", como a conversa educativa, constituem um dos principais recursos de atuação das agentes na atenção à saúde sexual, e elas realmente conversam com as pessoas! Em modelos de prevenção de base comunitária é benéfico que essa discursividade acompanhada da oferta do insumo se caracterize como um encontro educativo numa perspectiva mais emancipatória, que construa a autonomia e a noção de sujeito-cidadão (Paiva, 2005), que seja capaz de compreender o sujeito em seu contexto e de auxiliá-lo na decodificação das dificuldades que enfrenta em cada cena e no co-reconhecimento das possibilidades no que concerne à saúde sexual, como sujeito de direito sexual e à saúde integral, amplificando a consciência sobre sua intersubjetividade cotidiana.

Duas entrevistadas apontam a palestra como uma tecnologia importante para abordagem do tema da saúde sexual com os/as jovens. As características dessa atividade no modelo em que a realizam parecem bastante dialógicas, com uma dinâmica semelhante ao que chamamos de oficina no campo da prevenção da aids.

Estar fazendo palestra, estar mostrando camisinha, ensinando mesmo a usar, tem gente que não sabe, tem todo um jeito, eu acho que em cima disso, estar trazendo esse jovem... Cada agente de saúde ficar responsável na sua área, levar o convite, se a pessoa não compareceu não desistir, quando tiver outra reunião, insistir, ir lá, conversar. (Ivana).

[...] palestras seriam legais, estar convidando as comunidades, fazendo palestras com "eles", falando como "que" acontecem as coisas, mas não sendo muito moralista, mas assim, estando aberto a diálogos, palestras. Mas de forma que você fale a mesma língua que eles: "Se você transar com fulano vai pegar AIDS!" Não assim! Assim: "Vocês podem transar à vontade, mas desde o momento que vocês usem a camisinha para estar se protegendo não só da gravidez, como das doenças". Entendeu? Acho que seria legal: palestras no nível deles, porque não adianta você ser o expert no assunto e falar coisas que a população não vai entender [...] (Marisa)

Destacam-se das narrativas das entrevistadas a valorização do diálogo franco, aberto e equilibrado entre o discurso técnico e a cultura local. Elas reconhecem as limitações das abordagens moralistas que "pregam" o medo, o estigma associado à aids ou a ideia de que a multiplicidade de parceiros é, necessariamente, um erro moral a ser "corrigido" pelas ações educativas de prevenção. As agentes associam o fluxo turístico típico do seu território à disseminação das DST, às gestações frutos de relações sexuais com turistas, ao incremento do mercado sexual e do consumo de álcool e outras drogas, mas afirmam não realizar abordagens educativas de rua e distribuição de preservativos em locais específicos de maior interação entre jovens locais e turistas. Não chegam a pensar em abordagens em sintonia com a perspectiva de trabalho que concebe a vida sexual ativa com proteção como um direito. Tampouco conhecem o debate sobre direitos sexuais enquanto direitos humanos (Corrêa e Ávila, 2003; Barsted, 2003; Paiva, 2005; Brasil, 2006b).

Considerações Finais: o Necessário Investimento no Apoio e na Formação das Agentes Comunitárias

Os achados das entrevistas sobre o trabalho da rede básica na atenção à saúde de jovens, em especial a saúde sexual, estão em consonância com o material obtido a partir das observações etnográficas, o qual, por motivo de espaço, optou-se por não utilizar neste texto. Articulam-se também com os dados obtidos nas entrevistas com os jovens (Belenzani e col., 2008; Bellenzani, 2008), que confirmaram a perspectiva das agentes sobre o modo como esse segmento é incluído nas unidades básicas de saúde. Como esperado, o modelo de atenção conta com as agentes comunitárias para dialogar e interagir no seu território, a partir de uma abordagem "mais comunitária" e "menos ambulatorial".

Nesse sentido, a visita domiciliar das agentes comunitárias pode ser melhor investigada pelos estudos e aproveitada enquanto tecnologia de processo discursiva, "não material", estratégica para o trabalho de prevenção extramuros e para a abordagem desse segmento, ampliando seu acesso à atenção em saúde sexual. As competências ressaltadas pelas agentes – "não ser moralista, (ser) aberta ao diálogo, falar a mesma língua, não adianta ser expert e a população não entender" – são produtivas para a abordagem da saúde sexual durante as visitas domiciliares e a circulação no território.

A decodificação dos aspectos sociais e culturais envolvidos nos comportamentos das pessoas em relação à sua saúde e aos momentos em que adoecem ou estão mais vulneráveis é especialmente importante no caso de programas de atenção à saúde sexual que visam reduzir a vulnerabilidade às DST/HIV; trabalho facilitado por meio de intervenções comunitárias que contam com agentes que são parte desse mesmo segmento (Figueiredo e Ayres, 2002; Benzaken e col., 2007; Paiva e col., 2010).

