RESUMO
O presente artigo propõe explicitar uma análise sobre os fundamentos teórico-metodológicos da pedagogia histórico-crítica. Trata-se de uma pesquisa bibliográfica desenvolvida por meio das diretrizes para a leitura, análise e interpretação de textos filosófico-científicos. Tomou-se como hipótese que o destaque da teoria pedagógica histórico-crítica parte do princípio da relação entre história e filosofia como elementos fundantes para compreender e efetivar a prática pedagógica na esfera escolar. Neste sentido, por meio de um aprofundamento teórico sobre tal teoria, destacou-se que a história é compreendida como conteúdo e forma da filosofia e, sendo assim, a história se torna o eixo condutor do currículo escolar e, portanto, da prática pedagógica. Conclui-se que a articulação entre história e filosofia, por meio da concepção dialética da história, é primordial para a fundamentação teórico-metodológica da pedagogia histórico-crítica.
Palavras-chave: História; Filosofia; Educação; Pedagogia histórico-crítica
ABSTRACT
The present study aims to make explicit an analysis on theoretical-methodological foundations of historical-critical pedagogy. It is a bibliographic research developed through guidelines for reading, analysis and interpretation of philosophical-scientific texts. The hypothesis is that the standing out of historical-critical pedagogical theory starts from the relation between history and philosophy as foundation elements to understand and making effective the pedagogical practice in the school field. Thereby, through a theoretical deepening on the theory, we highlight that history is understood as philosophy content and path, and thus history became the driving force of the school curriculum, and wherefore, of the pedagogical practice. We conclude that the articulation between history and philosophy, through the dialectical conception of history, is paramount for the theoretical-methodological foundation of the historical-critical pedagogy.
Keywords: History; Philosophy; Education; Historical-critical pedagogy
Considerações iniciais
A prática pedagógica na esfera escolar deve, de maneira predominante, estar fundamentada por uma determinada teoria pedagógica, isto é, uma pedagogia. Por consequência, nas entrelinhas das distintas pedagogias existem elementos teórico-metodológicos que devem elucidar aspectos pertinentes para a prática pedagógica, tais como: concepção de mundo, concepção de educação, relação entre professor e aluno, método de ensino etc.
A pedagogia histórico-crítica tem como seu principal formulador o professor e pesquisador Dermeval Saviani. A constatação e justificativa de elaborar uma teoria pedagógica ocorreu na sua própria prática educativa. Concluiu, então, que a função da escola não está em “[...] mostrar a face visível da lua, isto é, reiterar o cotidiano, mas mostrar a face oculta, ou seja, revelar os aspectos essenciais das relações sociais que se ocultam sob os fenômenos que se mostram à nossa percepção imediata” (SAVIANI, 2011a, p. 201).
A proposição de Saviani se opõe às especificações das pedagogias tradicional e nova. Porquanto a função docente, para o autor, não ocorre via apenas o método da repetição (vertente tradicional), e nem exclusivamente pelo interesse espontâneo da realidade por parte do aluno (vertente escolanovista). O professor deve atuar como um pesquisador e criador, posicionando-se de maneira acentuada sobre sua área de atuação em consonância com a realidade concreta e, portanto, contribuindo para o seu desenvolvimento.
Uma teoria pedagógica deve ter como especificidade contribuir para que o indivíduo tenha condições de efetivar a passagem de uma visão sincrética, pela mediação da análise, para uma visão sintética sobre a estrutura dialética da existência humana. E foi justamente neste sentido que Saviani iniciou a sistematização de uma teoria pedagógica dialética. Em outras palavras, o autor procurou evidenciar “[...] a passagem da síncrese à síntese, pela mediação da análise, que veio a se afirmar como um elemento central na formulação da pedagogia histórico-crítica” (SAVIANI, 2011a, p. 217).
O objetivo do presente texto é realizar uma reflexão sobre os fundamentos teórico-metodológicos especificamente da pedagogia histórico-crítica, cuja ênfase está na relação fundamental entre história e filosofia. A pertinência de tal objetivo justifica-se, uma vez que procuramos evidenciar os avanços que essa teoria pedagógica concretiza no que se refere à condição de efetivar concretamente a finalidade da educação escolar: a promoção humana.
Com efeito, a história, nesse sentido, é compreendida como uma ciência unitária e a filosofia como uma ferramenta que problematiza a existência humana de uma maneira não espontânea. Tal posicionamento se aloja nas principais categorias do materialismo histórico-dialético. Isto porque, conforme expõe Saviani (2012a), a essência da pedagogia histórico-crítica está assentada nas sendas abertas pelas investigações de Marx sobre as condições histórico-sociais da existência humana. É neste contexto que essa teoria pedagógica se inspira, ou seja, tendo como principal fundamento a concepção materialista da história na articulação intrínseca com a concepção dialética em Marx. Por consequência, seguindo dicção de Saviani (2012a, p. 160-161), “aquilo que está em causa é a elaboração de uma concepção pedagógica em consonância com a concepção de mundo e de homem própria do materialismo histórico”.
Destarte realizamos, neste momento, uma reflexão que apresente elementos relevantes sobre a importância dessa relação entre história e filosofia, no que tange à fundamentação teórico-metodológica da pedagogia histórico-crítica. Com isto, este texto se organiza em dois momentos, a citar: 1) apresentação de elementos que evidenciem a história, no sentido marxista, como fio condutor da prática pedagógica na perspectiva histórico-crítica; 2) explicitação da filosofia como elemento em destaque, que apresenta condições cabais para a problematização da existência humana.
A história como ciência unitária: a importância da concepção dialética da história
A história, como ciência contribuiu, a partir da época moderna, para uma ruptura da visão cíclica do tempo, em proveito de uma visão progressiva “[...] que se projeta para frente, ligando o passado ao futuro por meio do presente. Surge aí a questão de se compreender a causa, o significado e a direção das transformações” (SAVIANI, 2015, p. 02). As transformações, por sua vez, correspondem ao movimento da história como totalidade.
