Resumo
Vários autores têm refletido sobre a questão do acesso aos serviços de saúde, considerando a existência de várias dimensões, nas quais se inclui a disponibilidade e a acessibilidade. No contexto de envelhecimento que caracteriza as sociedades, a população idosa precisa de mais cuidados de saúde, e a acessibilidade a essas unidades assume importância acrescida. O objetivo do estudo é caracterizar o acesso da população idosa aos serviços de saúde, confrontando as possibilidades decorrentes da oferta de serviços com os padrões de procura. Do confronto entre oferta e procura resulta a possibilidade de identificar as dinâmicas intrarregionais e associá-las às diferentes condições socioeconômicas dos idosos, ao seu enquadramento familiar, modo de transporte e tipo de serviço. Esta abordagem considera duas fases metodológicas: o cálculo do potencial de cobertura populacional das unidades de cuidados primários, considerando a acessibilidade física recorrendo aos modos pedonal e rodoviário; e o confronto desses valores com a procura dos serviços, determinada a partir de inquéritos realizados aos residentes. Concluiu-se que, apesar dos equipamentos de saúde prestadores de cuidados primários terem sido programados como serviço de proximidade, a forma de prestação do serviço, as características socioeconômicas da população idosa e o modelo de urbanização apontam para diferenças relevantes no contexto da Área Metropolitana de Lisboa.
Palavras-chave: Acessibilidade; Cuidados de Saúde Primários; População Idosa; Análise de Redes; Área Metropolitana de Lisboa
Abstract
Several authors have reflected upon access to health services considering several dimensions, such as availability and accessibility. Due to the aging of societies, the older population’s demands for healthcare increase, and accessibility to these units acquires special importance. Our study aims to characterize the access of older people to healthcare services, facing the possibilities arising from service supply and demand patters. From the supply and demand confrontation, comes the possibility of identifying intraregional dynamics and associating them with the various socioeconomic conditions of older people, family background, modes of transportation, and type of service. This approach considers two methodological phases: calculating the potential for primary healthcare coverage, considering physical accessibility for pedestrian and highway modes; and confronting these values with services demand, determined from surveys conducted with residents. We concluded that, although healthcare centers were designed as a proximity service, service provision, socioeconomic aspects, and the urbanization model entail meaningful inequalities of access in the context of the Lisbon Metropolitan Area.
Keywords: Accessibility; Primary Healthcare; Older Population; Network Analysis; Lisbon Metropolitan Area
Introdução
No contexto de envelhecimento, a questão do acesso aos serviços de saúde, quer de cuidados primários, que devem funcionar e responder a uma lógica de proximidade, quer de cuidados hospitalares, de importância fulcral nesse estágio avançado da vida, na qual a prevalência e a mortalidade por doenças que necessitam de atendimento diferenciado, assumem importância crescente no quadro da definição de políticas públicas de saúde.
O presente artigo centra-se na temática do acesso à prestação de serviços de saúde em contexto de envelhecimento populacional. O objetivo do estudo é caracterizar o acesso da população idosa aos serviços de saúde, confrontando as possibilidades decorrentes da oferta de serviços com os padrões de procura, identificando os principais fatores que condicionam o acesso por parte desse grupo demográfico. Para a população idosa, a proximidade ao serviço e a possibilidade de o alcançar em um período de tempo reduzido é um fator positivo diferenciador e promotor de equidade, tendo em conta a possibilidade de deslocação a pé ou utilizando o modo rodoviário.
A análise do potencial de oferta é contraposta à análise da procura realizada a partir de uma amostra de inquéritos realizados à população idosa sobre o acesso a cuidados de saúde primários, em termos de localidade de residência, proximidade ao serviço, modo de transporte utilizado, tempo de acesso e tipo de serviço.
Para desenvolver os objetivos anteriormente apontados, o artigo estrutura-se em cinco partes, correspondendo esta introdução à primeira das cinco partes. Na segunda parte, é feita uma resenha bibliográfica sobre os conceitos de acesso e de acessibilidade, frisando a sua discussão no contexto de envelhecimento, salientando-se as especificidades dos problemas e das barreiras que se colocam à população idosa quando esta pretende aceder aos serviços básicos de saúde. Na terceira, é descrita a metodologia e a área de estudo. A quarta apresenta a acessibilidade potencial aos cuidados de saúde primários e, posteriormente, analisam-se os padrões de procura efetiva resultantes do inquérito realizado, discutindo-se os principais fatores que explicam esses resultados. Na última parte, apresentam-se as principais conclusões.
