RESUMO
O presente artigo tem como escopo principal apresentar, com base em dados de escala nacional, uma análise crítica acerca da normatização e legitimação do acesso e da participação do público-alvo da Educação Especial em instituições de ensino superior. Considerando-se que as normativas vigentes - ao se depararem com a pluralidade política, histórica, econômica, social e cultural - incidem, à sua maneira, sobre cada contexto. Assim se optou por realizar um estudo exploratório no âmbito das cinco regiões brasileiras, envolvendo as 54 universidades federais que declararam ter, em seu organograma institucional, Núcleos de Acessibilidade. Para tanto, em 2014 foi aplicado, junto aos coordenadores desses espaços, um questionário on-line, constituído de 148 questões abertas e fechadas, cujos dados foram tratados sob as abordagens de análise de conteúdo e análise estatística descritiva, culminando em três eixos de análise: 1) normatização dos núcleos de acessibilidade; 2) legitimação do atendimento ao público-alvo da Educação Especial; 3) demandas e desafios revelados em âmbito nacional. Os dados sugerem que a normatização do atendimento destinado a essa população no ensino superior nem sempre indica a legitimação de seus direitos. Por vezes, esse ainda se revela com base a uma concepção de acompanhamento que oscila entre assistência e prestação de serviços, em detrimento de uma concepção universal dos direitos de acesso, participação plena, formação profissional e realização de seus projetos de vida individuais no âmbito de todas as esferas da sociedade.
Palavras-chave: Ensino superior; Inclusão; Pessoas com deficiência; Normatização; Legitimação de direitos.
ABSTRACT
This article has the scope to present, based on national level data, a critical analysis about the normalization and legitimation of access and participation of the target group of special education in higher education institutions. Considering that the current regulations face the political, historical, economic, social and cultural plurality, reflecting differently on each context, we decided to conduct an exploratory study on the five Brazilian regions, involving 54 federal universities who have declared, in their institutional organization chart, to have disability services. To this end, in 2014, an online questionnaire was applied to the coordinators of these spaces, consisting of 148 open and closed questions, whose data were treated under the approaches of content analysis and descriptive statistics, culminating in three main axes of analysis: 1) normalization of disability services; 2) legitimation of service to the target audience of special education; 3) demands and challenges revealed nationwide. The data suggest that the regulation of the assistance offered to this group in higher education does not always indicate the legitimation of their rights. Sometimes this legitimation is still realized on the basis of a follow-up design that oscillates between assistance and services, on detriment of a universal conception of rights to access, full participation, professional training and realization of these people’s individual life projects under all spheres of society.
Keywords: Higher education; Inclusion; People with disabilities; Normalization; Rights legitimation.
Introdução
As normatizações inerentes à promoção do acesso de estudantes que compõem o público-alvo da Educação Especial às instituições de ensino superior (IES) começaram a ser traçadas há cerca de quatro décadas, representando um movimento sociopolítico transversal aos contextos de diversos países membros da Organização das Nações Unidas (ONU). (EBERSOLD, 2008; OECD, 2014). Concebendo um marco histórico desse processo, podemos fazer alusão à Declaração dos Direitos das Pessoas com Deficiência de 1975, que robustecia internacionalmente a garantia da participação dessa população em todas as esferas sociais e nos remete à então consignação determinante em que:
Quaisquer que sejam as origens, natureza e gravidade de suas deficiências, têm os mesmos direitos fundamentais que seus concidadãos da mesma idade, o que implica, antes de tudo, o direito a uma vida decente, normal e plena na medida do possível. (ONU, 1975, art. 3º).
