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OPEN Your Eyes: Deaf Studies Talking

RESENHA

Universidade Tecnológica Federal do Paraná. Curitiba, Paraná, Brasil. Av. Sete de Setembro, nº 3165. Rebouças. CEP: 80230-901

O campo científico de Estudos Surdos

Relevância e Riqueza da maneira de ser do Surdo são apontadas pela obra resenhada como novos focos de Estudos Surdos, para além da importância histórica conquistada da Cultura e Identidade Surda: devem-se agora avançar os Estudos Surdos em seus propósitos de dar destaque à contribuição e valor da Cultura Surda para a diversidade humana; colocar o Surdo entre os criadores-sujeitos na formação da chamada "Coleção do Conhecimento Humano": a construção de uma inteligência coletiva, que, entre outros processos, passa pela língua, e educa cidadãos (MENOU, 1996, p. 3). Posicionar os Estudos Surdos no mundo, interagindo para criar oportunidades de desenvolvimento, de aprendizagem, de expressão cultural e disseminação de seus valores culturais/humanos - é o que leva a uma apreciação maior por outros da riqueza da Cultura Surda (UNESCO, 2013).

O editor do livro, Bauman, é diretor do centro de Estudos Surdos da prestigiosa Gallaudet University (Washington D.C) e reúne na obra, em cada um dos seus capítulos/artigos, autores Surdos e não Surdos, expoentes acadêmicos da pesquisa na área. Apresentam-se reflexões e elementos que dialogam, articulam e promovem os Estudos Surdos, e permitem que a comunidade ganhe controle sobre a própria representação de "falar por si mesmo", ao invés de ser "falada" por outros (geralmente ouvintes).

Os caminhos pretendidos se aproximam dos conceitos de "Campo Científico" de Pierre Bourdieu (2002), elevando os Estudos Surdos àquele patamar. Segundo Bourdieu, a especificidade do campo científico - um espaço social estruturado, com regras e opiniões legítimas - vem do fato que, pela sua tecnicidade, o seu valor só pode ser julgado por seus pares. A ciência se difere dos outros conhecimentos não pelo ponto de vista epistemológico apenas, mas sim pela sua capacidade de racionalizar posições: ter a própria "voz" no caso dos Estudos Surdos. A relativa autonomia do campo de Estudos Surdos dentro do universo em que se insere se dá pela sua multiplicidade - de sujeitos, objetos, estudos, condições de produção, entre outros: o Surdo, é, por definição, multicultural.

Como um sistema de relações objetivas entre posições já conquistadas em lutas anteriores (lutas contra o Audismo, o Colonialismo, a proibição das Línguas de Sinais), o campo de Estudos Surdos é a plataforma (locus) de facto de atuação de um agente cuja capacidade de falar e agir seja socialmente aceita. Esta capacidade retoma e amplia a Educação Bilíngue - tema desta edição especial - ao mesmo tempo que abre novas frentes de pesquisas, como sexualidade, gênero, família, raça, entre outras. A estagnação na luta pela Língua de Sinais, por exemplo, fez com que a mesma ganhasse status entre adultos americanos, pelos seus aspectos cognitivos, mas que, paradoxalmente, restasse negada à criança Surda.

Precisa-se de estudos e registros de como estas áreas propostas influenciam e são influenciadas por outras. Os produtos e produtores culturais estão localizados em espaços de tomadas de posição em que adquirem "Capital" da cultura Surda - evidenciado por vendagem de livros, números de performances artísticas, quantidade de pessoas na plateia, mercado para as mais diversas formas de expressão, entre outros. Capital este já conquistado por outros grupos como os grupos de Afrodescendentes, os grupos de minorias sexuais, os grupos indígenas. Cabe aos Estudos Surdos legitimar e dar voz a este novo estado de coisas.

Mas de qual legitimidade e de qual "voz" estamos falando? Quanto à legitimidade, o título, OPEN Your Eyes (ABRA Seus Olhos), é uma metáfora em camadas: primeiro, chama a atenção para o fato de que a sociedade não tem dado o real valor aos Estudos Surdos: deve-se pensar e ver o mundo através dos olhos Surdos - em oposição à prática corrente do ouvinte de inferir e determinar significados para/pela cultura Surda por conta própria. Em um segundo momento, o título aponta para o fato de o Surdo ser uma variedade visual da raça humana: o Surdo é um ser da luz: a falta de luz atrapalha a comunicação do Surdo - fato este que é simbolizado na arte Surda pela porta (não passa luz) e pela janela (por onde se pode comunicar). A falta de luz simboliza a "inabilidade" de se ver o mundo Surdo. Pretende o autor "jogar luz" nos Estudos Surdos. Tem-se também que a visão do Surdo é acentuada, trabalha com várias camadas de percepções simultâneas. É periférica, e traz esta periferia também para o centro: pertencer à periferia enriquece o sujeito, na medida em que não o limita (FERNANDEZ, 1999, p.17), e oferece uma lente crítica para os próprios Estudos Surdos. Esta obra serve para "abrir os olhos" para o campo de Estudos Surdos na sua avaliação, estado da arte e direcionamentos futuros.

