Open-access Masculinidades e cuidados de saúde nos processos de envelhecimento e saúde-doença entre homens trabalhadores de Campinas/SP, Brasil1

Masculinities and health care in aging and health-illness process among male workers from Campinas/São Paulo, Brazil

Resumo

Este artigo discute gênero, saúde, doença e masculinidade, ancorados nos marcadores sociais de identidade que endossam a diversidade das masculinidades, referentes aos comportamentos sociais e cuidados de saúde. Trata-se de estudo qualitativo realizado com 15 homens procedentes da classe trabalhadora de baixa renda residente em Campinas, estado de São Paulo, que enfoca as representações sociais de saúde e doença e os conceitos de envelhecimento e de cuidado de saúde. Força e disposição para trabalhar associam-se à saúde e à masculinidade dominante, opostas à doença e à indisposição para trabalhar. O envelhecimento abarca os efeitos do tempo sobre os desgastes e as fragilidades corporais e, também, sobre as posturas diante da vida e do envelhecimento. Assim, a velhice não deriva somente da idade cronológica, mas da percepção da identidade social. Os cuidados de saúde incluem o envelhecimento bem-sucedido, endossado por uma parcela dos homens que tende a não preservar a masculinidade dominante, associado a mais desvelo com a saúde.

Palavras-chave: Gênero e Saúde; Masculinidades; Cuidados de Saúde; Processo Saúde-Doença; Envelhecimento

Abstract

This article discusses gender, health, illness and masculinity anchored in the social markers of identity that endorse the diversity of masculinity regarding social behavior and health care. This is a qualitative study with 15 men from the low income working class living in Campinas, São Paulo. It focuses on the social representation about health and illness as well as aging and health care. Strength and willingness to work were associated with health and dominant masculinity, in contrast to illness and unwillingness to work. Aging involves the effect of the time on body wear, bodily fragilities, and their position regarding life and old age. This last concept does not derive from chronological age, but from the perceptions of identity. Healthcare is concerned with successful aging, which endorsed by some men who tend to not preserve the dominant masculinity, a fact of which is associated to the major better caring about health.

Keywords: Gender and Health; Masculinity; Health Care; Health-Illness Process; Aging

Introdução

Partindo do recorte de gênero sobre as masculinidades, referindo-se especificamente ao autocuidado de saúde dispensado pelos homens, vários estudos (Costa, 2003; Courtenay, 2000; Figueiredo, 2008; Gomes, 2008; Keijzer, 2001) apontam que, na obstinação de não demonstrar sinais de fragilidade, socialmente entendidos como inerentes ao feminino, os homens acabam por agravar os seus problemas de saúde - na maioria das vezes, silenciados ou suavizados por eles -, ressaltando em seus discursos não suas fragilidades, mas as características masculinas valorizadas nas sociedades ocidentais, apresentando-se como trabalhadores ativos, autônomos, detentores de força e poder, tanto físicos quanto morais.

Esses estudos compartilham um pressuposto teórico comum sobre o gênero: tais características são concebidas como parte de um ideal sociocultural prescritivo e normatizador dos comportamentos entre os sexos. Esse ideal configura as práticas relacionais entre homens e mulheres, das mulheres entre si e dos homens e seus congêneres, hierarquizando e estabelecendo relações assimétricas de poder, atribuindo aos homens a posição de domínio e às mulheres a de subordinação. Em determinados momentos históricos, uma forma de masculinidade é exaltada cultural e socialmente em detrimento de outras: a masculinidade hegemônica (Connell, 1997).

Connell e Messerschmidt (2005), embora ressaltem as contribuições para o campo da saúde das análises baseadas no conceito da masculinidade hegemônica, como a compreensão da exposição dos homens a riscos e suas dificuldades nas respostas aos cuidados e problemas de saúde, advertem para a sua utilização tautológica.

A questão é que a masculinidade hegemônica como construto teórico não explica os comportamentos masculinos per se, isto é, não se trata de uma tipologia psicológica fixa do caráter masculino; é a investigação empírica que deve atestar a sua validade (Connell; Messerschmidt, 2005), explicitando a trama dos fios sociais que tecem as identidades, os comportamentos masculinos e a própria masculinidade.

Porque as masculinidades são configurações das práticas relacionais de gênero e de poder e sofrem inflexão de outros eixos que também constituem a identidade dos sujeitos, os marcadores sociais de classe, raça, etnia, geração, sexualidade, entre outros, daí sua fluidez e multiplicidade (Coles, 2009; Connell; Messerschmidt, 2005; Kimmel; Messner, 2001).

Dessa forma, tem sido destacado por autores que trabalham com o referencial das masculinidades na interface de gênero e saúde (Coles, 2009; Couto, 2016), a necessidade de se atentar nas investigações para esses marcadores sociais identitários, pois eles informam configurações de masculinidades diversas, reveladoras de comportamentos e cuidados de saúde distintos entre os homens.

Com relação à análise de gênero e geração, Costa Junior e Couto (2015) mostram, em revisão da literatura sobre gênero e saúde, os usos e as concepções de geração e de categorias geracionais nas investigações. Destacam a imprecisão da apresentação de tais conceitos, sobretudo a categoria geracional da maturidade. Geração aparece, por vezes, reduzida a simples recorte etário de uma coorte de indivíduos ou esvaziada da complexidade que reveste os processos geracionais, uma vez que, conforme os autores enfatizam, “as gerações envolvem conjuntos de destinos, experiências sociais e vivências comuns em constante interação com outras gerações” (Costa Junior; Couto, 2015, p. 1301).

Visando contribuir com esses debates, explora-se, neste estudo, como se imbricam os cuidados de saúde e das masculinidades de homens em processo de envelhecimento, da classe trabalhadora, do município de Campinas, São Paulo, ressaltando os significados que tal processo assume para eles, incidentes sobre aqueles cuidados.

Na primeira seção, apresentam-se as representações desses trabalhadores sobre saúde e doença, indicativas de um tipo de masculinidade dominante. Na seção seguinte, analisam-se como concebem o processo de envelhecimento, os cuidados de saúde nessa fase da vida e como tal processo pode sinalizar mudanças ou questionamentos de comportamentos informados pela masculinidade dominante nesse segmento popular. Por fim, reflete-se sobre o ideal contemporâneo do envelhecimento bem-sucedido, baseando-se nos relatos apresentados.