Ainda que esse documento indicasse prerrogativas em âmbito internacional, importa evidenciar que, assim como as subsequentes normativas instituídas à luz dessa perspectiva, seus reflexos incidiram diferentemente em cada contexto, passando por diferentes interpretações, sobretudo ao se depararem com a pluralidade política, histórica, econômica, social e cultural dos diversos países. (OCDE, 2009; NEWMAN et al., 2009; HAUBEN et al., 2012; MELO, 2015; CABRAL et al., 2015; MELO; MARTINS, 2016). Ao questionar-se sobre esses movimentos de releituras políticas que ocorre no seio dos diversos micro e macro contextos, Prieto (2008) pondera que essas não ocorrem em sentido único, sugerindo uma dinâmica multidirecional, configurada tanto pelas influências das políticas globais sobre decisões locais, como dessas sobre aquelas globais.
Sob a perspectiva de releituras e ressignificações políticas em diferentes realidades, particularmente no que se refere à escolarização das pessoas com deficiência, a European Agency for Development in Special Needs Education destacou, em seu relatório, três modelos básicos de provisões educacionais para o atendimento a essa população, cada qual predominante à sua maneira nos países investigados: o de via única - one track approach; o de vias mistas - multi track approach; e o de vias paralelas - two track approach. (EURYDICE, 2003).
Diante desse panorama, sobre o qual não se pretende extenuar as diversas possibilidades de provisões educacionais, é inevitável corroborar com a multiplicidade de caminhos construídos que se convergiram, ao longo dos anos, em um destino comum: o de responder às necessidades educacionais de seus estudantes. Todavia, as estratégias que até então tangiam à educação básica, passaram a vislumbrar gradativamente o fomento à promoção de oportunidades de acesso e participação dessa população nos níveis mais elevados do ensino. (MENDES, 2006; EBERSOLD; CABRAL, 2016).
Conjecturando-se a legitimação desse movimento, a partir da década de 1980, viu-se a promoção de debates nacionais e internacionais dedicados a litígios inerentes à inclusão das pessoas com deficiência em contextos universitários. Naquele contexto, autores como Brown e Kayser (1981) e Brolin e Elliott (1984) já indicavam a necessidade do desenvolvimento de programas voltados à transição de pessoas com deficiência, não só da escola para a universidade, como também desse nível de ensino para o mundo de trabalho.
Na década seguinte, importantes movimentos se dedicaram às problemáticas intrínsecas a essa população, organizados no âmbito dos mais diversos contextos, tal como indicado por Cabral (2010), a saber: a Conferência Mundial de Educação para Todos, em 1990; o Seminário Regional sobre Políticas, Planejamento e Organização da Educação Integrada para Alunos com Necessidades Educacionais, na Venezuela, em 1992; a V Reunião do Comitê Regional Intergovernamental do Projeto Principal de Educação na América Latina e Caribe, em 1993, no Chile, que teve como documento-síntese a Declaração de Santiago; a Conferência de Salamanca, em 1994, quando foi elaborada e publicada a Declaração de Salamanca: sobre princípios, políticas e práticas na área das necessidades educativas especiais; e, em 1999, a Declaração da Guatemala, de 1999, resultante da Convenção Interamericana para a eliminação de todas as formas de discriminação contra as Pessoas Portadoras de Deficiência.
É nesse cenário que podemos destacar a Declaração Mundial Sobre Educação Superior no Século XXI: visão e ação, a qual enfatizou em seu preâmbulo a importância da atenção para a igualdade de acesso à educação superior, particularmente para as pessoas com deficiência. (UNESCO, 1998).
Todavia, não obstante tais movimentos e normativas locais, regionais, nacionais e internacionais, a comunidade científica ainda indicava naquela década uma incipiência de orientações e possíveis caminhos para a implementação e aprimoramento de serviços específicos voltados à promoção do acesso e participação das pessoas com deficiência em contextos universitários, ainda que estudiosos como Brinckerhoff, Shaw e McGuire (1992) e Raskind e Higgins (1998) tivessem identificado, em algumas realidades, iniciativas nessa direção.
Soma-se a essa fragilidade, o fato de que as décadas de 1980 e 1990 constituíram um período marcado pela ausência de dados sistematizados referentes à população com deficiência, o que pode ter contribuído com a invisibilidade social dessa população. (VALDÉS, 2006). Diante desse cenário, não surpreende que a UNESCO, já nos anos 2000, tenha alertado às nações sobre a educação das pessoas com deficiência e sua plena inclusão na sociedade ainda ser um dos mais desafiadores objetivos do século XXI. (UNESCO, 2009).
