Resumo
A partir do objetivo inicial de investigar o agenciamento das práticas alimentares de sujeitos que aderiram ao distanciamento físico durante a pandemia de covid-19, foi possível ampliar a análise e tecer contrapontos às afirmações do espaço doméstico e da comensalidade como ordenadores de práticas alimentares saudáveis. Os dados de natureza qualitativa foram produzidos a partir de entrevistas com adultos residentes na Região Metropolitana de Salvador ou no Recôncavo Baiano, que referiram seguir as orientações de distanciamento físico. À análise, destacaram-se as afetações que atravessaram a experiência do distanciamento físico no âmbito doméstico, provocando redimensionamentos materiais e subjetivos nas práticas alimentares diante do contexto pandêmico no que tange à compra de refeições por meio de aplicativo de delivery, ao ato de cozinhar, de comer e à comensalidade. Apesar dos relatos excepcionais à experiência pandêmica, esses dados insuflam reflexões acerca dos modos de viver e transitar em um cotidiano doméstico que, de um lado, não necessariamente refletem ou traduzem, de modo quase que naturalizado, os “mantras de uma vida saudável”, e, de outro, revelaram a complexidade em torno de práticas alimentares que ocorrem em um contexto dentro do qual o modo de vida moderno, em sua multiplicidade de comensalidades urbanas, invadiu a casa.
Palavras-chave:
Práticas Alimentares; Covid-19; Pesquisa Qualitativa; Alimentação no Contexto Urbano
Abstract
Based on its initial objective of investigating the eating practices of individuals who adhered to physical distancing during the COVID-19 pandemic, this study broadened its analysis and opposed the claims that deemed the domestic space and commensality as organizers of healthy eating practices. The qualitative data was obtained from interviews with adults living in the metropolitan region of Salvador or in the Recôncavo Baiano who reported following physical distancing guidelines. The analysis highlighted the effects of enduring physical distancing in the domestic sphere, which materially and subjectively redimensioned the following food practices in the face of the pandemic: buying meals by delivery applications, cooking, eating, and commensality. Despite exceptional reports regarding the pandemic, these data provide food for thought about the ways of living and maneuvering a domestic everyday life that fail to necessarily reflect or translate the “mantras of a healthy life” in an almost naturalized way and show the complexity of food practices that takes place in a context in which the modern way of life has invaded homes in its multiplicity of urban commensalities.
Keywords:
Eating practices; COVID-19; Qualitative Research; Feeding in the Urban Context
Introdução
Mudou muito minha rotina alimentar, ficou tudo descontrolado. No trabalho, eu só fazia tomar meu café e umas dez horas, dez e meia, eu tomava meu chá. Mas aqui em casa era o tempo todo, passava pegava um biscoito. Se eu ia na cozinha pra beber água, qualquer coisa que eu visse eu metia na boca. (Ana)
A pesquisa qualitativa, a partir de dados empíricos, em sua plena complexidade e profundidade, pode revelar ao pesquisador mais do que a priori era proposto investigar. O relato apresentado acendeu a possibilidade para reflexões ampliadas da pesquisa, que objetivou investigar o agenciamento das práticas alimentares de sujeitos que aderiram ao distanciamento físico durante a pandemia de covid-19. Ao se debruçar sobre o corpus da pesquisa, a experiência de estar em casa possibilitou ampliar o escopo de análise do comer em ambiente doméstico, tecendo contrapontos às afirmações desse espaço e da comensalidade na ordenação e produção de práticas alimentares saudáveis (Brasil, 2014BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Atenção Básica. Guia alimentar para a população brasileira. 2. ed. Brasília, DF: Ministério da Saúde, 2014.).
Diante da emergência proveniente da pandemia de covid-19 e do distanciamento físico, enquanto estratégia recomendada pela Organização Mundial de Saúde (OMS) e por entidades científicas do mundo todo para enfrentamento e controle da pandemia, a casa passou a ser, para uma parte considerável da população, lócus quase que estrito do comer e da comensalidade, que antes aconteciam, também, em outros espaços coletivos e públicos.
O distanciamento físico reestruturou a vida social, tendo uma mediação das redes sociais virtuais, interferindo no modo de viver contemporâneo e em seus modos de produção da vida (trabalho, consumo, lazer, convivência etc.), em decorrência da recomendação de ficar em casa. A cidade como expressão e movimento da vida em sua complexidade, que carrega materialidades e subjetividades que se (re)estruturam (e sendo por ela estruturada) (Prado; Amparo-Santos, 2019PRADO, S. D.; AMPARO-SANTOS, L. Apresentação. In: BOSI, M. L. M.; PRADO, S. D.; AMPARO-SANTOS, L. (org). Cidade, corpo e alimentação : aproximações interdisciplinares. Salvador: EDUFBA , 2019.), se modificou diante desse contexto, trazendo impactos nas formas de lidar com o corpo, com o ato de comer e com a comida, afetando as práticas alimentares baseadas na experiência da comensalidade urbana.
As demarcações de questões inerentes às práticas alimentares nesses diferentes espaços - do comer enquanto assunto social e enquanto expressão de liberdade e responsabilidade individual e pessoal - se confundiram, performando agenciamento de tais práticas diante de rearranjos familiares que se conformaram durante o distanciamento físico.
Em que pese as permanências e transformações das práticas alimentares advindas desse cenário afetado pelas restrições da pandemia já amplamente estudadas, as análises sobre o ficar em casa nos convocam a refletir sobre as questões em torno da alimentação em âmbito doméstico, pautadas, sobretudo, nas prerrogativas provenientes das Ciências da Nutrição acerca da promoção de práticas alimentares saudáveis.
