Open-access Esquistossomose mansônica como doença profissional: a importância de estabelecer o nexo

Resumo

Este ensaio destaca o perfil do trabalhador de área rural, portador da Esquistossomose mansônica, doença endêmica adquirida durante suas atividades laborais em áreas alagadas da baixada maranhense. Faz-se uma análise da legislação previdenciária e trabalhista utilizada para fins de concessão de benefícios e do nexo causal que estabelece a relação entre a situação de trabalho e o surgimento da doença. Para tal, utilizamos pesquisa bibliográfica sobre a temática e pesquisa documental do plano jurídico formal da previdência. O estudo aponta para a necessidade de reconhecer esta relação nas regiões endêmicas, no sentido de aprimorar o proposto na “Lista de Doenças Relacionadas ao Trabalho”.

Palavras-chave: Esquistossomose; Doença profissional; Legislação previdenciária; Nexo causal

Abstract

This study highlights the profile of rural workers with schistosomiasis mansoni, an endemic disease acquired during their work activities in flooded areas in the Baixada Maranhense. In order to analyze the social security and labor legislation used to grant benefits and the causal link that establishes the relationship between the work situation and the onset of the disease, we performed a bibliographical research on the topic and a documentary research on the formal legal plan of social security. This study addresses the need to recognize this relationship in endemic regions in order to improve what is proposed by the List of Work-Related Diseases.

Keywords: Schistosomiasis; Occupational disease; Social security legislation; Causal link

Introdução

A importante prevalência da esquistossomose em áreas endêmicas apresenta desafios específicos para alguns campos do conhecimento, na perspectiva de um ainda não alcançado controle mais eficaz da doença. Nesse enfoque, se permite levantar questões sobre os padrões do comportamento dessas populações e o nexo entre o trabalho desenvolvido e o surgimento desta patologia. Admite-se a necessidade de contribuição da Saúde Coletiva, mais especificamente da área de Saúde do Trabalhador, em sua possibilidade de legitimá-la como profissional, ou seja, constar na Lista de Doenças Profissionais da Previdência Social. A construção da lista é um processo dinâmico, que envolve a maneira pela qual trabalho é executado, as peculiaridades da localidade e os agentes envolvidos. Atualmente, algumas listas já se encontram em processo de atualização, mas se tratando de agentes biológicos, ainda não respondem às necessidades do trabalhador rural de várias localidades.

A Saúde do Trabalhador é entendida como um campo do saber que se propõe a estudar o processo dinâmico das relações de trabalho frente às condições insalubres a que se expõe um conjunto de trabalhadores, na perspectiva de evitar as doenças e acidentes que possam ocorrer. Eles compartilham os perfis de adoecimento e morte da população em geral, em função de sua idade, gênero, grupo social ou inserção em um grupo específico de risco. Podem adoecer ou morrer por causas relacionadas ao trabalho, em decorrência da profissão que exercem ou exerceram, ou pelas condições adversas em que seu trabalho é ou foi realizado (Brasil, 2001; Mendes, 2013a).

Das “doenças profissionais” à “Saúde do Trabalhador”

Mendes (2013b) registra que, no ano de 1700, o médico italiano Bernardino Ramazzini, publicou o livro De Morbis Artificum Diatriba, traduzido posteriormente como A Doença dos Trabalhadores. O autor considerava a investigação da ocupação dos pacientes uma condição fundamental para uma boa anamnese, além de destacar a relevância de problemas ambientais como ameaças à saúde deles.

Ao incluir novos determinantes em um novo modelo de investigação, Ramazzini reitera a necessidade de correlacionar o estado de saúde de uma determinada população e suas condições de trabalho. Ao longo dos anos e à luz do processo socioambiental, as idéias de Ramazzini se consolidaram e o modo de viver das categorias de trabalhadores, refletidos nas formas de morbi-mortalidade, desencadearam maiores reflexões e, com isso, melhores práticas de proteção.

Da perspectiva de Laurel (1983), ao questionar o modelo bioecológico de causalidade, ampliando o leque de determinantes das doenças, um processo de construção histórica que tem como base toda uma trajetória de lutas por melhores condições de saúde no ambiente de trabalho é traçado ante as normas regulamentadoras atuais.