Graças a esses movimentos é que hoje, em 2016, podemos celebrar os dez anos de um marco político-histórico mundial: a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, cujas normativas incidiriam sobre as orientações políticas de diversos países, inclusive as brasileiras, e, particularmente, no âmbito dos direitos de acesso dessa população em instituições de ensino superior. (BRASIL, 2007, 2008a, 2015).
Pessoas com deficiências nas universidades brasileiras do século XXI: da normatização à “efetiva” legitimação de seus direitos
No Brasil, ações e programas governamentais buscaram legitimar, sobretudo a partir dos anos 2000, o que gradativamente estava sendo normatizado pela legislação em prol do acesso dos estudantes com deficiência à Educação, incluindo-se o nível de ensino superior. Dentre os principais documentos oficiais que permearam essa problemática em nosso país, podemos elencar: a Lei nº 10.436, de 2002; a Portaria nº 3.284, de 2003; o Decreto nº 5.626, de 2005; o Decreto-Lei nº 5.773, de 2006; o Plano Nacional de Educação sobre os Direitos Humanos, de 2007; e o Decreto nº 6.571, de 2008. Importa, contudo, destacar dois documentos nacionais que normatizaram a inclusão do público-alvo da Educação Especial no ensino superior: de uma parte, o Programa Incluir e, de outra, a Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva - PNEE-EI.
No que se refere ao Programa Incluir, Bruno (2011) e Melo (2015) evidenciaram a sua importância no cenário nacional ao propor ações que visavam à garantia do acesso pleno das pessoas com deficiências no ensino superior, fomentando-se a criação e a consolidação de núcleos de acessibilidade no âmbito das instituições federais de ensino superior (IFES).
De outra parte, mas não à margem da primeira mencionada, podemos fazer referência à Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva (PNEE-EI), que também definiu ações para a promoção de contextos inclusivos nas universidades brasileiras, sob a égide expressa a seguir:
No Ensino Superior, a transversalidade da educação especial se realiza por meio de ações que promovam o acesso, a permanência e a participação dos estudantes. Tais ações envolvem o planejamento e a organização de recursos e serviços a fim de promover a acessibilidade arquitetônica, nas comunicações, nos sistemas de informação, nos materiais didáticos e pedagógicos, os quais devem ser colocados à disposição nos processos seletivos e no desenvolvimento de todas as atividades que envolvem o ensino e a pesquisa. (BRASIL, 2008a, p.17).
Nesse contexto, a comunidade científica brasileira passou a investigar com maior rigor os reflexos das referidas ações, dos programas e das políticas sobre as diferentes realidades. Autores como Pereira (2008) e Rocha e Miranda (2009) desenvolveram seus estudos buscando explorar elementos inerentes a ações afirmativas e a inclusão de alunos com deficiência no ensino superior; a identificação de barreiras arquitetônicas em contextos universitários; o acesso e a permanência do aluno com deficiência em instituições de ensino superior.