Metodologia

Perfil socioeconômico e demográfico dos entrevistados

Os dados empíricos apresentados se referem à investigação que analisou as representações e experiências de homens trabalhadores com o corpo, a saúde, a doença e os cuidados de saúde, residentes em um bairro popular do município de Campinas, São Paulo, Brasil (Separavich, 2014).

Os entrevistados foram contatados no Centro de Saúde pelo pesquisador. Realizaram-se as entrevistas, com duração média de 60 minutos, no período de março de 2013 a novembro de 2013. Observou-se o critério de saturação das entrevistas, segundo recomenda a condução da pesquisa qualitativa em saúde (Fontanella; Ricas; Turato, 2008).

Foram entrevistados 15 homens (Quadro 1), em suas residências, a maioria com ensino fundamental incompleto, média etária de 56 anos, renda per capita de aproximadamente dois salários mínimos,2 residentes no bairro em que se realizou a investigação e usuários, ainda que eventualmente, dos serviços públicos de saúde. A maioria declarou ser casada e atribuiu a si a chefia familiar.

Quadro 1
Perfil dos informantes quanto idade, escolaridade, ocupação, estado civil, posição familiar, renda familiar e renda per capita. Campinas, São Paulo, 2014

Quanto às ocupações dos entrevistados, seis são aposentados, cinco são trabalhadores autônomos, três integram o mercado de trabalho formal, tendo registro em carteira, e um encontrava-se desempregado, por ocasião da entrevista.

O bairro em que se realizou a investigação situa-se na periferia da cidade de Campinas, sendo recortado, lateralmente, por uma rodovia intermunicipal de grande fluxo de automóveis, ônibus e caminhões. Distribuem-se, em seu entorno, algumas empresas que absorvem, parcialmente, a mão de obra dos moradores ali residentes. O Centro de Saúde, as escolas e a pequena rede de comércio e serviços estão na região mais centralizada do bairro, ao lado das moradias mais bem-acabadas. À medida que se afasta desse centro e se aproxima da rodovia, as casas se tornam precárias e os moradores pauperizados.

Orientação teórica e análise dos dados

Organizou-se a orientação teórica na análise dos dados baseando-se no conceito de representação social, definido por Laplantine (2001, p. 243) como: “a experiência individual e [os] modelos sociais num modo de apreensão particular do real”, em que crenças, valores e conhecimentos informam e dão sentido à ação.

Buscou-se, assim, apreender pelas questões do roteiro semiestruturado como os homens representam o processo saúde-doença, o envelhecimento e os cuidados de saúde nessa etapa da vida, atentando, também, nas configurações da masculinidade que perpassam tais processos, reveladas nos relatos dos entrevistados e interpretadas pelo pesquisador.

Concebe-se a masculinidade como:

Espaço simbólico que serve para estruturar a identidade de ser homem, modelando atitudes, comportamentos e emoções a serem adotados […] [representando] um conjunto de atributos, valores, funções e condutas que se espera que um homem tenha em uma determinada cultura. (Gomes, 2008, p. 70)

Como configurações do gênero, tanto a masculinidade quanto a feminilidade são, também, “projetos”, no sentido atribuído por Connell e Pearse (2015): são projeções para a vida, trajetórias para a formação de gênero não estanques. São configuradas pelas idiossincrasias biográficas e pelos aspectos sociais estruturantes das identidades pessoais: desigualdade de classe, diversidade étnica, de raça, diferenças regionais, geracionais, entre outros.

Kimmel e Messner (2001, p. 16, tradução nossa) ressaltam que a masculinidade é construída:

de diferentes formas pela cultura de classe, raça, etnia e idade. E cada um desses eixos da masculinidade modifica os outros. A masculinidade negra difere da masculinidade branca e cada uma delas também é modificada pela classe e idade. Um homem negro, de 30 anos, da classe média pode ter algo em comum com um homem branco, da mesma classe e idade, que não compartilhará com um homem negro, sexagenário, da classe trabalhadora, embora possa compartilhar com ele elementos da masculinidade que são diferentes daqueles do homem branco da mesma classe e idade.

Por sua vez, o processo de envelhecimento, concebido como construção simbólica da transição da maturidade para a velhice, é modelado por representações pertinentes à experiência vivida, individualmente, e às concepções coletivas dessa fase da vida mediadas pela interação social (Minayo; Coimbra Junior, 2002), e inflexionado, também, por gênero, classe social e raça, entre outros marcadores sociais identitários.

Dessa forma, baseando-se na análise entre gênero e envelhecimento, destaca-se que, embora o número de pessoas idosas de ambos os sexos esteja aumentando nos países desenvolvidos e em desenvolvimento, as mulheres, mundialmente, têm maior esperança de vida em relação aos homens, e, na maioria das vezes, sofrem mais com as doenças, sobretudo as crônicas, na velhice.3 O adensamento feminino nas fases mais avançadas do processo de envelhecimento faz que se fale sociologicamente de uma feminilização progressiva da velhice (Giddens, 2008).

Entende-se o cuidado em saúde como um dos aspectos do cuidado de si, que, conforme Foucault (1990, p. 28), é constitutivo do “sujeito moral”, este “define sua posição em relação ao preceito que respeita, estabelece para si um certo modo de ser que valerá como realização moral dele mesmo; e, para tal, age sobre si mesmo, procura conhecer-se, controla-se, põe-se a prova, aperfeiçoa-se, transforma-se”.

Entende-se, por fim, que sobre os sujeitos incidem, socialmente, normas de conduta que informam a ação, dotando-a de valor. No caso dos homens entrevistados, relacionam-se principalmente às práticas laborais, relevantes na conformação de suas identidades e no ideal da masculinidade dominante.

As entrevistas realizadas foram transcritas, lidas exaustivamente para identificar os temas recorrentes; sendo sistematizados e analisados os seus conteúdos temáticos, desvelados, qualitativamente, como modelos de comportamento encontrados nos discursos (Minayo, 2010). Na organização das informações e na análise, os temas classificados foram distribuídos em três núcleos temáticos: processo saúde-doença e masculinidade, envelhecimento e cuidados de saúde; e envelhecimento bem-sucedido, interpretados à luz das leituras socioantropológicas realizadas pelo pesquisador.