Com uma nova abordagem, a Saúde do Trabalhador se expressa como campo multidisciplinar e de múltiplas ações, ao incluir a questão de sobrevivência ambiental e laboral. O trabalhador rural necessita trabalhar e, dessa forma, convive cotidianamente com riscos, entre eles: físicos (calor e umidade excessivos), ergonômicos (posturas inadequadas), químicos (resíduos derivados de agentes contaminantes) e biológicos (parasitas), que comprometem sua saúde e das pessoas da comunidade.

Aponta-se, portanto, que o trabalho, quando executado em ambiente insalubre, pode ser um importante fator de risco “ocupacional”, que comporta uma estreita relação com a estrutura ambiental e socioeconômica local. Nesse processo, destaca-se a necessidade de integrar ações de proteção à saúde do trabalhador, de desenvolvimento produtivo social e controle dos riscos ambientais.

Sobre o ambiente do trabalhador da Baixada Maranhense

As características ambientais da Baixada Maranhense, localizada no município de São Bento e utilizada como referência da aplicação de normativas que fundamentam este estudo, requerem uma abordagem especial da medicina do trabalho e especificamente dos profissionais responsáveis pela proteção da saúde dos trabalhadores, ao levar em consideração a dispersão populacional rural e sua heterogeneidade, a configuração do terreno, a vegetação, os tipos de solo, o clima, o saneamento, a educação sanitária, além da variedade cultural e condição socioeconômica local.

Naquela localidade, são particularmente importantes as relações do homem com a água, principalmente no seu local de trabalho, onde permanece a maior parte do tempo desenvolvendo atividades de agricultura, caça e pesca.

Em relação aos agentes biológicos, o horário de realização do trabalho poderá determinar a exposição do trabalhador a um risco específico, visto que se evidencia uma maior frequência do agente ou vetor em determinadas horas do dia. Esta relação refere-se à contaminação pelo Schistosoma entre lavradores de culturas alagadas, pela simultaneidade dos horários de trabalho e de liberação de cercárias. (Carneiro; Carneiro; Brillet, 2004).

Devido à falta de medidas eficazes de saneamento e educação sanitária, uma parte de população tende a lançar os dejetos diretamente sobre o solo, criando, desta forma, situações favoráveis à transmissão da doença. Diante do abundante volume hídrico, os sujeitos buscam nos campos alagados a sua subsistência, através da ação de pescar, caçar e plantar; e assim, se expõem à contaminação biológica pela sua atividade profissional. (Carneiro; Carneiro; Brillet, 2004; Gryschek; Espírito Santo, 2017; Melo et al., 2019).

Os parasitas que contaminam as fontes hídricas são agentes biológicos de risco, nesse contexto é possível apontar as atividades realizadas pelos trabalhadores de zona rural, em contato com a água contaminada durante seus labores cotidianos, como ocupacionais.

Tais atividades, exercidas pelos trabalhadores nessas condições, podem desencadear a Esquistossomose, patologia que ao longo do tempo pode incapacitar o indivíduo e torná-lo dependente dos benefícios previdenciários. Nesses termos, devido a tal forma de contaminação, seria estabelecido o nexo “trabalho-doença” e fornecidos, por meio da Previdência Social, os benefícios inerentes a esse processo.

Partindo-se desse entendimento, pretende-se, neste estudo, realizar uma análise dos documentos utilizados como parâmetro para a concessão de benefícios previdenciários, de acordo com o nexo causal constatado, levando-se em conta as condições laborais dos trabalhadores rurais da Baixada Maranhense, frente a contaminação ocorrida pelo Schistosoma mansoni durante suas atividades.

Estratégia metodológica

Entende-se que, sob determinadas condições, a Esquistossomose se configura como uma doença ocupacional, ao se estabelecer o “nexo causal” entre as atividades laborais e a doença, principalmente quando localizada em áreas endêmicas. Neste sentido, torna-se necessária uma investigação sobre as normativas, principalmente previdenciárias, que ainda não a legitimaram como tal.

Para tanto, realizamos uma análise documental do plano jurídico formal utilizado pela Previdência Social para concessão de benefícios, investigando outros documentos relacionados a essa temática e realizando, ainda, pesquisa bibliográfica sobre o assunto.

Em se tratando de uma análise documental, segundo a perspectiva de Appolinário (2009), optamos pela realização da coleta por uma estratégia local de fontes documentais. O processo de coleta de dados teve início no segundo trimestre de 2017 e prosseguiu até 2019, após a fase de pré-análise, em que foram definidos os meios de realização da pesquisa e traçados seus objetivos, já descritos.