Sendo, portanto, a alimentação influenciada por novas normas que reorganizam e ressignificam a alimentação contemporânea (Kuwae et al., 2016KUWAE, C. A.; SILVA, L. F.; CARVALHO, M. C. V. S. et al. A reflexividade no saber leigo sobre as práticas alimentares. In: PRADO, S. D. et al. (org.). Estudos socioculturais em alimentação e saúde: saberes em rede. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2016.), e considerando que o distanciamento físico pode contribuir para reflexões em torno do tema, o este estudo objetiva compreender, a partir de dados empíricos, como os sujeitos em distanciamento físico agenciaram suas práticas alimentares durante a pandemia de covid-19.
Doravante, ainda que reconhecendo a excepcionalidade da experiência pandêmica, pretende-se trazer contribuições ao campo da alimentação e nutrição sobre o tema das práticas alimentares atreladas à promoção da alimentação saudável em ambiente doméstico, levantando contrapontos em torno da afirmação quase que unívoca do “comer em casa” como prática promotora de alimentação saudável.
Dessa forma, é possível refletir acerca das dimensões socioantropológicas que permeiam o campo da alimentação e nutrição, mas que são pouco exploradas no campo das práticas e das recomendações nutricionais.
Metodologia
Com abordagem qualitativa, de caráter exploratória-descritiva, esta pesquisa foi realizada com 12 adultos, entre 28 e 52 anos, que referiram seguir as orientações de distanciamento físico recomendadas pelos órgãos oficiais de saúde. Os sujeitos residiam na Região Metropolitana de Salvador (Salvador e Lauro de Freitas) ou no Recôncavo Baiano (Santo Antônio de Jesus e Nazaré) (Tabela 1).
A escolha foi feita considerando que tais cidades se caracterizam por diferentes contextos urbanos, com materialidades distintas, podendo desencadear experiências diversas, conferindo maior amplitude à análise do estudo.
Os interlocutores foram convidados por meio da divulgação da pesquisa em redes sociais virtuais, associada à técnica do snowball sampling, consistindo em um recrutamento via indicação de participantes iniciais do estudo até que o objeto fosse alcançado (Miles; Huberman, 1994MILES M. B.; HUBERMAN, A. M. Qualitative data analysis. 2. ed. Thousand Oaks: Sage, 1994.).
Os dados foram produzidos a partir de entrevistas realizadas entre outubro e dezembro de 2021. As entrevistas foram referentes às práticas alimentares (práticas declaradas), correspondendo àquilo que os sujeitos fizeram, durante o período em que mantiveram o distanciamento físico, sendo relatado um período que variou entre quatro e quinze meses dos dois primeiros anos da pandemia. Cabe salientar que o período do distanciamento físico relatado pelos interlocutores ocorreu antes do processo de vacinação no Brasil, e que as entrevistas ocorreram em meio às campanhas e num momento de flexibilização das medidas restritivas, conferindo uma narrativa mais confortável sobre a vivência experienciada pelos interlocutores.
Os entrevistados foram motivados a narrar a experiência vivida durante a pandemia, considerando o contexto de vida em que estavam inseridos, sobretudo aquelas relacionadas às dimensões das práticas alimentares - planejamento das compras, como e onde são adquiridos os alimentos, higienização, o modo de preparo e de consumo das refeições. Foram realizadas entrevistas virtuais e presenciais, de acordo com o interesse de cada interlocutor.
As entrevistas foram transcritas, e o processo de análise envolveu leituras flutuantes, com vistas a familiarizar-se com o material empírico, e, em seguida, desenvolveu-se um processo de categorização para proceder a análise e interpretação dos dados.
A partir da pré-análise das transcrições, destinada à organização e à leitura das narrativas, e posterior delineamento das singularidades, regularidades e irregularidades do conjunto de narrativas sobre as práticas alimentares durante a pandemia, foram construídas as categorias de análise que subsidiassem a compreensão do objetivo proposto pelo estudo.
Emergiram, então, três categorias de análise que revelam as mudanças e permanências das práticas alimentares dos sujeitos no contexto do confinamento, assim como a compreensão dos sentidos atribuídos ao comer, à comida, à comensalidade e ao saudável durante a pandemia. Sendo elas: os agenciamentos das práticas alimentares; os sentidos e significados da comida e do comer; e o discurso do saudável.
A análise dos dados produzidos ocorreu a partir da técnica de análise de conteúdo, definida como uma técnica de pesquisa para descrição objetiva e sistemática (Berelson, 1952 apudMinayo, 2013MINAYO, M. C. S. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. São Paulo: Hucitec, 2013.), que permite a interpretação do material de caráter qualitativo a partir de níveis mais profundos das falas, ultrapassando os sentidos manifestos do corpus da pesquisa (Minayo, 2013MINAYO, M. C. S. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. São Paulo: Hucitec, 2013.).
Nesse sentido, o estudo pauta-se na produção de saberes que possam contribuir para a construção de uma ciência que estreite os laços com as dimensões socioantropológicas da questão alimentar e nutricional.
Esta pesquisa integra um projeto de pesquisa, aprovado no Comitê de Ética.
Considerando a Resolução nº 466/2012, foram respeitados os aspectos éticos, sendo todos os participantes informados sobre a pesquisa e sendo assinado o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido por todos os entrevistados. Para manter o sigilo, foram utilizados nomes fictícios.
Apesar da diversidade do contexto de vida dos interlocutores, que permitiu atingir os objetivos propostos, cabe ressaltar que o processo de busca dos entrevistados por meio das redes sociais, de algum modo, esteve delimitado ao público a que se teve acesso. Vale destacar que, nesse quesito, a maioria dos interlocutores tinham renda acima de cinco salários mínimos durante a pandemia. Esse é um fato destoante da grande parcela da população brasileira que sofreu com o aumento do índice de desemprego no país, sobretudo as que já conviviam em situações de vulnerabilidade social, agudização dos vínculos precários de emprego, baixa renda domiciliar per capita e aumento do número de famílias em insegurança alimentar e nutricional.
Resultados e discussão
Caracterização do universo empírico
O universo empírico foi composto por mulheres e homens adultos que viviam em contextos urbanos e seguiram as recomendações de distanciamento físico.