Os referidos estudos indicam que temos, por um lado, as políticas que orientam as práticas de inclusão no ensino superior e, por outro, os seus reflexos sobre diversos contextos. Esse cenário sugere a necessidade de tais problemáticas serem exploradas e discutidas com maior austeridade pela comunidade científica. No que se refere ao atual decênio, é possível inferir que, dentre as diversas discussões emersas em estudos de pesquisadores brasileiros, podemos elencar:
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a adequação da acessibilidade nas universidades: estudos como o de Bisol et al. (2010) e o de Guerreiro, Almeida e Silva Filho (2014) sugerem que seja necessária a preconização da promoção e adequação da acessibilidade no meio acadêmico das universidades brasileiras;
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o ingresso e a permanência: o ingresso do aluno com deficiência nas universidades também é objeto de estudos, ainda que pouco discutido pela comunidade científica brasileira. (SILVA et al., 2012; CASTRO; ALMEIDA, 2014; TORRES; CALHEIROS; SANTOS, 2016). Em suas reflexões, Ansay (2009, 2010) destaca ainda a necessidade de se acompanhar o aluno desde a sua transição para a universidade, considerando-se que as imposições da trajetória de vida dos estudantes sobre suas escolhas e percursos universitários podem ser configuradas por grandes desafios;
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a implementação de núcleos e programas de apoio pedagógico: os estudos de Marques e Gomes (2014) e Ciantelli e Leite (2016) indicaram a importância de as instituições de ensino superior terem, em seus espaços e políticas, núcleos e programas de apoio pedagógico para fomentar a permanência do aluno, bem como oferecer práticas, recursos didáticos, tecnológicos e materiais pedagógicos adaptados e voltados ao público-alvo da Educação Especial;
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a garantia de Tradutores e Intérpretes de Língua Brasileira de Sinais - TILS: estudos indicam que, embora a comunidade surda esteja integrando cada vez mais as instituições de ensino superior, o número de intérpretes de Libras no ensino superior é incipiente. Sobre esse panorama, Lacerda e Gurgel (2011) indicam que, quando se compara o número desses profissionais de instituições públicas e privadas, identifica-se que cerca de 70% desses profissionais atuam em universidades particulares, somente 11% em universidades públicas, e o restante (19%) atuam em ambas as instituições. (LACERDA; GURGEL, 2011; ANSAY, 2015);
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a superação das diversas barreiras que possam dificultar o progresso acadêmico do alunado: a literatura indicou que grande parte dos estudantes que compõem o público-alvo da Educação Especial matriculados nas IES brasileiras encontram uma série de obstáculos, que os impedem de concluir o curso de graduação desejado, tais como: barreiras atitudinais, comunicacionais, arquitetônicas e pedagógicas. (FERNANDES; COSTA, 2015);
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formação profissional dos docentes para atender o público-alvo da Educação Especial: autores como Pereira et al. (2016) revelam que, outro fator que dificulta a permanência acadêmica dos estudantes com deficiência é a falta de (in)formação do corpo docente sobre a temática e sobre como lidar com esse alunado em contextos de ensino-aprendizagem.
Diante de tantos desafios intrínsecos às diferentes realidades brasileiras, revelados pela literatura, podemos questionar o embate entre a não legitimação dos direitos dos estudantes universitários com deficiência e as normatizações vigentes. Isso sugere, conforme apresentado, o distanciamento entre o que a comunidade científica identifica e o que é politicamente preconizado, por exemplo, pela atual Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência, a qual determina, como função do poder público, assegurar, criar, desenvolver, implementar, incentivar, acompanhar e avaliar o acesso à educação superior e à educação profissional e tecnológica em igualdade de oportunidades e condições com as demais pessoas. (BRASIL, 2015).
Contudo, questiona-se: de que maneira as IFES brasileiras estão se organizando em termos estruturais e de funcionamento a fim de legitimar os direitos de acesso, participação, permanência e formação do público-alvo da Educação Especial no ensino superior, com vistas a superar a mera normatização que insiste em velar, nas diferentes realidades brasileiras, os desafios impostos no processo de construção de contextos inclusivos em ambientes universitários?
Diante desse questionamento, objetivou-se construir um panorama nacional que pudesse vislumbrar uma representatividade dos caminhos percorridos pelos Núcleos de Acessibilidade das instituições federais de ensino superior brasileiras, particularmente no que se refere ao período de 2005 a 2014, em alusão aos dez anos de implementação do Programa Incluir, bem como reflexões acerca de suas atuais condições organizacionais, de funcionamento e dos principais desafios que essas instituições identificam no processo de legitimação dos direitos do público-alvo da Educação Especial no âmbito do ensino superior.
Para que alcançássemos esse objetivo, ousou-se mobilizar nacionalmente os coordenadores dos referidos espaços que, seguindo-se a metodologia descrita a seguir, robusteceram as discussões apresentadas no presente artigo.