O projeto de pesquisa foi aprovado pelo Comitê de Ética da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Estadual de Campinas, parecer nº 274078/13, CAAE 12855613.4.0000.5404. Os nomes dos entrevistados são fictícios, resguardando o direito ao anonimato.

Processo saúde-doença e masculinidade

Questionaram-se os homens entrevistados sobre o que é ter saúde e estar doente, os relatos seguintes ilustram as dimensões da vida e comportamentos associados por eles ao processo saúde-doença:

Acho que a saúde está ligada à felicidade. Saúde é estar de bem com tudo e com todos, sem saúde você está triste, você não está feliz, você está descontente. (Caetano)

Saúde é você estar bem [risos] É você acordar no dia seguinte, fazer o que você gosta no seu trabalho, o que mais? Procurar agir assim de uma forma mais tranquila com as pessoas, né? Fazer bem pra eles, e acho que faz bem pra você também, né? [Pessoa com saúde] É uma pessoa alegre, bem extrovertida, de bem com a vida! (Perseu)

A doença, no meu modo de pensar, pra mim é tristeza, a tristeza. A pessoa está doente, ela está triste, não tem ânimo pra sair, não tem ânimo pra nada! (Serafim)

Doença é não estar bem consigo mesmo, né? Estar sobrecarregado, meio pra baixo, então no dia a dia […] você fica meio distante das pessoas, meio fechado, né? Triste por dentro e por fora (Perseu).

As representações de saúde e doença expressas pelos informantes reportam-se, diretamente, à dimensão afetiva da pessoa e da sua relação com a vida e com as demais pessoas. Assim, ser saudável é estar feliz, ser alegre, extrovertido, estar de bem com a vida, em contraposição ao estar doente, em que a doença é vista como tristeza, geradora de isolamento e ruptura da normalidade da vida, com o afastamento do convívio social e do trabalho.

Consoante a tais representações, a saúde se realiza como instauradora de sociabilidades, pois é um estar bem consigo e com os outros, remetendo às relações do mundo do trabalho, da família, mas também ao do lazer, à diversão e ao prazer.

Trata-se de critérios sociais, como a atividade, a participação social a delimitar o “estar saudável” e o adoecer, e a própria saúde como instrumento para se “ter tudo” (Adam; Herzlich, 2001): trabalhar, ganhar dinheiro, ter bom apetite, acrescentando-se as dimensões afetivas e relacionais. Revela, ainda, a dimensão moral que a saúde assume como expressão virtuosa do eu, da pessoa: estar e fazer o bem aos outros resulta no próprio bem.

É, principalmente, à disposição para o trabalho, tanto física quanto moral, que se associam as representações de saúde dos entrevistados, opondo-se à doença como forma impeditiva de realizar as atividades diárias, das laborais às corriqueiras, reportando-se, também, aos reflexos do processo saúde-doença na corporeidade:

Saúde para mim é o que eu faço todo dia: levantar de manhã cedo, sair pra correria, sei lá eu… Isso é saúde! Quem não tem saúde não faz isso. Quem tem saúde sai cedo da cama, não tem preguiça, não tem miséria, né? Saúde é disposição, saúde é disposição! (Paulo)

É estar bem fisicamente no dia a dia […] Saúde boa é no dia a dia você trabalhando, fazendo tudo o que tem que fazer e sem sentir nada, né? (Renato)

Doença é o cara cair aí em cima de uma cama, não poder fazer nada, as pessoas cuidando dele, aí é doença, é triste! (Armando)

Doença é sentir dor. Sentir dor em um órgão do corpo, problema com o organismo, sentir dor é doença! Eu acho que é doença, é o conceito que eu tenho de doença. (Alexandre)

O sociólogo francês Luc Boltanski (2004) traz contribuições teóricas significativas para a reflexão sobre os usos sociais do corpo. Aponta como o pertencimento de classe modela as representações sociais do corpo e das práticas e percepções corporais, gerando o que poderíamos chamar de “cultura corporal de classe”. Tais contribuições são pertinentes para aprofundar a análise das representações sobre o corpo masculino e a classe social, articulando-a às reflexões sobre as masculinidades, bem como para ampliar a compreensão sobre o processo saúde-doença, conforme se apresenta a seguir.

Boltanski (2004) refere-se à cultura somática: cada grupo humano desenvolve e valoriza características corporais inscritas culturalmente que lhe são úteis nas interações sociais. Essa cultura peculiar do corpo estabelecida socialmente é produto das condições sociais objetivas. Nas classes trabalhadoras, sobretudo entre os homens, a força física é valorizada, pois é ela que os inserem, frequentemente, no mundo do trabalho.

Os trabalhadores entrevistados reportam-se ao corpo saudável, pronto, forte, disposto a trabalhar, a enfrentar as dificuldades. Essas características baseiam-se na relação determinante que a corporeidade tem para a classe trabalhadora: saúde e doença são definidas principalmente por meio das categorias força e fraqueza, respectivamente (Loyola, 1984). De um lado, o corpo forte e saudável garante a subsistência da pessoa por meio do trabalho, ao contrário, o adoecimento o constrange e restringe.

De outro, tradicionalmente, nossa sociedade representa o homem como forte, agressivo, autônomo, portador de uma masculinidade idealizada, que se contrapõe à ideia do feminino como fraco, sensível e dependente (Gomes, 2008).

Segundo Connell e Pearse (2015), as práticas corporais estabelecem estruturas sociais e demarcam trajetórias pessoais, realizam-se no tempo e no espaço, ou seja, é um processo histórico e sociocultural, por elas denominado “corporificação social”. Tal processo integra os indivíduos, grupos sociais e as diversas instituições, modelando condutas socialmente esperadas para ambos os sexos.