Discutir a acessibilidade aos cuidados de saúde em uma sociedade em contexto de envelhecimento
A questão do acesso aos serviços de saúde tem desde sempre sido relevante, quer na fundamentação de políticas de saúde, quer em abordagens mais amplas em que o acesso surge como fator determinante da equidade e, como tal, como um elemento essencial das políticas no combate à vulnerabilidade nas suas vertentes social e territorial. É, portanto, indispensável entender o conceito de acesso, que muitas vezes foi utilizado apenas como alusão à acessibilidade física. Foram vários os autores que durante os anos setenta a noventa do século XX definiram acesso como sendo um processo mais complexo do que a capacidade de chegar a um local partindo de outro e foram desenvolvendo um racional conceitual associado ao conceito que pudesse traduzir as suas várias dimensões e pudesse ser aplicado à definição dos objetivos a atingir nas políticas de saúde (Donabedian, 1972; Penchansky; Thomas, 1981). Donabedian (1972) defendeu que o acesso corresponde ao uso do serviço e não apenas à presença de um equipamento, referindo ainda que a medição do acesso depende de mais fatores que o simples uso do serviço. Penchansky e Thomas (1981) (e ainda Penchansky, 2001) apresentaram um racional teórico que permitiu uma clara distinção entre os conceitos de acesso e de acessibilidade. Para esses autores, o acesso apresenta cinco dimensões de análise: disponibilidade, acessibilidade, custo, comodidade/adequação e aceitação. Essas cinco componentes constituem uma metodologia de análise denominada os cinco A do acesso, que permite explicar, por um lado, a capacidade dos prestadores providenciarem serviços de saúde e, por outro, a capacidade dos utilizadores em usar os serviços (Figura 1).
A dimensão “disponibilidade” refere-se, não só, à presença ou à ausência de determinados serviços, mas tambem à sua quantidade. A “acessibilidade” constitui a segunda dimensão e esta pretende responder a questões como: os serviços estão próximos dos utilizadores? São fáceis de aceder? Quanto tempo de deslocação é necessário para que os utilizadores cheguem aos estabelecimentos? A resposta a essas questões pressupõe um conjunto de análises, sobretudo quantitativas, que se centram nos cálculos de distâncias físicas e temporais e da cobertura populacional segundo diferentes perfis de distância/tempo. A terceira dimensão, o “custo”, permite abordar a relação entre o custo do uso do serviço e a capacidade dos utilizadores em suportá-lo.
As restantes dimensões estão mais relacionadas com as expectativas dos utilizadores diante da prestação de serviços e, como tal, a obtenção de dados é mais difícil e de maior subjetividade. A dimensão “comodidade” surge associada à organização dos serviços e a questões de conforto. Por seu turno, a “aceitação” está relacionada com a confiança e a satisfação em relação ao serviço. Pretende-se compreender se o utilizador tem confiança no prestador e qual o grau de satisfação com o serviço prestado.
Assim, segundo Penchansky e Thomas (1981), a medição do acesso passa pela avaliação das cinco dimensões. No entanto, a disponibilidade de dados afeta a precisão da análise. Na impossibilidade de recolher dados para as cinco dimensões devemos ter em conta que a análise será sempre redutora da realidade, e considerar que as dimensões “disponibilidade” e “acessibilidade” podem permitir uma reflexão interessante e útil sobre a eficiência do sistema de transportes, sobre o padrão de distribuição dos serviços e sobre a equidade territorial.
Recentemente, Saurman, Kirby e Lyle (2015) e Saurman (2016) acrescentaram às cinco dimensões de Penchansky e Thomas (1981) uma sexta dimensão, que classificam de “conhecimento”, ligada à comunicação e à difusão por parte de clínicos, pacientes e comunidade em geral de informação sobre os serviços e a saúde em geral.
Levesque, Harris e Russell (2013) trouxeram uma nova abordagem do acesso que integra duas componentes: a que considera a acessibilidade em cinco dimensões (a própria acessibilidade; aceitabilidade; aceitação; disponibilidade e adequação, adaptando a perspectiva de Penchansky e Thomas, 1981); e a que corresponde às cinco características das pessoas na forma como interagem com a primeira componente: a capacidade de perceber, a capacidade de procurar, a capacidade de alcançar, a capacidade de pagar e a capacidade de se envolver.