Como já discutido em Bellenzani e colegas (2008), os territórios onde atuam as agentes comunitárias de saúde entrevistadas são marcados pelo fluxo sazonal de turistas que organiza a economia local e, culturalmente, por interações sociais entre pessoas "daqui" e "de fora", num clima de paquera, de consumo de bebidas alcoólicas e de valorização da exposição dos corpos à beira-mar, práticas significadas como parte do clima "quente" e "praiano", uma especificidade do cenário sociocultural para as cenas afetivo-sexuais nas comunidades turísticas litorâneas. Nessas comunidades se observam scripts sexuais e de gênero que ampliam a vulnerabilidade dos/as jovens à mercantilização de suas experiências sexuais, ao sexo sem preservativo, à gestação não planejada e às DST/aids.

Embora as agentes associem o cenário social e cultural marcado pelo fluxo turístico à maior vulnerabilidade dos jovens a diversos agravos, suas falas não apontam para a realização de ações diretas nesse cenário em que a interação entre jovens locais e turistas se dá. Não são realizadas atividades (de distribuição de preservativos, por exemplo) nesses locais, como já experimentado em diversos projetos (Edmundo e col., 2007; Paiva e col., 2010) e sequer os profissionais (tanto agentes como médicos e enfermeiros) integram consistentemente nas conversas com os jovens, a compreensão desse cenário compartilhado por todos. Ou seja, não transformam seu reconhecimento dos aspectos que integram o plano social da vulnerabilidade em efetiva utilização de tecnologias de processo sensíveis a esse cenário. Desse modo, os profissionais não contribuem diretamente para diminuir a vulnerabilidade social, mantendo uma concepção de dimensão individual da vulnerabilidade, portanto, descontextualizada; não têm recursos técnicos para diminuir a vulnerabilidade desses jovens aos eventos e agravos de saúde, aumentando sua vulnerabilidade programática. Na ação, isolam as pessoas de seu contexto, embora o conheçam. O contexto aparece como um pano de fundo, um obstáculo quase intransponível pelos jovens e atores de programas de saúde.

As agentes têm grande potencial de ação na promoção e proteção da saúde sexual dos/as adolescentes e jovens na comunidade, e necessitam ser instrumentalizadas e apoiadas pela gestão. Atenta-se que se deve tomar cuidado com a sobrecarga desse nível de atenção ao se ampliar indefinidamente as áreas estratégicas do Programa Saúde da Família. Como diria Scott (2001, p. 65) almejar a integralidade "pode se transformar em sobrecarga, em nome do crescimento da oferta de serviços de saúde". Nesse sentido, readequações no modelo de trabalho, como a inclusão de novas categorias profissionais na equipe mínima do PSF, o aumento no número total de profissionais, assim como a proporcionalidade, entre recursos, usuários cadastrados e perfis epidemiológicos, constituem aspectos que devem receber a devida atenção por parte dos gestores da Atenção Básica e dos programas de DST e aids, em suas esferas local, estadual e nacional, assim como da área técnica da Saúde do Adolescente, ao planejarem o incremento da atenção ao segmento jovem.

Na observação etnográfica, que não foi possível descrever mais densamente no espaço deste texto, observou-se frequentemente que demandas e necessidades no campo da sexualidade, sejam de jovens ou adultos, tendem a emergir nos diálogos entre usuários e profissionais, com outros técnicos, nos variados espaços sociais (domicílios, ruas e sala de espera do serviço, além do espaço da consulta). No caso específico das agentes, emergem também nos espaços e momentos em que não estão trabalhando, afinal são moradoras e frequentam bares, padarias e farmácias, onde são frequentemente abordadas, como se pôde observar e segundo apontavam seus relatos. Entretanto, os significados tradicionalmente associados à sexualidade na formação pessoal e técnica, tratada como questão da esfera íntima da vida e assunto tabu, permeados pela normatividade tradicional e pela concepção de uma "sexualidade natural", essencial de dois gêneros, também marcam o trabalho desse profissional. O surgimento da epidemia da aids, que desafiou governos a tratar a sexualidade de modo público e, no caso do Brasil, no âmbito do Estado laico e do SUS, produziu a validação de outras perspectivas, como a construcionista, e das abordagens em saúde baseadas nos direitos humanos que seriam produtivas na formação para esse tipo de trabalho.

Além do direito à saúde e dos direitos sexuais, a questão do direito ao sigilo por parte desse profissional, por exemplo, é outro tema a ser debatido nos espaços de formação. O estudo de Seoane e Fortes (2009) procurou conhecer como o usuário do Programa Saúde da Família percebe o direito à privacidade e à confidencialidade de suas informações reveladas ao agente comunitário e como relaciona a visita domiciliar ao seu direito à privacidade. Os resultados apontaram a tendência dos usuários em não perceber a visita domiciliar das agentes como uma invasão à sua privacidade. Não se observou constrangimento em relação a esse procedimento, ao contrário, observou-se a tendência em confidenciar as informações ao agente, considerando-o um profissional de saúde como os outros. Entretanto, doenças potencialmente estigmatizantes como aids, tuberculose, câncer ou doenças da próstata não eram reveladas a esse profissional, a não ser se tal revelação facilitasse o acesso mais rápido às consultas médicas. Destaque-se que o temor da quebra de sigilo está na base dessa atitude.