Quanto à "voz", o subtítulo Deaf Studies Talking também vem carregado de significados. Passadas as lutas da surdez como patologia clínica, o entendimento de que a arte de se comunicar, sob todas as suas formas - aí incluídas as Línguas de Sinais - é inerente ao ser humano, independente da forma, trouxe mudanças. Mudanças, incluídas aí o entendimento de termos como "voz", e "fala", que são exatamente os termos hegemônicos contra os quais os Surdos querem "vociferar": como adquirir uma voz sem sons?! Segundo Humphries (p. 4), "[...] o Surdo teve que criar a sua própria voz, aprender a ouvir a sua própria voz, e agora resta compelir outros a ouvirem (esta voz)".

Tópicos propostos para Estudos Surdos abordados na obra

A primeira parte da obra coloca o campo em perspectiva, apontando para uma voz Surda particular, pública e que "fale" em seus próprios termos. No capítulo 1 (p. 35) "Talking Culture and Culture Talking", Tom Humphries conclama a se passar da fala da cultura que busca "provar alguma coisa" (i.e. "Como somos diferentes") para se buscar a circulação e aceleração de cultura (i.e. "Como estamos sendo"). Esta segunda fase, de acordo com o capítulo 2 (p. 42) de Paddy Ladd, "Colonialism and Resistance: a Brief History of Deafhood", seria a de buscar epistemologias e ontologias em direção a um modelo centrado na práxis Surda (i.e. com encontros, movimentos, ativismo e engajamento) do estado existencial do Surdo "sendo-no-mundo". No capítulo 3 (p. 60), "The Deaf Convert Culture and Its Lessons for Deaf Theory", Frank Bechter demonstra a importância de se mostrar o que é exclusivo e instrutivo a respeito da cultura e da língua: para que a "voz" subalterna possa ser ouvida os Estudos Surdos devem produzir teoria (ao invés de apenas consumir) de maneira a fornecer conteúdo e forma nas próprias bases do discurso contemporâneo.

Na parte dois, continua-se a busca por orientações epistemológicas como elementos formativos, associando a percepção visual do Surdo com o senso de comunidade. No capítulo 4 (p. 83), "Upon the Formation of a Visual Variety of the Human Race", Benjamin Bahan se vale da linguística, da cognição, da arte e da literatura para mostrar como as práticas visuais do Surdo se imiscuem em outros grupos culturais. Esta dimensão visual faz do Surdo um ser do mundo, como mostra o capítulo 5 (p. 100), "Coequality and Transnational Studies: Understanding Deaf Lives", de Joseph J. Murray, propondo estudos de proximidades transnacionais. Na direção oposta, no capítulo 6 (p. 111), "Sound and Belonging: What Is a Community?", Hilde Haualand mostra como o som influencia a identidade ao entender que confundir língua com fala é consequência da metafísica do som, e aponta para caminhos paralelos à construção do Branco nos Estudos Negros, e da Masculinidade nos Estudos da Mulher. A partir desta perspectiva, um estudo antropológico pode considerar o conceito de "escutar" pela sua diferença.

A parte três continua a crítica a conceitos dominantes ao abordar a Língua. No capítulo 7 (p. 127), "On the Disconstruction of (Sign) Language in the Western Tradition: A Deaf Reading of Plato's Cratylus, H-Dirksen L. Bauman aponta a falha do fato de que noções de língua, ser, natureza e identidade foram construídas sem se considerar todas as modalidades; com implicações que atingiram todos os demais aspectos envolvendo língua, literatura e letramento, como mostra o capítulo 8 (p. 146), "Turning Literacy Inside Out", de Marlon Kuntze, que aponta para a conexão entre língua e cognição no modo manual. O capítulo 9 (p. 158), "Critical Pedagogy and ASL Videobooks", de Lawrence Fleischer, aponta as dificuldades de se produzir vídeos. Permita ao resenhista acrescentar que a tecnologia e estudos recentes já permitem pleitear o caso de uso de um sistema de escrita de Língua de Sinais (GUIMARÃES; GUARDEZI; FERNANDES, 2014).