Lara, Eva, Iza, Paulo e Ana moravam com seus núcleos familiares, sendo pai ou mães de crianças menores de cinco anos, convivendo com seus pares e filhos. Bia e Léo mantinham relações homoafetivas, sem filhos. Lua era solteira e morava sozinha, enquanto Bela, já divorciada, passou a morar sozinha no início da pandemia. Nina e Malu moravam com seus respectivos companheiros, enquanto Mila morava com colegas da graduação. Lara, Mila, Paulo e Eva passaram por rearranjos familiares durante alguns meses da pandemia, tecendo novas conformações de convivência doméstica, justificadas pela necessidade de ampliar a rede de apoio, pelo medo de contaminação pelo coronavírus e por um cuidado temporário durante a experiência da doença (Quadro 1).
Os interlocutores exerciam suas funções laborais em empresas públicas, privadas, ou mesmo de forma autônoma. Iza, Lara e Paulo eram funcionários públicos de instituição de ensino superior pública; elas na função de docente, e Paulo enquanto técnico administrativo. Ana era assistente social na Previdência Social. Lua era jornalista, com atuação como social media, e Bia, advogada. Todos passaram a trabalhar em home office. Eva, que atuava como psicóloga do Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), passou a exercer suas funções em formato híbrido. Malu era digital influencer e vendedora. Léo era gerente de restaurante e, durante alguns meses, ficou sem atividade profissional, mantendo o vínculo empregatício. Nina era esteticista e, como sua atividade foi considerada não essencial, ficou sem exercer sua profissão, se mantendo das reservas financeiras. Bela experienciou o desemprego por alguns meses até conseguir adaptar o exercício profissional à nova realidade. Mila havia acabado a residência profissional e ficou desempregada nos primeiros meses da pandemia (Quadro 1).
Os resultados aqui apresentados foram um recorte de uma das categorias analisadas durante a pesquisa, que tinha por objetivo compreender o agenciamento das práticas alimentares, tendo foco, inicialmente, nas afetações que atravessam a experiência do distanciamento físico durante a pandemia, que acarretou o confinamento doméstico e os rearranjos familiares, e, a seguir, em como esses os rearranjos foram fomentados pelas adaptações das práticas alimentares ao contexto pandêmico, destacando as dimensões relacionadas à compra de refeições por meio de aplicativo de delivery, ao ato de cozinhar, de comer e à comensalidade.
A experiência do confinamento doméstico durante a pandemia de covid-19
O distanciamento físico culminou no confinamento doméstico desvelando ações carregadas de subjetividades e experiências distintas, a partir de diferentes contextos vivenciados durante a pandemia. As imposições diante da pandemia de covid-19 promoveram o deslocamento dos modos de produção de vida para casa, tornando o ambiente doméstico um lócus de rearranjos para o enfrentamento da pandemia. Diferentes tessituras foram performadas nesse sentido: novos arranjos familiares; deslocamentos intercidades; agenciamento das práticas alimentares, seja a partir das novas demandas de um cenário urbano modificado ou pela reestruturação dos sentidos atribuídos à comida e ao comer.
A singularidade dessas ações pode ser caracterizada como agenciamento da experiência da pandemia, estando implicada em materialidades e subjetividades inerentes ao contexto de cada interlocutor, que compartilhava o medo de um inimigo invisível; o medo e a insegurança que presumiam a noção de risco de contágio pelo coronavírus e seus possíveis desdobramentos, do adoecer ao morrer, fomentando o comportamento coletivo de prevenir-se.
Diante das incertezas em torno do contágio pelo coronavírus e da recomendação de distanciamento físico, os resultados apontaram que a percepção de risco impactou na decisão de aderir ao emblema “fique em casa”, uma vez que não saber exatamente quem poderia ou não morrer, qual era o risco e a inconsistência das informações gerava sensação de medo e insegurança, resultado no medo de sair e até de ir ao supermercado (Lara).
Exponenciar a noção de risco durante a pandemia esteve ligada às singularidades de cada interlocutor. Para Lara, a covid representava um risco não somente a ela, mas também à sua filha, que estava em seus primeiros meses de vida quando eclodiu a pandemia. Era preciso protegê-la. Mas, Lara, para além da pandemia, experienciava também a maternidade, em um contexto recluso à casa, com uma rede de apoio fragilizada e sem auxílio para as tarefas domésticas (reconhecendo as questões de gênero envolta nas atividades cotidianas dos cuidados com casa).
Havia, portanto, uma demanda por suporte familiar e uma tentativa de fuga da ameaça do coronavírus, levando Lara e outros interlocutores da Região Metropolitana de Salvador a promoverem uma diáspora metropolitana em direção ao interior do estado da Bahia. Esses entrevistados acreditavam que os municípios menores apresentavam uma facilidade de controle da disseminação do vírus pela gestão municipal, assim como um controle epidemiológico do boca a boca, do saber quem estava contaminado (Paulo), gerando um pouco mais de segurança por situar a localização do vírus.
A percepção de segurança pode ser explicada pela diferença na ocorrência de casos de covid. Enquanto nas regiões metropolitanas das capitais o número de casos era superior (Cavalcante; Abreu, 2020CAVALCANTE, J. R.; ABREU, A. J. L. COVID-19 no município do Rio de Janeiro: análise espacial da ocorrência dos primeiros casos e óbitos confirmados. Epidemiologia e Serviços de Saúde, Brasília, DF, v. 29, n. 3, 2020. DOI: 10.5123/S1679-49742020000300007
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), o interior dos estados ainda resguardava a ocorrência latente do vírus, tendo a Bahia espelhado esses dados.
Observa-se que novos arranjos familiares foram se configurando durante a pandemia para dar conta do que foi impactado pelo distanciamento físico em cada contexto de vida. Esses rearranjos aconteciam em torno do suporte emocional, ou do fortalecimento da rede de apoio para cuidado com os filhos, ou de proteção contra o risco de contaminação pelo coronavírus, ou, ainda, em torno das próprias práticas alimentares.