A história é, por conseguinte, o conteúdo e a forma da filosofia e, assim, cabe enfatizar a filosofia como uma ferramenta que possibilita problematizar a existência humana no curso da história. A articulação entre história e filosofia é fulcral para analisar e intervir na prática social global e, portanto, também na própria prática educativa. Assim sendo, “o homem, além de se constituir em um ser histórico, busca agora se apropriar da sua historicidade. Além de fazer história, aspira a tornar-se consciente dessa sua identidade” (SAVIANI, 2013a, p. 02).
Todo indivíduo tem determinada consciência do passado, no sentido de história, como período imediatamente anterior aos eventos grifados na sua memória, por exemplo. Isto ocorre justamente pela relação do indivíduo com outros indivíduos mais velhos, inseridos em um determinado âmbito social. Estar inserido em uma comunidade humana implica que o indivíduo se situa em relação com o seu passado ou com o passado da sua comunidade, mesmo que ainda situando apenas para rejeitar o passado, ou seja, a história.
Tecnicamente, história é uma palavra de origem grega, cujo significado é investigação, informação. De acordo com Borges (2013, p. 11), esta palavra surge “[...] no século VI antes de Cristo (a.C.). Para nós, homens do Ocidente, a história, como hoje a entendemos, se iniciou na região mediterrânea, ou seja, nas regiões do Oriente Próximo, da costa norte-africana e da Europa Ocidental”.
Já Abbagnano (2007, p. 583), por sua vez, em um sentido filosófico, aponta que, em linhas gerais, o termo história remete a determinados fatores, como a informação, a narração ou a pesquisa e, por conseguinte, resulta em uma ambiguidade sobre o seu significado. Em consequência, o significado de história, por um lado, é “[...] o conhecimento de tais fatos ou a ciência que disciplina e dirige esse conhecimento (historia rerum gestarum) [...]” e, por outro lado, significa “[...] os próprios fatos ou um conjunto ou a totalidade deles (res gestae)”.
No presente trabalho, tomamos como base a seguinte proposição de Lombardi (2004): utilizaremos história para nos referir aos acontecimentos; e utilizaremos o termo ciência unitária e ciência da história (na acepção marxista), isto é, utilizamos tais termos, por meio de uma lógica-histórica para remeter ao desenvolvimento do conhecimento, na relação intrínseca entre natureza e o homem. Nesse sentido, Lombardi (2004, p. 145) afirma que:
A proposta de única ciência, a ciência da história, decorria para os fundadores do marxismo de uma necessidade lógica - do desenvolvimento do próprio conhecimento e do reconhecimento da íntima relação entre o homem e natureza e vice-versa - e histórica - do próprio desenvolvimento de forças produtivas materiais e, no seio destas, da indústria que promoveu praticamente a unidade entre a ciência natural e o homem.
Todavia, é necessário levar em consideração os métodos e as teorias que consubstanciam a ciência da história. Ademais, convém lembrar que estamos em tempos em que a própria história está sendo posta em discussão (SAVIANI, 2013a). Deve-se, portanto, investigar, consequentemente, qual a forma dada ao processo de construção do conhecimento histórico; isto porque, como pano de fundo de qualquer concepção de ciência da história há uma concepção de mundo, isto é, há sempre pressupostos ontológicos, filosóficos, axiológicos e gnosiológicos que consubstanciam qualquer concepção de história (LOMBARDI, 2004).
A pedagogia histórico-crítica, como já exposto, toma como inspiração a ciência da história com base nas produções de Marx. Hobsbawm (2013), em proveito de uma leitura marxiana da história, argumenta que é necessário estabelecer uma estrutura analítica para analisar a própria história. Essa estrutura deve ter como feição a constante capacidade e realização do crescimento humano, no sentido de dominar a natureza por meio do trabalho manual e intelectual (mental), da tecnologia e da organização social. Pois, de acordo com Hobsbawm (2013, p. 53), “sua realidade é demonstrada pelo crescimento da população humana do globo ao longo da história, sem retrocessos significativos, e o crescimento - particularmente nos últimos séculos - da produção e da capacidade produtiva”.
Consentaneamente, o primeiro pressuposto da história humana é a existência dos indivíduos vivos. Assim sendo, “o primeiro fato a constatar é, pois, a organização corporal desses indivíduos e, por meio dela, sua relação dada com o restante da natureza. Esse primeiro ato, específico da espécie humana, é o início da condição de produção dos meios de vida” (MARX; ENGELS, 2007, p. 87).
O modo com que o indivíduo condiciona a sua existência é estabelecido, primeiramente, no âmbito material e, posteriormente, no plano espiritual. Esse modo de produção não acontece apenas no aspecto da reprodução física do indivíduo, mas vai além. Em outras palavras, ele é “[...] uma forma determinada de sua atividade, uma forma determinada de exteriorizar sua vida, um determinado modo de vida desses indivíduos”. Destarte, “O que os indivíduos são, portanto, depende das condições materiais de sua produção” (MARX; ENGELS, 2007, p. 87).
Os objetos, os fenômenos, em suma, as ações humanas não podem ser compreendidas a partir de um ponto de vista micro estrutural. À vista disto, vale o posicionamento de Marx e Engels (2007) sobre a concepção de história:
Essa concepção da história consiste, portanto, em desenvolver o processo real de produção a partir da produção material da vida imediata e em conceber a forma de intercâmbio conectada a esse modo de produção e por ele engendrada, quer dizer, a sociedade civil em seus diferentes estágios, como o fundamento de toda a história, tanto a apresentando em sua ação como Estado como explicando a partir dela o conjunto das diferentes criações teóricas e formas da consciência - religião, filosofia, moral etc. etc. - e em seguir o seu processo de nascimento a partir dessas criações, o que então torna possível, naturalmente, que a coisa seja apresentada em toda a sua totalidade (assim como a ação recíproca entre esses diferentes aspectos). Ela não tem necessidade, como na concepção idealista da história, de procurar uma categoria em cada período, mas sim de permanecer constantemente sobre o solo da história real; não de explicar a práxis partindo da ideia, mas de explicar as formações ideais a partir da práxis material e chegar, com isso, ao resultado de que todas as formas e [todos os] produtos da consciência não podem ser dissolvidos por uma obra da crítica espiritual, por sua dissolução na “autoconsciência” ou sua transformação em “fantasma”, “espectro”, “visões” etc., mas apenas pela demolição prática das relações sociais [realen] de onde provêm essas enganações idealistas; não é a crítica, mas a revolução motriz da história e também da religião, da filosofia e de toda forma de teoria (p. 42-43).