No caso dos serviços pesquisados, a possibilidade das agentes serem percebidas como pessoas de confiança pelos/as jovens, se respeitarem o sigilo, contribuirá certamente para o desencadeamento de ações assistenciais, já que disseminam estratégias de prevenção, apesar do temor das repercussões negativas junto a familiares responsáveis pelos adolescentes ou de religiosos. O fato de serem mais sensíveis às necessidades das garotas do que dos rapazes evidencia que as concepções pessoais das agentes sobre o gênero – implicadas na atividade sexual e no cuidado dos filhos – são eixos estruturantes da atenção que oferecem. Faltam-lhes repertórios para dialogar com homens e ampliar seu acesso às ações de prevenção e cuidado em saúde reprodutiva, num processo de construção da equidade e da integralidade, já que o discurso técnico sobre o masculino contribui para um menor reconhecimento das necessidades masculinas nesse campo (Figueiredo, 2005).

A concepção de adolescência do discurso técnico mais prevalente nas unidades de saúde é a de uma fase universal do "desenvolvimento normal" da sexualidade e dos papéis de gêneros em direção à heteronormatividade conjugal, ou seja, é informada por valores tradicionais e rígidos naturalizados, que tendem a classificações do tipo "certo e errado", "normal e anormal" no campo da sexualidade. Esse discurso técnico implicado nas tecnologias mais prevalentes é pouco produtivo para processos de trabalho e gestão na rede básica que incorporem a saúde sexual na agenda da atenção primária, nos termos do contexto e das experiências dos jovens em cada comunidade. Como o contexto de jovens estudantes evangélicos vivendo em São Paulo se aproximaria do cenário para a sexualidade de quilombolas de comunidades caiçaras dedicadas ao turismo? Não basta que os agentes flexibilizem o discurso normativo e, intuitivamente, incorporem o discurso técnico produzido pela prevenção ("podem transar a vontade desde que usem camisinha..."). O manejo de processos de trabalho ancorados em paradigmas mais consistentes com a abordagem dos direitos humanos em saúde, como os do campo construcionista, assim como a noção de acolhimento concebido como "rede de conversações", proposto por Teixeira (2003), pode ser mais produtivo.

A formação profissional na área da sexualidade, tradicionalmente restrita aos enfermeiros da equipe, além de estender-se aos agentes de saúde, deveria incluir temas como Estatuto da Criança e do Adolescente e a compreensão do processo saúde-doença para além de sua história natural. O referencial da vulnerabilidade e dos direitos humanos (Ayres, 2009) pode avançar a capacitação profissional de agentes comunitários de saúde na direção de um perfil menos informativo e mais voltado ao desenvolvimento de habilidades para a co-construção de repertórios, individuais e coletivos (comunitários), considerando que a assistência guarda momentos mais individualizados com o usuário, mas também requer ações e fluxos que dependem da organização coletiva do serviço. As equipes podem expandir a cultura da prevenção e da saúde sexual para além dos limites físicos das unidades (rompendo inclusive barreiras simbólicas) e, simultaneamente, melhorar o acesso para determinados grupos, como homens, jovens em contextos singulares de vulnerabilidade, como as comunidades litorâneas, regiões de fronteiras, locais de maior migração de pessoas e trabalhadores de fluxo sazonal, entre outros. O trabalho das equipes deve focar a área de abrangência da unidade básica, segundo a noção de território, levando em consideração seus aspectos geográficos, culturais, sociais, econômicos, políticos e programáticos que, do ponto de vista da análise da vulnerabilidade, constroem as condições de saúde-doença das populações. (Ayres, 2009).

Com uma formação nesses moldes, no campo da promoção da saúde sexual, as equipes de saúde da família estariam mais instrumentalizadas para contribuir, de modo sustentado e contínuo, com a proteção do direito das pessoas à prevenção das DST/HIV (Paiva e col., 2006), respeitando-se a diversidade de sujeitos e seus contextos (Paiva, 2008). A legitimação dos saberes de outras categorias profissionais como as/os agentes comunitários depende de valorizarmos dispositivos como o "acolhimento-diálogo" (Teixeira, 2003) para que a inovação possa ser incorporada às tecnologias e aos processos de trabalho usuais, à co-construção de modelos de base comunitária, mais acessíveis e orientados pela integralidade do que o tradicional modelo médico-centrado e ambulatorial.

Recebido em: 08/04/2011

Aprovado em: 21/09/2011

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    Este artigo é resultado de projeto desenvolvido, no período de 2005 a 2007, com financiamento do CNPq.
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    Atualmente a nomenclatura oficial é "Estratégia Saúde da Família", mas optamos manter no trabalho a denominação "Programa Saúde da Família" ou a sigla PSF, pois essa é a forma predominante na conversação, e foi assim utilizada pelos informantes.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      24 Out 2012
    • Data do Fascículo
      Set 2012

    Histórico

    • Recebido
      08 Abr 2011
    • Aceito
      21 Set 2011
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