Marca-se, então, nesse cenário, o retorno à casa dos pais e o sentido de casa, para os interlocutores, que as cidades do interior tendem a preservar - a coletividade, o acolhimento, a hospitalidade. Um paradoxo diante de uma orientação de isolar-se para proteger-se.
Dada às singularidades que atravessam as experiências humanas, estar no interior do estado durante uma pandemia apresentava outro sentido para Ana, que era assolada pelo medo de precisar de um médico, de um internamento, e ter covid naquele momento era como ter um diagnóstico de câncer. Para além da falta de infraestrutura hospitalar da região que pudesse dar suporte aos acometidos pela covid e das cenas chocantes do colapso do sistema de saúde transmitidas pela TV e pelas redes sociais, Ana tinha um agravante: fazia parte do grupo de risco por ser obesa e hipertensa.
As doenças suscitam a elaboração de narrativas sócio-históricas, válidas para um determinado tempo histórico, e produzem representações e imagens sobre o evento pandêmico que, no geral, são associadas a acontecimentos assustadores, trágicos e desagregadores do convívio social (Sousa et al., 2020SOUSA, A. R.; CARVALHO, E. S. S; SANTANA, T. S. et al. Sentimento e emoções de homens no enquadramento da doença Covid-19. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 25, n. 9, 2020. DOI: 10.1590/1413-81232020259.18772020
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). Nesse espectro, o câncer, na contemporaneidade, apresenta-se como uma das principais causas de morte em todo o mundo, apesar do crescente investimento na implantação de políticas públicas e programas de saúde voltados para a prevenção e diagnóstico precoce (Modena et al., 2014MODENA, C. M.; MARTINS, A. M.; GAZZINELLI, A. P. et al. Câncer e masculinidades: sentidos atribuídos ao adoecimento e ao tratamento oncológico. Temas em Psicologia, Ribeirão Preto, v. 22, n. 1, p. 67-78, 2014. DOI: 10.9788/TP2014.1-06
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). Receber o diagnóstico de câncer conota novas condições e limitações impostas pela enfermidade, assim como o peso de um prognóstico. Para uma parcela da população, ainda paira uma representação fatalista do diagnóstico de câncer, associando-se com o temor que a covid provocava. Assim, o diagnóstico de covid assume, para Ana, o sentido atribuído ao diagnóstico de câncer, tanto pela percepção da experiência da doença como pelo temor gerado pela incapacidade do Estado em gerir o enfrentamento da pandemia no Brasil.
Portanto, reconhecer a covid como um risco era uma condição para aderir ao distanciamento social, entretanto não era suficiente, visto que era necessária a possibilidade do trabalho no formato remoto para que o máximo de pessoas pudessem permanecer em casa. Dessa forma, parte da população continuou a sair de casa para procurar trabalho ou para exercer a atividade em serviços considerados essenciais ou básicos à vida, à saúde e à segurança e conexão tecnológica de todos. Ainda a respeito da condição de permanência em casa, cabe destacar a questão das pessoas em situação de rua, que não tinham para onde ir.
O agenciamento de uma nova rotina estritamente doméstica permeou todos os campos da vida cotidiana, sendo necessário reaprender a viver, trabalhar e se relacionar com as pessoas de uma forma diferente (Bia). Demarcou-se, então, uma transformação do modus vivendi urbano contemporâneo, em que os movimentos e ruídos das cidades foram substituídos pelo silêncio, pelo vazio e pela ressignificação do espaço doméstico.
A casa antes da pandemia resguardava seu sentido de descanso para a maioria dos interlocutores. Entretanto, o contexto do distanciamento físico deslocou os sentidos atribuídos à casa, que adquiriu novas funções e sentidos e converteu-se, para além do abrigo, em escritório, em ambiente de ensino em formato remoto, em lugar de compras e de lazer, conferindo uma plurifuncionalidade para o ambiente doméstico (Barata-Salgueiro, 2020BARATA-SALGUEIRO, T. Viver na cidade sob a pandemia da covid-19. Finisterra, Lisboa, v. 55, n. 115, p. 113-119, 2020. DOI: 10.18055/Finis20375.
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).
Esses novos sentidos se confundiram, se modificaram e se ressignificaram ao longo do tempo na pandemia. Apesar da dúvida sobre “quanto tempo isso vai durar” (Mila), o imaginário era persuadido pela ideia de duas a três semanas de confinamento. Logo, no primeiro momento, a casa mantém o lugar de descanso do trabalho, de organização da casa, de maior proximidade com os filhos e os demais da casa com quem se mantém uma relação afetiva. Elementos esses que a rotina pré-pandêmica fragilizava, diante do ritmo urbano de vida majoritariamente externo à casa.
Com o passar das semanas, entretanto, a casa assumiu um lugar de conflito diante do confinamento, das restritas relações pessoais, das demandas domésticas, de cuidado e de trabalho que se sobrepunham. A nova dinâmica familiar foi alterada diante da intensificação da convivência. Se, por um lado, foi positivo, por outro, acarretou uma grande carga de estresse e desgaste, por ter que lidar com as limitações, as privações da pandemia, sem ter a alternativa de poder sair um pouco (Eva).
Considerando a heterogeneidade com que a pandemia se apresentou no contexto cotidiano de pessoas, marcada por questões de raça, gênero e classe social, atingindo as pessoas de forma diversa e peculiar, é preciso situar o contexto da mulher-mãe durante a pandemia de covid-19 e que foi abordada por Ana e Eva, interlocutoras com filhos menores de seis anos. Ficar em casa chegava a ser insuportável por conta de toda demanda, inclusive escolares (Ana), tendo as mães que assumir o desafio extra de ensinar. Atrelado ainda ao emocional da criança impedida de sair, presa em casa, sem convívio com outras crianças (Ana).