Metodologia
Trata-se de um estudo exploratório realizado em escala nacional, com caráter qualitativo e quantitativo, desenvolvido em observância aos aspectos éticos da pesquisa e à Resolução nº 466/2012, sob anuência dos reitores de universidades federais e de seus respectivos coordenadores de núcleos de acessibilidade.
Nesse ínterim, de um total de 62 Universidades Federais Brasileiras, 54 instituições (87%) declararam ter Núcleos de Acessibilidade em suas respectivas estruturas institucionais e, portanto, foram essas as que compuseram o corpo de dados analisados na presente pesquisa, assim dispostas no território brasileiro: 31% na Região Sudeste (17 instituições); 22% no Nordeste (12); 19% no Norte (10); 19% no Sul (10) e 9% no Centro-Oeste (05).
Especificamente no que tange à caracterização dos 54 coordenadores de Núcleos de Acessibilidade participantes da presente pesquisa, o Quadro 1 reúne e delineia algumas informações específicas:
Perfil dos coordenadores de Núcleo de Acessibilidade das instituições federais de ensino superior brasileiras participantes do estudo
A esses participantes foi aplicado, entre agosto e outubro de 2014, um questionário on-line constituído de 148 itens de questões abertas e fechadas, e, considerando-se a natureza e a viabilidade do estudo, os dados coletados foram tratados sob as abordagens de análise de conteúdo e de análise estatística descritiva (BARDIN, 2002; BARBETTA, 1998).
Frente a esse panorama, o esforço no presente artigo foi o de apresentar a sistematização e a análise dos dados obtidos na pesquisa realizada em escala nacional e, à luz da literatura e de documentos nacionais e internacionais, discuti-los com vistas a alcançar os objetivos do presente estudo.
Resultados
Em busca de contextualizar aspectos que envolvam a normatização e a legitimação do acesso do público-alvo da Educação Especial em instituições de ensino superior brasileiras, respaldamo-nos em dados inerentes à realidade de Núcleos de Acessibilidade implementados nas universidades federais brasileiras. Desse panorama, foi possível sistematizar, reunir e analisar os resultados com base em três eixos temáticos principais, a saber: 1) normatização dos núcleos de acessibilidade na instituição; 2) legitimação do atendimento ao público-alvo da Educação Especial; 3) demandas e desafios revelados em âmbito nacional.
Eixo 01 - Normatização dos Núcleos de Acessibilidade nas IFES brasileiras
A fim de contextualizar a organização dos Núcleos de Acessibilidade no Brasil e tendo como referência o ano de criação do Programa Incluir em 2005, os dados sugerem que duas instituições já ofereciam, desde 1999 e de 2004, respectivamente, iniciativas na direção de oferecer um atendimento voltado especificamente ao público-alvo da Educação Especial no ensino superior (Figura 1).
Conforme indicado na Figura 1, após a implementação do Programa Incluir, 37% das universidades federais indagadas (20) implementaram serviços/programas nessa direção, entre os anos de 2005 e de 2009. Todavia, os dados indicam que mais de 59% o fizeram somente a partir do ano de 2010, indicando o quão recente as iniciativas institucionais configuram-se no cenário nacional. (BRASIL, 2008b).
Para além de implementar um núcleo de acessibilidade, autores como Rocha e Miranda (2009) e Ebersold e Cabral (2016) indicam a importância de a instituição respaldar a comunidade acadêmica em relação à garantia do atendimento educacional voltado ao público-alvo da Educação Especial. Nesse sentido, 63% dos coordenadores (34) afirmaram que suas respectivas instituições possuem normativas ou regulamentos institucionais que tratam dessa questão, dentre Resoluções (54%), Planos de Desenvolvimento Institucional (13,5%), Regimentos Específicos (10,8%), Portarias (8,1%), Projetos Político-Pedagógicos (5,4%), Circulares (2,7%).