Na segunda fase da coleta, procedeu-se a organização do material a ser analisado, relacionado aos documentos formais e ao conteúdo científico de abordagem sobre o assunto. Sobre os primeiros, destacam-se a “Lista de doenças relacionadas ao trabalho - Port. n. 1.339/GM, de 18 de novembro de 1999, da Secretaria de Atenção à Saúde do Ministério da Saúde; a “Lista das doenças profissionais” - Decreto Regulamentar n. 6, de 5 de maio de 2001, do Ministério do Trabalho e Solidariedade; a “Lista de Doenças profissionais” - Decreto Regulamentar n. 76, de 17 de julho de 2007, do Ministério do Trabalho e da Solidariedade Social e “Doenças Relacionadas ao Trabalho: Manual de Procedimentos para os Serviços de Saúde do Ministério da Saúde - OPAS. Por meio dessas listas e manual, foram fundamentadas as concessões de benefícios da Previdência Social dispostos em manuais e instrumentos normativos. (Brasil, 2001, 2008; Portugal, 2001,2007)

Nestes documentos, analisamos os aspectos relacionados aos agentes biológicos, com ênfase no que diz respeito a presença e disposição da Esquistossomose mansônica. Foram observados: a categoria dos riscos e/ou agentes; a presença da patologia na lista, conforme o padrão de endemicidade informado; sua caracterização; e a lista de trabalhos susceptíveis a provocar a doença. Esses aspectos foram analisados ao longo do tempo em que foram publicados oficialmente. Ao final da coleta, o registro dos dados foi analisado de forma descritiva e, após conclusão da análise, obtivemos um instrumento que permitiu descrever e discutir seus registros.

Este estudo foi produzido a partir de uma pesquisa avaliativa na área da Saúde do Trabalhador realizada pela primeira autora, registrado no Comitê de Ética e Pesquisa (CEP) do Hospital Universitário da Universidade Federal do Maranhão, sob o no 045/11.

Resultados e discussão

Agentes biológicos são potenciais geradores de infecções ocupacionais, definidas por Durrani e Harrison (2016) como doenças humanas causadas por exposição associada ao trabalho por agentes microbianos, inclusive parasitas. De acordo com os autores, uma infecção caracteriza-se como ocupacional quando relaciona algum aspecto do trabalho com o contato com um organismo biologicamente ativo; ou seja, a infecção ocupacional pode ocorrer após contato com animais infectados na agricultura e em demais situações.

Tudo o que permite a implantação ou a multiplicação dos moluscos hospedeiros intermediários do Schistosoma mansoni favorece secundariamente a esquistossomose. Os lagos naturais, açudes, barragens, projetos de irrigação e grandes canais existentes na Baixada permitem o surgimento de novos focos de infecção.

Ao serem contaminados em suas atividades (caça, pesca, agricultura), os indivíduos adquirem uma doença de evolução silenciosa e caráter cumulativo, que se arrasta por tempo considerável, em grande parte das situações dificultando o nexo causal entre o trabalho e a doença. Sinais e sintomas são, por vezes, referidos e percebidos em um longo tempo após a exposição ao agente nocivo. Em alguns casos, a causalidade não é determinada e a doença não chega a ser caracterizada como relacionada ao trabalho.

Estabelecendo o nexo causal

No sentido de reparar os danos causados e, por vezes, garantir a própria sobrevivência, o trabalhador precisa que as instituições iniciem um processo que permita analisar o dano, estabelecer o nexo de concausalidade ou causal dos acidentes de trabalho e doenças ocupacionais e, por fim, deferir os benefícios adequados.

De acordo com o evidenciado pelo Ministério da Saúde (2014), as instituições e, a priori, a Previdência respaldam-se nas Listas de Doenças Profissionais ou Relacionadas ao Trabalho para conferir a relação atividade/doença. Esses documentos informam a concausalidade sem necessitar o deslocamento de peritos previdenciários ou demais sujeitos aos ambientes de trabalho. Desta forma, a possibilidade de estabelecer o nexo in loco não ocorre de maneira recorrente, exceto na vigência de processos judiciais trabalhistas, que extrapolam as esferas comuns da previdência, do trabalho e/ou da saúde e as suas respectivas listas, manuais e normativas.