Apesar dessas diferentes formas de discutir e descrever o acesso à saúde, reconhece-se que este resulta da interface entre as características das pessoas, das famílias, dos ambientes sociais e físicos com as características dos sistemas e dos serviços prestadores de saúde. Entre essas características contam-se a idade e o gênero. Efetivamente, as necessidades de serviços e as formas e a frequência de procura são bastante diferenciadas com a idade, acentuando-se as diferenças quando se combinam idade e rendimento, que determinam diferentes níveis de mobilidade e, por conseguinte, de acesso aos serviços de saúde.
Considerando a tendência geral de evolução de envelhecimento das populações que caracteriza o século XXI, nomeadamente no panorama europeu e norte-americano, analisar as condições de acesso desse grupo populacional torna-se especialmente relevante. O envelhecimento é visível no aumento da idade média da população, no reforço do peso dos idosos e no aumento do índice de envelhecimento. Segundo Villaverde Cabral et al. (2013), esse processo de envelhecimento pode ser entendido segundo duas perspectivas: uma positiva, que reflete os progressos econômicos, sociais e biomédicos que resultaram das políticas públicas de acesso generalizado da população aos cuidados de saúde; e outra negativa, na qual o envelhecimento combinado com a diminuição da fecundidade acarreta graves consequências para a sociedade, nomeadamente o declínio populacional e um aumento dos gastos em saúde (Rodrigues; Martins, 2014).
Efetivamente, com o aumento do número de idosos como principais utilizadores dos serviços de saúde, prevê-se um aumento da suscetibilidade à doença, um aumento da solicitação dos serviços de suporte como cuidados domiciliários e cuidados de longa duração (continuados e paliativos), prevê-se a necessidade de reajustamento dos serviços e a formação dos profissionais e ainda mais importância dos cuidadores informais, mudanças que devem ser consideradas na formulação de políticas públicas de saúde (Coelho, 2016; Mobley et al., 2006).
A probabilidade de uma pessoa idosa usar cuidados de saúde pode ser determinada por vários fatores, incluindo as características demográficas (idade, sexo, residência e estado civil), e as características socioeconômicas (educação e rendimento). Um dos principais problemas de saúde que os idosos enfrentam, especialmente nos países de baixo rendimento per capita, é o custo crescente dos serviços médicos (He; Muenchrath; Kowal, 2012). Por outro lado, outros estudos mostram que os vários determinantes para a acessibilidade aos serviços de saúde variam com o local de residência da pessoa idosa, com a sua acessibilidade ao transporte e com a sua mobilidade (Ma et al., 2018).
Também a Organização Mundial da Saúde (WHO, 2015) identificou um conjunto de barreiras que os idosos enfrentam no acesso aos cuidados de saúde. Nos países de rendimento per capita baixo e médio-baixo, as principais barreiras decorrem do custo de transporte e do custo da consulta (quando ela é paga). Segundo o estudo, mais de 60% não foram ao médico porque não podiam pagar o transporte e/ou a consulta, situação que se acentua nos residentes das áreas rurais, onde os equipamentos prestadores de cuidados de saúde mais diferenciados se encontram nas cidades, obrigando a uma deslocação de maior duração e custo. Outro aspecto importante tem que ver com a composição do agregado familiar, ou seja, o fato de o idoso se encontrar sozinho, a viver com o cônjuge, a viver com familiares ou fisicamente próximo da família que, nos últimos casos, podem ajudar a suportar o custo/despesas efetuadas e a providenciar a deslocação, melhorando as condições de mobilidade do idoso. Mesmo nos países com alto ou médio-alto rendimento per capita, a dificuldade em conseguir o transporte, conta com 12,1% e 19,3% das respostas, respectivamente, e o seu custo corresponde a 8% e 13,9% respectivamente, valores elevados, que demonstram a sua relevância para o acesso aos serviços. (WHO, 2015). No caso português, esse fator foi potenciado pela crise, que acentuou as dificuldade de acesso dos idosos aos serviços de saúde (Doetsch, 2017).