No que se refere à compreensão da realidade concreta, Marx (2011b) expõe que o concreto é síntese de múltiplas determinações, ou seja, como unidade da diversidade. O concreto eclode no pensamento do indivíduo como um processo de síntese, como um resultado. Essa via metodológica é a via da história, sendo necessário ser aplicada ao conhecimento histórico para que se tenha a condição de compreender os condicionantes sociais que possibilitam a existência humana. Portanto, para compreender o modo de produção da existência humana é necessário compreender o modo de produção capitalista, por se tratar da forma atual e mais complexa dos modos de produção.
Em Marx (2011b) é possível compreender essa questão metodológica, uma vez que o autor realiza um trabalho profundo de análise e exposição sobre o modo de produção capitalista, de onde ressaltam suas principais categorias, as quais, inclusive, permitem compreender as especificidades dos modos de produção anteriores. Em suas palavras:
A sociedade burguesa é a mais desenvolvida e diversificada organização histórica da produção. Por essa razão, as categorias que expressam suas relações e a compreensão de sua estrutura permitem simultaneamente compreender a organização e as relações de produção de todas as formas de sociedade desaparecidas, com cujos escombros e elementos edificou-se, parte dos quais ainda carrega consigo como resíduos não superados, parte [que] nela se desenvolvem de meros indícios em significações plenas etc. A anatomia do ser humano é uma chave para a anatomia do macaco. Por outro lado, os indícios de formas superiores nas espécies animais inferiores só podem ser compreendidos quando a própria forma superior já é conhecida. Do mesmo modo, a economia burguesa fornece a chave da economia antiga etc. (MARX, 2011b, p. 59).
Neste caso, o autor analisa as determinações sociais que ainda não foram superadas, ou seja, as determinações referentes à sociedade burguesa. A superação é fundamental para estabelecer concretamente a transformação do formato social vigente para um novo formato de sociedade.
Assim sendo, podemos trazer à tona a importância da concepção marxiana de história para a pedagogia histórico-crítica, a partir de Saviani (2011b), o qual aponta a ciência da história como eixo articulador do currículo formativo das escolas. Uma vez que, para essa teoria pedagógica, é na história que o homem se constitui como tal, portanto, como um ser histórico. Ao olhar para a história é possível compreender quem somos no presente e o que podemos vir a ser no futuro. Por isto, em linhas gerais, o currículo escolar deve estar consubstanciado pela historicidade, pelo conteúdo histórico.
Ademais, a história é síntese da articulação de determinados processos, tais como: a) processo objetivo, pois “[...] se trata de uma processualidade que porta em si mesma uma especificidade primariamente independente das representações que dela façam os sujeitos [...]” (PAULO NETTO, 2006, p. 55); b) processo contraditório, pois a sua essência, atualmente, são os interesses antagônicos das classes sociais que compõem a sociedade; c) processo com sujeitos, caracterizados como sujeitos reais, que “[...] não se plasmam como personalidades singulares, mas como grupos sociais vinculados a interesses comuns” (PAULO NETTO, 2006, p. 55); d) processo conduzido por sujeitos determinados, isto é, “[...] sujeitos não se constituem aleatoriamente, mas segundo imperativos e possibilidades que se colocam concretamente nos espaços e tempos precisos” (PAULO NETTO, 2006, p. 55); e) e esses sujeitos são conscientes, atuando, portanto, no meio em que vivem não de uma forma cega, mas embasados pelo grau de conhecimento que possuem, interferindo decisivamente nas suas ações; f) processo constituído de diversas teleologias, isto é, “[...] um processo que é marcado pela ação dos sujeitos que têm finalidades, têm intenções, sendo, pois, um processo tencionado por sujeitos com suas próprias teleologias” (PAULO NETTO, 2006, p. 55).
A pedagogia histórico-crítica parte de uma teoria da história em que predominam as análises, via a reprodução ideal do movimento do real, que é a sociedade instituída pelos pressupostos do modo de produção capitalista. Por isto a importância de compreender o movimento do real por meio de uma ciência unitária, isto é, de uma ciência da história.
O que podemos perceber é que o desenvolvimento do homem e da sua história é realizado de forma intrínseca e, portanto, o homem deve ser compreendido como uma unidade em que, em última instância, não há a possibilidade de distinguir esses dois fios de desenvolvimento. Por mais que essa afirmação pareça ser óbvia, nem sempre ela é tomada como questão orientadora para análise da realidade concreta. Mais comumente, constata-se uma compreensão da história como apenas uma especialidade que se dedica a apresentar fatos passados, configurando-se como uma história ahistórica, a qual obscurece a compreensão da realidade na sua totalidade e, destarte, preconiza a questão da impossibilidade de compreender a realidade no seu todo, fortalecendo a visão pela via da fragmentação do real.
Portanto, a pedagogia histórico-crítica tem como pressuposto a problematização sobre o modo de produção para compreender o desenvolvimento histórico do homem. Este pressuposto implica questionar o papel da educação escolar no interior do modo de produção capitalista. Questionamento este que se desdobra, entre outras, nas seguintes indagações: Qual o escopo da educação escolar no contexto econômico-produtivo contemporâneo do Brasil? Quais as possibilidades de a educação escolar intervir nessa realidade? Por meio de quais instrumentos se pode, pela mediação da educação escolar, analisar, compreender e intervir na realidade? Sob vigilância de qual interesse social se deve refletir sobre a educação escolar?