Brandimiller (1997) aponta uma sequência de nexos (parciais), ou seja: entre a atividade e a exposição ao risco, entre o risco e a lesão e entre a lesão e a alteração funcional. Ao considerar os nexos parciais, o autor refere-se respectivamente a determinada relação causa e efeito entre atividade e risco, entre risco e lesão e entre lesão e alteração funcional.

O trabalhador que se expõe em suas atividades rurais, ao contrair a doença e, posteriormente, se incapacitar temporária ou permanentemente em decorrência das lesões provocadas pelo parasita em sua fase tardia, demonstra escopos diferenciados dos nexos parciais, a exemplo do que assinala Brandimiller (1997).

Pesquisas apontam os aspectos clínicos e epidemiológicos da doença em áreas endêmicas, seu alto risco de transmissibilidade por condições ambientais favoráveis e o atributo ocupacional constatado nas localidades estudadas (Barbosa; Barbosa, 1998; Melo et al., 2019). Em um estudo epidemiológico transversal de uma população de pescadores, Melo et al. (2019) demonstraram que a atividade laboral exercida expõe esses trabalhadores a um risco relativo 3,6 vezes maior de contrair infecção que outras atividades (lazer), por conta de uma maior frequência de contato com as coleções hídricas. Evidenciaram ainda distúrbios intestinais associados às formas hepatointestinal ou hepatoesplênica da Esquistossomosse, quadro que configura importante comprometimento funcional, a partir das lesões iniciais impostas após o contágio.

Os trabalhadores da Baixada Maranhense não apenas pescam, mas também caçam e se ocupam na lavoura. O tempo que eles despendem no trabalho, em detrimento das demais atividades, reforça ainda mais o estabelecimento do nexo. As implicações diagnósticas e alterações constatadas no sistema gastrointestinal e demais sistemas reafirmam a sequência dos nexos parciais já citados.

Das doenças relacionadas ao trabalho à legislação previdenciária

Com a Constituição de 1988, a Medicina Clínica, de caráter curativo individual, começa a evoluir para uma visão mais ampla, de coletividade, ao assumir um perfil prevencionista. É neste enfoque que o Sistema Único de Saúde (SUS), em uma perspectiva epidemiológica, congrega novas práticas relacionadas à área da Saúde do Trabalhador, a exemplo de sua participação na edição da Lista de Doenças Relacionadas ao Trabalho em implemento a Lei Orgânica da Saúde (Brasil, 2001).

No âmbito do trabalho, as doenças assumem um caráter diferenciado ao serem categorizadas como profissionais, ou seja, “…assim entendida a produzida ou desencadeada pelo exercício do trabalho peculiar a uma determinada atividade constante da respectiva relação do Ministério do Trabalho e da Previdência Social” (Brasil, 1991).

Ao se incapacitar para a atividade trabalhista devido a doenças ou acidentes de trabalho, o trabalhador apoia-se na garantia de sua sobrevivência por meio dos benefícios concedidos pela previdência, principalmente se constatado o seu nexo causal.

Quando nos referimos à contaminação por Shistossomoma mansoni dos trabalhadores da área rural de São Bento - município da Baixada Maranhense -, podemos caracterizar a doença como “profissional” através do nexo que se estabelece entre o seu surgimento e o trabalho realizado. Neste aspecto, podemos considera-la por uma outra perspectiva, diferente da instituída nos moldes da previdência até então legitimada.

Ao longo do tempo, a legislação voltada para a caracterização do nexo causal previdenciário sofreu algumas alterações relacionadas aos agentes etiológicos de Doenças Infecciosas e Parasitárias (DIP). Em compatibilização com o com a lista europeia de doenças profissionais, a exemplo do Decreto Regulamentar n. 6, de 5 de maio de 2001, Portugal (2001), a lista de doenças profissionais publicada na ocasião representou o resultado dos trabalhos de revisão executados até a data pela Comissão Nacional de Revisão da Lista das Doenças Profissionais. Nesta versão houve algumas alterações relativas ao grupo das DIP no contexto ocupacional, mas sem atualização para a Esquistossomose.