Siegel et al. (2016) referem as especificidades no acesso em áreas rurais enquanto para van Gaans (2018), a melhoria no acesso aos serviços de saúde da população em áreas rurais pode ser conseguida combinando os serviços com a população que eles servem.
Da análise resulta um evidente conjunto de condicionantes ao processo de prestação de serviços de saúde, mas que não se restringem a estes, pelo contrário, são tendências comuns à evolução dos vários serviços tradicionalmente designados de serviços sociais e, atualmente, designados de serviços de interesse geral (Marques da Costa; Palma; Marques da Costa, 2015). Algumas dessas condicionantes assumem uma escala global e podem manifestar-se num vasto conjunto de países, embora com intensidades diferentes, enquanto outras estão relacionadas com contextos locais ou regionais. A multiplicidade de condicionantes existentes, a complexidade das relações que se estabelecem entre si e a diferente sensibilidade aos vários tipos de serviços promovem grande diversidade de contextos e diferentes níveis de acesso a serviços por parte da população, em particular da população idosa (CE, 2002). A sociedade portuguesa encontra-se em processo de envelhecimento, o que impacta na sua dinâmica demográfica, mas também na dinâmica de resposta em termos de serviços de saúde e apoio social (Rosa, 2016).
Metodologia e área de estudo
O estudo desenvolve-se na Área Metropolitana de Lisboa, território com uma área de 3015km2, composto por 18 municípios, uma população de 2.821.876 habitantes, o que corresponde a uma densidade de 936 hab/km2 (INE, 2011).
Relembrando que este artigo tem como objetivo verificar quais os potenciais de acessibilidade da população idosa a cuidados de saúde primários na Área Metropolitana de Lisboa (AML) e confrontá-los com os seus padrões de procura, explicita-se que esta abordagem considera duas fases metodológicas. Na primeira, a partir da modelação da rede viária em SIG, calcula-se o potencial de cobertura populacional considerando a acessibilidade física aos equipamentos de cuidados de saúde primários, tendo em conta diferentes limiares de distância-tempo: menos de 15 minutos, 15 a 30 minutos, 30 a 60 minutos e mais de 60 minutos, considerando o modo pedonal (velocidade adequada à deslocação a pé dos idosos de 3,5km/h e velocidade adequada à deslocação a pé dos idosos com mobilidade condicionada de 1,6km/hora - Falcão, 2011) e o modo rodoviário (de acordo com a velocidade máxima possível no trecho viário correspondente). No caso do modo pedonal, foi ainda considerado o valor de velocidade standard para a população total, que corresponde a 4,5km/h, podendo assim confrontar-se a diferença entre o potencial médio de acesso dos residentes e o potencial conseguido pela população idosa, que se desloca a velocidades inferiores.
A segunda fase metodológica centrou-se na realização de inquéritos aos idosos residentes nos vários municípios da AML no sentido de identificar o perfil de procura de cuidados de saúde primários dessa população. O inquérito permite analisar três grupos de questões:
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Quem?: aqui encontram-se questões de caraterização dos inquiridos com mais de 65 anos por nível de rendimento, tipologia do agregado (se vivem sozinhos, com companheiro ou em família) e localidade de residência;
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Onde?: neste item, procura-se caracterizar a procura dos serviços de saúde, atendendo à localização destes em três grandes categorias: na proximidade da residência, no município de residência e em outros municípios.
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Como?: o terceiro item identifica os modos de transportes, salientando os modos ativos a pé/bicicleta, o transporte individual, coletivo ou uma combinação de modos.
O inquérito foi realizado em 2017 a 89 agregados, que representaram 131 idosos.2 Esses inquéritos distribuíram-se por cinco áreas de estudo, aqui designadas coroas metropolitanas: a Lisboa cidade; 1ª coroa, que inclui todas as localidades que se encontram em uma distância em linha reta inferior a 10km de distância à cidade; a 2ª coroa, que engloba todas as localidades que se encontram entre os 10km e os 15km de distância; a 3ª coroa, que engloba todas as localidades que se encontram entre os 15km e os 25km de distância; e a 4ª coroa, que se define pelas localidades que estão a mais de 25km de distância da área central (Figura 3). Essas coroas representam diferentes níveis de densidade populacional (Figura 4), densidade do edificado, densidade da população idosa e serviço de transporte público.