Seguramente, a pedagogia histórico-crítica procura, por meio do seu aparato teórico-metodológico, responder tais questionamentos. Isto porque, o que está para esta pauta, é justamente a explicitação das condições histórico-sociais que levaram a impor a necessidade da construção dessa teoria pedagógica e, consequentemente, a compreensão das suas bases teóricas para que ela possa atender às demandas de uma educação escolar que esteja sob a vigilância crítica do mundo concreto (da realidade atual).
Ora, tal pauta se justifica pelo pressuposto que há uma relação intrínseca entre o modo de produzir a existência humana e a educação e, consequentemente, a historicização se faz não só pertinente, mas um tema cabal. Somente pela via da historicização dos conteúdos escolares, das ideias e propostas, enfim, dos conhecimentos que estão no interior do constante processo de desenvolvimento da humanidade é possível abranger o significado dos objetos e fenômenos sociais na sua essência. Uma vez que, “[...] o elemento educativo por excelência é a própria história, pois é nela que objetivamente os homens se constituem como homens”. A escola deve efetivar a elevação desse “[...] fenômeno objetivo à plenitude da consciência subjetiva operando a catarse, isto é, a ‘elaboração superior da estrutura em superestrutura na consciência dos homens’, conforme a definição de Gramsci” (SAVIANI, 2011b, p. 138).
Seguindo nessa tentativa de compreensão dos fundamentos da pedagogia histórico-crítica, passamos a refletir sobre a questão da filosofia, cuja forma e conteúdo é a própria história. O objetivo de abordar essa área do conhecimento é, principalmente, poder inferir qual o direcionamento dado por essa teoria pedagógica, no que se refere a explicitar a filosofia como o conhecimento que tem como objeto o próprio conhecimento.
[...] enquanto a ciência e o conhecimento em geral, em que a ciência constitui o setor organizado e sistematizado, têm por objeto as feições e ocorrências do Universo que envolvem o homem e de que ele também participa, o objeto da filosofia é precisamente esse “conhecimento” de tais feições e ocorrências. É assim conhecimento desse conhecimento (PRADO JR., 2012, p. 18-19).
A filosofia, neste sentido, se concentra dentro e no âmbito do conhecimento como objeto, conforme se observa a seguir.
A história como conteúdo e forma da filosofia
Há sempre a necessidade de o homem superar problemas para manter a sua existência e, destarte, a necessidade de filosofar estará sempre vigente, pois o que trata a filosofia são, justamente, “[...] os problemas que o homem enfrenta no transcurso de sua existência” (SAVIANI, 2013b, p. 12). A filosofia é a forma mais elaborada, o grau mais elevado da maneira de compreender a produção da existência humana pelo próprio homem. A necessidade de uma cultura filosófica é pertinente para ter possibilidade de compreender a realidade concreta, tornando-a primordial para a formação dos indivíduos na sua plenitude. Por esta razão, o filosofar deve estar no horizonte da atividade educacional sistematizada.
Por esta condição é que a pedagogia histórico-crítica toma a filosofia como necessária para a educação escolar. Destarte, “é ela, enfim, que possibilitará à ação pedagógica se tornar mais coerente, mais lúcida, mais justa, numa palavra, mais humana” (SAVIANI, 2014, p. 107).
Contudo, é preciso considerar que, por vezes, a filosofia é tratada pelo viés do senso comum, predominantemente como uma área do conhecimento desnecessária para lidar com a vida social (vida prática) dos indivíduos. Tal questão é evidente quando se realiza um esforço, implícito, para fazer com que a maioria dos indivíduos não tenha ciência do que realmente trata a filosofia e qual a sua importância na prática social.
Podemos ilustrar a questão da desconfiança sobre a filosofia ao trazer à baila uma narrativa evidenciada por Chauí (2014), ao discutir para que serve a filosofia. A autora expõe que Tales de Mileto, um dos primeiros filósofos que se tem registrado na história, andava perambulando pelo jardim olhando para o céu para poder conhecer o movimento dos astros - foi o primeiro homem a prever um eclipse. Mas, segundo a lenda, assevera Chauí (2014, p. 10), “[...] num determinado dia, Tales, pelo seu recorrente caminhar, tropeçou e caiu em um poço. Uma pessoa que o retirou do poço riu sobre o acontecido e mencionou: ‘Ei Tales! Como você há de saber o que se passa no céu se não consegue ver o que se passa na terra?’”. Essa anedota consagrou a imagem do filósofo como alguém distraído, que se ocupa com coisas distantes e não enxerga o que se passa à sua volta.
Chauí (2014) menciona, também, outra lenda que apresenta uma imagem semelhante: trata-se de Heráclito de Éfeso - também um dos primeiros filósofos da história - que tinha o costume de receber visitas de pessoas cujo objetivo era ouvir as palavras do filósofo. Porém, sempre que chegavam na sua casa, ao contrário do que imaginavam, Heráclito não estava realizando profundas meditações em um lugar reservado, mas estava ocupado realizando seus afazeres domésticos. Com isso, Heráclito dizia-lhes, conforme conta Chauí (2014, p. 10): “‘Aqui também se encontram os deuses’”. Em outras palavras: “[...] Heráclito estava querendo dizer que em qualquer lugar é possível ocupar-se com a busca da verdade. Que não é preciso afastar-se da vida cotidiana e do contato com as pessoas para fazer filosofia” (CHAUÍ, 2014, p. 10).
Essa questão também ocorreu com Sócrates, que costumava conversar com as pessoas na praça pública de Atenas. Lá ele realizava inúmeros questionamentos às pessoas presentes, chegando até o momento, conforme conta a história, em que as atormentava, pois seus questionamentos colocavam em dúvida as convicções delas mesmas, no momento em que explicavam os motivos de serem elas verdadeiras.