Ao analisar a referida lista, observou-se que a Esquistossomose estava categorizada entre os “Agentes biológicos causadores de doenças tropicais (código 55.02)” onde constavam todas as espécies dos Schistosomas como fatores de exposição ao risco em todas as suas formas clínicas. Partindo-se dessa concepção, a espécie mansoni, encontrada na área da Baixada Maranhense, como descrevem Carneiro, Carneiro e Brillet (2004), poderia estar incluída como agente de risco, assim como serem consideradas as diversas formas de manifestações clínicas apresentadas pela doença naquela localidade como também presentes na lista. Gryscheck e Espírito Santo (2019) apontam que a forma clínica hepatointestinal é a mais frequente e faz parte da forma crônica da Esquistossomose, que pode evoluir para o aumento do fígado com maior ou menor grau de fibrose. Classificada como doença de evolução lenta, a legislação estabeleceu, na ocasião, um prazo indicativo de 15 anos para caracterização da doença como profissional, levando-se em conta a frequência da exposição ao risco.

O Manual de Procedimentos para os Serviços de Saúde, instrumento de referência das Doenças Relacionadas ao Trabalho do Ministério da Saúde do Brasil (Brasil, 2001), elencam 15 doenças infecciosas e parasitárias de acordo com a Portaria no 1.339 de 1999. Nesta lista, dentre as patologias registradas não há alusão a Esquistossomose em nenhuma de suas espécies. Paralelamente, na lista de referência constante no Decreto Regulamentar no 6/2001 de 5 de maio do Ministério do Trabalho (Portugal, 2001, p. 2635), aplicava-se o benefício às seguintes atividades, consideradas suscetíveis de provocar a doença:

  • Trabalhos em consultórios, hospitais ou outras unidades de saúde e noutros locais em que se prestem cuidados de saúde que impliquem contacto com portadores da doença ou com roupas e outros materiais por eles contaminados (sua recolha, transporte, lavagem, esterilização, entre outros).

  • Trabalhos de laboratório de análises ou de investigação que impliquem contato com o agente da doença.

  • Trabalhadores que se deslocam ou permaneçam em países tropicais (trabalhadores da pesca, da marinha mercante, da aviação civil).

Este conteúdo elenca atividades incompatíveis com as formas de transmissão da doença no âmbito laboral, entretanto, no manual citado anteriormente a patologia nem mesmo era mencionada. De acordo com vasta literatura, tomando como exemplo o explicitado pelo Ministério da Saúde (2014) e Veronesi e Focaccia (2015), a transmissão não ocorre por contato direto entre doentes e suscetíveis, para que ocorra, é necessário que o parasitado, por meio de fezes infectadas, contamine o ambiente (águas doces) e desenvolva um ciclo complementar a partir um hospedeiro intermediário, o caramujo, que posteriormente irá infectar o homem. Tais estudos apontam que a Esquistossomose é uma doença de veiculação hídrica, algo detalhadamente demonstrado em sua cadeia de transmissão. Dessa forma, atividades que não possuam a água como veículo contaminante não poderiam ser consideradas “suscetíveis” a provocar a doença, a exemplo dos trabalhadores da área da saúde assinalados na lista. Também aqueles que simplesmente se deslocam para países tropicais e não trabalham em contato direto com a água “doce”, não têm a possibilidade de contágio. Afinal, de acordo com os autores supracitados, na água salgada não se desenvolvem hospedeiros intermediários, portanto o conteúdo de atividades inclusas na lista não possuía respaldo científico.

As listas que vieram a seguir portaram algumas modificações, mas também não levaram em conta a situação do trabalho na Baixada Maranhense como área endêmica. De acordo com a Lista de Doenças Relacionadas ao Trabalho do Ministério da Saúde, Portaria no 1.339 de 18 de novembro de 1999, revisada e publicada em 2008 (Brasil, 2008), o mesmo padrão da lista anterior foi verificado.

O Regulamento da Previdência Social em seu anexo II do Decreto 3048/1999 - “Agentes ou fatores de risco de natureza ocupacional relacionados com a etiologia de Doenças Profissionais e de outras Doenças Relacionadas com o Trabalho” (Ministério da Saúde, 1999) - não contempla o aspecto profissional da patologia em questão, ou seja, não constata evidência de nexo entre o agente patogênico (Schistosoma) e trabalhos que contêm risco. Não leva em conta sua característica endêmica, possivelmente considerada em outras patologias registradas no mesmo anexo, a exemplo da Leishmaniose e da Malária. Este documento norteia atualmente a concessão dos benefícios pagos pela Previdência para pacientes com Doenças Tropicais em nossa região da Baixada Maranhense.