Acessibilidade aos cuidados de saúde primários: oferta versus procura pela população idosa na AML
Neste ponto procuramos confrontar a oferta e a procura dos serviços de saúde por parte da população idosa. Iniciemos a análise pela oferta de serviços e seus potenciais de acessibilidade.
Para introdução do tema, importa referir que os cuidados de saúde primários em Portugal, compreendem os Agrupamentos de Centros de Saúde (ACES), onde se incluem as Unidades de Saúde Familiar (USF) e as Unidades de Cuidados de Saúde Personalizados (UCSP) (Decreto-Lei nº 28/2008) (Portugal, 2008). A distribuição encontra-se na Figura 5.
Agrupamentos de Centros de Saúde (ACES) localizados nas freguesias e municípios da AML, 2019
Uma análise dos indicadores de prestação de cuidados primários em 2019 mostra a existência de diferentes níveis de acesso ao serviço consoante a coroas de distância à cidade de Lisboa (Tabela 1). Os potenciais de população servida nas várias coroas (calculado a partir da população integrada na área de influência de cada uma das unidades de saúde) é sempre superior a 100%, exceto na coroa 3.
No entanto, esses valores decrescem consideravelmente quando analisamos os equipamentos em funcionamento, nomeadamente os equipamentos que se encontram em funcionamento até às 18h ou 20h, chegando a valores extremamente baixos na área de influência da coroa 2. Se restringirmos a análise do potencial de cobertura populacional no seu horário de funcionamento até às 14h em fins de semana e feriados, verificamos que o percentual de população coberta desce ainda mais, ficando frequentemente entre os 60 e os 70%.
Considerando a presente distribuição dos ACES, a análise da acessibilidade potencial mostra que 40% da população total encontra-se a menos de 15 minutos de distância a pé (o que traduz a lógica de proximidade), mas se considerarmos a população idosa, apenas 30% desse escalão etário se encontra a essa distância-tempo, o que vem demonstrar a diferenciação por idade e as consequências na sua expressão territorial (Figura 6 e 7 e Tabela 2).
Acessibilidade (distância-tempo) por modo pedonal da população idosa aos cuidados de saúde primários, 2019 (vel. 3,5km/h)
Acessibilidade (distância-tempo) por modo pedonal da população idosa com mobilidade condicionada aos cuidados de saúde primários, 2019 (vel. 1,6km/h)
Confrontemos a análise da oferta com a procura, identificada pelos inquéritos. Os resultados demonstraram que a procura por parte da população idosa depende de vários fatores. Para além de residirem em diferentes contextos urbanos, importa considerar o enquadramento em agregados familiares com características distintas e classes de rendimento diferenciadas.
Na amostra inquirida, observou-se uma elevada representação dos idosos a residir sozinhos (53,9%) ou apenas com o cônjuge (23,5%). Essa elevada percentagem de agregados compostos apenas por 1 elemento vem explicar o peso que detêm as classes de baixo rendimento (menos de 500 euros/mês com um peso de 21,3% e entre os 500 e os 1000 euros/mês, escalão que representa 44,9% da amostra).3
Quando analisamos o padrão de procura dos serviços por parte dos idosos, revela que 49,4% procuram os serviços na freguesia de residência, enquanto 21,3% recorrem a serviços em outras freguesias do município e apenas 18% procuram o serviço em outros municípios fora da sua área de residência. Os restantes procuram os serviços em várias localidades distintas, não tendo lugar nem serviço fidelizado.
Quando questionados sobre o modo de transporte que usam para chegar ao serviço, vemos que a deslocação a pé representa 35,2% em deslocações com um tempo inferior a 15 minutos e 14,3% com um tempo de 15 a 30 minutos. Contudo, apesar de falarmos de procura de serviço de proximidade, verificamos que existe um elevado percentual de idosos que usa o transporte individual para se deslocar ao serviço (48,1% para deslocações inferiores a 15 minutos e 28,6% para deslocações entre 15 e 30 minutos) (Tabela 3). Esse fato traduz duas situações: por um lado, existe a possibilidade de recorrer a um prestador de cuidados primários de natureza privada, pelo que esse serviço pode não se encontrar na proximidade, obrigando a uma deslocação a uma maior distância, que ocorre com o uso do automóvel (isso explica o percentual de 33,3% para deslocações entre 30 e 60 minutos; mas explica também os elevados percentuais para deslocações inferiores a 30 minutos); por outro, o processo de ocupação do território nas várias coroas da AML é diverso, havendo territórios que apresentam um padrão com menor densidade e mais disperso, que condicionam não só a localização dos serviços de saúde na lógica de proximidade a que se associam serviços de transporte público menos frequentes, incentivando o uso do transporte individual, incluindo o uso pela população idosa (Louro, 2019; Marques da Costa, 2011). Verificamos ainda que o maior rendimento e a escolaridade se traduzem em maior possibilidade de uso do automóvel, garantindo aos idosos o acesso ao serviço em menos tempo.