“Contemplar o Universo, como Tales, ouvir a verdade divina, como Heráclito, conversar com as pessoas, como Sócrates, eis várias maneiras de fazer filosofia” (CHAUÍ, 2014, p. 23). Todavia, em nossa sociedade é comum considerar que algo só pode existir se tiver alguma finalidade aparente na prática social, ou seja, se houver uma utilidade prática com visibilidade avançada e, comumente, com uma utilidade imediata “[...] de modo que, quando se pergunta ‘Para quê?’, o que se quer saber é: ‘Qual a utilidade?’, ‘Para que serve isso?’, ‘Que uso proveitoso ou vantajoso posso fazer disso?’” (CHAUÍ, 2014, p. 23).
Observa-se a forma como a filosofia é tratada atualmente, envereda para um sentido vazio da sua própria essência, ou seja, de compreender os problemas que ocorrem no decorrer do curso da existência humana. Podemos relacionar esse esvaziamento de valoração da filosofia com a própria história. É comum reduzir a sua importância para compreender, de forma fidedigna, a prática social dos homens.
Ao pensar a história e a filosofia por tais especificações, observa-se o predomínio da concepção de mundo aligeirada pelo senso comum. Essa concepção, no âmbito da educação escolar, está alocada no sentido de esvaziar a possibilidade de acesso ao conhecimento sistematizado pela classe subalterna (trabalhadora) da sociedade.
Em contrapartida, a filosofia como fundamento da pedagogia histórico-crítica organiza-se sob o aspecto da historicização, cujo objetivo se orienta em investigar a sua relação com a própria realidade histórico-social.
Para a pedagogia histórico-crítica, o ato de filosofar é de extrema pertinência para a compreensão da prática social e, consequentemente, da própria prática educativa. Neste aspecto, a filosofia, enquanto uma reflexão originária, enquanto uma forma de pensar, não está cingida pelos preceitos acadêmicos, isto é, como uma expressão, apenas, da comunidade científica. O filosofar está presente em todos os momentos dos indivíduos, em todas as culturas que compõem a sociedade atual.
No entanto, existem formas de pensar consubstanciadas por distintas compreensões e intervenções da realidade concreta. Existe a forma de pensar baseada na ação espontânea (não reflexiva) da consciência humana, ou seja, trata-se de uma forma de pensar de maneira precária, acidental. É tanto uma atividade individual como uma atividade coletiva, pois é fruto de representações conceituais e valorativas que, por sua vez, são sínteses de múltiplas determinações. Explicando de outro modo, é produto e produtor de bens materiais e imateriais produzidos historicamente e desenvolvidos socialmente pela humanidade.
Tal forma de pensar é caracterizada pelo senso comum e é pertinente a uma determinada camada social, que tem uma determinada cosmovisão sobre a realidade concreta. Mesmo nesta forma elementar de pensar há, implicitamente, a concretude de um alcance filosófico. Tendo em vista que, “funcionando como senso comum, como ideologia que costura a coesão do grupo ou ainda como mera expressão cultural de determinada sociedade, não há como negar o caráter de protoforma de uma consciência filosófica que se situa num nível de pré-reflexão” (SEVERINO, 2011, p. 19). Neste modo de pensar está contida uma determinada compreensão da realidade. Mesmo que seja de forma caótica, fragmentada e sincrética, nessa consciência há uma determinada concepção de mundo. Mas se trata de uma filosofia em que predomina um pré-saber assistemático, fragmentado, intuitivo, ideológico e implícito, isto é, se refere a uma filosofia de vida marcada por uma visão pragmática da realidade (SEVERINO, 2011).
Outra maneira de filosofar parte de aspectos epistêmicos, representações conceituais e posicionamentos valorativos que buscam investigar e compreender as problemáticas que permeiam as atividades humanas. Há uma retomada na compreensão intencional não só do mundo, mas da própria atividade consciente, específica da espécie humana.
A filosofia, nesta formatação, assume possibilidades de compreensão, a mais fidedigna possível, da realidade concreta, ou seja, com base em certo método ou, ainda, na sistematização dos elementos constitutivos para ir além do imediatismo. Observa-se, então, a importância da filosofia para todas as esferas sociais, principalmente para a educação.
Porém, ressaltamos que a forma sistemática da filosofia está imbricada nas suas especificidades (forma de refletir a realidade) e intencionalidades que detêm desdobramentos de distintas concepções de mundo. Em outras palavras, há inúmeras correntes filosóficas que preconizam distintas concepções de mundo e, consequentemente, corroboram para a reflexão enveredada para determinados interesses sociais. Assim, como somos atores e autores no interior de uma sociedade capitalista, os interesses estão unicamente para atender os interesses da classe dirigente ou para atender os interesses da classe subalterna da sociedade.
Desta constatação podemos realizar a seguinte indagação: que expressão filosófica pode contribuir com uma reflexão que atue imanente aos interesses da classe subalterna? Para a pedagogia histórico-crítica, essa fundamentação filosófica está contida na concepção dialética da história, sob os parâmetros marxistas. É pela concepção filosófica da dialética que é possível compreender a história da existência humana e, destarte, problematizar a função social da educação escolar e sua possibilidade de intervir concretamente na hodierna sociedade, contribuindo para atender as necessidades da classe subalterna.
Saviani (2014), com base na acepção gramsciana, aponta que a filosofia é a forma mais elaborada, em um grau mais complexo já desenvolvido de compreensão do homem pelo próprio homem. A filosofia é, comumente, a especialidade que mais - ou deveria ser - interessa a todos os homens. Isto porque todos os indivíduos pensam, constroem, no caldo histórico-social, pensamentos e expressões de si mesmos e dos objetos, dos fenômenos, etc. que compõem a realidade concreta. Todavia, apesar de todos os homens serem filósofos, “[...] nem todos exercem, na sociedade, a função de filosofar. Daí, então, os especialistas em filosofia que, entretanto, se dedicam a uma especialidade que interessa não apenas a poucos homens, mas a todos, à humanidade em seu conjunto” (SAVIANI, 2014, p. 102).