Nessa mesma chave interpretativa pode-se entender a corporificação social associada à dimensão moral do trabalho como expressão da confiança no trabalhador para executar as atividades laborais, isto é, sua força tanto física quanto moral para “aguentar o peso de suas obrigações”, como se pode inferir do relato seguinte:

O supervisor fala assim, as pessoas falam assim, a firmeza que eu tenho, quando eu pego uma coisa e seguro, eles falam se ele fechar a mão, quando eu falo pode puxar que tá seguro, eles falam na mão dele tá seguro. Eles sabem que eu vou segurar e vou aguentar o que precisar. (Jair)

A dimensão moral socialmente atribuída ao trabalho, em que ser “homem trabalhador” é a condição fundante da figura do provedor, do pai de família, é bastante valorizada pela sociedade. A própria concepção da masculinidade dominante se confunde com a ideia de ser “homem trabalhador”, um quase definidor universal da masculinidade adulta (Barker, 2010; Courtenay, 2000); evidenciando o trabalho como um dos fatores principais sobre o qual os homens constroem suas identidades de gênero e a inserção masculina na sociedade como trabalhador.

De forma oposta, a doença é representada pelos entrevistados, sobretudo, pelo seu aspecto incapacitante, afastando os homens do mundo do trabalho, gerando dor e os sentimentos de tristeza e dependência.

Como sugere Boltanski (2004), o uso intensivo do corpo pelas classes trabalhadoras faz que se torne difícil para elas, muitas vezes, distinguir as sensações doentias: há tarefas laborais em que se trabalha no limite das forças físicas. De forma inversa, diz esse autor, nos trabalhos em que é exigido menos esforço físico há o aumento da relação reflexiva com o próprio corpo, acentuando-se a sensibilidade às mensagens mórbidas emitidas corporalmente.

Não é casual, portanto, que nos relatos dos trabalhadores cuja trajetória laboral foi marcada pela utilização intensiva do corpo ditada por suas profissões, a doença seja representada como experiência severamente incapacitante, enquanto para aquele que a força física não foi primordial na execução do seu trabalho, a dor apareça como sinal característico de enfermidade.

Os diferentes usos sociais do corpo (Boltanski, 2004) modelam as representações do processo saúde-doença, relativizando os seus significados para os membros de uma mesma classe social. Consequentemente, para aqueles cuja experiência do trabalho se mistura com a dor física imposta por exceder as forças corporais na realização diária de suas tarefas, a doença é reinterpretada quando não se perde a autonomia corporal, a gravidade da enfermidade é suavizada, sua existência questionada ou mesmo negada.

As representações de saúde e doença do grupo investigado relacionam-se às práticas e aos valores inerentes ao ideal da masculinidade socialmente dominante, entretanto, alguns entrevistados tecem reflexões críticas sobre os processos socioinstitucionais instauradores das práticas laborais, quando indagados sobre a origem dos seus problemas de saúde:

De onde veio esse problema? Esse problema veio do serviço braçal, se desde moleque eu tivesse na caneta, nos estudos, na cultura como muita gente tem eu não teria problema na coluna! Quem tem problema de coluna? Quem trabalhou na roça, descarregou saco, pegou pesado como eu. (Paulo)

Eu acho que o negócio [as dores na coluna] vem de lá atrás, sabe? Excesso de peso, muito desgaste […] Trabalhava numa profissão de marceneiro, pegava muito peso, não tinha limite, não era igual a hoje. Eu trabalhei numa empresa mais de vinte anos. Hoje você não pode pegar mais do que quinze quilos, hoje tem regulamento, antigamente não; você pegava, aquilo que não dava você pegava! (Antonio)

Nesses relatos, gênero, classe social e geração se intersectam, configurando a experiência vivida da enfermidade e justificando suas causas.

Ainda que a força física seja um atributo masculino bastante valorizado socialmente, modelando as identidades dos entrevistados como homens trabalhadores manuais produtivos da classe popular, os depoimentos apontam o seu uso excessivo e contínuo ao longo do tempo como uma das principais causas dos problemas na coluna, não sem expressar a crítica social às desigualdades de classe que presidem a sua origem, como se nota no primeiro relato. Também há que se observar, conforme enfatiza o outro entrevistado, que a regulamentação tardia de determinados processos laborais contribuiu para o adoecimento de muitos trabalhadores, expostos às jornadas e tipos de trabalhos exaustivos.

Essas considerações auxiliam a compreender como classe e configurações da política social e de trabalho incidem sobre os corpos dos homens, suas identidades e as masculinidades, moldando-os, trazendo consequências para a saúde masculina, expressas em suas representações sobre o processo saúde-doença.

Envelhecimento e cuidados de saúde

Historicamente, a velhice pode ser concebida como categoria social, que, da imagem negativa da degenerescência física existente até meados do século XX, passa a agregar, a partir dos anos 1970, representações positivas, como o período da instauração de novos hábitos, lazeres e laços sociais, e conquistas de direitos específicos por parte da população mais velha (Debert, 2010).

Da capacidade fenomenológica que o corpo tem de ser visto tanto pelo sujeito quanto pelos outros (Featherstone, 1998) emergem representações aludidas ao processo de envelhecimento e velhice, impregnadas pelos valores e conhecimentos específicos que dele tem os vários grupos humanos.

Assim, discorrendo antes de tudo sobre as modificações corporais ao longo do tempo, esboçaram-se as primeiras representações dos entrevistados sobre o processo de envelhecimento:

O corpo vai encolhendo, faz parte das modificações físicas, as dores, as fraquezas, perde agilidade, vai perdendo a agilidade, eu sei que vou perder… (Caetano)

Eu acho que você não é velho hoje, ainda, nem velho amanhã, você vai envelhecendo, vai indo […] A velhice é quando aparecem as rugas, as pessoas começam a ter indisposição para fazer as coisas, quando os músculos vão se tornando fracos, pra mim isso aí é sinônimo de velhice, eu, por exemplo, hoje com quase 60 anos, eu não corro o quanto eu corria quando era novo […] Eu não sou velho, eu estou ficando velho [risos]. (Alexandre)

Se por um lado, essas representações apontam os efeitos do tempo sobre o corpo como fator iniludível, o declínio corporal, de habilidades e o aparecimento de certas dores e enfermidades, testemunhando a inexorabilidade do processo de envelhecimento, por outro, a análise de alguns relatos permite entender tal processo como postura diante da vida, como atitude individualizada face à velhice:

A velhice é cada um de nós mesmos, se você se sentir velho, de repente têm pessoas que são velhas, idosas, têm 60 anos, às vezes eu me sinto mais velho, eu que estou com 50, me sinto mais velho que elas, às vezes pode ser que a pessoa se sinta mais jovem do que eu, às vezes, pode ser que eu me sinta mais velho que ela, acho que velho é a cabeça da gente nesse negócio de velhice. (Marcelo)

Têm pessoas que são novas e se acham velhas, já no meu modo de pensar eu tenho 53 anos, eu não me acho velho, não! Me acho um garotão! (Vitor)

Embora nas sociedades ocidentais os ciclos da vida sejam marcados, sobretudo, pela ordem cronológica (Featherstone, 1998), os depoimentos aludidos assinalam a velhice como um processo não decorrente da idade, estando associada mais à autopercepção identitária. Por sua vez, o perceber-se velho não está descolado dos valores, sentidos e concepções socialmente construídos sobre o processo de envelhecimento e a velhice.

Contextualizando as mudanças dos significados e práticas que marcam contemporaneamente as fases da vida, Debert (2010) aponta que vivemos um duplo processo de dissolução da vida adulta, entendida como etapa da maturidade que exige responsabilidade e compromisso.

Primeiramente, a juventude deixa de ser expressa por um grupo de idade específico, passando a representar um valor a ser conquistado, e cuja manutenção é dever de todos, por meio do consumo de bens e serviços.

Segundo, a velhice não se restringe mais ao final da vida, ligando-se a comportamentos socialmente desaprovados, como a negligência corporal, a ausência da alegria de viver, como diz Debert (2010, p. 51): “[a] uma espécie de doença autoinfligida”. Isso deve ser evitado; trata-se, portanto, de envelhecer de forma “bem-sucedida”.

Envelhecimento bem-sucedido

As considerações de Debert são interessantes, pois possibilitam refletir sobre algumas representações dos entrevistados em que os cuidados individuais de saúde se relacionam diretamente à ideia do envelhecimento bem-sucedido.

Quando o cara […] ele não está conseguindo fazer mais nada, aí está velho, mas não tem, depende dele, por exemplo, às vezes, tem nego com 60 anos que tá velho, não faz exercício, não faz caminhada, não faz nada! Parou, acomodou. Tem nego com 90 que está correndo, fazendo exercício e tal. […] O cara deve se preparar pra velhice. (Osvaldo)

Aquelas pessoas que têm uma boa estrutura genética, se elas praticarem bastante esporte, nadar bastante, elas vão chegar lá aos 70 anos e vão aparentar 50, por exemplo. (Alexandre)

Desde a juventude, da sua adolescência até hoje, você tem que manter um padrão, por exemplo, não fumar, não beber, usar coisa errada, perder noite de sono, isso daí tudo vai influenciando na velhice. (Marcelo)

Entendido como processo, o envelhecimento representado nas entrevistas supracitadas se associa aos cuidados individualizados de saúde: depende de cada um ter uma “boa velhice”. Não obstante esses cuidados se refiram, em sua maior parte, aos exercícios físicos, revelando a importância que a fisicalidade tem para os homens de um modo geral, como registrado em outras pesquisas (Machin; Couto; Rossi, 2009, Nascimento et al., 2011), indicam os comportamentos sociais que devem ser evitados no decorrer das várias fases da vida. Tais comportamentos envolvem aspectos físicos e morais, interferindo nas interações sociais, no trabalho, e seus resultados sendo sentidos na velhice.

Para se “envelhecer bem”, de forma saudável, portanto, há que se gerenciar a saúde, instaurando novos hábitos desde cedo, como expressam os depoimentos a seguir:

Tem como se prevenir, é o que a gente escuta. Observa aí, a gente vê. Ele sabe como se prevenir [o jovem] […] Você ir maneirando muito o tipo de alimento, peso, quanta situação você pode ir mudando pra você ter uma velhice saudável! Não livre das dores, de problemas, mas mais saudável, porque o problema é natural da velhice, a doença é natural da velhice, ele se desgasta [o corpo]. (Caetano)

Eu acho que fica sim [ficar velho antes do tempo], porque o desgaste físico é bem maior, né? Vamos supor, você trabalha o dia todo, e aí a noite você sai pra noitada várias vezes na semana, quer dizer, o corpo vai sentindo, e as noitadas, né? Sem contar esses dependentes químicos, usuários de drogas, aí sim ingere bebida de todo tipo. Eu sei porque já passei por isso. (Renato)

A juventude de hoje não chega nem aos pés da minha juventude […] Em termos de ânimo, até da própria alimentação, tá tudo errado! Hoje uma criança, se você põe um prato de comida pra ela comer, como uma salada, ela come o bife e o arroz, quando come, a salada fica de lado, mas se você der pra ela duas, três coxinhas, dois, três quibes, sabe, ela come tudo mais o guaraná. (Vitorino)

Nas várias representações dos entrevistados sobre envelhecimento e cuidados de saúde, a juventude aparece como um valor social relativo, isto é, ela não se apresenta como construção simbólica de uma fase da vida em que a saúde é mais factível do que em outras. Socialmente, a saúde é um dos maiores agregadores de valor aos diversos períodos da vida, a juventude sendo avaliada pelos informantes em contraste às experiências vividas de serem jovens, aos cuidados de saúde preconizados na sociedade e aos hábitos observados nas novas gerações.

Como destaca Batista (2005), ser negra e pobre, características comuns presentes em parte considerável da população periférica das metrópoles, delineia com traços sombrios o perfil de uma juventude carente de opções de lazer, exposta à violência, tanto institucional quanto social, em que o tráfico de drogas mostra-se como “opção” para se “melhorar de vida” ou seu uso como rota de fuga à realidade vivida.

É a partir desse contexto que ganham sentido as palavras de Vitor, quando diz: ser velho hoje é um privilégio viu! Hoje os jovens estão se acabando cedo, ou as de Serafim: essa droga mesmo, que ‘tão tomando aí’… Se ele não tiver cuidado, entrar naquilo lá; ele não vai ter saúde. Ele não vai ter saúde, porque como diz o outro, ‘vai matando devagarzinho’, né?.