No período pandêmico, as mulheres-mães, que historicamente internalizaram valores de uma cultura maternocentrada (Macêdo, 2020MACÊDO, S. Ser mulher trabalhadora e mãe no contexto da pandemia COVID-19: tecendo sentidos. Rev. NUFEN, Belém, v. 12, n. 2, p. 187-204, 2020. DOI: 10.26823/RevistadoNUFEN.vol12.nº02rex.33
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), conviveram com atividades home office e de ensino remoto emergencial, ao lado de rotinas com o cuidado do âmbito doméstico, que foram inflamadas durante a pandemia e se tornaram um dos elementos principais para o surgimento de doenças relacionadas à mente, como a ansiedade, relatada por todas as mulheres-mães interlocutoras deste estudo.
Agenciamento das práticas alimentares domésticas em meio à pandemia de covid-19
A experiência de viver em confinamento doméstico durante a pandemia de covid-19, para além de um período, resguardou ações carregadas de subjetividades que foram pautadas no agenciamento de uma nova práxis urbana, sendo a casa o palco das transformações para sustentar o viver, mediante o risco, em diferentes contextos de vida. A partir do imperativo “fique em casa”, os agenciamentos no espaço doméstico demandaram rearranjos, transformando a vida e desenvolvendo novas formas de estar no mundo e novos modos de comer, de comprar, de cozinhar e da comensalidade (Amparo-Santos; Verthein; Reis, 2022AMPARO-SANTOS, L.; VERTHEIN, U.; REIS, A. B. C. “Fique em casa”: emergências na pandemia de COVID-19 nas experiências de confinamento. In: AMPARO-SANTOS, L. VERTHEIN, U.; REIS, A. B. C. (org.). Em tempos de isolamento social: entre o corpo, a comida e o cuidado. Salvador: EDUFBA, 2022. p. 35-58).
Ao ter a casa como síntese do que antes era desenvolvido em diferentes lugares da cidade, mudando o cotidiano social e familiar e as tendências contemporâneas de comportamento e comer, os resultados apontaram que uma das transformações mais centrais se concentrou no comer em casa, redimensionando a prática alimentar doméstica em perspectivas distintas. Se, por um lado, houve movimentos em torno da organização das práticas alimentares para alguns interlocutores, para a maioria deles, entretanto, estar em casa provocou a desorganizações de tais práticas.
Dessa forma, apresenta-se contrapontos à romantização em torno da comensalidade em ambiente doméstico, largamente disseminada durante a pandemia como oportunidade de ampliar o autocuidado. Experiência que também foi atravessada por questões de gênero, inflamadas durante a pandemia, destacando a sobrecarga das tarefas domésticas e a responsabilidade conferida à mulher ao cuidado com os demais afazeres domésticos, que sobremaneira recaem nas próprias práticas alimentares experienciadas.
Todas essas dimensões deram a tônica para a pluralidade com que as práticas alimentares se revelaram em ambiente doméstico. Paulo, morador de Salvador e funcionário público, pontua a influência da relação espaço-tempo na organização de suas tomadas alimentares. Estar em casa aparece como elemento que ordena uma nova prática, como realizar café da manhã, que a dinâmica da vida urbana, sobretudo nas regiões metropolitanas de Salvador - corrida e externa à casa - não permitia:
Alterou muito minha rotina alimentar porque, por exemplo, o café da manhã virou uma refeição, que antes não era. Eu preferia acordar mais tarde e sair no horário de trabalho do que parar pra fazer o café. E com a pandemia foi uma coisa que eu voltei a fazer, porque eu tive tempo pra fazer isso. (Paulo)
Entretanto, para a maioria dos interlocutores, que tinham o café da manhã na rotina cotidiana, sejam eles do Recôncavo ou da Região Metropolitana, estar em casa representou “desequilíbrio” e “descontrole”, projetando as subjetividades na prática alimentar diante de uma reconfiguração da relação espaço-tempo experimentada de modo singular e plural.
A gente ficou com mais tempo ocioso, até por não poder trabalhar. Então desequilibrou um pouco isso dos horários. Como eu tinha um tempo maior livre, já não tava aquela questão dos horários certinhos. (Nina)
Descontrole que ainda esteve relacionado ao aumento das tomadas alimentares fora das refeições:
Mudou muito minha rotina alimentar, ficou tudo descontrolado. No trabalho, eu só fazia tomar meu café e umas dez horas, dez e meia, eu tomava meu chá. Mas aqui em casa era o tempo todo, passava pegava um biscoito, se eu ia na cozinha pra beber água, qualquer coisa que eu visse eu metia na boca. (Ana)
Destaca-se que o aumento do consumo alimentar durante a pandemia se apresentou em outros estudos (Barbosa-Souza; Almeida, 2022BARBOSA-SOUZA, G., ALMEIDA, I. O. O ato de comer e a comensalidade: afetações e sentidos atribuídos no contexto da pandemia de COVID-19. In: AMPARO-SANTOS, L. VERTHEIN, U. REIS, A.B.C. (org.). Em tempos de isolamento social: entre o corpo, a comida e o cuidado . Salvador: EDUFBA , 2022. p. 133-172.), sendo caracterizado como um comportamento alimentar alterado devido ao distanciamento físico e maior permanência em ambiente doméstico.
Esses dados se relacionam de maneira controversa à narrativa acerca da dificuldade de almoçar ou mesmo de realizar a refeição em horários regulares, sobretudo daqueles em home office. “Porque como eu estou nesse cenário remoto, se a gente deixar, a gente emenda a manhã com a tarde, e a gente não almoça, né?” (Iza)
Nos primeiros momentos da pandemia, observa-se um período de adaptação ao home office, no qual o momento de se alimentar divide o espaço e o tempo com o trabalho, ocupando a mesma mesa. Com o avançar da pandemia, e da rotina mais articulada, sentar-se à mesa para comer passa a representar um cuidado de si, sendo (re)criado esse espaço.