O conteúdo da filosofia, como expressamos anteriormente, é a história, ou seja, a produção da existência humana no decorrer do tempo. Portanto, para a pedagogia histórico-crítica, o ato de filosofar ocorre por meio da historicização. De acordo com Saviani (2014, p. 102-105), trata-se da “[...] concepção que toma a história não apenas como o conteúdo da filosofia, mas também, como o seu método, ou seja, que unifica na história o conteúdo e a forma da filosofia”. A filosofia, dessa maneira, põe “[...] em causa não os indivíduos ou sujeitos abstratos, mas os indivíduos reais, sujeitos históricos que se constituem como síntese de relações sociais” (SAVIANI, 2014, p. 102-105).
A história é um processo objetivo, contraditório, que envolve indivíduos que são, por sua vez, determinados, conscientes e constituídos por teleologias diversas. A história, como conteúdo e forma da filosofia, é a esteira fundamental para compreender o movimento do real. Por mais que os homens sejam ativos no meio que os circunda, isto é, que os homens realizem sua própria história; todavia, a realizam sob circunstâncias previamente dadas. Encontram-se, nesse processo, de acordo com Heller (2016, p. 13), os princípios da imanência e da objetividade: “à primeira vista, o princípio da imanência implica no fato da teleologia, ao passo que o princípio da objetividade implica na causalidade [...]”. Eis a possibilidade de efetivação das ações do homem ao interferir na realidade. Porém, tal questão não depende somente dele, mas, ao contrário, as condições objetivas do mundo real é que possibilitam ao homem suprir as suas necessidades. Por consequência, “[...] os homens aspiram a certos fins, mas estes estão determinados pelas circunstâncias, as quais, de resto, modificam tais esforços e aspirações, produzindo desse modo resultados que divergem dos fins inicialmente colocados etc.”.
Tal questionamento não corrobora, à guisa de ilustração, com as novas vestimentas (ou modismos) que cerceiam a condição de compreender a história na sua totalidade. Trata-se de um movimento que, de forma oblíqua, ofusca a essência do atual contraditório modo de produção. De forma antagônica (no que se refere ao avanço desta pedagogia), reiteramos que a concepção dialética da história, como condicionante para compreender o movimento do real é, cabalmente, a baliza teórico-metodológica da pedagogia histórico-crítica.
Assim sendo, podemos questionar: Como a pedagogia histórico-crítica, com base na concepção dialética da história, analisa e investiga a realidade concreta? Qual o aparato teórico-metodológico utilizado como instrumento para tal ação? Seguramente, para responder esta questão, é necessário realizarmos um esforço para compreender, da forma mais genuína possível, balizando-nos, principalmente, em Saviani.
Saviani (2008a; 2012b; 2013b) se ancora no método da economia política de Marx (2011a), em a Contribuição à crítica da economia política, para poder compreender o movimento do real pela via da relação do concreto, abstrato e empírico. Marx toma como pressuposto que o concreto é concreto por ser síntese de múltiplas determinações, ou seja, uma unidade de diversidade. O pensamento, neste sentido, é um processo de síntese e as determinações abstratas realizam a reprodução do concreto via pensamento.
O real não é resultado do pensamento, mas a totalidade concreta enquanto totalidade de pensamento (concreto de pensamento), é um produto do pensamento, isto é, uma atividade de conceber (compreender), mas não é alguma forma de conceito que está engendrado em si, “[...] que pensa exterior e superiormente à observação imediata e à representação, mas um produto da elaboração de conceitos a partir da observação imediata e da representação” (MARX, 2011a, p. 249). Neste contexto, “[...] o todo, na forma em que aparece no espírito como todo-de-pensamento, é um produto do cérebro pensante, que se apropria do mundo do único modo que lhe é possível, de um modo que difere da apropriação desse mundo pela arte, pela religião, pelo espírito prático” (MARX, 2011a, p. 249).
Saviani (2012b), por sua vez, expõe que o processo de produção do conhecimento ocorre por dois momentos: a) do empírico, isto é, do objeto que se apresenta na imediaticidade do indivíduo, do todo figurado na intuição. A visão do objeto pelo indivíduo, neste momento, está ainda em uma forma caótica, sincrética e, portanto, não se tem uma compreensão de como o objeto é constituído na sua essência. A necessidade de compreender o objeto se torna um problema que necessita ser resolvido. Por meio da primeira representação do objeto, ocorre a análise de conceitos, das abstrações e das determinações menos complexas; b) após atingir esse momento, realiza-se o caminho inverso, ou seja, chega-se, pelo intermédio da síntese, novamente, ao objeto, compreendido agora como uma totalidade composta por inúmeras determinações e relações.
No fenômeno consta sua essência, mas, ao mesmo tempo, o obscurece. A essência se manifesta no fenômeno de forma parcial ou por frações da sua especificidade. A essência, em última instância, não aparece na imediaticidade. Ela se manifesta como algo distinto daquilo que realmente é. Nesse sentido, “o fenômeno não é, portanto, outra coisa senão aquilo que - diferentemente da essência oculta - se manifesta imediatamente, primeiro e com maior frequência” (KOSIK, 2010, p. 16). Já a essência, ao contrário dos fenômenos, não se manifesta de forma direta, tanto que sua compreensão só é possível com base em uma atividade peculiar da espécie humana, quer dizer que só é possível pela via da filosofia. Neste caso, apontamos que a filosofia, conforme já exposto, deve estar orientada pela lógica dialética, uma vez que é por meio desta forma de apreensão da realidade concreta que se torna possível captar a essência das especificidades e dos elementos da realidade.