Ao redefinir bordas e fronteiras, tanto físicas e culturais quanto as de identidade, a parte quatro mostra a complexidade de se encontrar um lugar e uma identidade para o Surdo. No capítulo 10 (p. 169), "The Decline of Deaf Clubs in the United States", Carol Padden argumenta que os clubes, lugares de encontros, estão em declínio por mostrar, historicamente, como as vidas dos Surdos têm mudado, tanto quanto ao seu trabalho quanto às suas relações de classe, raça, gênero e etnia, e a questão de local é agora "[...] uma questão de fronteiras móveis em um mundo pós-moderno". No capítulo 11 (p. 177), "Think-Between: A Deaf Studies Commonplace Book, Brenda Jo Brueggemann discute uma outra fronteira: aquela que se situa entre o surdo e o Surdo. Há o Surdo que pensa como o ouvinte - ou seja, prefere falar, usar o telefone e outros benefícios da maneira do ouvinte. Um exemplo deste espaço intermediário é tratado no capítulo 12 (p. 189), "Border Crossings by Hearing Children of Deaf Parents: The Lost History of Codas", em que Robert Hoffmeister trata de crianças ouvintes de pais Surdos (aproximadamente 90% dos casos), do qual ele é um representante. Estas crianças são, por natureza, habitantes de várias fronteiras (físicas, políticas, sociais, psicológicas, fisiológicas) que se sobrepõem. Estas crianças normalmente terão filhos ouvintes, e pertencem, portanto, a apenas uma geração, ou seja, bem próximas das fronteiras, e, portanto, sentem antes, de perto e mais intensamente os impactos destas fronteiras, sobretudo na questão da definição de identidade Surda.

A parte cinco explora as múltiplas interseções que formam identidades, ampliando o discurso da diversidade inerente ao mundo Surdo. No capítulo 13 (p. 219), "Dysconscious Audism: A Theoretical Proposition", Genie Gertz analisa a internalização do discurso hegemônico do audismo, e de como este conhecimento deve ser usado para mudar as práticas e atitudes. No capítulo 14 (p. 235), "The Burden of Racism and Audism", Lindsey Dunn faz um paralelo entre racismo e audismo, mostrando como a discriminação segue padrões que devem ser entendidos e combatidos. No capítulo 15 (p. 251), "Where is Deaf HERstory?", Arlene B. Kelly mostra a elisão de perspectivas femininas (e outras como gênero, raça, classe, etnia etc.). A autora questiona se há um ponto de vista epistemológico feminista Surdo. De forma similar, no capítulo 16 (p. 264), "Queer as Deaf: Intersections", MJ Bienvenu trata da questão homossexual.

A parte seis trata de deficiência, em que a questão do ensino bilíngue se faz mais presente - sobretudo ao se misturar com inclusão. No capítulo 17 (p. 277), "Do Deaf People Have a Disability?", Harlan Lane desmistifica a questão ao apontar que a deficiência é um rótulo. O autor rejeita o rótulo (clínico), por entender que o mesmo traz consigo o discurso e a prática de se voltar à "normalidade" (como remover a surdez, por exemplo). No capítulo 18 (p. 293), "Beyond Culture: Deaf Studies and the Deaf Body", Douglas C. Baynton também rejeita o rótulo clínico, mas apregoa que o modelo social de deficiência, a ser estudado, explica muitas das experiências do Surdo que o modelo cultural não contempla. E no capítulo 19 (p. 314), "Postdeafness", Lennard J. Davis questiona o modelo de identidade único, que engessa o Surdo em uma etnia "pura", em uma imitação dos piores aspectos de se definir as pessoas pela raça, por exemplo. O autor propõe transcender estas questões, para que se criem modelos flexíveis e não hierárquicos de forma humana de ser, além da armadilha da identidade.

Ao cobrir tópicos tão diversos, a obra explora elementos únicos de uma minoria "visual vivendo em um mundo fonocêntrico" (p. 4). Esta gama de objetos a serem explorados amplia as fronteiras do campo de Estudos Surdos, tornando-as permeáveis e multifacetadas, com interseções complexas e pouco conhecidas. A obra propicia experiências que mostram como a falta de um sentido (a audição) se transforma em plenitude fenomenológica, em que o periférico se torna central e o Surdo se torna desejável.

Texto recebido em 1º de julho de 2014

Texto aprovado em 08 de agosto de 2014

  • BOURDIEU, P. Science de la science et réflexivité Paris: Verso Books, 2002.
  • FERNANDEZ, J. Peripheral Wisdom. In: Signifying identities Florence: Routledge, 1999.
  • GUIMARÃES, C.; GUARDEZI, J. F.; FERNANDES, S. Sign Language Writing Acquisition - Technology for a Writing System. In: 47th IEEE/HICS Kona, Hawaí'i. p. 120-129, 2014.
  • MENOU, M. J. Cultura, informação e educação dos profissionais de informação nos países em desenvolvimento. Ciência da Informação, Brasília, v. 25, n. 3, p. 1-12, 1996.
  • UNESCO. Mother Tongue Day New York, 2013. Disponível em: <http://portal.unesco.org>. Acesso em: 02/12/2013.
  • BAUMAN, H-D. L. (Editor). OPEN Your Eyes: Deaf Studies Talking. Minneapolis, MN: The University of Minnesota Press, 2008

    Cayley Guimarães
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      24 Set 2014
    • Data do Fascículo
      2014
    Setor de Educação da Universidade Federal do Paraná Educar em Revista, Setor de Educação - Campus Rebouças - UFPR, Rua Rockefeller, nº 57, 2.º andar - Sala 202 , Rebouças - Curitiba - Paraná - Brasil, CEP 80230-130 - Curitiba - PR - Brazil
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