Além do Decreto 3048/1999, outras legislações e textos são aplicados à análise dos tipos de nexo previdenciário em Doença Ocupacional e Acidente de Trabalho, a exemplo da Lei 8213/1991 em seu Artigo 21- A (Brasil, 1991), em que é explicitada a atuação da perícia médica do INSS e a constatação do nexo técnico epidemiológico entre o trabalho e o agravo; o Decreto 6.042/2007, relativo ao NTEP (Nexo Técnico Epidemiológico de Prevenção) (Brasil, 2007), ao apontar a relação do agravo com a atividade desenvolvida a partir do cruzamento do Código Internacional de Doenças (CID-10), da Classificação Nacional de Atividades Econômicas (CNAE) e da Instrução Normativa 31. Esta, relacionada ao Nexo Técnico Previdenciário, que avalia o acidentado com base em três parâmetros sem a visita ao ambiente laboral: o Nexo técnico profissional ou do trabalho, fundamentado no Decreto 3048/1999 (Brasil, 1999); o Nexo técnico individual por doença equiparada a Acidente de Trabalho, baseado na Lei 8.213/1991 (Brasil, 1991); e o Nexo técnico epidemiológico previdenciário (NTEP), quando houver significância estatística CID/CNAE dos decretos supracitados (Cabral; Soler; Wysocki, 2018).

A análise dos textos e legislações evidencia lacunas nos instrumentos utilizados pelas instituições, em relação ao estabelecimento do nexo entre a atividade profissional e a doença esquistossomótica. Soma-se a essa situação a informalidade do trabalho no campo, que pela dificuldade do acesso às instâncias legais, dificulta ainda mais a validação da doença como profissional, pois carece de parâmetros específicos que as listas ainda não contemplam.

Considerações finais

Atualmente, as Listas de Doenças Profissionais e Relacionadas ao Trabalho, por meio das quais a Previdência Social se baseia para conceder os benefícios aos profissionais doentes ou acidentados, ainda limita o ingresso dos trabalhadores do campo contaminados pelo Schistosoma a esses direitos. Essa doença, em sua fase crônica, pode incapacitá-los permanentemente ou o debilitá-los até a morte, sem que recebam os devidos auxílios previdenciários. Isso pode ocorrer por considerar-se a Esquistossomose uma doença apenas de transmissão peridomiciliar e ainda não relacionada especificamente ao trabalho rural, não sendo, portanto, legitimada na lista da previdência.

A legislação, portanto, não classifica de forma adequada a Esquistossomose, como uma doença profissional, endêmica e de grande expressão epidemiológica. Os Decretos ainda não fornecem base sólida para os peritos estabelecerem o nexo causal, inclusive o previdenciário, pois percebe-se um descompasso entre as listas e, por vezes, instituições. Os argumentos para o estabelecimento do nexo causal tendem a ser frágeis quando se trata dessa doença, pois as variações epidemiológicas geradas pelas diferentes localidades onde a doença se manifesta suscitam a presença do perito in loco para a confirmação do nexo causal, o que não é frequente na vigência do Nexo técnico previdenciário.

Partindo-se deste entendimento, é necessária uma revisão mais ampla da legislação, referente ao sistema de proteção aos trabalhadores expostos a agentes biológicos no Brasil, inclusive aos trabalhadores rurais. As doenças tropicais que atingem as áreas endêmicas devem ser consideradas e legitimadas como profissionais, ao ser evidenciado o nexo causal, levando-se em conta a grande prevalência e incidência da ocorrência dos casos.