A lógica dialética, portanto, possui relevância para a compreensão do real pelo indivíduo. Logo, essa lógica deve estar em relevo no âmbito da filosofia, conforme salientado. A filosofia, pela lógica da dialética, contribui, desta forma, na apropriação pelo pensamento, de maneira mais fidedigna possível, do concreto que é, por sua vez, histórico e, consequentemente, ocorre na e pela práxis.
A filosofia pode contribuir com a exercício de ir para além da visão aparente dos fenômenos. Eis a necessidade de captar a essência do concreto. Mas é comum, atualmente, o homem atuar no meio que o circunda de forma deslocada da sua essência, ou melhor, descolado do processo que o produziu e produz. Uma vez que, “ele toma como essência aquilo que é apenas fenômeno, isto é, aquilo que é apenas manifestação da essência” (SAVIANI, 2013b, p. 16).
No processo de produção da existência humana, o homem é confrontado com inúmeras questões que devem ser supridas para que possa alcançar o seu objetivo, ou seja, ele se defronta com inúmeros problemas a serem resolvidos. O homem, portanto, enfrenta diversas necessidades para dar continuidade à sua existência. Com efeito, a essência do problema é a própria necessidade.
Contudo, cabe salientar que a necessidade, empregada aqui como a essência do problema, não está sendo compreendida como um aspecto da imediaticidade, isto é, via experiência individual, meramente subjetiva. A questão subjetiva e objetiva do problema está inter-relacionada por uma unidade dialética. O conceito de problema, portanto, está abarcado por uma unidade entre a conscientização de uma determinada situação de necessidade - processo subjetivo - e uma situação conscientizadora da necessidade - processo objetivo.
Em síntese, o problema possui extrema importância, no que tange ao constante processo de produção da existência humana; porquanto, apresenta uma condição de impasse. É uma necessidade imposta objetivamente e, consequentemente, assumida subjetivamente. “O afrontamento, pelo homem, dos problemas que a realidade apresenta, eis aí o que é a filosofia” (SAVIANI, 2013b, p. 19). De onde sobressai uma importante conclusão: “[...] que a filosofia não se caracteriza por um conteúdo específico, mas ela é, fundamentalmente, uma atitude; uma atitude que o homem toma perante a realidade. Ao desafio da realidade, representado pelo problema, o homem responde com a reflexão” (SAVIANI, 2013b, p. 19).
A filosofia, assim sendo, tem como significado primordial o problema que, por sua vez, implica na reflexão do indivíduo. A reflexão, portanto, no que lhe diz respeito, deve ser radical, rigorosa e de conjunto sobre dado problema. A partir desta condição, pode-se compreender, por exemplo, o significado de filosofia da educação, que é uma reflexão radical, rigorosa e global sobre os problemas encontrados no âmbito educacional.
Não existe um objeto consolidado da filosofia, mas a possibilidade de investigar, por meio dela, os problemas recorrentes da existência humana, de forma radical, rigorosa e de conjunto. E mesmo se atendo em alguma questão mais específica, como é o caso da educação, por exemplo, não se pode perder a base global, na qual o fenômeno está inserido.
Nesta contextualização, podemos evidenciar a sugestão de Saviani (2013b), referente à orientação do tipo filosofia de vida. A todo momento realizamos escolhas; porém, não significa que em todos esses momentos estamos refletindo. Isto porque a ação de realizar determinada escolha não pressupõe, obrigatoriamente, uma reflexão. Contudo, obviamente não existe a possibilidade de agir sem pensar. Aqui as escolhas são feitas de maneira espontânea, marcadas por quesitos que o próprio meio impõe ao indivíduo. Nesse processo não há consciência clara, coesa do motivo que levou a realizar uma deliberada ação.
O filosofar é, ao contrário da filosofia de vida, o início do ato de refletir. A reflexão é aberta, pois a resposta frente ao problema estabelecido pode ser encontrada em qualquer lugar. É onde se encontra a ênfase em uma reflexão de conjunto. Conforme ocorre a reflexão, aquilo que era obscuro começa a ficar mais tangível, “estrutura-se então uma orientação, princípios são estabelecidos, objetivos são definidos e a ação toma novos rumos tornando-se compreensível fundamentada, mais coerente. Nota-se que também aqui se trata de princípios e normas que orientam a nossa ação” (SAVIANI, 2013b, p. 26). A esta orientação, contrapondo à filosofia de vida, Saviani (2013b) aponta a ideologia.
O processo filosófico, na presente contextualização, está alocado nos preceitos da filosofia da práxis. A práxis é a atividade consciente e objetiva do homem. Conforme Sánchez Vázquez (2011), a práxis é o eixo central da filosofia “[...] que se concebe a si mesma não só como interpretação do mundo, mas também como elemento do processo de sua transformação” (SÁNCHEZ VÁZQUEZ, 2011, p. 30). A concepção da práxis, neste sentido, compactua com os pressupostos até então explicitados. Explicando de outro modo, há a necessidade cabal de superar a consciência comum, impregnada nas relações cotidianas do indivíduo, em proveito de uma consciência da práxis, a fim de poder compreender, por um ponto de vista objetivo, científico e histórico, a atividade prática do homem. Destarte, “[...] sem transcender os limites da consciência comum, não só é impossível uma verdadeira consciência filosófica da práxis, como também é impossível elevar a um nível superior - isto é, criadora - a práxis espontânea ou reiterativa de cada dia” (SÁNCHEZ VÁZQUEZ, 2011, p. 32).
Contudo, não há a possibilidade de romper com a consciência comum de forma unilateral. Uma vez que a atitude cotidiana coexiste com a reflexão filosófica, procedente da história dos homens, é partindo da consciência comum que se chega a uma autêntica concepção filosófica da práxis.