A juventude é representada como mais uma das fases da vida em que os cuidados de saúde sancionados e normatizados pelo saber médico hegemônico e os comportamentos socialmente esperados são necessários, sendo valorizados, independentemente da idade, os modos de vida considerados apropriados para se ter saúde.

Ao desgaste corporal como desdobramento natural da vida, presente em grande parte das representações dos entrevistados sobre o envelhecimento, relacionam-se os cuidados preventivos de saúde, como a dieta alimentar balanceada, evitando, assim, a obesidade e as enfermidades dela decorrentes; o corpo obeso sendo reprovado socialmente; a prática de exercícios físicos; a abstenção de fumo e de bebidas alcoólicas, que integram os aconselhamentos médicos.

Embora as práticas e valores informados pelo ideal da masculinidade tradicional sejam dominantes no grupo investigado, o processo de envelhecimento possibilita a alguns deles questionar e reinterpretar as relações de gênero e tal ideal, como pode ser observado,

Ah, sim o corpo muda […] é da vida, se você não tiver um bom relacionamento fica ruim. Tanto o homem quanto a mulher tem que entender o desgaste físico de cada um, né? (Vitor)

Eu vejo o meu pai, ele é um que morre de vergonha de sair, ir a um baile, tem vergonha, então, o que ele faz? Não sai de casa, se expõe pouco. A gente tem que ter prazer na vida! Eu acho que você tem que trabalhar contra os problemas, acho que eles estão aí a sua volta […] Viajar faz um bem, eu vou fazer compra com ela [esposa] no final de semana, viu, e só volto no domingo, então, eu vejo que isso faz bem, eu sinto, eu percebo. (Caetano).

No primeiro relato, a representação sobre o corpo assinala a necessidade de o casal compreender os limites físicos de cada um com o processo de envelhecimento, o que só é possível em um bom relacionamento, aproximando-se de uma visão mais igualitária entre os gêneros com o avanço da idade e as limitações que o corpo impõe.

O segundo depoimento remete ao convívio do casal, ao companheirismo e prazer de desfrutar, conjugalmente, o lado bom da vida diante dos problemas cotidianos. Isso significa, muitas vezes, repensar o modo de vida dos pais, o modelo de uma masculinidade tradicional, dominante, que associa o homem estritamente à esfera do trabalho e à provisão familiar, restringindo-o à casa quando chegam a idade e a aposentadoria. Significa, enfim, reconhecer e priorizar as relações de afeto e prazer presentes nas interações sociais que constituem a saúde e a própria vida.

Envelhecer é, conforme expresso nos relatos dos entrevistados, processo vivido e refletido. Segundo o sociólogo britânico Anthony Giddens (1991), vivemos num processo de radicalização da modernidade, o qual denomina modernidade tardia ou reflexiva. A modernidade é concebida por ele como a organização social, os costumes, os estilos de vida e as práticas herdadas da tradição ocidental em que o pensamento teórico social - também ele herdeiro dessa mesma tradição - não é suficiente para explicar os fenômenos sociais atuais.

Emerge, então, a questão da reflexividade, sendo exigido dos sujeitos mais autonomia e reflexão. Sobre esse ponto, diz o autor: “[a] reflexividade da vida social moderna consiste no fato de que as práticas sociais são constantemente examinadas e reformadas à luz de informação renovada sobre estas práticas, alterando assim constitutivamente seu caráter”. (Giddens, 1991, p. 45).

A reflexividade é tanto institucional quanto social, pois expressa uma forma de pensar historicamente datada - a modernidade e suas instituições - bem como a sociedade, à medida que implica configurações de modos de vida. Ela é exigida dos sujeitos porque se encontra no cerne da reprodução do próprio sistema social (Giddens, 1991).

Nesse movimento da reflexividade social, há rupturas e continuidades no status da tradição, porque a modernidade opera ainda com referências tradicionais na configuração dos modos de vida. Há, sobretudo, maior quantidade de informação circulando por meio das mídias, perpassando todos os segmentos sociais.

As considerações de Giddens são interessantes para pensar o processo do envelhecimento bem-sucedido, tal como representado pelos entrevistados. As escolhas feitas individualmente baseadas na reflexão e nas informações de saúde, em que aparecem explicitamente pressupostas tanto a liberdade quanto a exigência social do sujeito de decidir sobre os modos de vida que modelarão o seu envelhecimento, sinalizando que esse pode ser um processo bem ou malsucedido.

Os relatos seguintes iluminam pontualmente tal entendimento, complementando a análise:

Aí, a partir do momento que você controla, alimentação em primeiro lugar, manter uma rotina de exercícios [físicos] não exagerar muito no álcool, você vai, você controla o máximo que você pode [o envelhecimento]. (Osvaldo)

Aí o que acontece é você se orientar […] A pessoa começa a tomar aquela prevenção antes. Quando é que as pessoas procuravam um médico pelo problema de coração? […] Só depois dos 50, 60 anos […] Hoje já tem jovem aí que tem problema cardíaco […] A pessoa tá sendo orientada, tá todo mundo vendo que o problema de saúde é o mesmo […] Você começa a cuidar mais cedo, vai ter uma tendência para melhorar! (Jair)

A partir da hora em que a pessoa depende dos outros, não tem condições de decidir bem sozinha, não sabe fazer as coisas que gostaria de fazer sozinha, aí vai ficando velha… [Não sé é velho quando] A pessoa ainda é responsável, ainda consegue, como diz o outro, chefiar, ministrar a vida, as coisas. (Antonio)

Se o envelhecimento é um processo inevitável, conforme atestam os saberes erudito e popular, ele não é por isso menos controlável, como exposto no primeiro relato. Contudo, um dos efeitos não planejados da modernidade reflexiva é que a informação e o conhecimento especializado trazem consigo as incertezas dos riscos, dos perigos, complicando a ideia de controle.