Eu comia muitas vezes sentada na mesa do computador. E fazia todas as minhas refeições na mesa, trabalhando e isso chegou a ser angustiante em certo ponto. Porque se o comer é o momento que a gente relaxa, que a gente se desvincula disso, a gente não tava tendo esse corte né? E esse comer na mesa trabalhando, tira um pouco desse romantismo do comer, de preparar. Aí que eu comecei a tentar me tirar desse lugar. Eu comecei a montar as mesinhas pra mim, bonitinha ali com joguinho americano, pra poder conseguir me deslocar desse espaço e voltar a ter da alimentação esse momento terapêutico. (Lua)
Ao refletir sobre a importância da alimentação em sua vida - o ato de comer sendo um momento de relaxar e desvincular do trabalho, e ainda como algo terapêutico - Lua transcende o processo de mecanização do comer, passando a valorizar o momento e a refeição consumida.
É nesse movimento de pontos e contrapontos que o comer em casa carrega elementos potencializadores da comensalidade, em que comer à mesa em casa durante a pandemia passou a representar o momento de estar junto, de resgatar a partilha e o encontro em torno da comida, tão caros em períodos pré-pandêmicos - e ressignificado diante do contexto.
Na pandemia, a gente começou a se alimentar mais junto. Mesmo que às vezes não fosse os dois sentados na mesa ao mesmo tempo, mas a gente estava ali no mesmo ambiente. E antes não. Por causa do trabalho presencial, a gente não conseguia conciliar a agenda pra fazer as refeições juntos. E durante a pandemia a gente conseguia fazer isso, tem conseguido na verdade ainda, né? (Lara)
Dessa forma, induzidos pelo confinamento doméstico, alguns sujeitos retomaram o sentar-se à mesa para comer juntos, momento carregado de releituras que vão desde a engenharia de montagem da mesa, optando por peças para deixá-las mais divertida, ao contato virtual para o exercício da comensalidade. Por outro lado, pode-se pensar em um contingente de, diante de confrontos e conflitos familiares - por exemplo, registros da ampliação da violência doméstica durante a pandemia - tais exercícios de comensalidade indubitavelmente foram permeados por uma sorte de conflitos.
Apesar dos relatos estarem atrelados a uma vivência imposta pela excepcionalidade da pandemia, requerendo reorganizações nas dimensões materiais e subjetivas, esses dados insuflam reflexões sobre os modos de viver e transitar em um cotidiano doméstico que, não necessariamente reflete ou traduz, de modo quase que naturalizado, os “mantras de uma vida saudável”.
A alimentação saudável, enquanto estratégia para promoção da saúde e prevenção de doenças, inclui, no escopo do conceito adotado pelo Guia Alimentar para a População Brasileira, recomendações que propõem como base da alimentação alimentos in natura ou minimamente processados, em grande variedade e predominantemente de origem vegetal, evitando os alimentos processados e ultraprocessados (Brasil, 2014BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Atenção Básica. Guia alimentar para a população brasileira. 2. ed. Brasília, DF: Ministério da Saúde, 2014.).
De maneira controversa, a alimentação cotidiana em ambiente doméstico revela a complexidade em torno de práticas alimentares que ocorre em um contexto dentro do qual o modo de vida moderno, em sua multiplicidade de comensalidades urbanas, invadiu a casa. Nesse sentido, compreende-se que as reorganizações em torno de uma alimentação saudável perpassam intimamente por confrontos, acomodações e instituições de normalidade em face de contextos das modernidades e contextos urbanos presentes, invocando complexidades em torno das práticas alimentares. Complexidades, que no contexto doméstico e da comensalidade, se inscreveram também nas escolhas alimentares, em que a autonomia dos sujeitos em relação às suas escolhas individuais se confundiu com a dimensão social do comer.
É nessa perspectiva que cabe situar a dimensão que o delivery assume no espaço doméstico, durante a pandemia. Diante do distanciamento físico gerou-se um novo comportamento de oferta e demanda doméstica. Isso promoveu novas dinâmicas de consumo alimentar correlatas à aquisição de alimentos, adaptadas ao contexto da pandemia, sobretudo por meio de plataformas digitais e do uso de redes sociais, gerando um aumento expressivo nas compras virtuais (Schneider et al., 2020SCHNEIDER, S.; CASSOL, A.; LEONARDI, A. et al. Os efeitos da pandemia da Covid-19 sobre o agronegócio e a alimentação. Estudos Avançados, São Paulo, v. 34, n. 100, p. 167-188. 2020. DOI: 10.1590/s0103-4014.2020.34100.011
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).
Com os decretos em vigor limitando ou proibindo o atendimento presencial dos estabelecimentos do setor de alimentação, supermercados, restaurantes, lanchonetes e empresas do ramo adotaram ou intensificaram sua presença no ambiente alimentar digital, possibilitando a realização de compras on-line, uma vez que a adoção do delivery de comida seria mais segura do que sair para comer (Botelho; Cardoso; Canella, 2020BOTELHO, L. V.; CARDOSO, L. O.; CANELLA, D. S. COVID-19 e ambiente alimentar digital no Brasil: reflexões sobre a influência da pandemia no uso de aplicativos de delivery de comida. Caderno de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 36, n. 11, p. e00148020, 2020.).
Nessa esteira do e-commerce alimentar, a casa e a rua se entrecruzam para agenciar um modo de lazer que ficou limitado na pandemia - o sair para comer. Para os interlocutores, a comida que era pedida via delivery era uma reprodução da saída do tempo normal, do lazer (Paulo), e geralmente acontecia com mais frequência nas noites do final de semana. Entretanto, uma das interlocutoras refere-se ao consumo em outras refeições durante o dia proveniente do delivery.