Gramsci (1978, p. 18) aponta que a filosofia da práxis se apresenta “[...] inicialmente, em uma atitude polêmica e crítica, como superação da maneira de pensar precedente e do pensamento concreto existente (ou mundo cultural existente). Portanto, antes de tudo, como crítica do ‘senso comum’ [...].” Diante disto, argumenta Gramsci (1978, p. 20), “[...] a filosofia da praxis (sic.) não busca manter os ‘simplórios’ na sua filosofia primitiva do senso comum, mas busca, ao contrário, conduzi-los a uma concepção de vida superior”.
Trata-se, em suma, de estabelecer a filosofia da práxis como a concepção de mundo, principalmente para a classe subalterna. Porém, não basta apenas deixá-la com esse status, uma vez que, atualmente, a classe subalterna está sob domínio do Estado e este, por sua vez, está atrelado aos interesses da classe dominante. Isto porque, “o problema de uma afirmação tanto teórica como prática coincide com a questão da superação da antinomia vulgarização-alta cultura: isto é, a passagem da subalternidade à hegemonia” (DAINOTTO, 2017, p. 303).
Neste sentido, a educação escolar, a partir dos fundamentos da pedagogia histórico-crítica, tem como função social intervir em proveito de uma formação da consciência de classe, ou seja, contribuir para que o trabalhador se reconheça como classe e como agente fundamental no processo de produção. E que, portanto, possa compreender que há a possibilidade de uma distinta relação social da atual.
Na esfera da educação escolar, deve-se enfrentar a desigualdade real como ponto de partida e, por conseguinte, direcionar e efetivar atividades desencadeadoras, cuja finalidade é a igualdade possível como ponto de chegada. Contudo, tal processo não pode ser justificado por ele mesmo; ao contrário, trata-se de um processo mutável, uma espécie de passagem ou de uma determinada transformação. É aquilo que Saviani (2008b; 2013c), apoiado em Gramsci, denomina como ponto catártico.
Eis o avanço da pedagogia histórico-crítica, no que se refere à finalidade da educação escolar como condição de contribuir, principalmente para os membros da classe subalterna, para o desenvolvimento da consciência de classe, ou seja, para a o salto qualitativo do senso comum à consciência filosófica. Dito de outro modo: as atividades pedagógicas, no bojo da educação escolar, a partir da relação dialética entre história e filosofia, contribuirão decisivamente para o cumprimento da sua função social: a promoção humana, isto é, a promoção integral do ser humano. Nota-se que há um avanço perante a ênfase pedagógica na questão da repetição (vertente tradicional) e a ênfase pedagógica na questão da espontaneidade (do mundo vivido) do aluno (vertente escolanovista).
Isto porque somos, enquanto seres humanos, seres históricos, ou seja, é durante o curso da história que somos desenvolvidos, e “[...] é por ela que nós nos conhecemos e ascendemos à plena consciência do que somos. Pelo estudo do que fomos no passado, descobrimos ao mesmo tempo o que somos no presente e o que podemos vir a ser no futuro” (SAVIANI, 2011b, p. 131-132).
Com efeito, justifica-se a condição da história ser o eixo articulador do currículo escolar. Isto porque, conforme salienta Saviani (2011b, p. 133):
Como eixo a história será o elemento em torno do qual todo o currículo está estruturado, isto é, todas as disciplinas estarão impregnadas de historicidade, serão atravessadas pelo conteúdo histórico. Como o que está em causa nessa proposta é o próprio conteúdo objetivo da história, poderíamos dizer que ela se impõe para além das diversas perspectivas de compreensão da história. No entanto, é igualmente claro que essa maneira de encarar a história, a possibilidade de tomá-la como eixo articulador dos currículos formativos e o próprio entendimento da história como processo objetivo indicam tratar-se da concepção dialética da história cuja matriz foi explicitada no âmbito do marxismo.
No que se refere à apresentação dos elementos supracitados para elucidar a importância da relação entre história e filosofia, ou seja, a história como conteúdo e método da filosofia, salienta-se a pertinência e a contemporaneidade dos fundamentos teórico-metodológicos da pedagogia histórico-crítica, como uma teoria pedagógica eficaz para o norteamento da prática pedagógica.
Considerações finais
O presente manuscrito buscou apresentar elementos que elucidam o aparato teórico-metodológico da pedagogia histórico-crítica. Constatamos que a relação entre história e filosofia é fundamental para compreender e intervir na esfera da educação escolar em uma perspectiva em prol da transformação social.
O destaque que atribuímos à pedagogia histórico-crítica, conforme mencionado anteriormente, é a ênfase no conteúdo histórico dos elementos a serem trabalhados na esfera da educação escolar. Tal condição somente ocorre ao se aproximar da maneira mais fidedigna possível da essência dos objetos e fenômenos sociais (da realidade concreta). Com isto, abre-se a possibilidade de compreensão das máximas objetivações humanas, bem como as suas complexidades. Estabelece, assim, a real conjuntura para compreender a situação atual da realidade concreta e a necessidade e possibilidade da transformação social. A partir da concepção dialética da história, na acepção marxiana e marxista, é possível estabelecer um domínio, via consciência teórica, do movimento real da própria história, isto é, do processo em constante desenvolvimento da existência humana.
Como se sabe, a construção da pedagogia histórico-crítica é um processo em constante movimento e coletivo, e este texto procurou contribuir no sentido de explicitar os avanços consolidados por essa teoria pedagógica, no que se refere à análise e compreensão das especificidades da educação escolar, dando destaque na relação entre história e filosofia. Todavia, como uma demanda obrigatória de ações científicas de cunho analítico, urge como necessário aprofundar e elucidar (dados os limites do presente manuscrito), em nossa compreensão, demais elementos e condições que analisarão como essa relação, a partir da concepção marxista de ciência unitária e da concepção dialética da história, pode ser efetivada no âmbito escolar, dada a situação atual da realidade concreta.
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
26 Set 2019 -
Data do Fascículo
Jul-Aug 2019
Histórico
-
Recebido
10 Dez 2018 -
Aceito
27 Mar 2019