O sistema de conhecimento especializado na modernidade reflexiva, baseado na competência profissional e na excelência tecnológica, conforma aquilo que Giddens (1991) denomina sistema perito. O desenvolvimento do sistema perito se efetiva com a separação peculiar do espaço e do tempo na modernidade, possibilitando o desencaixe de sistemas e relações sociais tradicionais, ou seja, estas não se dão apenas nos contextos locais de interação, mas se reestruturam por meio de extensões indefinidas do espaço-tempo, sendo exemplar o caso das redes sociais digitais. Ampliam-se, assim, os recursos informacionais.

O sistema perito estrutura os ambientes material e socialmente, como o da medicina, ancorando-se na confiança social da competência profissional e do domínio das tecnologias médicas. Entretanto, a confiabilidade nos sistemas peritos na contemporaneidade, segundo Giddens (1991), repousa menos na sensação de segurança proporcionada pelo saber especializado do que pelo cálculo de vantagens e riscos estabelecido para um evento independentemente dado, nas palavras do autor:

O conhecimento perito simplesmente não proporciona esse cálculo, mas na verdade cria (ou reproduz) o universo de eventos, como resultado da continua implementação reflexiva desse próprio conhecimento […] Os indivíduos em cenários pré-modernos, em princípio e na prática, poderiam ignorar os pronunciamentos de sacerdotes, sábios e feiticeiros, prosseguindo com as rotinas da atividade cotidiana. Mas este não é o caso no mundo moderno, no que toca ao conhecimento perito (Giddens, 1991, p. 88, grifo no original).

Nesse sentido, o envelhecimento bem-sucedido é incerto, incerteza compartilhada pela própria ciência, mas há o prognóstico da medicina científica, nutrido e posto à prova continuamente, por meio de experiências cada vez mais sofisticadas que buscam refinar a associação de determinados modos de vida à longevidade humana.

A autonomia do sujeito se localiza, então, no interregno da liberdade de escolha e do imperativo social do “envelhecer bem”. A reflexividade como capacidade da sociedade pensar a si mesma implica racionalização crescente de suas práticas, socialmente, espera-se, portanto, que as condutas sejam racionalmente orientadas, como sugeridas nos relatos dos informantes em que às informações de saúde juntam-se os exercícios físicos, a dieta alimentar equilibrada, e os cuidados médicos preventivos, as enfermidades sendo diagnosticadas e tratadas precocemente, conduzindo a pessoa ao envelhecimento saudável.

Certamente, como sugere Giddens (1991), o movimento reflexivo não penetra uniformemente os diversos grupos sociais, havendo aqueles cujas práticas, condutas e valores encontram-se mais ligados à tradição, como verificado nesta investigação. Essas considerações possibilitam compreender as múltiplas representações coexistentes no interior de segmentos da sociedade, em que saúde e doença intersectam o corpo, o envelhecimento e a velhice bem como outras fases da vida, tornando-os processos sociais complexos.

Considerações finais

É significativo que o processo de envelhecimento e a velhice sejam representados por alguns entrevistados como perda dos atributos que caracterizam o sujeito na atualidade - a incapacidade física, mas, sobretudo, a reflexiva, para deliberar sobre a própria vida -, o que testemunharia a ausência de autonomia e liberdade da pessoa. A representação da velhice se aproxima, assim, das concepções informadas sobre a enfermidade, assumindo o sentido de perda, privação.

Por outro lado, não se deve perder de vista a importância do uso do corpo nas classes trabalhadoras, a concepção de ser ativa, característica atribuída à saúde, expressa nas atividades física e laboral em contraposição à doença como incapacidade para trabalhar, restringindo, assim, a forma de inserção social do homem trabalhador produtivo.

Autonomia e liberdade, mais do que valores individuais, aparecem associadas ao trabalho, ele mesmo um valor para as classes trabalhadoras. Por conseguinte, segundo tais representações, envelhecimento e doença são concebidos como eventos que podem interditar esses valores, explicitados pelo medo da incapacitação e pela dependência que esses processos podem desencadear.

Tais representações são perpassadas por um tipo de concepção da masculinidade, esculpida tradicionalmente por meio das atribuições e obrigações sociais dirigidas aos homens como trabalhadores, provedores da família, valores importantes para as classes trabalhadoras. A estes se associam as interdições aos comportamentos moralmente reprovados pela sociedade, como os excessos de bebida, droga e a preguiça vistos como vícios a serem evitados.

O ideal da masculinidade dominante entre os entrevistados repousa, sobretudo, na força, que é a um só tempo atributo físico e moral: físico para poderem “aguentar” o trabalho pesado do qual provém o sustento familiar, e moral, para arcarem com suas responsabilidades como provedores, refletindo, ainda, a resistência aos vícios impeditivos da realização daquele ideal.

Nota-se que essas representações dialogam diretamente com a biomedicina, cujo saber penetra toda a sociedade e os meios de comunicação, tornando-o mais acessível aos informantes. Observa-se, no entanto, que estes não abdicam das formas tradicionais de cuidar do corpo e da saúde, tais como o sono e a alimentação, concebidas popularmente como atividades reparadoras e restituidoras da energia e do desgaste do corpo pelo trabalho, tornando relativo o processo reflexivo no interior das classes trabalhadoras.

Ressalta-se, por fim, que as masculinidades se alteram no tempo e no espaço, podendo ser interrogadas pelos homens no processo de envelhecimento, como observado nesta investigação. O testemunho das experiências singulares vividas por alguns homens, tão uniformemente encobertas sob o manto da masculinidade representada socialmente como tradicional e desafeita às manifestações masculinas das emoções, aponta possibilidades dessa estereotipia de gênero ser desafiada, ainda que pontualmente, favorecendo nessa etapa da vida relações mais saudáveis e afetuosas do homem consigo mesmo e entre os gêneros.