No interior eu pedia quinta, sexta, sábado e domingo, mas no período da noite. Em Salvador todos os dias, só não pedia pro café da manhã. Pedia pro almoço, pra noite, o lanchinho da tarde. Está com promoção, tô com cupom […] Ah, tá com promoção de pastelzinho hoje, três por dez. E era cheio de recheio. Vamos pedir. (Mila)
A narrativa aponta dois dos fatores relacionados à catalisação dos aplicativos de delivery de comida pronta durante a pandemia: a maior disponibilidade e acessibilidade a refeições preparadas fora do lar (Botelho, 2021BOTELHO, L. V. Ambiente alimentar digital: estudo descritivo sobre o uso de aplicativos de entrega de comida pronta para consumo entre residentes da região metropolitana do Rio de Janeiro. 2021. 189 f. Dissertação (Mestrado em Ciências) - Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, 2021.) e a facilidade em encontrar produtos com descontos (fato que muitas vezes não ocorre nos estabelecimentos físicos). Entretanto, foi relatada uma diferença nessa expansão de tais aplicativos entre a Região Metropolitana de Salvador e o Recôncavo Baiano.
Em Nazaré é muito restrito, não existe aplicativo [de delivery]. Nazaré colocou ifood tem um mês mais ou menos. Então eu pedia nos lugares da cidade mais conhecidos e que entregava em casa. Quando eu retornei pra Salvador o hábito de pedir comida continuou, e comecei o hábito de pedir pelo ifood todos os dias, só não pedia pro café da manhã. Pedia pro almoço, pra noite, o lanchinho da tarde. Acabo pedindo muito em Salvador, constantemente. (Mila)
Mesmo nas cidades que ainda não possuíam aplicativos de delivery, como o Ifood, estratégias similares foram desenvolvidas, a exemplo do uso de aplicativos de mensagens instantâneas, para acompanhar a demanda do contexto. Entretanto, independente da localidade e da capilaridade do serviço, as opções de alimentação do tipo fast food e ultraprocessados imperam nos aplicativos, o que direciona intencionalmente a escolha para este tipo de alimento.
Geralmente a gente pedia o que era mais comum, até porque não tinha muita variedade. As empresas de delivery acabam fazendo o que é mais rentável, que é principalmente pizza e hambúrguer. É o que mais tem, é o que tem promoção, é o que é mais vendido. Pizza a gente gosta muito e era uma coisa muito presente porque talvez das comidas de delivery seja a de melhor custo-benefício. Acarajé a gente também pedia. (Paulo)
O delivery, portanto, ocupa o lugar da rua na comensalidade exercida em ambiente doméstico, desconstruindo, inclusive, a ideia da comida de comer junto e a comida de comer só, uma vez que alimentos considerados de porções individuais, como o hambúrguer, são pedidos em conjunto, para partilhar o momento de uma comensalidade reconfigurada.
Apesar do aumento da frequência na compra de comida pronta por meio dos aplicativos de delivery entre os interlocutores da pesquisa, houve aumento também na frequência de cozinhar de alguns deles, sobretudo a comida considerada do cotidiano, com a inclusão de refeições antes não praticadas em casa. Eu passei a cozinhar mais. Então todos os dias eu tinha que fazer o almoço e entrou a janta. (Leo)
Para Léo, a pandemia representou mais uma refeição produzida em casa. Entretanto, para alguns interlocutores, as primeiras semanas do distanciamento físico foram um momento de redescoberta do ato de cozinhar, dada a prática alimentar anterior à pandemia de comer fora de casa.
Depois eu tive a fase de querer cozinhar então “ah, eu vou pesquisar uma receita aqui na internet, vou cozinhar e tal”, tava nessa fase boa. Eu tive essa fase de buscar receita, de ficar tentando cozinhar. Que eu acho que era pela ociosidade mesmo. Essa fase foi assim bem nos primeiros dias. Eu não tinha começado a minha rotina de trabalhar em casa. Então eu cozinhava por isso, por ter tempo livre. (Bia)
Após iniciar o trabalho no formato home office, Bia retoma a compra de comidas prontas e o cozinhar de maneira esporádica. Não cabia mais em sua rotina cozinhar diante das demandas de trabalho.
O cozinhar durante a pandemia, portanto, representa uma retomada do preparo caseiro das refeições, porém, num sentido mais deslocado das tradicionais familiares, tendo como referência a procura por mídias sociais, programas de culinária de televisão com chefs e celebridades e site de buscas de conteúdo na internet (Lima, 2021). Tem-se, inclusive, o termo “como cozinhar comida” como um dos mais buscados numa plataforma de serviço de buscas, revelando o interesse ou a necessidade de cozinhar durante a pandemia (Casagrande, 2020CASAGRANDE, E. As principais pesquisas no Google em 2020. Semrush Blog, Boston, 13 out. 2020. Disponível em: Disponível em: https://pt.semrush.com/blog/principais-pesquisas-no-google-em-2020/ . Acesso em: 30 jan. 2022.
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).
Houve ainda referência à criatividade e à retomada do preparar o que antes era comprado pronto, sobretudo como um momento oportunizado para reunir a família para o preparo, do cozinhar juntos.
A gente passou a fazer as comidas em casa, final de semana a gente sempre tava cozinhando alguma coisa junto, algum almoço em casa, então isso trouxe essa aproximação de fazer alguma coisa junto, de fazer em casa mesmo. A gente passou a ficar inventando o que comer porque mais tempo em casa junto acabava sempre inventando de comer alguma coisa. Inventar alguma receita. Eu comecei a fazer mais bolo, que era uma coisa que a gente comprava pronto. Como tava em casa todo mundo junto sempre inventava alguma coisa pra comer. A diversão passou a ser a comida. (Eva)
Entretanto, as restrições produzidas pela pandemia impuseram uma nova rotina às mulheres quanto ao cozinhar, sendo atribuído um caráter negativo à tarefa, principalmente quando se torna obrigatória e rotineira. O cozinhar passa a ser considerado então um fardo, tanto pela necessidade da repetição diária como pela impossibilidade de delegar a função a uma empregada doméstica, por exemplo, em virtude do imperativo de distanciamento físico, ou de realizar as refeições em outros espaços que não o doméstico (Rigaud; Araújo; Campinho, 2022RIGAUD, J. P. O.; ARAÚJO, M. C. E. S.; CAMPINHO, M. I. S. O ato de cozinhar: sentidos e (res)significações no cotidiano pandêmico. In: AMPARO-SANTOS, L. VERTHEIN, U. REIS, A. B. C. (org.). Em tempos de isolamento social: entre o corpo, a comida e o cuidado . Salvador: EDUFBA , 2022. p. 109-132.).