Eixo 02 - Legitimação do atendimento ao público-alvo da Educação Especial
a) Organização, funcionamento e infraestrutura:
Podemos inferir que as normativas, às quais nos referimos no Eixo 01, podem indicar como e sob quais princípios as instituições devem se organizar a fim de prover o acesso, a participação plena e a formação do público-alvo da Educação Especial no ensino superior. Objetivando-se legitimar esses direitos, intui-se que seja necessário oferecer, organicamente, alguns aspectos primordiais, tais como: estrutura organizacional, estrutura física, orçamento, equipe de profissionais e definição do público-alvo a ser atendido. Isso, sem contar na promoção de iniciativas que permeiem a cultura institucional para se superar a invisibilidade social dessa população.
- Estrutura organizacional: no que tange à vinculação dos núcleos de acessibilidade, 58% das instituições indagadas indicaram que esses serviços são vinculados a Pró-Reitorias de Assuntos Estudantis (30%) ou de Graduação (28%). Nas demais instituições, esses espaços/serviços estão ligados diretamente à Reitoria (22%) ou a outras unidades (20%).
- Estrutura e acessibilidade física: para além de oferecer os espaços para o atendimento ao público-alvo e considerando-se a subjetividade das percepções dos participantes, 69% dos coordenadores alegaram haver acessibilidade parcial no entorno dessas estruturas, enquanto 28% dos participantes indicaram haver plena acessibilidade. Já em relação ao interior dos núcleos, os coordenadores declararam haver acessibilidade parcial (44%) ou plena (48%).
- Unidade orçamentária: apesar da implementação do Programa Incluir, pôde-se constatar que 44% declararam não ter unidade orçamentária própria para o desenvolvimento das ações promovidas pelos núcleos de acessibilidade.
- Equipe de profissionais: sobre esse aspecto, verifica-se uma heterogeneidade de profissionais que atuam no âmbito das equipes dos núcleos de acessibilidade, no que tange ao tipo e ao número de profissionais. Ainda que a média de profissionais por núcleo seja de três pessoas, aproximadamente, os profissionais mais presentes nesses espaços são aqueles com conhecimentos em Libras (78%), seguidos por pedagogos (50%), psicólogos (33%), assistentes sociais (30%), técnicos/assistentes administrativos (27%), docentes (19%), técnicos em assuntos educacionais (17%), bolsistas (14%), enfermeiros (3%) e técnicos voluntários (3%). Dentre os 20% restantes estão, em igual proporção: alunos voluntários, arquitetos, engenheiros eletricistas, fisioterapeutas, fonoaudiólogos, profissionais terceirizados, secretários executivos, técnicos em informática, técnicos em multimídia e terapeutas ocupacionais. Os dados sugerem, contudo, a escassez de profissionais com formação específica, tais como: revisor braile, guia-intérprete, instrutor de Libras e transcritor braile.
b) Público-alvo atendido pelos Núcleos de Acessibilidade
De acordo com o quantitativo descritivo do público-alvo no ano da pesquisa, 3.893 estudantes estavam sendo atendidos pelas instituições1. Em um quadro representativo sintético, pôde-se inferir que 39% das instituições atendem somente pessoas como deficiência; 37% pessoas com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento e/ou com altas habilidades/superdotação; 20% pessoas com deficiência e/ou transtornos globais do desenvolvimento; 4% pessoas com deficiência e/ou pessoas com altas habilidades/superdotação.
Para além dessa população, 45% das instituições indicaram o atendimento a outras populações específicas, compostas por pessoas com: dificuldades de relacionamento, problemas familiares, esquizofrenia, depressão, transtorno bipolar, síndrome do pânico, Síndrome de Tourette, transtorno de ansiedade, câncer, transtorno desintegrativo da infância, Transtornos de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH), dificuldades de aprendizagem, dislexia e distúrbios na fala.