Referências

  • ADAM, P.; HERZLICH, C. Sociologia da doença e da medicina. Bauru: Edusc, 2001.
  • BARKER, G. Trabalho não é tudo, mas é quase tudo: homens, desemprego e justiça social em políticas públicas. In: MEDRADO, B. et al. (Org.). Homens e masculinidades: práticas de intimidade e políticas públicas. Recife: Instituto Papai, 2010. p. 125-137.
  • BATISTA, L. E. Masculinidade, raça/cor e saúde. Ciência e Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 10, n. 1, p. 71-80, 2005.
  • BOLTANSKI, L. As classes sociais e o corpo. 3. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2004.
  • COLES, T. Negotiating the field of masculinity: the production and reproduction of multiple dominant masculinities. Men and Masculinities, New York, v. 12, n. 1, p. 30-44, 2009.
  • CONNELL, R. W. La organización social de la masculinidad. In: VALDÉS, T.; OLAVARRIA, J. (Ed.). Masculinidad/ES: poder y crisis. Santiago: Ediciones de las Mujeres, 1997. p. 31-48.
  • CONNELL, R. W.; MESSERSCHMIDT, J. W. Hegemonic masculinity: rethinking the concept. Gender & Society, Oakland, v. 19, n. 6, p. 829-859, 2005.
  • CONNELL, R.; PEARSE, R. Gênero: uma perspectiva global. São Paulo: nVersos, 2015.
  • COSTA JUNIOR, F. R.; COUTO, M. T. Geração e categorias geracionais nas pesquisas sobre saúde e gênero no Brasil. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 21, n. 4, p. 1299-1315, 2015.
  • COURTENAY, W. H. Constructions of masculinity and their influence on men’s wellbeing: a theory of gender and health. Social Science and Medicine, Oxford, n. 50, p. 1385-1401, 2000.
  • COUTO, M. T. Gênero, masculinidades e saúde. 2016. 174 f. Tese (Livre-Docência em Ciências Humanas e Sociais em Saúde) - Faculdade de Medicina, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2016.
  • DEBERT, G. G. A dissolução da vida adulta e a juventude como valor. Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, v. 16, n. 34, p. 49-70, 2010.
  • FEATHERSTONE, M. O curso da vida: corpo, cultura e o imaginário no processo de envelhecimento. In: DEBERT, G. G. (Org.). Antropologia e velhice. Campinas: Ed. UNICAMP, 1998. p. 45-64. (Textos didáticos, n. 13).
  • FIGUEIREDO, W. S. Masculinidades e cuidado: diversidade e necessidades de saúde dos homens na atenção primária. 2008. 295 f. Tese (Doutorado em Ciências) - Faculdade de Medicina, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2008.
  • FONTANELLA, B. J.; RICAS, J.; TURATO, E. G. Amostragem por saturação em pesquisas qualitativas em saúde: contribuições teóricas. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 24, n. 1, p. 17-27, 2008.
  • FOUCAULT, M. História da sexualidade 2: o uso dos prazeres. Rio de Janeiro: Graal, 1990.
  • GIDDENS, A. As consequências da modernidade. São Paulo: Editora Unesp, 1991.
  • GIDDENS, A. Sociologia do corpo: saúde, doença e envelhecimento. Sociologia. 6. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2008. p.142-171.
  • GOMES, R. Sexualidade masculina, gênero e saúde. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2008.
  • IBGE - INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Tábua completa de mortalidade para o Brasil - 2017. Breve análise da evolução da mortalidade no Brasil. Rio de Janeiro, 2018.
  • KEIJZER, B. Hasta donde el cuerpo aguante: género, cuerpo y salud masculina. In: KIMMEL, M.; MESSNER, M. (Ed.). Men’s lives: introduction. 5. ed. Boston: Allyn & Bacon, 2001. p. ix-xvii.
  • KIMMEL, M.; MESSNER, M. (Ed.). Men’s lives. 5. ed. Boston: Allyn & Bacon , 2001.
  • LAPLANTINE, F. Antropologia dos sistemas de representações da doença: sobre algumas pesquisas desenvolvidas na França contemporânea reexaminadas à luz de uma experiência brasileira. In: JODELET, D. (Org.). As representações sociais. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2001. p. 241-259.
  • LAURENTI, R.; JORGE, M. H .P. M.; GOTLIEB, S. L. D. Perfil epidemiológico da morbimortalidade masculina. Ciência e Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 10, n. 1, p. 36-46, 2005.
  • LOYOLA, M. A. Médicos e curandeiros: conflito social e saúde. São Paulo: Difel, 1984.
  • MACHIN, R.; COUTO, M. T.; ROSSI, C. C. S. Representações de trabalhadores portuários de Santos - SP sobre a relação trabalho-saúde. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 18, n. 4, p. 639-651, 2009.
  • MINAYO, M. C. S. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. 12. ed. São Paulo: Hucitec, 2010. p. 39-76.
  • MINAYO, M. C. S; COIMBRA JUNIOR, C. E. A. (Org.). Antropologia, saúde e envelhecimento: introdução. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz , 2002. p. 11-24.
  • NASCIMENTO, A. R. A. et al. Masculinidade e práticas de saúde na região metropolitana de Belo Horizonte. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 20, n. 1, p. 182-194, 2011.
  • SEPARAVICH, M. A. Saúde masculina: representação e experiência de homens trabalhadores com o corpo, saúde e doença. 2014. 188 f. Tese (Doutorado em Saúde Coletiva) - Faculdade de Ciências Médicas, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2014.
  • 1
    O autor agradece à Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) pelo apoio financeiro concedido.
  • 2
    À época da investigação, 2013, o valor do salário mínimo era de R$ 678,00.
  • 3
    No Brasil, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE, 2018), a esperança de vida dos homens ao nascer é de 72 anos e das mulheres 78, aproximadamente. Com relação às doenças crônicas, a incidência e os fatores de risco para desenvolve-las, tais como tabagismo, etilismo, sedentarismo e obesidade se concentram entre os homens (Laurenti; Jorge; Gotlieb, 2005), demarcando o perfil da morbimortalidade masculina.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    30 Abr 2020
  • Data do Fascículo
    2020

Histórico

  • Recebido
    06 Mar 2018
  • Revisado
    03 Jun 2019
  • Aceito
    03 Fev 2020
location_on
Faculdade de Saúde Pública, Universidade de São Paulo. Associação Paulista de Saúde Pública. Av. dr. Arnaldo, 715, Prédio da Biblioteca, 2º andar sala 2, 01246-904 São Paulo - SP - Brasil, Tel./Fax: +55 11 3061-7880 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: saudesoc@usp.br
rss_feed Acompanhe os números deste periódico no seu leitor de RSS
Acessibilidade / Reportar erro