A análise da procura permitiu ainda verificar que no centro de Lisboa as deslocações de proximidade por modo pedonal são mais expressivas, e vão perdendo importância do centro entre as coroas 1 até à 4, ou seja, assistimos a um decréscimo das deslocações de proximidade do centro para as periferias. No centro de Lisboa, destacam-se as deslocações pedonais, mas também de transporte individual, demonstrando a presença de residentes com capacidade econômica para recorrer a serviços privados para os quais se deslocam com automóvel próprio. Paralelamente, verifica-se uma maior utilização do automóvel na coroa 4 da AML, o que corresponde a uma área de menor densidade populacional e um tecido urbano mais fragmentado, que exige que a população utilize o automóvel para poder aceder ao serviço de saúde de proximidade.
Considerações finais
O presente estudo centrado na Área Metropolitana de Lisboa evidenciou os fatores condicionantes do acesso aos cuidados de saúde primários por parte da população idosa. Os resultados apontam para dois grandes grupos de fatores:
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o primeiro, corresponde ao conjunto de determinantes sociais ligados às caraterísticas socioeconômicas da população, como o rendimento e a posse de automóvel, que permite mais flexibilidade na deslocação e, consequentemente, mais acesso aos serviços; verificamos que o maior rendimento e escolaridade se traduzem em maior possibilidade de uso do automóvel e, com isso, a escolha do serviço e mais liberdade para conseguir aceder ao serviço usando o modo próprio de deslocação;
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o segundo, relaciona-se com as características do povoamento e da distribuição das unidades de cuidados de saúde primários. As áreas de maior densidade populacional e de edificado correspondem naturalmente às áreas onde se encontra maior densidade de serviços de saúde. Inversamente, nos territórios de menor densidade populacional e de ocupação mais dispersa, para os serviços básicos de saúde existentes atingirem os limiares de procura mínimos para funcionarem, é necessário que a sua área de influência seja mais extensa e, por isso, os tempos de acesso são mais elevados. Ou seja, considerando as coroas de análise consideradas, o centro de Lisboa apresenta mais densidade populacional, mais densidade de idosos e de centros de prestação de cuidados primários e, à medida que nos afastamos do centro de Lisboa, pelas coroas 1, 2 3 e 4 verificamos que a densidade populacional e do edificado decresce, pelo que a área de influência dos serviços aumenta. Nesse sentido, é possível verificar que alguns territórios da AML não atingem os níveis de cobertura desejados, pois espera-se que um serviço básico de saúde esteja a menos de 15 minutos a pé.
Da análise decorre que os fatores que condicionam a acessibilidade aos serviços de saúde de proximidade se acentuam na população idosa, caracterizada por menor rendimento e por menor mobilidade, reforçando a relevância de aprofundar os estudos de acessibilidade aos serviços de saúde por parte desse grupo populacional, contribuindo para uma melhor resposta das políticas públicas.
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1
Este artigo foi desenvolvido no contexto do projeto de investigação da FCT: GRAMPCITY - Para uma mobilidade e acessibilidade mais amigas dos idosos em áreas urbanas/Moving smartly towards accessible & inclusive urban environments for our elders, PTDC/GES-TRA/32121/2017, desenvolvido por quatro universidades portuguesas. M. Barata é bolsista FCT neste projeto.
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2
Margem de erro de 4,9% para um nível de significância de 95%.
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3
Para referência, considere-se que o salário mínimo em Portugal em 2018 era de 649.83 euros, enquanto no Luxemburgo esse valor chegava aos 2071.10 euros/mês (MINIMUM…, 2020).
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
29 Jul 2020 -
Data do Fascículo
2020
Histórico
-
Recebido
22 Fev 2020 -
Aceito
05 Maio 2020