Referências

  • APPOLINÁRIO, F. Dicionário de metodologia científica: um guia para a produção do conhecimento científico. São Paulo: Atlas, 2009.
  • BARBOSA, C. S; BARBOSA, F. S. Padrão epidemiológico da esquistossomose em comunidade de pequenos produtores rurais de Pernambuco, Brasil, Caderno de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 14, n. 1, p. 129-137, 1998.
  • BRANDIMILLER, P. A. Perícia judicial em acidentes e doenças do trabalho. São Paulo: Senac; 1997. p. 161.
  • BRASIL. Lei n° 8.080, de 19 de setembro de 1990. In: COSTA, L.C. (Org.). Legislação em saúde: caderno de legislação em saúde do trabalhador. Brasília, DF: Ministério da Saúde, 2001.
  • BRASIL. Decreto no 3.048, de 6 de maio de 1999. Aprova o Regulamento da Previdência Social, e dá outras providências. Diário Oficial da União, Poder Executivo, Brasília, DF, 7 maio 1999. p. 50. Disponível em: <Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/d3048.htm > Acesso em: 24 jan. 2022.
    » http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/d3048.htm
  • BRASIL. Lei nº 8.213, de 24 de julho de 1991. Dispõe sobre os planos de benefícios da Previdência Social e dá outras providências. Diário Oficial da União , Poder Executivo, 25 jul. 1991. p. 14809. Disponível em: <Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8213cons.htm > Acesso em: 24 jan. 2022.
    » http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8213cons.htm
  • BRASIL. Decreto Regulamentar n. 6.042, de 12 de fevereiro de 2007. Diário Oficial da União , Poder Executivo, Brasília, DF , 13 fev. 2007. Seção 1:2. p. 2.
  • BRASIL. Ministério da Saúde. Organização Pan-Americana da Saúde no Brasil. Doenças relacionadas ao trabalho: Manual de Procedimentos para os Serviços de Saúde. Brasília, DF, 2001.
  • BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Ações Programáticas e Estratégicas. Lista de Doenças relacionadas ao trabalho: Portaria n° 1.339/GM, de 18 de novembro de 1999. 2. Ed. Brasília, DF, 2008.
  • BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde. Departamento de Vigilância Epidemiológica. Vigilância da Esquistossomose Mansoni: diretrizes técnicas. 4. ed. Brasília, DF, 2014.
  • CABRAL, L. A. A; SOLER, Z. A. S. G; WYSOCKI, A. D. Pluraridade do nexo causal em acidente de trabalho/doença ocupacional: estudo de base legal no Brasil. Revista Brasileira de Saúde Ocupacional, São Paulo, v. 43, e1, 2018.
  • CARNEIRO, K. J. S. G.; CARNEIRO, C. S.; BRILLET, P. Évolution de la prévalence de la schistosomiase intestinale dans le district de São Luis do Maranhão (Brésil) entre 1978 et 2001. Cahiers d’études et de recherches francophones/Santé, [s.l.], v. 14, n. 3, p. 149-152, 2004.
  • DURRANI, T. S.; HARRISON, R. J. Infecções ocupacionais. In: LADOU, J; HARRISON, R. J. (Org.) CURRENT medicina ocupacional e ambiental: diagnóstico e tratamento. 5. ed. Porto Alegre: AMGH, 2016. p. 1071-1124.
  • GRYSCHEK, R.C.B; ESPÍRITO SANTO, M.C.C, Esquistossomose. In: SALOMÃO, R. Infectologia: bases clínicas e tratamento. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 2017. p. 681-701.
  • LAUREL, C, A. A saúde-doença com processo social. In: DUARTE, E. Medicina social: aspectos históricos e teóricos. Rio de Janeiro: Global, 1983. p. 4 -10.
  • MELO, A. G. S, et al. Esquistossomose mansônica em famílias de trabalhadores da pesca de área endêmica de Alagoas. Escola Anna Nery, Rio de Janeiro, v. 23, n. 1, e20180150, 2019.
  • MENDES, R. Bases históricas da patologia do trabalho. In: Mendes, R. Patologia do Trabalho. 3. ed., São Paulo: Atheneu, 2013a. p. 3-48.
  • MENDES, R. Patologia do trabalho. 3. ed. Rio de Janeiro: Atheneu, 2013b.
  • PORTUGAL . Decreto Regulamentar no 6, 5 de maio de 2001. Diário da República, Lisboa, 5 maio 2001, Série I-B, p. 2613-2638.
  • PORTUGAL . Decreto Regulamentar no 76, 17 de julho de 2007. Diário Oficial República Federativa, Lisboa, Série I, 17 jul. 2007, p. 4499-4543.
  • VERONESI, R.; FOCACCIA, R. Tratado de Infectologia. 5. Ed. São Paulo: Atheneu , 2015. v. II

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    12 Dez 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    09 Fev 2022
  • Aceito
    30 Maio 2022
location_on
Faculdade de Saúde Pública, Universidade de São Paulo. Associação Paulista de Saúde Pública. Av. dr. Arnaldo, 715, Prédio da Biblioteca, 2º andar sala 2, 01246-904 São Paulo - SP - Brasil, Tel./Fax: +55 11 3061-7880 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: saudesoc@usp.br
rss_feed Acompanhe os números deste periódico no seu leitor de RSS
Acessibilidade / Reportar erro