Nessa seara, é interessante notar como a dimensão de gênero atravessa o ato de cozinhar, conferindo diferentes sentidos à prática, sobretudo diante da obrigatoriedade de preparo das refeições, revelando a feminilização do trabalho culinário no espaço doméstico, conferindo uma sobrecarga relatada por diferentes interlocutoras e, inclusive, reconhecida por um dos interlocutores. Dentro das tarefas de casa, cozinhar os alimentos é uma atividade que é mais dela (da esposa), não deveria mas a gente vai aprendendo, uma hora eu consigo fazer a metade. (Paulo)
Os homens ocuparam o espaço da cozinha num sentido atribuído ao lazer e ao preparo de lanches e petiscos e em turnos ou dias mais específicos, como à noite ou nos finais de semana, sendo considerados os chefs da quarentena.
Ele cozinhava muito esporadicamente. Mas com a pandemia ele ficou caxias mesmo, fazendo todo final de semana, ele fazia uns petiscos. E foi daí que começou, esse negócio dele querer cozinhar. Aí todo final de semana ele cozinhava, no sábado e domingo. E ficava o tempo no youtube olhando receita, e queria fazer, tinha hora que do nada ele queria cozinhar. Fiquei viciada, né, porque hoje em dia mesmo merenda aqui em casa você não acha mais porque ele que fazia e agora ele voltou a trabalhar. (Malu)
Com o retorno de seu marido ao trabalho, Malu retomou as atividades culinárias cotidianas, enquanto ele, esporadicamente, preparava alguma refeição, em algum dia do final de semana. Para ele, não havia, portanto, obrigatoriedade. O cozinhar ocorria sob sua própria vontade e escolha do momento, reafirmando a divisão sexual do trabalho doméstico culinário na pandemia.
Alguns estudos têm apontado que o contexto da divisão não equitativa de tarefas domésticas pode ser um determinante do aumento do consumo de alimentos ultraprocessados (Louzada et al., 2019LOUZADA, M. L. C.; CANELLA, D. S.; JAIME, P. C. et al. Alimentação e saúde: a fundamentação científica do Guia alimentar para a população brasileira . São Paulo: Faculdade de Saúde Pública da USP, 2019.) e do aumento da alimentação fora do lar (Bezerra et al., 2013BEZERRA, I. N.; SOUZA, A. M.; PEREIRA, R. A. et al. Consumo de alimentos fora do domicílio no Brasil. Revista de Saúde Pública, São Paulo, v. 47, n. Suppl 1, p. 200S-211S, 2013. DOI: 10.1590/S0034-89102013000700006
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), sendo uma das motivação para pedir comida por delivery, sobretudo em mulheres-mães com mais de 65 anos, que tiveram o papel de cozinhar para família por longos períodos (Lane et al., 2014LANE, K; POLAND, F.; FLEMING, S. et al. Older women’s reduced contact with food in the Changes Around Food Experience (CAFE) study: choices, adaptations and dynamism. Ageing and Society, [s. l.], v. 34, n. 4, p. 645-669, 2014. DOI: 10.1017/S0144686X12001201
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).
Nesse sentido, os dados empíricos apontaram como o comer em ambiente doméstico apresentou ambivalências que se constituem como contrapontos ao discurso do comer em casa como promotor de práticas alimentares saudáveis. Há que se resguardar a complexidade que atravessa a comensalidade urbana contemporânea, permeada por elementos da experiência humana que escancaram ordens alimentares plurais para além daquelas relacionadas aos discursos nutricionais que envolvem a alimentação.
Considerações finais
A experiência do comer em casa durante a pandemia permitiu uma análise para além das permanências e transformações em torno das práticas alimentares que, a partir de dados empíricos, conformaram elementos capazes de tecer ponderações em torno da afirmação quase que unívoca da casa como organizadora de práticas alimentares saudáveis. Ressalta-se que a disseminação da ideia de que a pandemia poderia ser oportuna para o “cuidar de si e/ou da família” e, entre essas práticas, “cuidar da alimentação”. Assim, o estudo evidenciou, dessa forma, contradições em que o ambiente doméstico, por um lado, pode promover a organização de práticas alimentares, e de outro lado, promover também elementos que a desorganizam.
Essa análise, entretanto, considera a excepcionalidade em que este estudo foi realizado, em um contexto em que o comer foi afetado também pelo medo e a ansiedade associados ao fenômeno da pandemia. Há que se demarcar a pluralidade em torno das práticas alimentares e da comensalidade, não podendo, nesse sentido, serem reduzidas e naturalizadas em torno do ambiente doméstico, que também resguarda complexidades inerentes à experiência humana.
Ressalta-se, ainda, que o comer em ambiente doméstico acende o debate acerca da influência do ambiente alimentar digital nas práticas alimentares, ao mimetizar a alimentação fora de casa. Considera-se, nesse sentido, a importância de mais pesquisas destinadas à investigação do ambiente alimentar digital diante das alterações provocadas nos hábitos alimentares dos sujeitos entrevistados, demarcando um campo ainda incipiente na ciência.
Considera-se, por fim, que esta pesquisa apresenta elementos discursivos importantes, entre eles a discussão em torno da temática “raça”, sobretudo em relação ao gênero, classe e geração, numa perspectiva interseccional, e que carecem de maior aprofundamento, para a produção de saberes pautados na construção de uma ciência que estreite os laços com as dimensões socioantropológicas da questão alimentar e nutricional.
Referências
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
26 Ago 2024 -
Data do Fascículo
2024
Histórico
-
Recebido
01 Out 2023 -
Revisado
17 Fev 2024 -
Aceito
09 Abr 2024