Percebe-se, portanto, que nem todos os núcleos de acessibilidade têm delimitado o seu público a partir do que reconhece a PNEE-EI, o que pode trazer implicações, inclusive, em torno de orçamento e planejamento de ações. Como exemplo, podemos citar a rubrica orçamentária do PNAES, a qual está garantida apenas para os estudantes PAEE da graduação presencial com vulnerabilidade socioeconômica. Nesse cenário, como podemos abranger o atendimento a estudantes de outros níveis e modalidades de ensino, como aqueles da educação básica inseridos nas Escolas de Aplicação no âmbito da IES? E aqueles matriculados em programas de pós-graduação, cursos técnicos, entre outros? Será que a IES ao propor uma política de inclusão institucional deve limitar seu público com base em uma política nacional?
Eixo 03 - Demandas e desafios revelados em âmbito nacional
Considerando-se que a implementação dos Núcleos de Acessibilidade configura-se como um processo relativamente recente, não surpreende o fato de que existam dificuldades na consolidação de suas ações, a depender da realidade de cada instituição. Contudo, alguns dados alardeiam algumas demandas e desafios que persistem no cenário nacional, a saber: a) 89% indicaram a insuficiência no número de profissionais; b) 63% declararam falta de sensibilização e de conhecimento pelos docentes para atuarem com o PAEE; c) 48% destacaram a inadequação das condições infraestruturais de trabalho; d) 35% declararam que as famílias dos estudantes PAEE não participam do processo de sua orientação e/ou planejamento educacional; e, ainda, e) 28% ressaltaram a pouca participação e procura do PAEE aos núcleos, o que pode revelar dificuldades de alguns estudantes em autodeclararem a sua condição de deficiência na vida adulta em meio ao novo contexto educacional, sugerindo a ideia de desvinculação da superproteção, do caritarismo e do estigma social.
Considerações finais
O presente artigo indica que, embora se perceba evidentes avanços em torno das normatizações jurídicas para assegurar o direito das pessoas com deficiência na educação superior, ainda há um distanciamento constatado entre o que está posto no discurso legal e as condições efetivas para uma plena participação de sucesso acadêmico e social desse público no contexto universitário.
Essa realidade é evidenciada em vários estudos realizados no Brasil sobre a temática (MOREIRA, 2005; SILVA et al., 2012; PEREIRA et al., 2016; TORRES; CALHEIROS; SANTOS, 2016). No entanto, ainda predomina muitas lacunas e questões a serem investigadas quando o foco são os núcleos de acessibilidade. (GUERREIRO; ALMEIDA; SILVA FILHO, 2014; EBERSOLD; CABRAL, 2016; CIANTELLI; LEITE, 2016; MELO; MARTINS, 2016).
As lacunas e questões referidas em nosso estudo e as evidências apresentadas pela comunidade científica são reflexos de um processo tardio de emancipação do público-alvo da Educação Especial e de sua visibilidade social. Isso porque, ainda que as instituições tenham se mobilizado, sobretudo, ao longo dos últimos dez anos, em decorrência do ingresso dessa população no ensino superior, os dados indicam que a normatização desse atendimento nem sempre indica a legitimação de seus direitos. Estes frequentemente se esvaziam diante de uma realidade pouco articulada com contextos culturais, históricos, socioeconômicos e organizacionais, configurando-se, ainda, à luz de uma concepção de acompanhamento que oscila entre assistência e prestação de serviços em detrimento de uma concepção universal dos direitos de acesso, participação plena, formação profissional e realização de projetos de vida individuais e no âmbito de todas as esferas da sociedade.
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Pôde-se inferir que a maior parte dessa população é composta por pessoas com Deficiência Visual - Baixa Visão (33,2 %), seguida, respectivamente, por: Deficiência Física (28,1%); Deficiência Auditiva (18,5%); Surdez (7,6%); Deficiência Visual – Cegueira (6,1%); Deficiência Intelectual – (2,4%); Deficiência Múltipla (1,7%); Altas Habilidade/Superdotação (1,7%); Síndrome de Asperger (0,6%); Surdocegueira (0,1%).
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
Oct-Dec 2017
Histórico
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Recebido
05 Mar 2017 -
Aceito
30 Mar 2017